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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

Hölderlin: intuição e intimidade

 

Hölderlin: intuition and intimacy

 

 

Marco Aurélio Werle*

Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, examinamos o caráter dialético da obra de Hölderlin, que opera com uma série de oposições: entre o ser e a consciência (juízo), os deuses e os homens, os antigos e os modernos, o todo e a parte, a razão e a sensibilidade, a naturezae a arte, a infância e a velhice, a primavera e o inverno etc. Na transição entre poesia e filosofia, esses tópicos são situados no plano da diferença e da unificação, como um processo de intuição e intimidade.

Palavras-chave: Dialética, Poesia, Filosofia, Idealismo alemão, Estética.


ABSTRACT

We examine in this paper the dialectical character of the work of Hölderlin, which operates with a series of oppositions: between the being and consciousness (judgment), the gods and men, theantiquity andmodernity, the whole and part, the reason and sensitivity, the nature and art, the childhood and old age, Spring and Winter, etc.In the transition between poetry and philosophy, these topics are located in terms of the difference and unity, as a process of intuition and intimacy.

Keywords: Dialectics, Poetry, Philosophy, German idealism, Aesthetics.


 

 

Introdução

A compreensão da obra de Friedrich Hölderlin exige que se atente para os vários âmbitos em que atuou (desde a criação, a reflexão e a tradução) e para sua conturbada trajetória de vida, até as respostas que procurou dar, no plano cultural, aos desdobramentos de um dos mais importantes momentos da história do Ocidente: a Revolução Francesa. Rótulos e classificações literárias pouco nos ajudam para situá-lo, pois Hölderlin deve ser tomado pela figura "deslocada"; que foi: tanto romântico quanto idealista, bem como classicista e anticlassicista.

Sua obra não é apenas um dos maiores monumentos poéticos da língua alemã, mas possui um lugar de destaque na Filosofia, fato este que apenas foi reconhecido no século XX, com a publicação, em 1961, de um impressionante fragmento de duas páginas, intitulado "Juízo e ser";. Esse fragmento explora a gênese da subjetividade e aponta para os limites da consciência. Todo juízo ou julgamento, considera Hölderlin, implica uma partição, em alemão Ur-teil, partição da origem ou partição originária. A consciência ou o sujeito somente nasce quando se instaura uma separação entre o homem e o mundo. O Ser, em sua plenitude, ao contrário, está na origem da relação entre sujeito e objeto, sendo, portanto, inatingível pelo pensamento lógico e racional.

O Ser pode ser tomado também como o "imediato";, que Hölderlin considera inatingível tanto para os mortais quanto para os imortais, em seus comentários às traduções de fragmentos de hinos de Píndaro, entre 1800 e 1805, mas apenas publicados no século XX, mais precisamente, em 1910. Diz Hölderlin:

O imediato, tomado em sentido rigoroso, é impossível para os mortais, assim como para os imortais; o Deus precisa distinguir diferentes mundos, de acordo com a sua natureza, pois a bondade celestial deve ser sagrada por causa de si mesma, não misturada. O homem, como conhecedor, deve também distinguir diferentes mundos, porque o conhecimento é apenas possível por meio da oposição. (Hölderlin, 1954b, p. 309)

A noção de um todo pleno e da esfera humana como separação se anuncia também num fragmento do período da loucura, intitulado Figura e espírito: "Tudo é íntimo/Isso separa/Assim guarda o poeta";1. Essas reflexões aparentemente simples encontram-se na base da dialética de Hegel, que certamente não teria tido a mesma envergadura e amplitude se não fosse a contribuição de Hölderlin2.

No entanto, a relação com a filosofia sempre foi difícil para Hölderlin, pois a poesia lhe era mais íntima. Numa carta que escreveu ao seu amigo Neuffer, em 1798, afirma que a filosofia é um hospital, para onde poetas que carregam o seu modo de infelicidade podem fugir honradamente. Logo a seguir, complementa dizendo que não lhe é possível abandonar seu primeiro amor e se separar do doce lar das musas.

 

1. Aspectos da vida

De origem humilde e tendo nascido em 20 de março de 1770 numa pequena cidade da Suábia, Lauffen, às margens do rio Neckar, no sul da Alemanha, a vida de Hölderlin foi marcada por inúmeras dificuldades de adaptação, a começar pela perda do pai e do padrasto ainda na infância. Sua personalidade sensível e suscetível o impedia de se fixar numa ocupação estável. Logo depois de concluir a faculdade de Teologia no seminário de Tübingen, onde teve por colegas Hegel e Schelling, tornou-se preceptor de meninos ricos, na época uma atividade subalterna e degradante para quem tinha pretensões intelectuais mais elevadas. Também Hegel e Fichte, entre outros, foram preceptores, pois essa função era uma das poucas possibilidades de sustento para jovens recém-saídos da universidade e sem recursos financeiros.

E nessa função Hölderlin também conheceu sua única e trágica experiência amorosa. Seu nome é Susette Gontard, mãe de um de seus alunos e esposa de um influente banqueiro de Frankfurt. Susette acabou tornando-se a "Diotima"; dos poemas de Hölderlin: a personagem de inspiração platônica (do diálogo O banquete) que personifica o ingresso ao mundo ideal e harmonioso do amor e da beleza. Hölderlin enviou-lhe um exemplar do romance Hipérion ou o eremita na Grécia,com a dedicatória: "A quem mais senão a ti"; (Wem sonst als Dir).

Mas, o fato mais decisivo na vida de Hölderlin foi a loucura que o tragou por volta dos 30 anos de idade. Entre 1807 e 1843, ano de sua morte, isto é, por quase quarenta anos, Hölderlin ficou confinado em uma torre em Tübingen, aos cuidados de um marceneiro chamado Zimmer. Durante todo esse período se manteve sempre muito calmo e receptivo (subserviente) com quem o visitava e continuou compondo poemas, em geral curtos e rimados, muitos deles tratando das estações do ano, principalmente da primavera (der Frühling). Alguns deles foram assinados com o pseudônimo Scardanelli, que, segundo o linguista Roman Jakobson (1990), seria uma variante do próprio nome de Hölderlin.

Os chamados "poemas de loucura"; contrastam com o período criativo e "lúcido"; do poeta, quando raramente empregava rimas. A loucura ou o "deslocamento"; parecem ter realizado o que o próprio Hölderlin em vários momentos tematizou como sendo a "vocação do poeta"; (da ode de mesmo título: Dichterberuf): aquele que, tal como um semideus (do hino O Reno), recebe o fogo divino e, com a "cabeça descoberta"; (do hino Como em dia de feriado), reenvia ou transmite solícito a mensagem do alto ao povo.

Se observarmos o todo da vida de Hölderlin, tendo em vista que foi declarado louco em 1806, quando tinha 36 anos, e que viveu mais 37 anos, até 7 de junho de 1843, completando 73 anos, sua vida realiza estranhamente o que é dito em "Metade da vida"; (Hälfte des Lebens), uma composição de 1802-03 e que integra o grupo que Hölderlin mesmo intitulou de "Canções noturnas"; (Nachtgesänge)3. Esse poema divide a existência em duas partes: uma marcada pela abundância e prosperidade e outra pelo frio e pelas sombras.

Metade da vida4

Com peras amarelas,
E plena de silvestres rosas,
Pende a terra na lagoa.
Vós, ó cisnes delicados,
E embriagados de beijos,
Vós a nuca mergulhais
Em água abençoada e sóbria!

Onde colher, pobre de mim,
Se há frio, as flores, e onde
O clarão do sol
E as sombras da terra?
Persistem os muros
Álgidos, emudecidos,
E ao frio vento
Ringem cataventos.

 

2. A atitude poética situada entre deuses e homens

A atitude do poeta, na tarefa que lhe cabe, deve ser, sobretudo, de espera e de receptividade, ele tem de estar com "o peito amigável"; (como lemos na ode Vocação de poeta, de 1800-01). O divino não pode ser simplesmente utilizado e zombado:

Por tempo demais ficou à mercê tudo o que é divino
E todas as forças celestiais foram zombadas, os bondosos
Foram desperdiçados, por puro prazer, com ingratidão,
Por um corpo esperto e que ainda imagina que pode conhecê-los.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 5, p. 48)

E no hino O Reno lemos sobre a essência do que vem do alto:

Um enigma é o que decorre puramente. Também
O canto pode muito pouco desocultá-lo.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 150)

E no hino Como em dia de feriado os poetas, em sintonia com a natureza, no sentido da physis dos gregos (como interpretou Heidegger, 1981, p. 56), aguardam o tempo propício para exprimir o sagrado. Assim como a natureza, eles parecem estar descansando, mas sempre estão ativos, pois "no canto sopra seu espírito";(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 123).

Tanto na poesia quanto na filosofia, Hölderlin se move numa região que transcende situações e fatos do cotidiano e se aproxima de um universo marcado pela experiência do divino e do sagrado. Otto Maria Carpeaux (2005, p. 282) inicia seu ensaio "A mensagem de Hölderlin"; dizendo: "vamos apresentar-vos o mais solene dos poetas";. Esse caráter solene se deve a um contato com temas abstratos, mas também decorre de Hölderlin ter sido um poeta não de ocasião ou que se dedicasse a temas prosaicos, mas, sim, alguém que, como diz (Heidegger, 1981, p. 34), poetizava a própria poesia, ou seja, questionava o próprio sentido e posição do poeta no mundo. Desse modo, ele pode ser chamado de "poeta dos poetas"; (expressão cunhada também pela leitura de Heidegger).

Sem dúvida, a poesia de Hölderlin não é deste mundo, pois habita o panteísmo, o "um e tudo"; (em grego: en kai pan). O panteísmo, introduzido na filosofia alemã da época por meio de uma recepção de Espinosa, feita por Jacobi, e que inclusive instaurou a "querela do panteísmo";, recebe em Hölderlin uma reorientação na direção da tematização da origem, que é tanto o todo quanto a parte, isto é, abriga nela mesma a diferença: a plenitude do divino (o todo) contrasta com as carências e limitações da finitude humana (a parte). No romance sobre o Hipérion não somente o "um e tudo"; é mencionado, mas, também, "o uno que se diferencia em si mesmo"; o "hèn diaphéron heautôi";, de Heráclito.

A grandiosa frase de Heráclito, hèn diaphéron heautôi (o uno diferente em si mesmo) só poderia ser encontrada por um grego, pois é a essência da beleza e, antes de ter sido encontrada, não havia filosofia alguma. A partir daí pode-se definir, o todo estava lá. A flor havia amadurecido; era possível, então, despedaçá-la. Anunciou-se, então, o momento da beleza entre os homens. Estava ali, em vida e espírito, o uno infinito. (Hölderlin, 2003, p. 85)

Desse modo, o topos da totalidade se articula pela parcialidade ou pela unidade que comporta nela mesma a diferença. Esse tema é recorrente em várias composições poéticas de Hölderlin, principalmente naquele que é talvez o mais conhecido de seus poemas: o Canto do destino de Hipérion, de 1797-98, na tradução
do nosso grande poeta Manuel Bandeira:

No mole chão andais,
Do éter, gênios eleitos!
Ares divinos
Roçam-vos leve
Como dedos da artista
As cordas sagradas.

Como adormecidas
Criancinhas, eles
Respiram. Floresce-lhes
Resguardando o espírito
Em casto botão;
E os olhos felizes
Contemplam em paz
A luz que não morre.

Mas, ai! Nosso destino
É não descansar.
Míseros os homens
Lá se vão levados
Ao longo dos anos
De hora em hora como
A água, de um penhasco
A outro impelida,
Lá somem levados
Ao desconhecido.5

Note-se nesse poema o contraste entre a vida divina, comparada à infância e marcada pela ausência do destino e pela eterna claridade, isto é, sem diferença e consciência, com a queda da vida humana. O homem vive inquieto, sem descanso, arrastado pela água, jogado de um penhasco a outro, num percurso de queda contínua ao desconhecido.

Nessa contraposição entre o celestial e o terreno, não necessariamente temos de lamentar a vida humana diante da divina, pois, ao mesmo tempo que é exprimida a plenitude divina, é apontado também, ironicamente, para uma certa "irrealidade"; ou "artificialidade"; da vida dos celestiais. É como se eles vivessem numa espécie de redoma, superprotegidos e, portanto, pudessem muito bem ser considerados até mais "fracos"; do que os humanos.

Acrescente-se aqui a concepção de Hölderlin acerca da carência que os divinos têm dos homens. Os deuses apenas adquirem existência por meio dos homens, por meio de um outro que sofre por eles. É o que lemos na oitava estrofe de O Reno (1801):

Porque
Os bem-aventurados nada sentem sozinhos,
Deve, se tal coisa é permitido dizer,
Em nome dos deuses, tomando parte,
Sentir um outro. Eles precisam dele.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 152)

No que se refere ao tema da água, ela exprime na ode A voz do povo, de 1798, o movimento dos rios rumo ao mar e simboliza algo que acompanha o percurso humano e dos povos em direção ao todo e ao abismo. No entanto, ao contrário da tendência humana de, em meio aos projetos mundanos, almejar uma rápida volta ao seio ou ao ninho do todo, os rios são uma água que corre segura, indiferente à instabilidade do saber humano. Sobre os rios, que em O Istro, fragmento poético de 1803, são os que "tornam habitável a terra";(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 199)6, nos diz Hölderlin em A voz do povo:

Que tu és a voz de Deus já o disse outrora
Na santa mocidade, e o digo ainda!
Indiferente à sabedoria
Correm também os rios, e contudo

Quem não os ama? E sempre me comovem
O coração, lá vão rumo do oceano,
Fluindo tão ricos de pressentimentos,
Num caminho, não meu, mas mais seguro.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 50)7

Em seu percurso, o homem esquece de si mesmo e se entrega, no plano da história, à sua própria destruição. Querendo cumprir rapidamente desígnios eternos, o homem procura o caminho mais curto. No fundo, está lançado à sua sorte, flui ou cai como uma água que não é um leito de rio, mas dispersa e desordenada:

Quem se esquece de si, quem pronto atende
Aos desejos dos deuses, esse escolhe,
Mortal que leva os olhos bem abertos
Nos caminhos da vida em que divaga,
O regresso mais curto ao Universo.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 50)8

Devido a esse afã, mais adiante nesse mesmo poema, A voz do povo, os homens são comparados a filhotes de águia:

Assim como a águia, o pai,
Joga os filhotes para
Fora do ninho, para que busquem
Presas no campo,

Da mesma forma, sorrindo,
Os deuses nos impulsionam adiante.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 51)

 

3. Filosofia e idealismo alemão

No campo da filosofia, por volta de 1795, o pensamento de Hölderlin, junto com o de Schelling e Hegel, consistiu em ultrapassar as diferentes configurações da cisão do homem na época moderna: tanto a separação entre sujeito e objeto e entre sensibilidade e razão quanto a relação entre o indivíduo e o Estado. Com o advento da Revolução Francesa, os três amigos de Tübingen plantam uma árvore em homenagem à liberdade, confiantes numa renovação cultural que, segundo eles, seria inevitável e não tardaria a chegar. O idealismo alemão, do qual Hölderlin participou ativamente em seu nascimento, nada mais é do que a tradução em pensamento do espírito revolucionário que vinha da França.

E, assim, no fragmento O mais antigo sistema do idealismo alemão, de 1796, os três amigos de Tübingen proclamam a necessidade de que a ideia de liberdade, a partir da autonomia do sujeito, perpasse tanto a moral e a ética quanto a política e a religião. Além disso, evocam ainda uma nova ordem, na qual a filosofia, a arte e a religião estivessem irmanadas pela poesia e pela mitologia.

Esse esquema de pensamento está no centro do romance Hipérion ou o eremita na Grécia. No fim do primeiro tomo, no chamado "Discurso de Atenas";, o protagonista Hipérion exalta a harmonia e equilíbrio de Atenas, embora igualmente deplore a rigidez militar de Esparta, que já prenuncia a tendência intelectual e reflexiva da época moderna.

Uma das nossas maiores carências diante dos antigos é que não somos mais capazes de alcançar aquele "jeito"; ou "habilidade"; próprio de quem vive sob o signo do destino. Perdemos aquela Trefflichkeit: "capacidade de acertar o alvo";, que determinou a "excelência"; (Vortrefflichkeit) do modo de vida e do saber do povo ateniense.

Nas "Observações sobre a Antígona";, publicadas em 1804, onde são distinguidos os modos de representação gregos e pátrios (relativos à pátria de Hölderlin, a Alemanha), é denunciada a nossa fraqueza diante dos gregos, o dysmoron, a ausência de destino, que nos leva justamente a tentar em vão procurar uma destreza, procurar a todo custo atingir algo (Hölderlin, 2008, p. 90).

 

4. Proximidade do espírito da Grécia

Essa proposta de renovação cultural da época moderna, em consonância com os ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade, levou Hölderlin a uma aproximação cada vez maior do espírito da Grécia antiga. No poema "O único"; (Der Einzige) (1802), que na verdade se refere diretamente a Cristo9, Hölderlin pergunta:

Mas, o que é que tanto me prende
Às costas antigas e bem-aventuradas,
Que as amo mais do que a minha pátria?
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 161)

Com efeito, toda a obra poética de Hölderlin é profundamente marcada pela presença da Grécia antiga, desde suas primeiras criações, o romance Hipérion ou o eremita na Grécia e a tragédia inacabada A morte de Empédocles, até o ciclo dos grandes hinos, posteriores a 1800, bem como as traduções que empreendeu das tragédias de Sófocles, Antígona e Édipo Rei. Como poucos, Hölderlin se dedicou intensamente ao modo de ser do homem grego e acolheu essa perspectiva inicialmente sob um registro tanto nostálgico quanto entusiástico. Mas, aos poucos, foi penetrando no lado oculto, misterioso e oriental dos gregos e, a partir disso, pôde reinterpretar o próprio destino de toda a cultura ocidental.

Nas elegias Pão e vinho (1800-01) e O arquipélago (1800), com impressionante riqueza de detalhes, Hölderlin refaz dialeticamente a paisagem intelectual antiga, numa espécie de recordação da presença do divino e do "vinho";. Ao mesmo tempo, chama-nos a atenção para o nosso destino, marcado por incertezas e pelo ritmo alucinante do trabalho e suas Fúrias.

Mas, ai! a nossa raça, sem divino, vagueia na noite,
E vive como no Orco. Presos só ao próprio labor,
Na forja bramante cada um se ouve só a si próprio,
E com braço possante muito trabalham os bárbaros,
Sem descanso, mas sempre e sempre estéril,
Como as Fúrias, é a labuta desses homens.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, 114-115)10

Muito antes de Nietzsche se referir ao elemento dionisíaco e contrapô-lo ao Cristianismo, Hölderlin já apontava para essa direção de uma Grécia "oriental";, radicalmente distinta e desconhecida, bem diferente daquela celebrada pelo Classicismo. Embora deva ser notado que Hölderlin pensava o Cristianismo, pelo menos na figura de Cristo, como continuidade dos gregos. Cristo mesmo é tido como o último dos deuses, como irmão de Dioniso, o deus do vinho.

Sobre a relação de Winckelmann (o introdutor da recepção da Grécia na Alemanha), Hölderlin e Nietzsche com a Grécia, Otto Maria Carpeaux (2005, p. 294) nos diz:

Hölderlin nasceu dois anos após a morte de Winckelmann e morreu um ano antes do nascimento de Nietzsche: eles representam três tentativas de ressuscitar seriamente – com todas as consequências – a Antiguidade, para sucumbir, todos os três, às forças do velho caos, que ressurgiu com os deuses evocados.

Porém, vejamos brevemente como se desenvolvem essas duas elegias: Pão e vinho e O arquipélago. Ambas as composições possuem três campos temáticos ou, dito de outro modo, uma espécie de progressão dialética.

Pão e vinho começa:

1. Apresentando uma situação de repouso depois de um dia cansativo de trabalho. É quando o mundo descansa e surge a noite que se apresenta o momento propício do elevado, por exemplo, da lua e do canto acompanhado da lira num jardim onde jorram as fontes. O elemento do alto desperta diante do término da agitação humana e terrena. Esse traço está presente em Volta ao lar e também em Como em dia de feriado, quando um camponês caminha pelo campo depois de uma agitada noite de chuva e, então, se revela renovada a natureza.

2. Essa elevação ao divino remete à recordação da Grécia, do mundo da unificação, do tempo do vinho, da presença divina. Nas próximas três estrofes Hölderlin expõe uma espécie de história abreviada da presença do divino entre os gregos e também de sua ausência e afastamento dos homens. Na sexta estrofe, porém, surge a esperança, que apontará para as últimas três estrofes: é que do mundo antigo permaneceu um deus, que é Cristo e permite a possibilidade de um retorno do divino.

3. Dessa forma, as últimas estrofes apontam para a possibilidade de uma nova presença divina que, no entanto, é acompanhada de inúmeras incertezas. É nesse momento que Hölderlin perguntará: "e para que poetas em tempo de indigência?";.

O arquipélago, segundo a análise feita por Quintela, no volume em que traduziu poemas de Hölderlin (1944, p. 166-170), envolve três motivos capitais: 1) o mundo dos deuses nas quatro estrofes de entrada; 2) a Grécia e sua história espelhada nos destinos de Atenas, imediatamente antes das guerras pérsicas (seis estrofes seguintes); e 3) o regresso à vida real da atualidade do poeta (três últimas estrofes), que constitui a parte verdadeiramente elegíaca do poema.

 

5. Hölderlin e o Classicismo de Weimar

Essa nova percepção da Grécia, que nos é delineada em pormenores nessas duas composições referidas, e, por conseguinte, a leitura da época moderna dela depreendida, fez com que Hölderlin se afastasse gradualmente de Goethe e de Schiller, os grandes representantes da poesia alemã da época. No início da carreira de Hölderlin, Schiller foi seu principal mentor, tanto que publica seus primeiros poemas. Hölderlin pretendia também seguir o mestre e escrever as Novas cartas sobre a educação estética da humanidade.

Já a relação com Goethe sempre foi difícil e distante, pois o olímpico Goethe parecia habitar uma região inalcançável para o inseguro Hölderlin. Para Antônio Medina Rodrigues (1994), a lírica de Hölderlin era irreconciliável com a visão de mundo de Goethe. Ao contrário de Goethe, que em seu poema de juventude, intitulado Prometeu, rompe com o mundo divino e estabelece o homem no centro do universo, Hölderlin procurou antes dar um passo atrás em sua recepção da mitologia grega. Procurou explorar uma esfera anterior aos deuses olímpicos e reatar com o mundo informe dos Titãs e das forças da natureza.

Por não compreender ou por não aceitar esse recuo, Goethe chegou, inclusive, a sugerir que Hölderlin fizesse poemas curtos e breves e não se entregasse tanto aos arroubos da imaginação e aos longos versos alexandrinos. Ou seja, Goethe se enganou completamente com o espírito que pulsava na alma de Hölderlin e a necessidade que este possuía de não se furtar às contradições da época moderna e aos caminhos da humanidade na época "dos deuses sumidos";.

Ao contrário do Classicismo, que de alguma maneira lidava com a ideia de uma mitologia que amparasse a atividade poética e lhe desse sentido, Hölderlin se instala diretamente no centro da situação moderna mesma da ausência de deuses e das consequências que isso traz para a atividade poética. No hino Germânia, depois de afirmar:

Não a eles, os bem-aventurados que surgiram,
As imagens dos deuses na terra antiga,
A eles não devo mais chamar.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 157)

o poeta mais adiante exclama:

Deuses sumidos! também vós que estão presentes,
Outrora mais verdadeiros, tivéreis vosso tempo!
Nada quero negar nem pedir,
Pois quando tudo terminou, e o dia findou,
O primeiro que é atingido é o sacerdote, mas com amor
Seguem-lhe o templo, a imagem também e os seus usos
Para a terra escura e nada pode já brilhar.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 157)

 

6. O núcleo do espírito poético de Hölderlin

Mas qual seria, então, o centro do pensamento poético de Hölderlin e como ele se desenvolve? Sua obra foi produzida num curto espaço de tempo, de dez anos, aproximadamente entre 1793 a 1803, bem de acordo com um poema intitulado: "O deus da juventude";11. No início de sua produção poética, Hölderlin tinha uma forte predileção por questões filosóficas ligadas ao idealismo pós-kantiano. Aos poucos, porém, foi deixando a filosofia de lado, para se dedicar unicamente à poesia. A poesia se lhe revelava como a única via para nomear o Ser e ultrapassar a esfera da separação promovida pela reflexão e dominante no seio da finitude da existência humana.

No entanto, Hölderlin nunca procurou exprimir o idealismo de forma violenta e impositiva à realidade. Sua preocupação sempre foi a de integrar a subjetividade à totalidade, de permitir espaço ao coração e ao sentimento. O poeta deveria mover-se no delicado terreno da diferença entre a plenitude divina e a contingência humana. "E assim como o arco-íris somente é belo após a tempestade, também no poema o que é verdadeiro e harmonioso surge tanto mais belo e alegre a partir do falso, do erro e do sofrimento"; (Carta de Hölderlin para a mãe, julho de 1799) (Hölderlin, 1954a, Vol. 6, p. 373).

Isso o levou, nos derradeiros anos de sua produção "lúcida";, à formulação de um pensamento difícil de ser apreendido, a saber, de uma "infidelidade divina"; e de um "retorno categorial";. Segundo esse pensamento, os deuses estariam separados dos homens e caberia à poesia exprimir não a plenitude da totalidade, mas, sim, as inúmeras dificuldades da vida humana entregue a si mesma e sem deuses. No hino Patmos, de 1803, a última produção lúcida do poeta, Hölderlin assinala a dificuldade de apreender
o Deus, por mais próximo que esteja de nós:

Próximo está
E difícil de ser apreendido é o Deus,
Mas, onde há perigo, cresce também
O que salva.
Na escuridão moram as águias,
E sem medo caminham os
Filhos dos Alpes por sobre o abismo
E sobre pontes leves.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 173)

 

7. O poeta entregue ao seu canto

Com esse pensamento final, Hölderlin passa a ser uma referência decisiva para os séculos posteriores. Pode-se dizer que sua poesia inaugura a situação típica da poesia moderna e contemporânea, segundo a qual o poeta apenas pode contar com seu canto, sem poder recorrer a uma mitologia previamente dada. Esse canto, por sua vez, não poderá mais ser elevado, na direção dos deuses, mas terá de lidar com a finitude e com a frieza da Terra, tal como lemos em um poema de 1798, intitulado Brevidade:

Por que és tão breve? Já não amas, como outrora,
Mais o canto? Tu que entoavas, quando jovem,
Nos dias de esperança,
Cânticos sem fim?

Minha canção iguala a minha sorte. Queres
Banhar-te no poente? foi-se! e a terra é fria,
Molesto voa o pássaro
Da noite à tua frente.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 1, p. 250)12

A felicidade igualada à canção, no entanto, não provoca em princípio infelicidade, uma vez que o canto seria agora mais reduzido e estreito. Numa espécie de epigrama, do ano de 1798, Hölderlin exprime esse contraste da infância e da velhice, da plenitude inicial e da plenitude final. Cada época da vida ou do mundo parece ter seus encantos e vantagens.

Outrora e agora

Na época da juventude eu era feliz pela manhã,
À noite eu chorava; agora, que estou mais velho,
Começo meu dia com dúvidas,
No entanto, sagrado e sereno é para mim o
seu término.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 1, p. 249)

O que importa é o exercício da existência poética como passagem única por essa vida e preparação para a morte enquanto um ser-para-a-morte no canto. O sagrado encontra-se, então, transferido para a própria existência. É isso que parece exprimir o famoso Às parcas, de 1798:

Dai-me, Potestades, mais um verão apenas,
Apenas um outono de maduro canto,
Que de bom grado, o coração já farto
Do suave jogo, morrerei então.

A alma que em vida nunca desfrutou os seus
Direitos divinos nem no Orco acha repouso;
Mas se eu lograr o que é sagrado, o que
Trago em meu coração, a Poesia,

Serás bem-vinda então, paz do mundo das sombras!
Contente ficarei, mesmo que a minha lira
Não leve comigo; uma vez, ao menos,
Vivi como os deuses, e é quanto basta.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 1, p. 247)13

 

8. A posteridade de Hölderlin e a situação da poesia contemporânea

Se atentarmos para a posteridade da poesia de Hölderlin e essa temática da essência da poesia num mundo sem deuses, podemos dizer que Rainer Maria Rilke foi um poeta que, cem anos depois, extraiu algumas das consequências desse novo tempo regido pela pergunta da sétima estrofe de Pão e vinho: "Para que poetas em tempo de indigência?";. Rilke, ao dizer no terceiro soneto dos Sonetos a Orfeu que "cantar é existir";, parece ter continuado onde Hölderlin terminou, parece ter radicalizado a experiência moderna de isolamento e solidão que marca a poesia e a existência humana. Ouçamos o soneto de Rilke na tradução de Augusto de Campos (2001, p. 151):

Um deus pode. Mas como erguer do sol,
na estreita lira, o canto de uma vida?
Sentir é dois; no beco sem saída
dos corações não há templos de Apolo.

Como ensinas, cantar não é a vaidade
de ir ao fim da meta cobiçada.
Cantar é ser. Aos deuses, quase nada.
Mas nós, quando é que somos? Em que idade
nos devolvem a terra e as estrelas?

Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam
as palavras nos lábios, ao dizê-las,
esquece os teus cantares. Já não soam.

Cantar é mais. Cantar é um outro alento.
Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.

E, assim, a mensagem legada por Hölderlin, segundo as interpretações de Heidegger (1981, p. 33), é dupla: ela nos lembra que "poeticamente habita o homem sobre esta terra"; (do fragmento Em ameno azul [In lieblicherBläue]) e "o que permanece, fundam os poetas"; (Recordar [Andenken]).

 

Referências

Campos, A. de. (2001). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

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Gadamer, H. G. (2010). Hölderlin e a antiguidade. In H. G. Gadermer. Hermenêutica da obra de arte. (Marco Antônio Casanova, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Hegel, G. W. F. (2011). Ciência da lógica (excertos). (Marco Aurélio Werle, trad.). São Paulo: Barcarolla.         [ Links ]

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Hölderlin, F. (1944). Poemas. (Paulo Quintela, trad.). Lisboa: Instituto de Cultura Alemã         [ Links ].

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Jakobson, R. (1990). Um olhar sobre "Der Aussicht"; de Hölderlin. In R. Jakobson. Poética em ação (pp. 183-237). (Nathan Norbert Zins, trad.). São Paulo: Perspectiva/Edusp.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Marco Aurélio Werle
Rua Caetano Ruggiero, 52
05360-040 – São Paulo – SP
tel.: 11 3763-3312
E-mail: mawerle@usp.br

Recebido: 27/09/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP. Autor de Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger (Edunesp, 2005), A poesia na estética de Hegel (Humanitas, 2005) e A questão do fim da arte em Hegel (Hedra, 2011). Tradutor dos Escritos sobre arte de Goethe (Humanitas/Imprensa Oficial, 2005), de excertos da Ciência da lógica (Barcarolla, 2011) e dos Cursos de estética de Hegel (Edusp, 4 vols., 1999-2004), juntamente com Oliver Tolle.
1 "Alles ist innig/Das scheidet/So birgt der Dichter"; (citado em Hölderlin, 1994a, p. 146).
2 Ainda na "lógica subjetiva"; da Ciência da lógica, de 1816, Hegel (2011) lida com a intuição hölderliniana do juízo como cisão.
3 Trata-se do último grupo de poemas que o poeta mesmo encaminhou para publicação e que saíram no Taschenbuch für das Jahr 1805. Der Liebe und Freundschaft gewidmet, Frankfurt am Main, em 1804.
4 Hölderlin (1994b, p. 137).
5 Citado por Carpeaux (2005, p. 286-287).
6 Cf. também a ode Der gefesselte Strom.
7 Tradução de Manuel Bandeira, citada por Carpeaux (2005, p. 287).
8 Tradução de Manuel Bandeira, citado por Carpeaux (2005, p. 287).
9 Esse hino foi analisado por Gadamer (2010), artigo de 1943 onde procura pensar a relação de Hölderlin com o Classicismo, no horizonte da relação entre os deuses gregos e a peculiaridade de Cristo como o último deus e ao mesmo tempo um deus do presente.
10 Tradução de Paulo Quintela (Hölderlin, 1944, p. 54).
11 "O Deus da juventude ainda impera/Sobre você e mim"; (Hölderlin, 1954a, Vol. 1, p. 196).
12 Tradução de José Paulo Paes, Suplemento Nicolau V, Curitiba, n. 37, p. 18, fev./maio 1991.
13 Tradução de José Paulo Paes, Suplemento Nicolau V, Curitiba, n. 37, p. 19, fev./maio 1991.