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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

"SOPHROSYNE"

 

"SOPHROSYNE"

 

 

Clarice Niskier*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto é um elogio ao excesso que desvenda nossas fantasias e permite nosso aprimoramento moral e espiritual através do processo criativo. A repetição teatral é entendida referênciascomo um ritual para a depuração de nossos instintos, pensamentos e sentimentos. Mas o próprio artista, mesmo consciente e treinado para elaborar seus excessos, não está imune às tentações do consumo e às ideologias dominantes que embaralham os valores humanos e deixam tontos os indivíduos. A atriz se confessa estressada, exaurida por seu próprio "ego", tendo que recorrer à "sophrosyne", para reencontrar sob a poeira da rotina a sua própria medida.

Palavras-chave: Processo, Síntese, Aprimoramento, Depuração, Consciência, Queda, Vazio, Ideologia, Fantasia, Incêndio, 11 de Setembro, Copos de cristais, A medida.


ABSTRACT

This article is a praise to the excess that unveils our fantasies and allows our moral and spiritual improvement through the creative process. The theatrical repetition is understood as a ritual for purification of our instincts, thoughts and feelings. However, even conscious and accustomed to formulate its excesses, the artist itself is not safe from the attractions of expenditures and dominant ideologies that muddle our human values and make us giddy. The actress admits to be stressed, exhausted by her own "ego", and finds herself obliged to appeal to "sophrosyne", to recover her just measurement beneath the dust of the routine.

Keywords: Process, Synthesis, Improvement, Purification, Consciousness, Fall, Emptiness, Ideology, Fantasy, Fire, September 11th, Crystal glasses, Measurement.


 

 

Primeiro pensei em escrever bem pouco sobre o tema. Seria tão pouco que eu entregaria várias folhas em branco com uma única frase na última folha: "O excesso não é nada". Depois, achei a ideia minimalista demais. E escrevi páginas e páginas de puro elogio ao excesso, movida por toda paixão pelo Teatro, onde excedo e encontro minhas sínteses. Excesso que é processo e não maligna estagnação. Depois, achei panfletário demais. Então, lembrei de Picasso. Corri aos meus arquivos de exercícios teatrais: onde está o estudo do Boi? Esse trabalho é o exemplo ideal do que quero dizer: a perfeita medida. Quero falar do benigno excesso que nos permite transcender.

Picasso cria uma série de quadros em que o único tema é o boi. A série parte de um rascunho do animal que quadro a quadro vai se modificando, aumentando de peso e volume, se tornando carne bruta, boi de açougue, como se todo o peso de suas vísceras, ossos e músculos estivessem se excedendo. Dessa materialidade máxima o animal vai perdendo a rigidez, se redesenhando, reencontrando sua natureza pacífica até se tornar pura essência, feito de traços suaves, preenchido de vazios por todos os lados. Vida e morte. Não sei. É bonito. Não sei onde coloquei esse livro raro. O estudo do Boi é uma série que vai da beleza extrema da matéria à leveza extrema da verdade artística. Excesso que faz parte da vida. Processo, sim, como a morte, mesmo que não gostemos disso. A síntese artística é uma espécie de morte que alcançamos sem morrer. Complexa simplicidade que se atinge através da depuração, Drummond. O poeta fala dessa simplicidade a que se chega através da trabalhosa depuração. João Cabral de Melo Neto. Quero falar disso. Deste exaustivo processo repetitivo que desemboca no vazio e realimenta a vida. Por que eu nunca sei onde estão as coisas quando mais preciso delas? Não queria falar de Picasso de memória. Só reencontro o estudo do Boi na internet. Não tem o mesmo impacto do livro. Assim mesmo a sequência me mobiliza. Minha respiração, minha emoção se aprofundam. Contemplo. Em que livro está mesmo a poesia de Drummond sobre a simplicidade?

Seria bom achá-la. Nela o poeta fala do sujeito preconceituoso que está sempre procurando o acessório, a coisa espetacular, a coisa comovedora, que na verdade foram retiradas da obra por complexas operações artísticas para que apenas o essencial – o belo, necessariamente simples –, permanecesse. A poesia chama-se "A Coisa Simples". Em que livro está? Enquanto procuro, meus olhos pousam sobre os livros de Clarice Lispector. Chegam à memória fragmentos de frases de seus textos. Em 1999, grávida de meu filho Vitor, atuei na peça Clarice por Clarice, belíssimo roteiro de Bianca Ramoneda e Eduardo Wotzik com textos da autora. Estou me lembrando, como é mesmo? "...se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos". Tenho de achar esse roteiro. Tudo a ver com o tema. Aqui está, finalmente. "Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama 'eu existo', a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que existe."

"Existir não é lógico."

Temos em excesso. Sentimos em excesso. Somos em excesso. Basta sair às ruas, o excesso está em toda parte. Dificuldade de encarar o Vazio? Amar o Outro? Existir? Viva o excesso que abre nossa percepção, o excesso/passagem, nítido, que nos leva ao essencial. Não o excesso/fim, trágico, associado à nossa cegueira, que se amontoa em nós como um desastre ecológico. Viva a máscara necessária que permite a nossa explosão de energia, de alegria, que celebra, liberta e coloca em movimento o célebre preceito "conhece-te a ti mesmo". As máscaras imprescindíveis que aproximam multidões de Romeus e Julietas a viverem suas paixões com finais felizes. Há sempre algo de ilícito nas paixões autênticas, sempre será necessária uma máscara para dar início a algo infindo. Todo excesso é finito. Mas, através dele, do que este excesso esclarece sobre nós, podemos chegar à consciência de nossa natureza e evitarmos os fins funestos da existência. É minha utopia: sobrevivermos aos nossos excessos. Sidarta, de Hermann Hesse, viveu os excessos da riqueza e dos divertimentos mundanos antes de se entregar de corpo e alma ao Grande Rio, por onde remou calmamente até os últimos dias de sua vida.

"Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no Nada", Clarice Lispector.

Como o último Boi de Picasso consegue manter-se de pé se é tão etéreo? Tão frágil? O medo da queda nos paralisa. Nossa alma excessiva. Nosso céu. Lembro de repente de um vestido de que gosto. Vou usá-lo hoje à noite. Vontade de ir agora na loja comprar outro vestido, idêntico, parecido, mas de outra cor. Vou interromper o que estou escrevendo para comprar um vestido? Estou ficando maluca. Futilidades se misturam às dores, às emoções e aos pensamentos numa dança confusa, esfumaçada. Excesso de possibilidades, de interferências. Nossa feminilidade exigente, legítima, se alia ao nosso consumismo desenfreado. O desperdício se alia à fome numa sucessão de gestos e ações que ora me levam à fraternidade excessiva, ora me levam ao excessivo cinismo. Precisamos discriminar o instante em que estamos no domínio de nossas faculdades mentais do instante em que estamos sendo dominados por uma ideologia que não quer que saibamos de nossa queda. Sob nós há o abismo, sim. Não o inferno. O abismo. Geográfico, existencial. Sobre nós, as excessivas galáxias. A palavra grega sophrosyne significa no senso comum temperança, saúde da mente, espírito de moderação, integridade. Para que tanto shopping, meu Deus? Para que tanto vestido? E agora? Como desconstruir a ideologia do consumo? A droga do consumo? Como desconstruir essa mentalidade segundo a qual a felicidade se conquista através da posse de coisas comovedoras e espetaculares? E não através do resgate de sophrosyne, virtude que nos pede calma, sanidade moral, a justa medida. Me surpreendo ao lembrar de repente do incêndio do Edifício Andorinha, tragédia acontecida no Rio de Janeiro em 1986, quando dezenas de pessoas morreram, outras foram resgatadas de forma heroica e duas se atiraram do alto do edifício por não suportarem a demora da chegada dos bombeiros diante do avanço voraz das chamas. Relembro a capa da extinta Revista Manchete com a foto de um corpo em queda livre. A engrenagem da minha mente: a queda, o vestido, a memória. O vestido antes da lembrança triste. Se eu tivesse interrompido o texto, ido à loja, talvez eu não me lembrasse conscientemente do incêndio ocorrido há tantos anos. Há um excesso de memória dolorosa em nós. Desconstruir isso. Mas, como? Se a escada Magirus está sem altura suficiente para interromper as chamas dos nossos edifícios internos. Os valores humanos sempre foram os nossos equipamentos de segurança especiais contra os excessos. Os valores humanos sempre nos fascinaram como fascinam as crianças os caminhões vermelhos e brilhantes dos Bombeiros. Os valores humanos tocam sirenes, têm cordas. Mangueiras com jatos d'água de verdade. Alavancas, válvulas, roldanas. Mas muitos equipamentos já estão enferrujados, despotencializados, com jatos d'água risíveis diante das labaredas. Há uma terrível confusão entre tantas compreensões da realidade e tantos significados para a palavra liberdade. Chegará o dia em que não saberemos mais qual é o bom colesterol e o mau colesterol. O incêndio é visível para todos. As soluções muito lentas, muita gente se atirando das janelas e morrendo em queda livre. Sei que a troca do lucro da devastação da Terra pelo lucro da sustentabilidade vai melhorar muita coisa. Mas é no próprio princípio moral do lucro que vamos ter que mexer. Na ideia do que significa crescimento econômico. Nas nossas vaidades. Fantasias. Ansiedades. Não acredito que estamos na era pós-ideológica. Acho que a confusão é a própria ideologia dominante. É isso que devemos entender. A ideia do que é guerra já mudou. Os soldados já mudaram de uniforme, de sexo, de nacionalidade. Os generais, de objetivos. Os amigos e inimigos, de semblante. Tudo estará bem melhor quando a propaganda repetida em excesso for outra. "Tem coisas que o dinheiro compra. Para todas as outras, nosso crédito à vista." Nossos valores precisam estar à altura de nossas questões, nos fascinar de novo.

São duas coisas, sim. A arte e a vida. O Teatro me garante sanidade. Nele, estou sempre em processo. Excesso e catarse se unem em cena. A arte da repetição é viva. Cura. Na vida, a repetição e o excesso podem ser bem mais perigosos. Podem anular o entusiasmo vital que dá sustentação à vida.

Em janeiro do ano que vem estreio a peça O Lugar Escuro, de Heloisa Seixas, ao lado das atrizes Camila Amado e Laila Zaid, no Rio de Janeiro. A peça fala do excesso de amor oculto e sobre o Mal de Alzheimer. O excesso de esquecimento na velhice. Na hora em que mais temos de nos lembrar dos fatos e desfrutar das boas lembranças, na hora em que o dia a dia se torna menos corrido, os acontecimentos mais lentos, na hora em que somos menos requisitados pelo mercado, na hora em que podemos caminhar pelas ruas sorrindo sozinhos das coisas que já fizemos, justo nessa hora, esquecemos de tudo? Toca o interfone. Chegaram os novos livros. Encomendei Bem-vindo ao deserto do real de Slavoj Žižek e A sociedade de consumo, de Jean Baudrillard. O livro de Marion Minerbo não encontrei a tempo. Não tenho mais espaço no escritório para guardar tantos livros. Estou numa paixão desenfreada por eles. Não sei se é a idade, não vejo mais televisão, quase não vou ao cinema, quase não ouço música, quero ler, ler, ler sem parar. Adaptar textos para o teatro. São cinco roteiros novos, aceito todos os convites para ciclos de leituras, eu mesma programo ciclos de leituras e leio um texto diferente a cada dia, tenho dois monólogos, além da peça da Heloisa, para montar, quero adaptar para o teatro o livro Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard, porque sei que não dará tempo de ler toda a obra de Shakespeare, todo Bhagavad-Gita, todo o Velho e o Novo Testamento, todo Zohar, toda a obra de Freud, todos os livros de Jorge Amado, toda a poesia da América Latina, para poder falar deles com alguma propriedade. Aliás, onde está o livro de Pierre Bayard? Será que isso é um sintoma? Terei uma velhice sadia? Estou estressada. Excesso de coisas. Na verdade, tentei fugir, mas estou escrevendo sobre mim. Eu sou o excesso. A culpa é do ego. Antigamente, tudo era culpa da mãe, principalmente da minha. Hoje a culpa é do ego, esse ego egocêntrico. Já falei para ele ficar no lugar dele. De elo. Elo entre as forças apolíneas e dionisíacas. Mas ele não me ouve. Tarefa pouca é bobagem. Ele quer ser toda a Mitologia Grega. Certa vez contratei uma secretária para organizar meu escritório, ela era tão certinha, tão certinha, que a despedi. Como viver entre tantas etiquetas e numerações exatas? Como viver tão organizadamente? Meu ego fica perdido. Ele precisa da bagunça para me governar. Sim, o excesso exaure minha energia. Estou exaurida. Mas feliz, inexplicavelmente, feliz. Ou quem está feliz é o meu ego? Como saber quem sou eu e quem é ele, se quando olho no espelho somos tão parecidos?

"A travessia da fantasia", explica Žižek. Adorei esse cara, o Žižek. Não vai dar tempo de ler o livro todo dele antes de entregar esse texto. Pena. O livro dele é incrível. Aliás, vou parar de escrever e adaptá-lo para o Teatro. Sim, Žižek, é impossível a imersão total no real. Eu fantasio. Fantasio que posso tudo. Vou atravessar minhas fantasias. Do medo de desmoronar em queda livre, me agarro corajosamente às minhas fantasias. Mas depois vou desmontá-las como num jogo de Lego, meditando, atuando no Teatro ao lado de Amir Haddad – o mago dos desmontes ideológicos e fantasmagóricos –, ao lado de minha família (será minha família parte das minhas fantasias?), ao lado dos amigos, da Natureza, do meu filho, das crianças, dos livros, da ciência excessiva, da arte mítica, da alma imoral, de você Žižek, tentando entender as ideologias que me dominam. E, de vertigem em vertigem, vou dando conta de minha sobrevivência, aceitando também o vazio. Quero encarnar o máximo que puder no real, assim como eu encarno em cena. O excesso é nossa extensão, ex-tensão: afrouxamento das forças opostas dentro de si. Buscar os ajustes que balanceiam os opostos internos. Seguirei fazendo a pergunta essencial que aprendi contigo. Como estou envolvida contra aquilo que luto?

Sob os escombros do 11 de Setembro os bombeiros encontraram copos de cristais intactos numa prateleira. Ali estavam eles, de pé, sob o horror do ódio excessivo. Intactos. É fato. Excesso de delicadeza em nós. É isso que Picasso quis dizer? Há o gozo. Real, fantástico, imaginário, íntimo, animal, espiritual. Regozijo. Repito e reparto esse gozo, pois no fundo do lugar escuro, como diz minha personagem na peça de Heloisa Seixas, há os cristais intactos, impunes. A diferença entre o remédio e o veneno: a medida. Experimento o veneno. Experimento o remédio. Todos os dias. Estico uma corda sobre o abismo e caminho sobre ela. Treino. Repito esse treinamento à exaustão. E encontro necessariamente a divina sophrosyne. Se não a encontro é porque ainda não estou sobre o abismo. Bem-vindos ao excessivo Real. Para o bem ou para o mal. Encontraremos nossa medida. É a nossa tarefa urgente. Ela está entre nós. Ela está no meio de nós, oculta sob as fantasias do dia a dia.

Clarice Niskier, outubro de 2012.

 

Referências

Bayard, P. (2007) Como Falar Dos Livros Que Não Lemos?. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Bonder, N. (1998) A Alma Imoral. São Paulo: Ed. Rocco.         [ Links ]

Brandão, J. de S. (2009) Mitologia Grega. São Paulo: Ed. Vozes.         [ Links ]

Andrade, C. D. "Confissões de Minas". In Andrade C. D. (1964) Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Aguilar.         [ Links ]

Hesse, H. (2008) Sidarta. Rio de Janeiro: Ed. Record.         [ Links ]

Melo Neto, J. C. (2008) Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Ed.Nova Aguilar,         [ Links ] .

Žižek, S. (2003) Bem Vindo Ao Deserto Do Real. São Paulo: Boitempo Editorial.         [ Links ]

Peças: Tá na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel, organizadores Licko Turle e Jussara Trindade, 2008. Instituto Tá Na Rua para Artes, Educação e Cidadania (Diretor Artístico: Amir Haddad).         [ Links ]

O Lugar Escuro, peça teatral de Heloisa Seixas, estreia 4/01/2013 – Espaço SESC Copacabana – RJ.

Clarice por Clarice, roteiro teatral com textos de Clarice Lispector, organizado por Bianca Ramoneda e Eduardo Wotzik – encenada no Teatro da Academia Brasileira de Letras, 1999 – RJ.

 

 

Endereço para correspondência
CLARICE NISKIER
Rua Viúva Lacerda, 249 bloco 03 apt 603
22261- 050 – Rio de Janeiro – RJ
tels.: 21 2527-6629 e 21 7848-2457

Recebido: 15/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Clarice Niskier é atriz. Teve seu primeiro conto publicado pela Revista Ficção (RJ), na década de 1970. Trabalhou como repórter no extinto Jornal do Brasil (RJ). Como atriz colaborou na peça Confissões das mulheres de 30, publicada pela editora Objetiva, em 1994. É autora do monólogo Buda, encenado em 2002. Ao lado de Domingos Oliveira, escreveu a peça Confissões das mulheres de 40, encenada em 2003. E é a autora da adaptação teatral do livro A alma imoral, de Nilton Bonder, em cartaz no Cultura Artística-Itaim (SP), em 2011.