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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo ago. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Nota sobre Eros em O banquete de Platão

 

Note on Eros in Plato's Symposium

 

 

Mário Miranda Filho*

Universidade de São Paulo - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto tenta resumir o modo pelo qual Platão abre o horizonte do fenômeno erótico, enquadrando-o entre a poesia e a filosofia, inscrevendo- -o no plano político e mostrando que não se trata apenas de amor no sentido comum do termo, mas de uma ânsia por superação de nossa mortalidade e procura pelo belo e pelo saber, que não exclui aspectos tragicômicos como a rebeldia e uma desastrada aquisição de onipotência.

Palavras-chave: Amor, Filosofia, Poesia, Mortalidade, Eternidade, Fusão, Ateísmo, Niilismo, Incesto, Canibalismo, Lei, Rebeldia, Procriação.


ABSTRACT

This paper attempts to summarize Plato's approach to eroticism. It seeks to show that Plato's starting point lies between poetry and philosophy, but reaches out to the political level, thus expanding the concept. Plato thus shows that eroticism is not reducible to love in the day-to-day meaning of the word, but rather a striving to overcome our mortal condition. Thus understood, erotic love is associated with our search for beauty and knowledge; oftentimes it comprises tragicomic aspects such as a sense of rebellion and a belief in one's omnipotence which can end in disaster.

Keywords: Love, Philosophy, Poetry, Mortality, Eternity, Fusion, Atheism, Nihilism, Incest, Cannibalism, Law, Rebellion, Procreation.


 

 

A pessoa que ama é a expressão mais clara da imperfeição natural
do homem e de sua busca de perfeição.

Allan Bloom

 

São muitos os meios de que dispomos para medir a distância que nos separa da reflexão filosófica sobre o amor-eros levada a efeito pelos gregos antigos – a começar pelo fato de que ela ocorre em um banquete, ocasião para beber e discursar, e não em um sisudo congresso científico. De fato, n'O banquete de Platão somos conduzidos à casa de Agatão, onde se comemora sua vitória no concurso de tragédia. Ali estava reunida a nata da inteligência ateniense, poetas, médicos, oradores, filósofos, ou seja, discípulos em geral da grande geração dos sofistas, os promotores do Iluminismo grego, alguns personagens da história universal, como o genial comediógrafo Aristófanes, Agatão, o general Alcibíades e o próprio Sócrates. Por divertimento decidem que aos prazeres do jantar e da bebida acrescentarão o prazer de pronunciar discursos sobre o deus Eros. Assim é que nos brindam com discursos sobre o amor, estabelecendo uma articulação entre seu modo de vida e os encantos de Eros.

O banquete é um Diálogo singular de Platão, pois é a única ocasião em que vemos um confronto direto entre poesia e filosofia. Certamente, a hostilidade entre ambas vinha de longe, como atesta Platão: "... há uma antiga briga entre filosofia e poética". E o poeta Aristófanes já havia levado à cena na peça As nuvens um Sócrates ateu, que habita em um Pensatório, e que ao final por pouco escapa da fúria de um pai de família inconformado com o caráter desagregador de sua filosofia. Trata-se de um retrato do filósofo bastante diferente daquele que nos acostumamos a conhecer por Platão, Xenofonte e Aristóteles. Tampouco é este o Sócrates que vemos discursar em O banquete, no qual agora se mostra severo para com a poesia.

Mas como compreender essa rivalidade entre filosofia e poesia?

Aqui tocamos em cheio no verdadeiro tema que se descortina n'O banquete a propósito de Eros, o das relações entre o saber herdado da tradição, em particular a religiosa, e a filosofia, ou, mais precisamente, o das relações entre poesia e filosofia. Sim, poesia, pois, ao contrário do que aconteceu na modernidade, momento em que os filósofos tiveram de lutar contra os guardiões teológicos da religião – os Torquemadas, Luteros e Calvinos -, na Grécia, como afiançava Heródoto, foram os poetas Homero e Hesíodo os verdadeiros autores da religião grega, e, consequentemente, os naturais adversários teóricos dos filósofos. A Grécia não precisou aguardar o advento da filosofia para fundar a civilização que foi sobretudo obra dos poetas. Mas, quando ela entrou em crise, a filosofia viu-se obrigada a reinventar- se para tentar salvá-la. Essa reinvenção culminou na criação da filosofia política de Sócrates, Platão e Aristóteles.

Começamos a antever o que está em jogo quando, por ocasião da celebração da vitória de Agatão n'O banquete, os amigos escolhem discursar sobre o pequeno deus Eros. Por pequeno que seja, e sabemos que Eros não era objeto de culto público em Atenas, refletir publicamente sobre os deuses era sempre uma questão delicada. O banquete, ao encenar o debate entre filosofia e poesia, trata portanto de um dos pontos mais controvertidos da história da filosofia, da questão das relações difíceis entre a filosofia e a religião, que na Grécia vitimou Sócrates e que Spinoza, em outro contexto, batizaria de teológico-política.

Platão indica que o simpósio ocorreu em 416, uma data particularmente funesta da história de Atenas, a que marca o momento em que o general Alcibíades, tido pelo povo, segundo Tucídides, como um aspirante à tirania, organizara uma excursão militar - um "cometimento gigantesco" - contra a Sicília, que reiniciaria a Guerra do Peloponeso. Segundo Tucídides, os atenienses foram tomados por um amor (eros) intenso pelo empreendimento. Mal a frota se fez ao largo, surgiram denúncias de que o próprio general se envolvera em atos de impiedade, com conotações políticas. Criou-se um clima de caça às bruxas e, em decorrência da histeria coletiva, com dezenas de condenações à morte, Alcibíades escapou refugiando-se em solo inimigo, e a expedição militar, carente de seu idealizador, fracassou, acarretando o início do processo que levaria à derrota final de Atenas por Esparta. Dando conta desses eventos, Tucídides diz que se levantaram "suspeitas de conspiração para uma revolução com o objetivo de abolir a democracia". Ao aproximar as datas e os eventos, Platão sugere ao leitor da obra que, de fato, ocorreu ali, com a presença de Alcibíades, a revelação de um mistério. Mas deixa ver que não havia nenhum motivo para histeria, pois o que de fato se revelou naquele ambiente refinado, e graças à filosofia, foi o mistério de uma divindade menor, Eros. Mas indica, simultaneamente, com a presença de Alcibíades nos dois eventos, a proximidade de Eros com o fenômeno político da tirania1.

Eros e tirania? Sim, a associação entre o desejo amoroso e a ambição política extrema era vista como natural pelos filósofos e Platão refere-se ao tirano como "Eros encarnado". Esta não é uma das menores surpresas que o leitor moderno encontra na obra em que, desde o início, vemos que o poder de Eros ultrapassa a esfera das relações pessoais projetando-se no domínio das ambições da grande política. Nesse sentido, veremos esse ponto confirmado em O banquete no discurso de Aristófanes no qual, ressalte-se, a satisfação sexual propiciada por Eros surge como fenômeno secundário, estando longe de esgotar sua dimensão mais ampla e profunda.

Notemos inicialmente que nenhum dos oradores reunidos naquele memorável dia, na casa do poeta Agatão, por certo acreditava na divindade de Eros, pois todos aprenderam com os filósofos e os sofistas a distinguir os domínios da Natureza e da convenção, e que os deuses existiam apenas por convenção. E não foi no espetáculo As nuvens de Aristófanes que o público ouviu e viu o eco desses críticos, quando a personagem Sócrates proclamou a morte de Zeus? Não é pois exagero ver semelhança entre as duas crises, a do nosso horizonte niilista e aquela vivida pelos atenienses do final do século V a.C. Ambas têm em comum o solapamento dos valores fundamentais responsáveis pela organização espiritual das respectivas civilizações; para nós, valores derivados da Revelação, e para o gregos, da poesia. Os filósofos gregos do final do século V e início do século IV a.C. viram-se diante da tarefa de elaborar novas bases capazes de sustentar seu mundo em crise. Sendo este portanto – e muito resumidamente - o horizonte em que se insere nossa obra, não será surpreendente que, ao fim e ao cabo, associada a Eros, a filosofia receba um intenso elogio sob forma de tratamento poético, vendo-se promovida a ocupar o lugar divino que cabia à poesia.

O banquete desfila seis discursos sobre o amor, aos quais se soma o sétimo, de Alcibíades, que louva Sócrates. No curto espaço desta apresentação vou me limitar a comentar, resumidamente, apenas os três que antecedem o de Alcibíades, porventura os mais interessantes. Procuraremos evidenciar que Platão torna manifesto, em última análise, a presença de duas alternativas dominantes em sua compreensão de Eros: Eros como amor possessivo, e Eros como amor ao belo.

No conjunto da obra, o discurso de Aristófanes é o quarto, ocupando o seu centro e, nesse sentido, pode ser considerado estrategicamente o mais importante. De fato, Aristófanes traz uma novidade importante – ele dirá que vê o que ninguém vê ou viu, o verdadeiro poder de Eros, pois tivessem os homens visto o que ele viu, ou sabe, haveria uma revolução religiosa. É que Eros é o mais filantrópico dos deuses (não o mais antigo ou o mais útil ou o mais novo, como disseram os oradores anteriores). Enquanto para Fedro, Eros é o deus mais útil para o amado, para Aristófanes ele é o mais útil para a humanidade! E não apenas como um ministro, mas como um verdadeiro médico. De fato, cabe a ele curar a humanidade fazendo-a mais feliz, pois a doença da humanidade é uma infelicidade de origem física – e, como veremos, ele não cura apenas uma doença, mas cura a humanidade em sua própria essência, nada menos. Daí entendermos a advertência que ele faz ao iniciar com um mito sua argumentação: "Primeiro é preciso aprender o que é a ‘Antropine Physis', a ‘Natureza Humana'". Portanto, Aristófanes vai mesmo revelar um Mistério – dito de outro modo: ele vai nos iniciar prometendo revelar um saber que diz respeito mais à natureza humana mas, sem o qual, não compreenderíamos a natureza de Eros.

Segundo o mito do comediógrafo, há duas eras que marcam uma profunda transformação da natureza humana, sua transição dos aborígenes para a humanidade propriamente dita. Na primeira, havia como "gêneros" não apenas macho e fêmea, mas também um terceiro, comum de dois, que desapareceu, mas cujo nome permanece: andrógino, nome então amaldiçoado.

Os três gêneros tinham na era primitiva a forma esférica, globular, com oito membros (quatro pernas e quatro braços, uma cabeça com duas faces: todos os membros duplicados, exceto a cabeça e o pescoço; assim também quatro orelhas, dois aparelhos genitais – enfim, um ser estranho e muito feio este nosso antepassado – redondos, semelhantes aos astros de que descendiam). O gênero masculino era filho do Sol; o feminino, da Terra; o andrógino, filho da Lua (que é composta de matéria do Sol e da Terra) – como eram globulares rodavam e rolavam como os astros paternos. Assim, nossa origem ancestral provém de deuses cósmicos, pois há dois tipos de divindades: as cósmicas e as olímpicas. Em suma, temos aí o quadro de uma religião cósmica dos bárbaros, ao lado de uma religião olímpica (e, como veremos, civilizadora). Esses nossos antepassados eram, portanto, muito fortes, e caracterizavam-se por terem pensamentos insolentes. Nessa condição decidiram tomar de assalto o céu, morada dos deuses olímpicos. Mas a rebelião fracassa e Zeus medita sobre o que fazer para desencorajar os rebeldes de uma vez por todas, sem extinguir a raça. Decide-se por cortá-los longitudinalmente ao meio, encarregando Apolo de costurar as peles no lado cortado. Assim Zeus os preserva, reduzindo sua Hybris e aumentando seu cortejo: mais homens e mais fracos.

A consequência dessa cisão imediatamente se manifesta: cada metade se atira respectivamente sobre a outra, macho sobre macho, fêmea sobre fêmea, macho sobre fêmea, agarrando-a sem soltá-la, e assim feneciam ambas as partes por inanição. Zeus encontra nova solução ao virar tanto os órgãos genitais quanto os rostos de fora para dentro, para o lado onde o corte foi feito. Note-se que antes os seres globulares já eram dotados de sexualidade – mas não de Eros - e procriavam depositando o esperma na terra onde as fêmeas deixariam os ovos, fertilizando- os. Vemos aqui que nossos aborígenes eram desprovidos de Eros. Apolo age como um sapateiro trabalhando o couro para fazer o peitoral e cobrir a barriga, puxando a pele para formar o umbigo (que permanecerá como um sinal da origem traumática), de modo a que as novas criaturas assemelhem-se aos deuses olímpicos. É importante notar que nesta tarefa ele pegaria a pele necessária retirando-a da outra metade que, assim, pereceria; detalhe decisivo pois, por sua ação, Apolo torna impossível o desejo mais íntimo dos homens, o de encontrar sua genuína cara-- metade. Mas a semelhança parece ser apenas física, pois, quanto à alma, os humanos permanecem "cósmicos" por seu desejo. Seja como for, a partir disso podia-se procriar normalmente - humanamente - e assim salvar a espécie da extinção.

Vemos que a condição para a entrada na civilização é a punição, o corte (em grego, corte e castração são designados pela mesma palavra: diatemno). Note-se que Zeus ameaça cortá-los de novo ao meio – transformando-os em uma espécie piorada de saci-pererê – caso eles não se corrijam.

E é desse modo então, dessa busca desesperada pela unidade perdida, que emergirá Eros, pois essa operação de virar os genitais para o interior decreta a forma e a condição definitiva para os humanos. Inconformados pela cisão, e movidos por Eros, por um desejo essencial, mas vão, de restaurar o Ego, a unidade perdida, os humanos continuam se agarrando uns aos outros. Apenasagora não mais perecem, pois, depois dos abraços e uniões, podem se afastar para cuidar de suas vidas. Eros como amor interpessoal constitui-se em um prêmio de consolação pela individualidade para sempre perdida: ao invés de tomar o céu, agarramo-nos uns nos outros. Notemos que esses semelhantes, os homens e os deuses olímpicos, possuem em comum a sexualidade: a diferença entre ambas as raças é que, para os deuses, sexualidade é apenas prazer, enquanto para os homens, sem ela, a sua própria raça se extinguiria: para eles, a sexualidade é necessidade.

Podemos agora ver a real "mensagem" do mito. Eros, que não faz parte nem do Olimpo, nem da condição humana original, é em sua essência rebelião. Mas se esta rebelião é amor, então o que ele visa realmente é o amor possessivo, nossa metade perdida. Para avaliarmos corretamente o significado da tese implícita no mito, temos de ver primeiramente com clareza o caráter oposto e a tensão entre as ações de Eros e a dos deuses olímpicos: enquanto estes impõem a ordem, ou seja, a lei, e assim estabelecem o único regime possível para os seres rebeldes, Eros fará o inverso: de fato, Eros, enquanto esta força que move os seres fragmentados a buscar sua parte mutilada, é o movimento de retorno à condição original globular. Reduz-se assim a associação entre Eros e Afrodite (expressão propriamente grega para coisas do sexo): o que realmente visam os humanos não é o sexo, mas um anseio maior, o abraço que, conquanto efêmero, encena a unidade para sempre perdida e para cuja obtenção o sexo é apenas instrumental: Eros realiza indiretamente nossa aspiração de sermos inteiros, de sermos alguém. E, na medida em que os olímpicos são os instauradores da nova ordem humana civilizada, Eros é portanto insatisfação radical e inextirpável com a condição atual da civilização.

Nesse sentido Eros é essencialmente impiedade, e uma impiedade que ameaça a vida civilizada transgredindo dois dos seus maiores tabus: o incesto e, em certa medida, o canibalismo. Essa dupla característica de seu caráter rebelde se deixa ver à luz do seguinte texto, no qual Aristóteles registra sua concepção da natureza humana.

Por natureza há nos homens o impulso para a associação política e aquele que a estabeleceu pela primeira vez é o responsável pelo maior de todos os bens. Pois assim como o homem, quando aperfeiçoado, é o melhor dos animais, do mesmo modo, quando divorciado da lei e do direito, ele é o pior de todos. Pois a injustiça é a mais dura se ela está armada. Mas o homem nasceu tendo a posse de armas como a prudência e a virtude que ele pode usar de modo extremado para fins opostos. Portanto, o homem é o mais ímpio e o mais selvagem sem a virtude, e o pior com respeito às coisas sexuais e ao alimento. (Política, 1253a39)

O homem é o "pior com respeito às coisas sexuais" – eis a possibilidade ímpia do incesto; "o pior com respeito ao alimento" – eis a possibilidade ímpia do canibalismo.

À diferença da maior parte dos animais, o homem é este ser que pode viver incestuosamente e alimentando-se de seu semelhante. Vemos agora a real medida da Hybris de Eros, de sua rebelião contra a lei olímpica: a inclinação nostálgica pela forma teratológica dos aborígenes e a recusa da nova forma assumida pela humanidade, pela qual os homens recebem a aparência dos belos deuses olímpicos, implica uma negação da condição humana civilizada sob a dupla recusa da interdição do incesto e do canibalismo - ao procurarem por suas metades, os humanos mostram desejar sua própria carne e sangue. Nessa ânsia de realização, o que realmente se visa é a libertação da coerção, e, nessa medida, Eros é vontade de poder.

Derrotados em sua rebelião original, em sua nova condição, os humanos, agora sob a égide de um Eros intempestivo, onipresente, têm de conviver com a limitação por parte da lei imposta por Zeus. Mas é uma imposição que, reunindo-os de modo intermitente, finalmente salva a espécie que, de outro modo, sucumbiria caso a fusão total de Eros pudesse se realizar. Vê-se a sabedoria da solução olímpica e, finalmente, do próprio mito: Eros – "destrutivo ou construtivo" - passa a ser a própria condição humana em sua dilacerante contradição de querer e de não querer a fusão.

Desde os primórdios, portanto, que o Eros de cada um é inato nos seres humanos, como um modo de restaurar a antiga natureza, tentando fazer um a partir de dois e assim curar a natureza humana. (191a)

Percebe-se agora mais claramente o tema da doença de cuja cura se encarrega Eros. Movido por ele, o homem aspira a algo inatingível, a um estado de integridade inalcançável: sua condição atual é portanto defeituosa, infeliz – eis a doença, digamos, ontológica, constitutiva do ser humano, esse vazio que lhe é inerente e incontornável. Situação miserável, portanto a nossa, que nem Eros pode realmente sanar. Quanto a ser injusta, bem, como vimos, esse estado de coisas resultou de nossa própria Hybris, ao tentarmos assaltar o céu (aqui impressiona a proximidade com a Bíblia).

Há no mito de Aristófanes uma curiosa coloração nietzschiana nessa recusa implícita da civilização vista como doença.

... cada um de nós é uma metade de um ser humano, pois que cada um foi fatiado, como um peixe, dois de um. Assim, cada um procura por sua metade, (191d)

Eis a nossa maldição: jamais reencontraremos nossa cara- -metade, como lamentarão posteriormente tantos poetas - "il n'y a pas d'amour heureux" (Aragon). Aquela que é talvez a mais alta aspiração humana não pode ser realizada. Temos de nos conformar em viver seccionados, tal é o preço a pagar pela desmedida dos nossos ancestrais e pela vida de acordo com a lei.

De acordo, portanto, com o poeta cômico, nossa situação é nada menos que... trágica - uma das últimas ironias de Platão para com Aristófanes2.

Concluamos, como dissemos acima, notando que, sendo Eros rebeldia, inconformismo, anelo por restauração, unidade, integridade, totalidade, reduz-se enormemente a importância de sua ligação com Afrodite. E pois, como nada disso pode realmente ser alcançado, Eros é desejo infinito, incestuoso, bárbaro contra a civilização, sempre maior ou além do que pode obter – desejo por uma utopia.

Cabe aos homens, desde então, o mal menor de viver a divisão: respeitar os deuses do Olimpo, serem piedosos, pois terão assim a possibilidade de gozar dos benefícios de Eros como um mal menor – ainda que de um Eros atenuado e, pior, ilusório – e de, assim, escapar das ameaças olímpicas de se tornar uma versão piorada de sacis-pererês. Nossa condição humana nostálgica fica balizada entre os polos do medo e do prazer efêmero.

Muito resumidamente, o discurso de Agatão apresenta dois temas dominantes, realizando duas articulações, entre Eros e o belo e entre Eros e a poesia. A este, que de todos os deuses é o mais belo, falta-lhe porém um poeta como Homero para mostrar sua delicadeza. Com Agatão, o amor deixa de ser um deus e passa a ser a ação de amar – ele assim abre caminho para Sócrates que, em seguida, negar-lhe-á a condição de deus. Notemos desde logo o outro ponto sobre o qual Sócrates também concordará, ainda que à sua maneira: Eros é amor ao belo e não, como vimos em Aristófanes, amor possessivo.

De acordo com o poeta Agatão, Eros é, pois, "um poeta, e sábio, tanto que também a outro ele o faz; qualquer um em todo caso torna-se poeta".

E o que realmente produz esse poiétés, esse artífice? O que resulta da arte deste igual a Homero? Os poetas são os verdadeiros genitores dos deuses olímpicos que só subsistem por sua arte. Eros é agora um poeta; entenda-se, ele inspira os cantores humanos que, por sua vez, concebem e cantam os deuses conferindo- lhes a glória eterna. Mas Agatão, à diferença de Aristófanes, é um poeta trágico. Aqui não há rebelião contra os deuses, pois o trágico, ao contrário do cômico, ao criar os deuses de modo solene e dar a eles a forma humana, eleva a humanidade, projetando sobre ela uma beleza expurgada dos nossos defeitos. Enquanto o cômico empenha-se pela libertação humana dos deuses responsáveis por impor a lei, o trágico faz obra de encantamento, pintando os deuses em eterna juventude, estabelecendo os limites legais como óbice à humana vontade de poder. Em suma, por via dos artifícios e encantamentos os poetas trágicos fazem obra civilizatória por excelência.

Nesse sentido, somos remetidos à Caverna da República, na qual os artífices desempenham esse papel. De fato, são os poiétés que produzem os artefatos, cujas sombras projetadas no fundo do antro constituem a realidade dos prisioneiros. Pois este é o poder encantatório dos poetas, esses produtores de uma ilusória mas nobre mentira que modela a vida civilizada. Entretanto, a Alegoria da Caverna deixa ver que, ao mesmo tempo em que pela fatura dos deuses os poetas dão assim forma à vida civilizada, seus produtos impedem a percepção da verdade pelos habitantes da caverna que é a Pólis. E, aqui, o papel do filósofo é decisivo ao libertar o prisioneiro, levando-o a um patamar superior àquele em que obram os poetas-artífices e do qual ele poderá apreender a verdade, sobretudo a verdade da produção dos simulacros poéticos que ele tomava como realidade.

Resta examinar então o discurso de Sócrates, que se autointitulara especialista em Eros e que se encarrega de nos dizer a verdade a seu respeito. Ele abre seu discurso com uma crítica avassaladora aos demais oradores, tidos como mentirosos. Não os acusa de ignorância sobre Eros: os oradores sabiam a verdade, mas recobriram-na com sua bela retórica. Diante de tanta falsidade, não lhe resta mais que dizer a verdade. Mas Sócrates não é um estraga prazer. Com efeito, procederá, sem sacrificar a verdade, a uma escolha, privilegiando e destacando os aspectos mais decentes da realidade ambígua de Eros.

Inicialmente, o filósofo conclui que Eros não é nem belo nem bom. Começa então algo inusitado, pois, em vez de discursar, ele passa a palavra à mestra que o iniciou no erotismo, uma bruxa poderosa, capaz de intervir adiando a chegada da peste a Atenas. Notemos que o diálogo com a bruxa Diotima deu-se quando Sócrates era ainda jovem, o que equivale a dizer que aquele Sócrates era ainda imaturo e ingênuo, particularmente incapaz de se aperceber do lado obscuro, baixo, irracional, feio da vida. Conta Sócrates:

Ela me refutava... que Eros não era belo, nem bom.
E eu então: - Que dizes, ó Diotima? É feio então o
amor, e mau?
E ela: - Não vais te calar? Acaso pensas que o que
não for belo, é forçoso ser feio?
- Exatamente.

A bruxa desencanta o jovem aprendiz: Eros nem sequer é um deus e não é belo nem bom. O jovem filósofo não é ao menos capaz de reconhecer que se algo não é belo ou bom, nem por isso pode ser dito feio ou mau: há uma mediação entre essas qualidades e Eros é precisamente uma dessas mediações, diz Diotima, um gênio (daimon), um ser mediador. Diotima narra então a ascendência de Eros, que tem como pai Recurso e como mãe Pobreza. O leitor notará aqui também a exclusão quase total da deusa Afrodite na origem de Eros – que lhe é associada apenas pelo fato de que ambos nascem no mesmo dia, e por ser ela bela e Eros, amante da beleza, ele será seu servo e acompanhante. De fato, como vemos no mito do nascimento de Eros, por sua mãe ele herda características negativas: pobreza, necessidade, carência.

... uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. (203c-d)

Feio, pobre, descalço, sem lar, um meio-termo entre a sabedoria e a ignorância, filósofo: não é preciso muito engenho para ver aqui Eros como um autorretrato de Sócrates. Pois esse meio-termo não é metade ignorância e metade sabedoria, mas um saber da ignorância que é a característica fundamental do filósofo clássico, seu reconhecimento de incapacidade diante das mais elevadas questões, sua perplexidade e aporia. Em suma, esse sem-teto, ao contrário de seus semelhantes, vive perfeitamente à vontade nessa condição em que parece ser feliz: conforto e riqueza são coisas às quais é inteiramente indiferente.

Diotima estabelece a seguir uma conexão entre o belo e o bem com relação a Eros, pois se Eros não é belo ele, entretanto, é amor ao belo. Mas o que deseja quem aspira tanto assim ao belo? Ela agora interroga trocando a questão do belo pelo bem, de modo a tornar patente que quem ama as coisas boas quer possuí-las para ser feliz. Amar é portanto querer ter o bem. Resta perguntar que tipo de bem – e é desse modo que Diotima fará emergir a questão que sempre acompanha a experiência erótica, a da mortalidade: "É o amor, amor de consigo ter sempre o bem".

Sempre, eis a palavra fatídica: há uma dimensão de anseio pela eternidade no amor. Este é um desejo universal. Ela sugere três modos de satisfazer esse desejo de superar a morte, talvez o maior anelo humano.

Primeiramente, por via da procriação. A união do homem e da mulher que, sob o signo da beleza, produz geração é obra divina, pois constitui-se no único modo pelo qual nós, mortais, podemos participar da imortalidade; o amor não é apenas o amor do belo, mas

da geração e da parturição no belo ... admitimos que o desejo da imortalidade está necessariamente ligado ao bem, visto dirigir-se o amor para a posse perpétua do bem. A conclusão forçosa desse argumento é que o amor é o anseio de imortalidade. (207a)

A segunda via se dispõe em uma escalada do amor: ele começa dom-juanescamente como amor à beleza de um corpo, logo de uma multiplicidade dos corpos, para em seguida buscar o belo presente na alma, nos costumes, nas leis, nas ciências, até chegarmos à contemplação do "vasto oceano da beleza" e assim poder gerar, "belos e magníficos discursos, com o que brotarão pensamentos a rodo do seu inesgotável amor à sabedoria...". Como vemos, essa escalada é uma ascensão até a poesia – todo esse movimento é posto agora como uma forma de conquista da glória; pois a produção poética não dá à luz apenas os heróis imortais, mas também a glória do poeta. Glória que, por contraste com o modo de conquista da imortalidade pela via indireta da procriação, configura-se como o modo que mais se aproxima da imortalidade a que o indivíduo pode aspirar. Mas Diotima não se detém aí:

E, por fim, se "perceberá de súbito uma beleza de natureza maravilhosa... o belo em si mesmo (211d)" e isso facultará ao filósofo "gerar não simulacros de virtude, mas a própria virtude".

Vemos agora como essa escalada culmina, por via de uma extraordinária elevação do tom – até a alturas místicas –, na caracterização da filosofia em uma versão altamente moral: como compreender isso?

Destaca-se agora a noção de contemplação – tão logo, na ascensão, o amante abandona os corpos em prol da beleza das leis, costumes, ciências, poesia, ele passa de amante a espectador. Em suma, Diotima agora faz algo surpreendente, ela simplesmente elimina eros! Note-se que a palavra-chave empregada aqui por Diotima é Imaginação = Phantastesetai (211a6), na frase "o belo ele imaginará não como um rosto...".

Estamos diante daquilo que havíamos enunciado acima: a representação poética da filosofia – é-nos ministrada uma imagem da fantástica superioridade da filosofia sobre qualquer outra coisa. A ausência de Eros desse momento sublime convida-nos a entender que ele é algo que se dá apenas entre seres humanos: mesmo quando amamos a alma não podemos fazê-lo divorciada do corpo – corpo e alma não são separáveis.

Ao criticar os discursos anteriores, Sócrates nos dá inicialmente uma percepção filosófica da poesia, mas, pelo artifício de dar a palavra à bruxa Diotima, ele também nos dá uma percepção poética da filosofia. Certamente, essa visão imaginária da filosofia nada tem a ver com sua realidade; filosofia é skepsis, exame, saber dos limites do saber, e não encontro místico com o belo em si, ou a posse do saber absoluto. Entrementes, aqui temos, no registro da imaginação, o que seria a concepção de um sábio acabado, completo – imagem falsa, mas, como diz Allan Bloom (1996), que "ajuda a explicar as experiências parciais de um filósofo por meio de uma imagem do que elas poderiam significar se fossem completadas. É por isso que Sócrates considera Diotima uma sofista". Ao trazer para seu leitor, na voz dessa estranha bruxa Diotima, uma imagem mitificada da filosofia, Platão faz-se poeta no intuito de indicar que, para além, tanto do amor possessivo como do amor pela glória, há um amor pelo saber que, mesmo imperfeito, é, segundo Sócrates, a única via real que realmente nos resta para uma felicidade na medida dos mortais. E é essa conexão entre a moderação e a filosofia que o embriagado Alcibíades não consegue estabelecer. Pois, como diz da filosofia Leo Strauss (2001), um dos melhores leitores d'O banquete:

Apesar de sua majestade e de sua nobreza, ela poderia parecer como sisífica ou feia, quando contrastamos sua realização com sua meta. Entretanto, ela é necessariamente acompanhada, sustentada e elevada por eros. É agraciada pela graça da natureza.

 

Referências

Benardete, S. (2001). Plato's "Symposium". Illinois: The University of Chicago Press.         [ Links ]

Bloom, A. (1996). Amor e amizade. São Paulo: Mandarim.         [ Links ]

Lacan, J. (2001). Le Séminaire, L.VIII: Le Transfert (junho). Paris: Seuil.         [ Links ]

Platão. (1983). O banquete. In Platão, Diálogos, 1 (J. C. Souza, trad.). São Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).         [ Links ]

Strauss, L. (1989) An Introduction to Political Philosophy: Ten Essays. Detroit: Wayne State University.         [ Links ]

Tucídides. (1987). História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Universidade de Brasília.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Mário Miranda Filho
Rua Herculano, 242
01257-030 – São Paulo - SP
tel.: 11 3672-8334
E-mail: mariomir@usp.br

Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Professor doutor de Filosofia da USP e diretor científico do LEI (Laboratório de Estudos sobre intolerância da USP).
1 Estudos recentes a esse respeito são as obras de Aakash Singh, Eros Turannos (University Press of America, Maryland, 2005), e de Mark Lilla, The reckless mind (New York Review Books, New York, 2001).
2 Em As nuvens, ele pintara Sócrates com os traços e as cores de um cientista não politizado, não músico e não erótico. Para Aristófanes, o único erotismo que conta é o horizontal, pouco importando os desejos próprios da mente que Sócrates parecia ver como uma forma de erotismo tão ou mais substantiva que o sexo.