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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

ARTIGOS

 

Frida Kahlo e Diego Rivera: paixão e dor

 

Frida Kahlo and Diego Rivera: passion and pain

 

 

Gina Khafif Levinzon*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica na Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Algumas ligações amorosas nos intrigam pela tenacidade em se manter apesar da grande intensidade de frustração e sofrimento que acarretam ao sujeito. A pergunta que surge é: o que determina a escolha insistente para objeto de amor de um parceiro que não corresponde ao afeto nele depositado? Este trabalho procura examinar a relação tumultuada de Frida Kahlo com seu marido Diego Rivera, que tomava um lugar central na vida da pintora e se caracterizava por experiências repetidas de dor. Ela sentia que ele representava “mais que sua própria pele”, como se esperasse reproduzir através da ligação com ele o sentimento de fusão inicial que um bebê estabelece com sua mãe nos primórdios de sua vida. O que se repetia, no entanto, era o fracasso em construir um elo primitivo suficientemente bom, que lhe faltou na sua relação inicial com a mãe. A tenacidade com que ela mantinha a ligação com Diego podia estar baseada em uma tentativa de dominar a situação traumática, ou ainda em uma forma de manutenção do elo com a “mãe morta”, a mãe ausente e deprimida. Por meio da pintura e de seus autorretratos, Frida Kahlo podia ser “mãe de si mesma”, e encontrava um canal criativo para lidar com suas emoções e sua dor.

Palavras-chave: Frida Kahlo, Diego Rivera, Paixão, Relações amorosas, Ferida narcísica, Patologia do elo amoroso.


ABSTRACT

Some liaisons intrigue us for their tenacity to remain, despite the great intensity of frustration and suffering they cause to the person. The question that arises is: what determines the persistent choice of a love partner that doesn´t correspond to the affection the partner gives? This work examines the tumultuous relationship between Frida Kahlo and her husband Diego Rivera, who was the central Frida’s life, that was characterized by repeated experiences of pain. Frida felt that Diego represented “more than her own skin,” as if she expected to reproduce through the link with him the initial fusion feeling established by the baby in his early life. What was repeated, however, was the failure to build a good enough primitive link, that lacked in Frida’s initial relationship with her mother. The tenacity with which Frida kept the connection with Diego seemed to be based on an attempt to master the traumatic situation, or in a way of maintaining the link with the “dead mother” who is seen as the absent and depressed mother. Through the paintings and her self-portraits, Frida Kahlo was a “mother of herself” and found a creative way to deal with her emotions and her pain.

Keywords: Frida Kahlo, Diego Rivera, Passion, Love relationships, Narcissistic injury, Pathology of the love link.


 

 

na saliva
no papel
no eclipse
em todas as linhas
em todas as cores
em todos os jarros
em meu peito
fora. dentro.
no tinteiro − nas dificuldades de escrever
no assombro de meus olhos. nas últimas
linhas do Sol (o Sol não tem nenhuma linha) em
tudo. dizer “em tudo” é idiota e magnífico
DIEGO em minha urina DIEGO em minha boca − em meu
coração e minha loucura. em meu sono − no
papel mata-borrão – na ponta da caneta
nos lápis − nas paisagens − na
comida − no metal − na imaginação.
nas doenças – nas vitrines −
em suas lapelas − em seus olhos − em sua boca.
em sua mentira.

Poema sem data, dado por Diego Rivera a Teresa Proenza
Cartas apaixonadas de Frida Kahlo (Zamora, 2006, p. 158)

Os estados de paixão são o motor da alma humana. Trazem cor e vida aos relacionamentos e permitem que as pessoas se unam criativamente e perpetuem a sua espécie. Cantados em verso e prosa, retratados pelos artistas, pelas pessoas dos mais diversos grupos sociais, relatados copiosamente nas sessões de análise, os sentimentos apaixonados são um tema universal e envolvente.

Deparamo-nos por vezes, no entanto, com estados de apaixonamento que nos intrigam pela sua tenacidade e pela dor a eles associada. O que determina a escolha insistente para objeto de amor de um parceiro que não corresponde ao afeto nele depositado? Na linguagem comum, por que sofrer tanto? Será masoquismo, cegueira? Todo cuidado é pouco ao se aventurar por generalizações nesta área. Sabemos que esta não é uma resposta fácil de encontrar, considerando a imensa diversidade que caracteriza o ser humano. No trabalho psicanalítico, nossos pacientes nos apresentam com muita frequência questões deste tipo, e é preciso um trabalho árduo para desvendar, quando possível, as raízes desses estados sofridos de paixão.

Algumas pessoas, como a pintora Frida Kahlo, nos presentearam com um vasto material por meio de suas pinturas e escritos, que nos permitem fazer algumas conjecturas a esse respeito. Sua relação tumultuada com o marido Diego Rivera tomou um lugar central em sua vida e, como mostra a poesia acima transcrita, era sentida como se tomasse todo o seu ser.

A partir da consideração de alguns aspectos da vida e da obra de Frida Kahlo, este trabalho tem como objetivo refletir sobre as raízes inconscientes presentes na paixão tenaz por um objeto amoroso que continuamente traz frustração e dor.

 

A vida de Frida Kahlo e o casamento com Diego Rivera

Frida Kahlo nasceu em Coyoacán, México, em 1907. Seu pai, Guilhermo Kahlo, nasceu na Alemanha e emigrou para o México aos dezenove anos de idade, em seguida ao segundo casamento de seu pai. Lá se casou e teve três filhas desse casamento. Uma de sua filhas morreu pouco depois do nascimento e sua esposa morreu após o último parto. Logo em seguida casou-se pela segunda vez, com Matilde Calderón, que trabalhava com ele em uma loja. Matilde era uma mestiça católica devota, que havia sido criada por freiras. O casamento não foi feliz. Matilde contou à filha Frida, mais tarde, que não o amava, que tinha se casado com Guilhermo porque ele era alemão e lhe lembrava um namorado anterior que se matou em sua presença para provar seu amor (Grimberg, 2006). O casal teve cinco filhos, sendo que o terceiro, único menino, veio a falecer pouco depois do parto. O nascimento de Frida ocorreu em seguida à perda desse irmão, e onze meses depois nasceu sua irmã Cristina. Há evidências de que sua mãe tenha sofrido de depressão pós-parto e Frida foi entregue a uma ama de leite índia para ser amamentada. Esta última foi despedida por terem descoberto que abusava de álcool e foi substituída por uma segunda ama de leite, que se encarregou da alimentação do bebê. Frida retratou seu nascimento e a amamentação em seus quadros Meu nascimento (1932) e Minha ama e eu (1937) de maneira impressionante1. No primeiro se vê sua mãe, morta, com o rosto coberto por um lençol, dando à luz Frida, que parece estar nascendo por si só. No alto, o quadro da Virgem dos Lamentos, em prantos. No segundo quadro, Frida bebê está nos braços da ama de leite, cujo rosto está coberto por uma máscara de ferro. Não há contato visual da ama com o bebê, apenas um ato mecânico de amamentação. O leite escorre do mamilo para a boca de Frida, sem que sua boca toque o mamilo da ama. Nos dois quadros citados vemos Frida bebê, o rosto contraído, absorta em seu esforço de sobrevivência. Fica muito claro o registro de inadequação e distanciamento que a artista fez dos primeiros cuidados e do contato materno primitivo.

O contato com o pai fotógrafo, pelo contrário, deixou-lhe uma herança rica e criativa: com ele teve os primeiros contatos com a pintura e adquiriu o gosto pela arte e pela cultura de modo geral. Epiléptico, Frida foi encarregada de acompanhá-lo em seu trabalho. Ele insistia em que ela tivesse uma boa educação escolar e esperava que ela pudesse cursar uma universidade.

Alguns fatos marcaram a vida de Frida: a poliomelite, aos seis anos de idade, que deixou como sequela uma perna mais fina e curta, e um acidente, aos dezoito anos, quando estava em um bonde com o então namorado Alejandro Gómez. Ela ficou gravemente ferida e teve de permanecer imobilizada na cama por mais de três meses, quando, “para vencer o tédio”, começou a pintar. Foi fixado um espelho no dossel da cama e Frida tornou-se seu próprio modelo. Inaugurou-se assim um canal por meio do qual ela expressava seus sentimentos, angústias e aflições. Seus autorretratos, a parte mais importante e expressiva de sua obra, representavam uma busca inequívoca de elaboração de conteúdos psíquicos quase sempre caracterizados por angústia e dor.

A história de Frida Kahlo e Diego Rivera começou quando ela foi lhe mostrar seus desenhos para saber sua opinião sobre o seu talento e se deveria prosseguir com a pintura como atividade profissional. Diego era um pintor mexicano de renome, a quem Frida já admirava desde que o vira pintando afrescos na Escola Preparatória, onde havia estudado. Iniciou-se o romance que culminou com o casamento, ocorrido em agosto de 1929. Frida tinha então 22 anos e Diego era 21 anos mais velho que ela. Ele já havia sido casado várias vezes e tinha três filhas, além de inúmeros casos com mulheres.

Muitos dos amigos de Frida, assim como sua mãe, tiveram dificuldade em aceitar seu casamento com Diego, um homem muito gordo e grande e com tanta diferença de idade (“o casamento de uma pomba com um elefante”). Eles tinham, no entanto, pontos importantes em comum: os ideais comunistas e mexicanistas, o amor pela arte, a curiosidade e o interesse pela vida. Para Grimberg (2006), Frida havia sido conquistada não só pela personalidade de Diego, mas também por sua fama: Rivera dava a Frida um sentimento de ser especial, por tê-la escolhido entre tantas outras. Mas embora ela tivesse um papel de destaque em sua vida, ele continuava sendo um conquistador incorrigível, um mentiroso compulsivo, capaz de alternar comportamentos gentis e carinhosos com arroubos cruéis e agressivos. Frida observou posteriormente que, mais do que imoral, ele era amoral.

Pouco tempo após o casamento, as relações extraconjugais de Diego ficaram evidentes e provocavam em Frida grande sofrimento. Para agradar-lhe, ela começou a se vestir com os costumes Tehuana, e enfeitava-se com fitas coloridas nos cabelos e adereços indianos típicos do México. Frida teve vários abortos, alguns provocados, outros involuntários. Seu desejo de ter um filho com Diego ficaria frustrado, causando-lhe muita dor. Ele a incentivava a pintar. Quando ela estava em depressão ou infeliz, ele lhe dizia: “Pinte!”. Ele parecia compreender que esta era a forma pela qual ela poderia transformar seus estados emocionais turbulentos e reorganizá-los de forma criativa. Afinal, provavelmente era isso que se passava com ele também, por meio da pintura...

O caso de Diego com Cristina, sua irmã mais nova, trouxe enorme sofrimento a Frida. Sobre isto ela escreveu:

Estou completamente só. Antes, costumava passar os dias chorando, de raiva de mim mesma e de dor: agora, nem consigo mais chorar, pois percebi que era estúpido e inútil... Nunca achei que ele fosse tudo para mim, e que, separada dele, eu fosse um monte de lixo. Eu julgava estar ajudando-o a viver, tanto que me era possível, e que eu era capaz de resolver sozinha qualquer situação da minha vida, sem nenhum tipo de complicação. Mas agora percebo que não tenho nada além de qualquer outra moça, decepcionada por ser abandonada por seu homem. Não valho nada; não sei fazer nada; não consigo estar sozinha. (Zamora, 2006, pp. 66-67)

A dor de Frida levou-a a se separar temporariamente de Diego e a uma overdose de barbitúricos (Grimberg, 2006). Havia sido traída pelas duas pessoas que mais amava. Rivera, por sua parte, parecia confirmar o que escreveu posteriormente em sua autobiografia: “Quanto mais eu amava uma mulher, mais eu queria machucá-la. Frida era a mais óbvia vítima desse traço repugnante” (Herrera, 2002a).

O quadro Alguns golpes (1935) mostra a repercussão emocional que a infidelidade de Diego provocava em Frida: uma mulher ensanguentada jaz em uma cama, após ter sido brutalmente esfaqueada por um homem, que ainda segura a faca. No alto do quadro, vemos uma referência irônica a tanta violência: “unos cuantos piquetitos!” (alguns golpes!). Os ferimentos expostos da mulher agonizante expressam de modo claro os danos emocionais sentidos por Frida. Ela confidenciou a uma amiga que pintou este quadro porque ela mesma chegou perto de ter sido “morta pela vida” (Herrera, 2002b). Quadros posteriores retrataram sua imensa dor pelas feridas conjugais: Memória (1937), no qual está desenhada chorando, sem as mãos, com um mastro perfurando seu corpo no lugar do coração, e com um coração desproporcionalmente grande sangrando aos seus pés − segundo Kettenmann (2006), o tamanho do coração simboliza a intensidade da dor e a falta de mãos ilustra seus sentimentos de incapacidade e desespero; Lembrança de uma ferida aberta (1938) mostra Frida levantando a saia Tehuana e duas feridas: uma grande na coxa direita, que sangra, e outra no pé que está enfaixado. A ferida no pé era real, resquício de seu acidente, mas a da coxa representava a ferida aberta deixada pela distância e traição de Diego. O sangue, a morte, a dor e a ausência que podem ser apreendidos em seus olhos tornaram-se partes de si mesma, e assombram a maior parte de suas obras...

Frida, por sua vez, passou a ter várias relações extraconjugais com homens e mulheres. Diego incentivava suas manifestações de lesbianismo, mas enlouquecia de ciúmes se suspeitasse de que Frida estivesse se relacionando com outros homens. Por isso, ela escondia com muito cuidado esses relacionamentos. Apesar de todas as decepções e o sofrimento com o marido, era a ele que dedicava o centro de seu amor. Ela lhe escreveu em 1935, dizendo o que pensava sobre todos os casos que ele mantinha:

só representam flertes, e no fundo você e eu nos amamos ternamente, e apesar das aventuras sem fim, batidas de portas, xingamentos, insultos, reclamações internacionais – ainda assim sempre continuaremos nos amando... Todas essas coisas se repetiram ao longo dos sete anos em que vivemos juntos e todas as raivas que eu senti me fizeram compreender no fim que eu te amo mais que minha própria pele, e que você pode não me amar da mesma forma, mas você me ama um tanto. Não é assim? Eu sempre esperarei que isso continue, e com isso estou contente. (Herrera, 2002a, p. 186)

Frida mostrava dessa forma que se conformava com uma fatia pequena do amor de Diego, por sentir que a separação representaria para ela algo como “perder a própria pele”, o que era intolerável.

Em 1939 Diego pediu o divórcio a Frida, em seguida a uma viagem dela à França para expor suas obras. Este acontecimento teve um poder arrasador sobre ela, e a pintura, mais do que nunca, proporcionou-lhe uma forma de expressar e digerir a enorme turbulência emocional. No quadro As duas Fridas (1939), Frida recorre a seu duplo como forma de lidar com a dor: a Frida Tehuana, sentada à esquerda, apresenta um coração intacto e segura em uma das mãos o retrato de Diego menino. A outra Frida, europeia, tem uma artéria sangrando e corre o risco de se esvair em sangue até a morte. As duas Fridas estão de mãos dadas e ligadas por uma artéria. Representam o lado idealizado e imune à dor, na Frida Tehuana, e o lado que sofre o desespero e o sentimento de morte psíquica, na Frida europeia. No Autorretrato com cabelo cortado (1940), em vez das roupas Tehuana que tanto agradavam a Diego, Frida aparece com um terno tão grande que parece ser dele. Ela segura uma tesoura com a qual cortou os cabelos, que estão espalhados por todo o quadro. No alto, os dizeres: “Olha que se te quis foi por causa dos teus cabelos. Agora que estás careca, já não te quero mais”. Frida parece dizer que, diante da sua dor, renuncia à sua feminilidade, cujo único indício nesse quadro é a presença de brincos. Seu olhar parece expressar uma fúria contida, e os chumaços de cabelo espalhados mostram o seu estado de fragmentação psíquica. Em dezembro de 1940 Diego pediu a Frida que se casassem de novo, o que ela aceitou. Segundo Rivera, ela impôs algumas condições para isso:

Ela iria se sustentar com os rendimentos de seu próprio trabalho; eu iria pagar metade das despesas da casa − e nada mais; e não teríamos relações sexuais. Para explicar essa última condição, ela disse que com todas as imagens de minhas outras mulheres surgindo em sua mente, ela não conseguiria fazer amor comigo, pois uma barreira psicológica se levantaria assim que eu começasse a abordá-la. Estava tão feliz em ter Frida de volta que aceitei tudo. (Herrera, 2002a, p. 302)

A vida conjugal do casal, no entanto, continuou conturbada. Casos extraconjugais frequentes, novas tentativas de pedido de divórcio por parte de Diego, pensamentos de suicídio em Frida eram mostras de um relacionamento cheio de arestas, mas também um elo difícil de romper. Em 1952, em uma entrevista com a então estudante de psicologia Olga Campos, Frida falou a respeito do tema “Amor”:

Amor é a base de toda a vida ... Eu tenho mais medo de ser abandonada do que de ser desapontada. Eu reagiria com dor e mágoa se eu descobrisse a traição de uma pessoa que eu escolhi para amar. Em geral, escolho pessoas que considero superiores a mim ... Infelizmente, sou ciumenta, mas acho que isso é estúpido. (Campos, 2008)

Para Frida, a dor e a decepção com o marido eram duras de suportar, mas preferíveis à separação, que a faria sentir-se como uma criança desamparada. Gostaria de estar imune aos ciúmes, imaginando que assim nada poderia colocar em risco sua união.

As dores físicas que a acompanharam por toda a sua vida recrudesciam com uma intensidade atroz nos períodos em que ela estava separada do marido. Seu médico particular, Dr. Eloesser, relacionou as inúmeras cirurgias a que ela se submeteu a esses períodos de desolamento. Elas representavam um grito por atenção, e aliviavam seus sentimentos de desconexão. Ao se sentir abandonada por Diego, ou na sua ausência, as crises ocorriam. Quando ele voltava a estar ao seu lado, ela se recuperava. Em seu “Diário” (Fuentes & Lowe, 2005), Frida escreveu: “Porque eu o chamo meu Diego? Ele nunca foi ou será meu. Ele pertence a ele mesmo. ... Correndo a tudo dar”...

 

A patologia do elo amoroso

Ao examinar a vida e a obra de Frida Kahlo, assim como a de tantas outras pessoas com configurações amorosas semelhantes, a pergunta que surge é: por que insistem em se apegar a um objeto amoroso tão frustrante? Frida poderia ter escolhido se ligar mais profundamente a outro homem, entre aqueles com quem se relacionou extraconjugalmente e que estavam seriamente interessados nela. Vemos, no entanto, que o tipo de ligação feita com Diego Rivera era tal que ele representava “mais que sua própria pele”, como se predominasse entre eles um sentimento de fusionamento, próprio da mãe e do bebê logo após seu nascimento.

A maioria dos autores psicanalíticos tem ressaltado que o amor por si mesmo depende essencialmente da relação primitiva com a mãe ou sua substituta. Freud ressalta a importância “única, sem paralelo” da relação da criança muito pequena com a mãe (1940 [1938]/1975), “estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores – para ambos os sexos” (p. 217). Ele afirma que cada ser humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele próprio e a mãe, e que isso se manifesta de forma dominante na escolha objetal que as pessoas podem fazer (Freud, 1914/1975).

Winnicott (1956/1988) descreveu o estado especial da mãe grávida, denominado preocupação materna primária, como o início do enlevo entre mãe e filho. A atenção da mãe vai se voltando cada vez mais para o bebê que está por nascer, e esse estado continua ainda por certo tempo após seu nascimento, até ir amainando com o crescimento da criança. Poderíamos dizer que dessa forma o bebê é recebido por uma mãe em estado de apaixonamento, e que essa condição lhe permite desenvolver um sentimento de existência e de valor próprio. A mãe “narcisiza” o bebê, por meio de sua capacidade suficientemente boa de amá-lo e de cuidar dele. É no seu olhar que o bebê se espelha e se encontra, formando com isso a estrutura básica de seu ser. Winnicott (1971/1975) sugere que, quando o bebê pequeno olha para a mãe, vê a si mesmo no rosto dela. Isso significa que ela está presente, viva, e com sua atenção voltada primordialmente para ele. Este é o primeiro espelho humano, com sua função constitutiva do psiquismo.

A história de Frida e seus quadros nos mostram falhas importantes nesse processo. Ao engravidar de Frida, sua mãe ainda estava de luto pela perda anterior do único filho homem, e apresentou um quadro depressivo após o nascimento da filha. Logo em seguida engravidou de outra filha. Podemos imaginar que o estado depressivo e introspectivo da mãe, tão bem retratado na mãe morta de seu quadro O nascimento, não permitiu a Frida encontrar a si mesma nos olhos da mãe. O que havia era um contato com uma pessoa que estava lá fisicamente, mas que ao mesmo tempo se caracterizava pela sua ausência. Podemos imaginar que estas falhas iniciais na sua relação com o objeto influenciaram fortemente sua escolha de objeto amoroso e que ela identificava em seu marido Diego Rivera a mãe que ela procurava alcançar. Ele era a sereia encantadora, que parecia estar acessível, mas escorregava e desaparecia a cada momento (Levinzon, 2009). Frida buscava em Diego uma união integradora que lhe possibilitasse encontrar a si mesma, mas o que se repetia indefinidamente era o fracasso dessa procura.

Defontaine (1995) fala em “patologia do elo amoroso” ao se referir a uma relação que não cessa de se repetir, sem que o sujeito se dê conta. Ela reproduz uma ligação objetal primária solidamente ancorada no negativo e que torna caduca qualquer outra ligação. Este tipo de conduta amorosa é marcado por uma forte turbulência emocional, e repete algo da ordem de uma patologia da ligação primária. Consiste em viver e repetir com um ou vários objetos uma relação de sedução regularmente seguida de uma rejeição. Esta relação pode inclusive inverter-se com o mesmo parceiro, em uma espécie de manejo sem fim em que cada um se reveza no lugar de rejeitador e de rejeitado. O que chama a atenção é que a rejeição, por mais dolorosa que seja, não é suficiente para fazer o sujeito renunciar à relação. Pelo contrário, ela serve como um incentivo inconsciente a prosseguir na relação, repetindo a experiência de rejeição e a contundente ferida narcísica que se segue. Segundo Defontaine, trata-se aqui de repetição e trauma, assim como da incapacidade de elaborar uma perda, como decorrência de uma experiência primária tão defeituosa que é impossível elaborar o luto. Há uma tentativa de domínio da situação traumática original, que se reatualiza indefinidamente. Mesmo pagando um alto preço, o importante é não renunciar a esta relação, por mais odiosa e patológica que seja: é preciso conservá-la, unicamente com o objetivo de destruí-la. O sujeito procura transformar de forma ativa o trauma vivido passivamente. Os autorretratos de Frida mostram-na invariavelmente ferida: facadas, flechadas, um mastro atravessando seu coração, lágrimas, sangue se esvaindo... Conquistar permanentemente o amor de Diego parecia uma forma inconsciente de sobrepujar o sentimento de perpétuo abandono que a assolava, e que teve início nas suas relações primitivas.

Frida afirmava que “não conseguia ficar só”. Sabemos que, como afirma Winnicott (1958/1983), a capacidade de ficar só depende da experiência de ter se sentido acompanhado de forma adequada e pelo tempo suficiente em uma etapa primitiva do desenvolvimento. Dessa forma, há a gradual introjeção de um mundo interno predominado por objetos bons, com o qual o indivíduo pode contar. A presença sensível da mãe e o apoio ao seu ego na fase precoce de vida da criança preparam-na para que possa aos poucos dispensar a presença real da figura materna. Há implicações importantes desse processo quando são considerados posteriormente na vida de uma pessoa o grau de necessidade do parceiro nas relações afetivas e a natureza do vínculo estabelecido.

As ideias de André Green (1974) sobre a necessidade de manter a qualquer preço uma relação com um mau objeto interno trazem um aporte para a compreensão da manutenção de uma relação amorosa com um objeto inacessível. Green afirma que o que prevalece é o temor de que o desaparecimento do objeto deixe o sujeito diante do horror do vazio, sem que o tempo possa conseguir substituí-lo por um bom objeto disponível. O fantasma do vazio ameaça o sujeito para um buraco sem fim, até a alucinação negativa de si mesmo... No seu primoroso artigo “A mãe morta”, Green (1980a/1988) se refere à introjeção pela criança de uma figura materna distante, quase inanimada, que se dá como consequência de uma real depressão materna. Para a criança a mãe, embora viva, é sentida e mantida interiormente como morta, o que vai impregnar profundamente seu investimento libidinal objetal e narcisista. Green afirma que a mãe morta continua sendo objeto de louca paixão, o que faz de seu luto uma experiência impossível: “toda a estrutura do sujeito visa a uma fantasia fundamental: nutrir a mãe morta, para mantê-la em um perpétuo embalsamento” (p. 270). O contato com a mãe é mantido nas profundezas da psique, e todas as tentativas de troca por objetos substitutos estão destinadas ao fracasso. Para o sujeito, é melhor manter a ligação com a mãe, mesmo morta, do que correr o risco de perdê-la... As palavras de Frida sobre seus pais são reveladoras: “Eu amava meu pai porque ele era muito bom para mim, porque ele me ajudava. Eu amava minha mãe porque eu a via sofrendo muito... Eu o vi morto; eu não quis vê-la morta” (Campos, 2008, p. 85).

A relação amorosa de Frida com Diego, pontuada por uma paixão extrema, mas que lhe trazia sucessivas experiências de dor e decepção, parece reproduzir de forma clara a relação com o objeto materno fugidio. Em suas lembranças de Frida, Ella Wolfe contou:

Quando eu estava sozinha com ela, ela me dizia o quanto era triste a sua vida com Diego. Ela nunca se acostumou com os casos dele. A cada vez havia uma nova ferida, e ela continuou sofrendo até o dia em que ela morreu. Diego nunca se importou. Ele disse que fazer sexo era como urinar. Ele não podia entender por que as pessoas tomavam isso tão seriamente. Mas ele tinha ciúmes de Frida − um duplo padrão, “el gran macho”. (Herrera, 2002a, p. 366)

Tentativa de dominar a relação traumática, forma de manutenção do elo com a mãe morta, muitos são os vértices pelos quais podemos compreender os aspectos turbulentos da vida afetiva de Frida. Por suas próprias características, Diego apresentava-lhe continuamente esse objeto admirável e idealizado por um lado (“Ele é tudo para mim; sem ele não valho nada”), mas frustrante e rejeitador por outro (“Por que eu o chamo meu Diego, ele nunca foi meu...”). Podemos imaginar que ele também estava às voltas com uma dificuldade primordial em estabelecer relações amorosas satisfatórias, pelo infindável número de casos que ele mantinha com mulheres. Além disso, como ele mesmo afirmou, havia um impulso inconsciente que o levava a ferir as mulheres com quem se relacionava, especialmente Frida. Como salienta Kernberg (1995), a relação com o parceiro amado inclui o desejo inconsciente de reparar os relacionamentos patogênicos do passado e a tentação de repeti-los em termos de suas necessidades agressivas e vingativas insatisfeitas. Por meio de identificações projetivas, cada parceiro tende a induzir no outro as características do antigo objeto edípico ou pré-edípico com quem ele teve conflitos. Encontramos em Frida e Diego este casamento da busca incessante de satisfação amorosa, profundamente entrelaçada com a experiência de rejeição, frustração, ódio e dor, presente em ambos...

 

Amar, ser amado, amar a si mesmo...

Sabemos que o amar a si mesmo depende essencialmente da experiência de ter se sentido amado suficientemente por outra pessoa em uma época em que isso é constitutivo na vida do sujeito. Estas experiências vão determinar por sua vez a forma de amar do próprio sujeito, o tipo de ligação que ele estabelece com o objeto.

Ao refletir sobre a loucura presente na paixão, Green (1980b/1988) afirma que a intensidade da paixão e sua ligação com o objeto apresentam raízes na sexualidade infantil. Os objetos da paixão são buscados em objetos parciais ou em objetos inteiros. As ansiedades “arcaicas” são o efeito de paixões narcísicas, em que nenhuma diferenciação entre o ego e o objeto é possível, em que “o amor e a destrutividade afetam o ego e o objeto de um só golpe. “São paixões no sentido restrito do termo, isto é, amores que são dolorosos, a ponto de termos que defender nosso self deles com um sacrifício alienante.” (p. 238)

Encontramos este caráter de “loucura narcísica” na paixão presente em Frida Kahlo por Diego Rivera. O amor por si mesma dependia do amor de Diego por ela. Como afirma Harris (2008), do ponto de vista interpessoal, essa é a essência do narcisismo patológico. Diego era a fonte mais importante de autoestima de Frida. Basear-se excessivamente em fontes externas para manter uma imagem de valor de si mesmo leva o sujeito a repetidas experiências de frustração e dor, além de não resolver a essência do sentimento de falta e vazio que assolam a pessoa. Ela requer um suplemento de gratificação sem fim, repetidas expressões de admiração por parte do outro, mas a ferida narcísica se mantém sem alterações significativas. A paixão amorosa, que originalmente tinha a função de proporcionar uma situação semelhante ao encontro fusional primitivo com a mãe, a restauração do narcisismo primário, torna-se uma repetição infindável da decepção dessa expectativa.

Por meio da pintura, Frida encontrava uma forma de expressar seus estados emocionais e de buscar um olhar restaurador para si mesma. Seus autorretratos funcionavam como “espelhos de sua alma”, o seu duplo que olhava para si mesma e lhe dava o sentimento de que não estava tão só. Dessa forma ela podia ser “mãe de si mesma”, fazer reparos simbólicos em suas feridas, e tornar-se momentaneamente seu próprio objeto amoroso.

Suas palavras mostram a função primordial que a pintura tinha para a busca de contato e equilíbrio com as partes mais profundas de si mesma:

Como meus temas foram sempre minha sensações, meus estados de mente e as profundas reações que a vida tem produzido em mim, eu frequentemente objetivei tudo isso nas figuras sobre mim mesma, que eram a coisa mais sincera e real que eu podia fazer para expressar o que eu sentia dentro e fora de mim mesma. (Herrera, 2002a, p. 288)

Pintar completou minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas, que teriam preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso... (Zamora, 2006, p. 157)

 

Referências

Campos, O. (2008). My memory of Frida. In S. Grimberg, Frida Kahlo: Song of herself (pp. 33-53). London; New York: Merrell.         [ Links ]

Defontaine, J. (1995). Les turbulences de la passion ou la relation d’objet paradoxale. Bulletin de la Société Psychanalytique de Paris, 38, 123-138.

Freud, S. (1975). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 85-119). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1975). Esboço de psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 169-329). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1940 [         [ Links ]1938]).

Fuentes, C. & Lowe, S. M. (Orgs.) (2005). The diary of Frida Kahlo: An intimate self-portrait. New York: Harry N. Abrams.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Gina Khafif Levinzon
Rua Arthur de Azevedo, 243
05404-010 − São Paulo − SP
tel.: 11 3088-8745
E-mail: ginalevinzon@gmail.com

Recebido: 10/04/2010
Aceito: 30/04/2010

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, doutora em Psicologia Clínica − USP, professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica na Universidade de São Paulo.
1 Os quadros de Frida Kahlo podem ser vistos no site <http://www.fridakahlofans.com/paintingsyear01.html>, ou em livros sobre a pintora, como o de H. Herrera (2002), Frida Kahlo: the paintings.

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