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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

ARTIGOS

 

A religância1, ou do erotismo materno2**

 

Reliance, or maternal erotism

 

 

Julia Kristeva*

Société Psychanalytique de Paris
Université Paris-Diderot/Paris VII

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe pensar um erotismo materno específico que chama de religância. Nem recalcamento, nem sublimação, mas discutido em termos do significante enigmático original, a religância torna o estabelecimento das pulsões de vida e de morte problemático e acessível. A representação da religância mobiliza religiões. No mundo moderno, a religância parece ser um assunto relacionado à ética.

Palavras-chave: Erotismo, Recalcamento original, Coisa ("das Ding"), Abjeção, Negatividade, Ética, Religiosidade, Reliance, Herético.


ABSTRACT

The author suggests thinking about a specific maternal erotism that she terms reliance. Neither repression, nor sublimation, but to be considered in the light of enigmatic primal repression, reliance makes the establishment of both the life drive and the death drive problematic and accessible. The representation of reliance mobilises religions. In the modern world, reliance appears as a reserve of ethics.

Keywords: Erotism, Primal repression, Thing (das Ding), Abjectness, Negativity, Ethics, Religiosity, Reliance, Heret(h)ical.


 

 

I - À procura da religância

Viver e pensar o materno como um erotismo: seria tão escandaloso quanto falar de sexualidade infantil? Pode-se supor, já que as crises sociais enaltecem um materno capaz de satisfazer todas as necessidades, enquanto que certas interpretações apressadas dão a entender, erroneamente, que a psicanálise atual atribuiria a sexualidade à amante, confiando ao materno apenas o insustentável destino da relação de objeto.

Vejo a razão principal para esta dificuldade em reconhecer o lugar do materno que nos interpela hoje, inicialmente na própria concepção do erotismo que se impõe desde a invenção do inconsciente, antes de tomar sua forma definitiva com o casal Eros/Tânatos, ligação/desligamento, e que Freud formula, a partir de 1911, como uma "revolução psíquica da matéria" nos Dois princípios do funcionamento mental (Freud, 1911/1984). Com J.-M. Hirt, vejo neste avanço freudiano uma diferenciação gradual da matéria até a psiquização (Hirt, 1998), a qual, contemporânea aos trabalhos sobre o narcisismo e a psicose, vai encontrar em Lou Andreas-Salomé (Andreas-Salomé, 1913/1980a, pp. 127-130)3 uma modulação passional.

O que diz exatamente Lou? Muitas das ousadias de seus escritos precedem o Eros da segunda tópica. Lembramos que, sem abrir mão da sexualidade anteriormente explorada, Freud definirá Eros como se segue: ele "tem como meta tornar a vida mais complexa agregando a substância viva, fragmentada em partículas, em unidades cada vez mais amplas e, naturalmente, mantendo-a neste estado" (Freud, 1923/1951, p. 196, os grifos são da autora), abrindo assim o caminho à onto e à filogênese. A sexualidade no sentido deste erotismo é, para Lou, a qual desenvolve e amplia as propostas do mestre, "aquilo que rompe os limites do nosso eu" (Andreas-Salomé, 1913/1970, p. 418) "restabelece […] o contato com o ser carnal original" (Andreas-Salomé, 1931, p. 97) e se junta à "matéria" para "não distingui-la de nós". E ela convida Rilke, Freud e todos os seus leitores a "tatear o espaço […] e no nosso próprio corpo com confiança, como uma mão se estende para outra […] com toda a interioridade da criatura para a qual essa relação ainda não foi de modo algum obscurecida" (Andreas-Salomé, 1980b, p. 291, os grifos são da autora4). Antes de atribuir ao materno precisamente esta capacidade de colocar e de ultrapassar a "cisão patológica", para "realizar a tecedura" entre realidade interior e realidade exterior, matéria e símbolo, masculino e feminino, e "restituir a perda progressiva que o processo de individuação sofre".

Maurice Merleau-Ponty devia empregar a mesma metáfora das "mãos que se tocam", aquela do eu e aquela da realidade objetal, em sua Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945) que, apelando a uma experiência subjetiva onde a ruptura interior/exterior, matéria/espírito encontra-se redesenhada por esta "inserção recíproca e entrelaçada de um no outro" que a filosofia chamou, por fim, de "uma só carne", "a passagem do mundo silencioso ao mundo da fala" (Merleau-Ponty, 1964, pp. 182-184).

Um século após este ano de 1911, que tomo como emblemático do encontro entre Freud e Lou e o associo a Merleau-Ponty, o desenvolvimento da psicanálise permite fazer de minha "fábula teórica" um verdadeiro debate, sem correr o risco de trair a psicanálise nem por uma via espiritualista nem por uma redução da libido à genética. Mas, ao contrário, para tentar restaurar ao erotismo materno sua complexidade biopsíquica, tanto para o bem-estar da criança, quanto em benefício da emancipação da mulher, no e pelo materno também.

A biologia encontra-se ela mesma confrontada, hoje em dia, com o erotismo materno (ou seja, com a psicanálise), já que ela tenta esclarecer certas mudanças hormonais na mulher grávida, até mesmo o desejo de maternidade.

Existiria uma "permeabilidade" entre biologia e psiquismo? Enquanto a literatura médica evoca o excesso de mortalidade e o risco de morte fetal na diabética, experiências clínicas têm relatado pacientes diabéticas que, de forma individual e em relação a certo tipo de diabetes, melhoram seu controle glicêmico. Uma nova pista para a pesquisa psicanalítica: qual a relação entre a intensidade do funcionamento fantasmático e alucinatório e certas modificações biológicas na mulher grávida?

A partir dos relatórios apresentados no Congresso de Língua Francesa de 2011 e de minha experiência clínica e pessoal, tentarei esboçar alguns aspectos que constituem este erotismo maternal, o qual chamarei de religância. Levanto a hipótese de que é uma economia específica da pulsão tal que, contra-investida enquanto representação psíquica, fixada então em inscrições, a energia desta cisão original tanto mantém como atravessa o recalcamento originário e o secundário. Sem liberá-las às custas de uma regressão psicótica, o erotismo materno torna a fixação da pulsão de vida, como da pulsão de morte problemática e disponível, e as coloca a serviço do meu outro vivo como uma "estrutura aberta", ligada aos outros e ao ambiente. Analisar dessa maneira o erotismo materno me leva a colocar também, como no início do artigo, a extrema fragilidade desta economia, e a me interrogar sobre a sua traduzibilidade. Tratarei das lógicas que especificam a dependência do lado da mãe onde os avanços da psicanálise me parecem mais tímidos quando comparados à exploração da transicionalidade do lado da criança, onde se elabora a autonomia do futuro sujeito.

 

II - O "Estado de urgência" da vida, a libido, o recalcamento originário, o ciclo sublimatório

1. Entendo por "religância" uma experiência no duplo sentido que a língua alemã possui desta noção. A Experiência (no sentido de Erlebnis) faz emergir um novo pré-objeto; surgimento, resplendor, captura imediata. Progressivamente, em um segundo tempo, a experiência torna-se conhecimento, saber paciente (Erfahrung). Estando ou não preparada por um desejo de maternidade, cada futura mãe é capturada desde o início por estes eventos biopsíquicos que são a gestação, o parto e o aleitamento, de tal sorte que a religância materna não somente é irredutível a uma função simbólica, definitivamente social, como acontece com a função paterna, mas ela é uma paixão.

A biologia moderna emprega o termo "paixão" para designar a transformação das emoções (de apego e de agressividade) em amor e em seu correlato, o ódio. Narcisismo e/ou relação de objeto, ternura e despersonalização, ou mesmo catástrofe psíquica, sofrida e suportada mas nunca "passiva", a paixão acaba por se integrar às lógicas do inconsciente – mas para melhor perfurá-las. Tal qual as "energias negras" das teorias cosmológicas em astrofísica moderna que despedaçam o Universo em Multiverso, a religância materna comporta naturalmente o vazio e o colapso passional. O "Eu" que se constrói na paixão materna torna-se a partir de então um multiverso.

Entretanto, esta paixão é também uma vocação. Jamais desprovida de significado no ser falante que é a mãe, ela se inscreve na herança cultural e nas capacidades imaginárias e simbólicas de cada mãe singular, as quais atribuem sentido e significado às pulsões e à gestação que as transforma.

Paixão-vocação. Esta zona do biopsíquico que margeia a religância materna desafia a racionalidade, ela assombra a filosofia e a literatura. Platão a evoca no Timeu, desculpando-se por utilizar "um raciocínio bastardo". Espaço antes do espaço, "Khora", diz ele, alimento e moinho ao mesmo tempo, anterior ao Um, ao Pai, à palavra e mesmo à sílaba: uma modalidade do sentido anterior à significação, e que designo por "semiótica" (Kristeva, 1974, pp. 17-100). A intuição de Colette se apreende pela escrita de suas metáforas que, carregadas de sensações e de afetos, tornam-se metamorfoses: a escritora "procria" por escrito a flora e a fauna do país, sua mãe Sido, e até a carne do mundo. Contudo, esta associação do sujeito falante à matéria, que ela chamou de uma eclosão, não é o êxtase fulgurante do orgasmo sexual, de acordo com Lou. O exílio de si mesmo, que se esboça aqui, é um "ex-tase" durável. Ele dá ritmo ao tempo para a morte em uma temporalidade de recomeços: afirmações jubilatórias e anulações ansiosas que me colocam literalmente fora de mim e, sem me anular, me multiplicam. Diante deste multiverso que é o erotismo maternal como religância, diante de seus riscos, suas resistências e suas criatividades, a psicanálise parece hesitar. Nós o equiparamos a conceitos que balizam uma subjetividade universal (originalmente masculina), como narcisismo, suposição fálica, masoquismo, estados limite, psicose etc.: eis nossa maneira de consolidar o Homo sapiens e seu duplo, o Homo religiosus. E se nós ousássemos propor um novo objeto de análise, quando a clínica nos confronta com os desconhecidos e com as dificuldades da religância?

2. Antes que ele se torne um "continente" do qual se destacará a criação de ligações psíquicas (Brusset, 2005), o erotismo materno (paixão, vocação) com seu horizonte biopsíquico é um estado: "estado de urgência da vida", este "Not des Lebens" do qual falam Heidegger e Lacan (Heidegger, 1985; Lacan, 1986, pp. 58 e s.), uma qualidade de energia sempre já psicossomática no ser falante, dada e recebida para "ser a medida necessária à conservação da vida". Designada por "Das Ding", a Coisa, este estado seria estrangeiro, por vezes hostil (entendamos: no sentido de uma exterioridade absoluta ao sujeito), esse significado-fora; um "intervalo" entre eu e o mundo, o sujeito e o objeto, um entre-dois: nem "eu", nem "você", mas "atrás de nós" e "para além do objeto", "em direção de", "relação patética" que o sujeito experimenta como um "afeto primário anterior a todo recalcamento".

Esta vivência acessível em alucinações e fantasias coloca o sujeito que a testemunha na aurora do recalcamento originário (Freud, 1924, pp. 191 e s.; Laplanche & Leclaire, 1981, pp. 303 e s.) e de seu duplo o recalque orgânico? A análise das ligações precoces mãe-criança às vezes conduz o analisando quando ele se torna psyché-soma em sua dependência da Coisa da qual ele vai se separar: gozo melancólico à beira do caminho do recalcamento. Mas o que dizer se "eu" faço a experiência da Coisa-mesma, dessa estranheza, "afeto primário fixado" no "recalcamento originário" e "em direção do" outro recalcamento, o secundário, que instala a cadeia significante da linguagem? O que dizer se o "eu" se esconde, vai embora pra dentro da "Coisa": o que dizer desse sujeito-mulher/mãe, o qual aponta para a fronteira do recalcamento original e atua seu destino?

Mais que uma fronteira, é antes uma "clivagem original" que Freud postula com este enigmático "recalcamento original", que poderemos desenvolver também como uma sustentação da percepção no mundo simbólico. Levanto a hipótese de que o erotismo materno habita essa clivagem. Ou, antes, ele é uma vitória sobre a clivagem que perdura, o que lhe confere este aspecto de "loucura natural" ao mesmo tempo que de "maturidade natural". Como isso seria possível?

Sob o efeito da "metáfora paterna" (hipótese de Lacan) ou da "revolução psíquica da matéria" (segundo Freud, mais biológica e social). O inconsciente que se cristalizaria no limite do recalcamento original, precisa Freud, ainda não é verbal, mas se compõe de elementos emprestados do imaginário, digamos que ele veicula imagos, fantasias inconscientes, complexos susceptíveis de serem traduzidos na língua materna ou, ao contrário, avessos a qualquer tradução.

O erotismo materno aflora, então, nessa estranheza, nessa regressão, nesse "estado de urgência da vida". As diversas lógicas da religância materna que vão se construir ao longo da vida de uma mãe são testemunhas, elas reativam sua dinâmica e lhes transmitem os traços. E se fosse exatamente isso também que o patético "desejo de maternidade" procura – e que a recusa da maternidade rejeita – para além do acerto de contas com a mãe da mãe, a negação da castração, a obtenção do pênis paternal ou do phallus: antes do estádio do espelho? O "horizonte" da Coisa, no intervalo sujeito/objeto evoca aquilo que Sófocles designa, na Antígona, pelo termo "Atê", fronteira paradoxal, anterior a prescrição de leis, um lugar fascinante e não menos atroz. "Atroz" para a consciência emergente na "revolução psíquica da camatéria", que o eu nos esconde, e do qual o eu nos defende. Do "Atê": Hegel e Lacan fazem o início da ética.

De uma outra forma, a "libido da amante" não cessa de orientar esta urgência da vida, suas expulsões, negatividades, investimentos e ciclos sublimatórios em direção à satisfação pulsional. Essa libido não desaparece na mãe. Se a libido da amante lhe faltasse, o erotismo materno seria somente defensivo ou operatório, e ele induziria carências da sexuação da criança e também de sua capacidade de pensar. Ao contrário, quando a libido da amante desvia (de seducere: seduzir) para a criança as pulsões insatisfeitas, é a "versão-mãe" (de acordo com a expressão de Ilse Barande) que estrutura a vida psíquica infantil. Mas enquanto a libido da amante é dominada pela satisfação das pulsões, o erotismo materno modifica (ou faz tender a) a pressão libidinal em ternura: para além da abjeção e da separação, a ternura é o afeto elementar da religância.

3. A expulsão é a segunda componente do multiverso do erotismo materno que escolhi para discorrer. É pela expulsão (Ausstossung e Verwerfung, recusa e negatividade) que a Coisa liberta de seu estado de Coisa e entrega ao mundo um outro sujeito vivo. Freud os assinala no desenvolvimento da representação psíquica, na aquisição do pensamento e da linguagem na criança. Mas é o erotismo materno que os carrega desde o início, desde a violência do parto no qual a mãe arrisca sua própria integridade, psíquica e física, não menos do que a integridade da criança.

4. A violência sempre biopsíquica, pulsional, se prolonga nesse destino da pulsão de morte que chamo de a ab-jeção: processo inevitável de fascinação-repulsão onde ainda não existe nem sujeito, nem objeto, nem mesmo os ob-jogos ("objeux", F. Ponge antecipando Winnicott), mas "abjetos" (Kristeva, 1980). A criança me "perde" (me "mata") para me deixar: Orestes antes de Édipo. Do meu lado, para me separar dela e para novamente me tornar "eu", eu a deixo "abjetando-a"; ao mesmo tempo que eu "abjeto" a Coisa dentro da qual estávamos confundidos, assim também o continuum biopsíquico que eu havia me tornado. Para que a psiquização consiga ser finalizada, e para que a negatividade biopsíquica assegure a criação de ligações, o erotismo materno libera a pulsão de morte ela mesma no processo vital, religando-a a ele: o materno transforma os abjetos, rejeitados pela pulsão de morte no não-ainda espaço mãe-infans, em objetos de cuidado, de sobrevivência, de vida.

Sempre dentro e fora, eu e outro, nem eu nem outro, entre dois: o erotismo materno separa e junta: hiato e junção5. A "loucura materna normal" (Green, 1990, pp. 182 e s.) mas também o domínio materno que entrava na vida psíquica e sexual de sua prole e frequentemente explode em ódio: são múltiplos os sintomas que manifestam as catástrofes paroxísticas desta ab-jeção, que é uma componente psicossexual "normal" do erotismo maternal.

5. Seria por causa da pregnância da abjeção no erotismo materno que nós não consideramos de maneira suficiente o seu papel estruturante na constituição do ideal do eu? O Pai da identificação primária (Einfülung) (Kristeva, 1983, pp. 38 e s.) é uma imago ideal do parceiro reconhecido e recomposto pelo erotismo materno que o terá investido como o pai amado/amante de suas crianças. O "eu" do futuro sujeito não advém senão pelo investimento/reconhecimento do que significa pra mim este "pai da pré-história individual", desde que eu esteja ligado a ele pelo investimento materno sobre ele.

Investimento: Besetzung (alemão), cathexis (inglês), da raiz sânscrita kred-, srad-: credo, crédito. Investimento da paternidade do pai amante, aqui o erotismo materno elege o pai da eleição. Porque ela repete ou repara a eleição que significou para ela (ou não) seu próprio pai, a Coisa materna acrescenta à sua aptidão para a abjeção uma nova capacidade: a de eleger o Terceiro para sua criança. Uma vocação em resposta ao Outro (ao pai).

6. Sobrecarregada, muitas vezes "desubjetivada" pelo "estado de urgência da vida", pelo trabalho da abjeção e pelo exílio na eleição, a religância é evidentemente a obra do negativo. Mas ela o acompanha com um fabuloso investimento do estado de urgência da vida, ligado ao investimento da sobrevivência física e psíquica, do cuidado com o ser vivo e da preocupação com a transmissão: em suma, o negativo trabalha se, e somente se, o desligamento é imediatamente reinvestido, religado. Isto é, a sua secreta e natural familiaridade com a apoptose (a morte celular que esculpe o ser vivo) e sem ignorar o masoquismo ao qual ele frequentemente cede, o erotismo materno acrescenta entretanto esta recusa do colapso que não se reduz a uma suspeita resistência. "Stabat Mater": ela aguenta. Evitemos ver nesta tenacidade somente uma defesa neurótica ou paranoide. Da mesma forma que a "capacidade de estar só" não é somente uma complacência melancólica com a solidão, mas é uma aptidão a sublimar a perda, a ferida e até a carência narcísica, assim também esta camatéria pacidade do erotismo materno em acompanhar o ser vivo através da ameaça da mortalidade e até a morte, esta capacidade me parece ser uma parte integrante do erotismo materno. Ela aguenta: "Stabat Mater". Uma fantasia, mas ela emerge sobre uma realidade psíquica e somática tanto frágil como indelével: a religância materna.

7. Dois fatores internos à intersubjetividade materna favorecem o metabolismo da paixão destrutiva em desapaixonamento "religante": aquilo que chamo de "Édipo biface" (Kristeva, 1996, pp. 198-235) da mulher, e a relação materna com a linguagem.

Não desenvolverei as potencialidades autoanalíticas ou defensivas dessas repetições e deslocamentos do "Édipo primeiro" (homossexualidade primária com a mãe) e do "Édipo bis" (acesso à "terceridade" pelo pai) que o erotismo materno inscreve e perlabora no casal com o pai-amante, como também na preocupação materna primária. Somente mais algumas palavras sobre o tema da relação materna com a linguagem.

A aprendizagem da linguagem pela criança é uma reaprendizagem da linguagem pela mãe. Falando as ecolalias e a linguagem de sua criança (reencontrando assim as bases pulsionais da fonação, que Sabina Spielrein havia descoberto), cada mãe realiza à sua própria maneira a busca proustiana do "tempo perdido". E remedia passo a passo a "não congruência" que separa afeto e cognição, da qual se queixa de forma intermitente o histérico.

8. Sobre esses dois pilares, que são o Édipo biface e a aprendizagem da linguagem, se constrói um verdadeiro ciclo sublimatório no qual a mãe se coloca ao se diferenciar do recém-nascido. Religância que também gostaria de comparar ao ciclo sublimatório que Freud observa na emissão da recepção da palavra no chiste: emissão de "significantes enigmáticos", pré-verbais ou verbais; recuo pulsional da mãe que não investe sua própria mensagem, mas fica atenta à mínima reação da criança; "prêmio de incentivo" para a experimentação, para as "armadilhas", para o "direito de errar"; enfim, a partir dessa circulação, não desprovida de uma certa perversidade, a mãe obtém em retorno um gozo ainda maior, como resultado da resposta da criança que ela enaltece e encoraja.

9. Por outro lado, o fracasso do desapaixonamento instala no lugar da religância o seu inverso: a posse. O "neonaticídio", o infanticídio não levam à morte: eles são obra da posse. Incapaz de dar, a progenitora que os comete "escotomizou" a religância. Ela capturou a vida para fazê-la um não-objeto, fora do tempo e fora de lugar, em seu narcisismo totalitário reenviado ao seu estágio último de "matéria morta", de "natureza morta", de antimatéria; cadáver ou congelamento, lugar nenhum, fora do tempo, fora de jogo. De maneira mais corriqueira, quando a libido da mulher faz da criança a finalidade última de suas pulsões, a religância materna falha em seu influxo. Seria somente a morte dessa mãe o único evento que poderia libertar o filho da fixação incestuosa? A menos que, por uma última dívida à captura materna, ele não se sinta "no direito" de morrer, como liberdade reconquistada? (Barthes, 2009). Por outro lado, a "mãe suficientemente boa" tenta inscrever ela mesma a mortalidade, a sua e a das suas crianças, na religância. Disso resulta uma religância dramática, aquela do nascimento/renascimento/recomeço, e que Colette assim descreve: "É lá, na eclosão, para mim, que reside o drama essencial, mais do que na morte, que é apenas uma derrota banal" (Colette, 1954/1991, p. 1732).

Que me seja permitido, então, reabilitar essa palavra, religância, no vai e vem entre o francês antigo, o francês e o inglês. Religância: religar, reunir, juntar, colocar junto; mas também aderir a, pertencer a, depender de; e como consequência: confiar em, se confiar a alguém em segurança, descansar seus pensamentos e sentimentos, se juntar, se fazer pertencer. Após ter destacado, com Winnicott, a separação e a transicionalidade, me parece importante insistir sobre essa vertente do materno que mantém o investimento e o contra-investimento da libido e de Tânatos ele mesmo em ligações psicossomáticas cada vez mais extensas, para recriar. Este erotismo específico que mantém a urgência da vida até os limites da própria vida, chamo isso de uma religância.

 

III. Um gozo irrepresentável, lá onde aflora o visível

"Como representar a religância?" quer dizer: como lhe dar um lugar no pacto social? Esta é uma questão psicanalítica? Não exatamente? Sim, de fato. O erotismo de que se trata, e para o qual o consenso social nega a carga sexual para só reter o "amor" idealizado ou patológico, é de uma tenacidade de tal forma vulnerável que apenas o máximo tato poderia evitar as duas recuperações que o desfiguram ao longo da história humana, e das quais a psicanálise talvez seja a única a tentar escapar: heroificação/sacralização, por um lado (deusas mães de trinta mil anos atrás com as quais a religiosidade do Homo sapiens paga sua dívida e regulamenta sua conta com o erotismo materno, tornando-o estátua, petrificando-o); "mãe-versão" ("mère-version"), por outro lado (nos rituais orgásticos do taoísmo e do qual Ma Mère de Georges Bataille faz um eco longínquo, deixando para mãe como única saída a morte).

O homem é capaz de dessacralizar o erotismo materno? Mesmo as mulheres se deleitam com ele, com benefícios libidinais evidentes. O heroísmo de Freud aí se aventura, entretanto, uma vez que ele escreve que a única forma de "se libertar" do "respeito" da mulher é "se familiarizar com a representação do incesto" (Freud, 1912/1969, p. 61). Acrescento que, para se desprender do poder da fantasia, até a fantasia de uma soberania materna, seria preciso atravessar ao inverso, com o incesto, o próprio estádio do espelho. Alguns se arriscam, entretanto. Como Lewis Carrol, que ao passar do outro lado do espelho, se transforma em garota, Alice: quase-anagrama de Lewis, seu lado... materno? Enquanto que Céline, explorador ousado da abjeção generalizada, sacrifica-se a si mesmo no compromisso político e no Apocalipse sem Deus (Kristeva, 1980).

Duas versões do materno disputam hoje em dia a lógica profunda do erotismo materno, sem sacralizá-lo, embora impondo-o: o gesto que traça o movimento da carne em direção à imagem, aquém e além do som, e seu frescor infantil na mãe chinesa; e o riso de Sarah. Esse riso que a altera, mostrando-a dupla: incrédula e/ou confiante. Ele a mantém disponível na fissura entre crer e não crer. Mas Sarah, sorridente a seu Isaac (que ri), morre pegando para si a morte do filho, ele mesmo poupado, por causa da mesma Aquéda. É então, por meio da angústia do mais próximo ao mais profundo de si, que o materno, segundo Sarah, consolida a Aliança.

O mal-estar da civilização hoje está nas mãos dessas duas variantes do erotismo materno: a fluência caligráfica da mãe chinesa na corrente globalizada; a sabedoria de Sarah pronta a morrer para rir da fertilidade e da imortalidade. Tal qual uma réplica de Antígona, ela anuncia Maria na Pietá e a roda de sorrisos entre Santa Ana, a Virgem e a Criança pintadas por Leonardo.

 

IV. Universo "des-totalizado"

A beatitude de Maria, a natividade banhada de promessa e o gozo materno captado no materno do homem, os quais impregnam a estética sublime do Ocidente cristão: teriam eles desaparecido definitivamente, como o testemunham Nascimento (1937) e Morte (1938) de Max Beckmann (1884-1950)?

Naquele ano de 1937, Freud já havia publicado Além do princípio do prazer (1920) e Otto Rank, O traumatismo do nascimento (1924); Melanie Klein tinha descoberto a "posição depressiva" em 1934 e a "esquizo-paranoide" em 1936. Winnicott havia iniciado sua segunda análise com Joan Riviere (1936) e somente havia publicado seu primeiro livro Clinical notes on disorder in childhood (Winnicott, 1931). Enquanto que Bion havia iniciado a análise de Samuel Beckett em 1935, que duraria apenas dois anos: assistindo a uma conferência de Jung na Clínica Tavistock, o escritor reconhece que nunca houvera nascido ("never properly born"), rompe com Bion que o incita a se distanciar de sua mãe e decide que ele "se deve à sua mãe" e à literatura, dentro das latas de lixo da velhice em Esperando Godot.

Hoje essa desconstrução toma outros rumos (os sociólogos kleinianos, as mães romancistas). Após ter feito da sexualidade nosso Logos e nosso Deus, e do Falo paterno a garantia da identidade, a psicanálise nos convida hoje a recarregar nossas ambições de liberdade em regiões mais móveis, mais arcaicas e não menos ricas em potencialidades: lá onde o Um (a identidade) não chega a ser; ou então não se contenta em ser somente Um.

Nós acreditamos que as mulheres queriam ser livres impedindo-se de ser mães. Nós percebemos agora que elas querem ser livres para decidir ser ou não mãe. Muitas daquelas que o desejam recorrem às maternidades assistidas, sem preconceitos: seria porque a inclinação pré-subjetiva do erotismo feminino as torna familiarizadas com essa despossessão de si mesmo que a ciência impõe no ponto mais íntimo? Para ouvi-las, nós ainda não encontramos o equilíbrio justo entre a escuta da demanda singular, as proezas das ciências e um dado momento ético da tolerância social.

Analisando a história de religiões constituídas, Freud descobriu a religiosidade ou a necessidade de crer, como um componente universal da experiência psíquica: para os desconstruir indefinidamente pelo desejo de saber e até aos "infiéis" que J.-M. Hirt analisa em sua trilogia. A religância específica do erotismo materno revela uma economia biopsíquica lógica e cronologicamente anterior, e também universal. Uma dimensão distinta do "religere", ou até mesmo rebelde às suas leis e aos seus poderes.

 

V. Herético

Não é porque a secularização é a única civilização para quem falta o discurso sobre o materno, que as religiões e a religiosidade detêm a verdade ou o marca da religância. São mais os sintomas de seu recalcamento que a psicanálise desaloja nossa herança metafísica. Cabe a nós criarmos novos conceitos da metapsicologia para desenvolver – na escuta da sexualidade da amante – a elucidação e o acompanhamento do erotismo materno em sua especificidade. Sem o que a emancipação do sujeito mulher está condenada a não ser senão uma ideologia sem ética.

Se o amor é (segundo Spinoza) a face íntima da ética, o erotismo maternal nos aparece como uma "herética" do amor: no sentido de que, longe de ser censurada, a urgência do Eros contra-investida (fixada, tornada psíquica) neste novo outro ("meu outro") que é a criança, libera a pulsão de morte (o desligamento) ela própria, e só obtém sua satisfação libidinal ao religar essa desintricação pulsional no prazer do cuidado vital e do ciclo sublimatório.

"A mulher livre está somente para nascer", escrevia Simone de Beauvoir no Segundo Sexo (Beauvoir, 1949, p. 641). Não haverá mulher livre enquanto nos falta uma ética do materno. Ela está para nascer, e será uma ética da religância.

 

Referências

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Andreas-Salomé, L. (1970). Journal. In L. Andreas-Salomé. Correspondance avec Freud. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

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Endereço para correspondência
JULIA KRISTEVA
76, rue d’Assas
75006 – Paris-Diderot
E-mail: julia.kristeva@univ-paris-diderot.fr

Recebido: 15/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Psicanalista, membro titular da SPP (Société Psychanalytique de Paris), filósofa, escritora e professora emérita de literatura contemporânea da Université Paris-Diderot/Paris VII.
** Artigo publicado na Revue Française de Psychanalyse, Paris: PUF 2011/5 (Vol. 75), pp. 1559-1570.
1 Nota dos tradutores: optamos pela palavra "religância" pois, embora seja um neologismo, segue a linha da escrita da autora, que também na versão original optou pela palavra "reliance", um neologismo que parece condensar "alliance" (aliança) e o verbo "lier" (ligar).
2 Tradução: Patricia Cabianca Gazire (membro associado da SBPSP); José Martins Canelas Neto (membro efetivo e analista didata da SBPSP).
3 Ver também suas cartas e o Journal d’une année, Correspondance avec Freud. Paris: Gallimard, 1970, desde o encontro com Freud em 1895 até a última Carta aberta a Freud de 1931. Freud não prosseguiu com a correspondência, ameaçado que estava em 1911 (esta é também a data do Congresso de Weimar para o qual ele convidou Lou) pela dissidência de Ferenczi, mas sobretudo pela de Jung, que se desvia da sexualidade ancorada no Édipo e no incesto.
4 Carta a R. M. Rilke de 1o de março de 1914.
5 Baudelaire, amante das matronas e da volúpia, finamente analisado por J.-M. Hirt (1998); Céline, dividido entre a bailarina graciosa e suas "fêmeas que o mimam até o infinito"; e as matronas hediondas de Kooning – entre tantas outras – servem como testemunha.