SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37 número59A melancolia em Kafka como perda da linguagem: considerações sobre A construçãoOs ideogramas de francesco índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

EM PAUTA - MORTE DA PALAVRA?

 

Morte e vida da palavra em Palavras para dizer

 

Death and Life of the word in Words to say it

 

 

Vera L. C. Lamanno-Adamo*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como base o livro de Marie Cardinal, Palavras para dizer, uma obra quase documental de uma experiência analítica de uma jovem mulher, a autora tece considerações sobre o processo de morte e renascimento da palavra viva em uma experiência analítica, fundamentada na afirmação de Green: a fala do analista desenluta a linguagem.

Palavras-chave: Experiência analítica, Linguagem em psicanálise, Palavra morta, Palavra viva.


ABSTRACT

Taking into account the book of Marie Cardinal – The Words to Say It – a documental history about a psychoanalytical experience of a young woman, the author discusses the process of death and life of the living word in a psychoanalytical experience. Green's statement that the analytic speech takes the mourning out of language comes to be essential to the author's discussion.

Keywords: Analytical experience, Language in psychoanalysis, Dead word, Living word.


 

 

Também existe grande silêncio em
uma obra de arte
elas foram criadas de espaços
ocos
lacunas
entre a sangria e o coágulo
.

 

A ruazinha, um beco sem saída, era mal calçada, cheia de buracos e de calombos, margeada por passeios estreitos um tanto destruídos. As janelas não deixavam escapar nenhuma intimidade, nenhuma atividade. Ali não havia miséria nem riqueza. Era o mundo da pequena burguesia, que esconde seus pés-de-meia preciosos atrás das gretas, atrás das venezianas desdentadas, das calhas enferrujadas e das paredes onde descamam placas de reboco. Mas as portas eram fortes, e as janelas do térreo protegidas por grades sólidas. (Cardinal, 1975, p. 7)

 

Quem morava lá?

É assim que Marie Cardinal (1975) inicia o seu livro Palavras para dizer (Les mots pour le dire), uma narrativa que testemunha a experiência analítica de uma mulher. Não se trata da história de uma análise, de descrever como se deu o tratamento, de oferecer informações, mas da narrativa de uma experiência. Diz respeito a uma história quase documental do nascimento das palavras primeiras de uma mulher de trinta anos que tem um fluxo de sangue constante, está sempre coberta de suor e encolhida. Impossibilitada de viver e de conviver, ameaçada por dentro e por fora, ameaçada constantemente pelo sangue que não parava de sair de dentro dela, do seu útero fibromatoso: "[...] que mulher não ficaria apavorada ao ver escorrer assim sua seiva?" (p. 10).

O acontecido insuportável habitava um espaço psíquico sem memória e sem história. A memória e as palavras, que poderiam alcançar e dar vida ao irrepresentável, estavam emudecidas, segregadas. Desligadas da vida afetiva, diante do desespero, da violência e do desamparo, a palavra viva permanecia morta.

Lembro-me das memórias de Primo Levi (1947) sobre a sua experiência em um campo de concentração. Primeiro, tiraram-lhe seus pertences, depois, rasparam-lhe a cabeça e imprimiram um número em seu corpo. Em seguida, foi levado para uma sala em que havia um copo d'água na janela, morrendo de sede, ele pegou o copo com avidez, e o soldado que o acompanhava arrancou o copo de sua mão e o jogou longe. "Por quê?". Perguntou ele. E o soldado respondeu: "Aqui não existe porquês". O mais impressionante, escreveu Levi, e o que me levou a pensar que eu estava, de fato, enlouquecendo, foi quando percebi que passei a acreditar na inexistência de perguntas, respostas, questionamentos, porquês, sentidos, significados. Naquele instante percebeu que estava deixando de ser humano, que dentro dele a humanidade estava perdida.

Perdida a humanidade, há uma imperiosa restrição das possibilidades de se sentir suficientemente animado interiormente para viver a própria vida, acompanhado de um considerável empobrecimento psíquico que compromete toda uma vida.

Reproduz-se, assim, uma violência que não pode ser rememorada. A rememoração segregada requer, pelo trabalho das palavras, a criação de memórias, a criação de um passado e de uma narrativa para essa violência muda e surda, que se apresenta em um presente oco, eternizado pelo excesso.

Palavras para dizer é a história de uma experiência de morte e renascimento da palavra viva, sobre o retorno da palavra alicerçada na angústia e na elaboração, durante uma experiência analítica de sete anos.

A mulher de Palavras para dizer resolveu fugir de uma clínica onde a entupiam de medicação. Ela estava à beira de ter o seu útero extirpado. Ela mesma um beco sem saída, cheia de buracos e calombos, escondida atrás de gretas, venezianas desdentadas, calhas enferrujadas, paredes descamadas.

Fugiu da clínica e foi parar naquela ruazinha, naquele lugar sem miséria nem riqueza, mas com portas fortes e janelas protegidas por grades sólidas.

Quem morava ali?

Um homenzinho moreno pediu para ela entrar e esperar e, depois de um tempo, para que entrasse em seu consultório.

Como encontrar as palavras que o fizessem me entender? Como estabelecer a ponte que ligaria a agitação à calma, o claro ao obscuro, que transporia o esgoto, o grande rio cheio de matérias em decomposição, a correnteza turbulenta do medo, que separava o doutor de mim, os outros de mim? (Cardinal, 1975/1990, p. 9)

Como falar, ela se perguntava, da pilastra do seu ser, "hermeticamente fechada, a Coisa, densa e espessa, atravessada ao mesmo tempo por espasmos, falta de ar e movimentos lentos como os do fundo do mar" (Cardinal, 1975/1990, p. 9).

Ela tinha vergonha do que se passava dentro dela. Da hemorragia, da desordem, da confusão, daquela agitação. Ninguém devia saber, nem mesmo aquele homenzinho, o doutor.

Ela tinha vergonha da loucura.

Acho que eu posso ajudá-la, o homenzinho disse à mulher, podemos começar uma análise a partir de amanhã e você deverá, desde já, parar de tomar todo e qualquer medicamento, seja para a sua hemorragia, seja para o seu sistema nervoso. E se eu tiver uma hemorragia, ela perguntou. Não faça nada, o homenzinho respondeu. Mas já me hospitalizaram por isso, ela insistiu, me fizeram transfusão, curetagens. Não faça nada, aguardo você amanhã. (Cardinal, 1975/1990, p. 30)

A palavra do analista, disse Green (1983), desenluta a linguagem, tira a linguagem da paralisia, da quase morte, propiciando ao paciente um retorno a si, mediante o desvio através do outro. O psicanalista não é um poeta, "[...] mas pode ocorrer que, por seu intermédio, o que indevidamente denominamos 'as coisas' ou 'o mundo exterior' venha a ser, mais intensamente que nós, uma palavra viva" (Pontalis, 2003, p. 26).

A história da mulher era a de um útero fibromatoso e hemorrágico, a de uma mulher entregue ao sangue, toda a sua atenção se prendia a estar ou não sangrando, estar ou não manchando poltronas, cadeiras, roupas. O homenzinho a convidou para entrar, sentar, falar e continuar vindo, numa tentativa de compreender mais sobre o que aquela entrega ao sangue significava.

Ela voltou no dia seguinte, conforme o combinado: "[...] na hora marcada ela estava no beco sem saída, toda embrulhada em absorventes, em algodão, apertada em uma espécie de fraldas que preparava para si própria" (Cardinal, 1975/1990, p. 35).

"Doutor, estou exangue", ela disse. Ele respondeu com muita calma e delicadamente:

Trata-se de problemas psicossomáticos, isto não me interessa, fala-me de outra coisa. Tente compreender o que se passa com você, o que provoca, atenua ou acentua suas crises. Tudo é importante: os ruídos, as cores, os odores, os gestos, as atmosferas... Tudo. Tente proceder por associações de idéias e de imagens. (Cardinal, 1975/1990, p. 37)

Ela ficou muito irada. Não queria se deitar naquele divã. "Senti", ela narrou, "[...] que aquelas palavras que aquele homem acabara de pronunciar me atingiram como um tapa na cara": "[...] nunca tinha recebido nada tão violento" (p. 35). Ficou arrasada e chorou. Chorou durante muito tempo, naquele dia.

Lembro-me de uma vez ter perguntado a uma mulher, em início de análise, como as minhas palavras estavam chegando até ela. Isto porque, na maioria das vezes, depois que eu falava, percebia que a sua respiração ficava ofegante e que se enrijecia no divã. E ela me disse: "[...] a sua voz é delicada, eu gosto do tom da sua voz, mas as suas palavras vão entrando dentro do meu ouvido e vão me dando um medo, um medo, e eu sinto que tenho que me agarrar firme no divã, elas vão como que me levando para um abismo, não sei onde elas vão me levar, fico com muito medo".

A mulher de Palavras para dizer deve ter sentido medo semelhante ao da minha analisanda. Entregar-se à busca de palavras para expressar a Coisa dentro do peito, para abrir as portas trancafiadas do inconsciente, daquilo que antes permanecia irrepresentável, incitava medos profundos e era de uma intensidade que a violentava, empurrando-a para a beira do abismo.

Fale, diga tudo aquilo que lhe passa pela cabeça, tente não fazer triagem, não pensar, tente não organizar suas frases. Tudo é importante, cada palavra. Era o único remédio que ele me dava, e eu me saciava com isto. Talvez fosse esta a arma contra a coisa: aquela onda de palavras, aquele turbilhão de palavras, aquela massa de palavras, aquele tufão de palavras! As palavras traziam consigo a desconfiança, o medo, a incompreensão, o rigor, a vontade, a ordem, a lei, a disciplina, e também a ternura, a doçura, o amor, o calor, a liberdade. (Cardinal, 1975/1990, p. 72)

O sofrimento condenado ao silêncio de seus desejos e afetos, e que foi convertido em um sintoma corporal, precisava entrar em um estatuto discursivo, ser transformado de linguagem corporal para linguagem verbal. A análise ofereceu o necessário espaço de linguagem para traduzir, ressignificar, nomear e transcriar seu sofrimento e suas repetições infinitas em um sofrimento menos mortífero.

As palavras faziam reviver a cena. Eu era menina de novo. Em seguida, quando a imagem se apagava, e voltava novamente a ser uma mulher de trinta anos, me perguntava por que aquela postura rígida, aquelas mãos fechadas sobre a toalha, aquele encosto proibido? Por que aquele tédio, aquele constrangimento diante de meu pai? Quem me impusera tudo aquilo e por quê? Estava ali, no divã, com as pálpebras fechadas para continuar a reter a menina. Eu era realmente ela e realmente eu. Então tudo era simples e fácil de entender. Começava a ver, delinear-se claramente a dominação de minha mãe. Para me encontrar era preciso que a encontrasse, que a desmascarasse, que mergulhasse nos arcanos de minha família e de minha classe. (Cardinal, 1975/1990, p. 73)

A palavra sem filtro, a palavra solta levou a mulher a reviver as imagens da infância e da adolescência na Argélia em guerra e a encontrar palavras para narrar de forma envolvente, sem tanto medo, o que antes ficava entregue ao sangue. Ora coágulos tão grandes que pareciam fatias de fígado que a levavam com urgência para o hospital para fazer uma curetagem. Ora o sangue saía como uma cordinha vermelha que não parava de desenrolar, uma torneira aberta.

A palavra foi estancando o sangue e desenterrando a memória que vinha à tona, à luz do que naquele momento estava vivo. No decorrer do percurso analítico, memórias de sua história vão surgindo: a infância e a trajetória que a levaram a adoecer, a relação intensa e tortuosa com a mãe, a ausência do pai, as brigas dos pais, a morte do pai quando ela tinha quinze anos, os questionamentos quanto a ser filha, esposa, mãe.

Eu vinha, fechava os olhos e trazia à lembrança bibelôs e quinquilharias, que certamente tinham a sua importância, mas que não estavam no cerne da coisa. O homenzinho nada dizia de importante. Ele abria a porta: "Boa tarde, senhora". Mandava-me entrar, eu me deitava no divã, eu falava. Em determinado momento ele me interrompia: "Creio que seu tempo acabou". De rabo de olho, eu o tinha visto olhar seu relógio duas ou três vezes antes de dizer isto, como se fosse o árbitro de uma partida. Eu me levantava: "Até logo senhora". E mais nada. A cara fechada, os olhos atentos, mas sem comiseração, sem cumplicidade. Posteriormente ele retiraria, de tempos em tempos, uma palavra de meus monólogos desconexos e diria: "Tal palavra, o que lhe sugere?". Eu pegava esta palavra e desfiava todas as imagens, todos os pensamentos fortemente ligados a ela. Na maioria das vezes, essa palavra era a chave que abria uma porta que eu não tinha visto. Isso me inspirava confiança: era um bom profissional. Eu o admirava: como fazia para pegar, no momento certo, exatamente a palavra necessária? (Cardinal, 1975/1990, p. 100)

A palavra enlutada é a Coisa que sufoca, que deixa sem ar, é o sono sem sonho, o torpor. É, às vezes, somente cor, o vermelho, o sangue como único berro diante da morte. A palavra desenlutada é uma palavra por dizer, o verbo no infinitivo confere com determinação a ideia de continuidade, de um dizer que está sendo dito e de um dizer que está sempre por ser dito.

A palavra do analista foi tirando das trevas pequenas ilhotas que constituíam e habitavam o espaço mental daquela mulher.

Gilles Deleuze (1953) escreveu um intrigante texto sobre as causas e razões das ilhas desertas, desenvolvendo uma reflexão sobre o poder mítico e regenerador das ilhas. Toda ilha, afirma ele, é, por excelência, o lugar de recomeço: "[...] não se trata de um começo, mas de um re-começo. Trata-se, porém, de uma origem segunda, de um segundo nascimento, que só pode ocorrer após uma grande catástrofe. É justamente, a idéia de uma segunda origem que dá todo sentido à ilha deserta" (Deleuze, 1953/2006, p. 17).

Para dar início às suas reflexões, Deleuze partiu de informações dos geógrafos sobre a existência de dois tipos de ilhas: as continentais e as oceânicas. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas que foram separadas de um continente, que nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, e sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha.

As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais. Se constituídas de corais, elas nos apresentam um verdadeiro organismo; se surgem de erupções submarinas, trazem ao ar livre um movimento do fundo. Umas emergem lentamente, outras desaparecem e retornam, não há tempo para anexá-las.

Estes dois tipos de ilhas, originárias ou acidentais, testemunham uma oposição profunda entre oceano e terra. Umas nos lembram que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do mínimo rebaixamento das estruturas mais altas, as outras, em que a terra ainda está ali, sob o mar, reúnem forças para romper a superfície. Reconheçamos, enfatiza Deleuze, que os elementos em geral se detestam, têm horror uns aos outros.

O que a geografia nos diz sobre as ilhas materializa noções sobre um espaço mental povoado por "ilhotas" que testemunham uma profunda oposição entre consciente e inconsciente (terra e oceano). A memória, verdadeiro organismo, ora surge a partir de erupções, trazendo "ao ar livre" um movimento que vem do fundo, ora emerge lentamente. Algumas desaparecem e retornam, não há tempo para anexá-las à consciência. Semelhante à formação das ilhas, algumas memórias nascem de uma desarticulação, de uma fratura, outras são originárias, essenciais.

É a palavra viva que promove o rebaixamento e a emergência "ao ar livre" dessas ilhotas-memória. É a vida secreta das palavras que dá corpo a esses movimentos de separação, retorno, recomeço, recriação da memória, dos afetos, da história.

Secreta é a oração que o celebrante da missa diz em voz baixa, antes do prefácio.

 

Referências

Cardinal, M. (1990). Palavras para dizer. São Paulo: Trajetória Cultural. (Trabalho original publicado em 1975).         [ Links ]

Deleuze, G. (2006). Causas e razões das ilhas desertas. In A ilha deserta e outros escritos. São Paulo: Iluminuras. (Trabalho original publicado em 1953).         [ Links ]

Green, A. (1993). El lenguage en el psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1983).         [ Links ]

Levi, P. (1988). É isto um homem? São Paulo: Rocco. (Trabalho original publicado em 1947).         [ Links ]

Pontalis, J. B. (2012). À margem dos dias. São Paulo: Primavera Editorial.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
VERA L. C. LAMANNO-ADAMO
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-030 – Cambuí, Campinas – SP
tel.: 19 3254 0824
E-mail: vera.adamo@ig.com.br

Recebido: 02.10.2014
Aceito: 05.12.2014

 

 

* Membro efetivo e analista didata da SBPSP e do GEP-Campinas.