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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017
EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA
Lygia Clark: art and life
Silvana Rea
Membro efetivo e diretora científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre e doutora em psicologia da arte pela Universidade de São Paulo
RESUMO
Este trabalho aborda o percurso da artista plástica brasileira Lygia Clark, centrado na proposta de recolocar vivencialmente o homem no mundo. Sua obra pode ser lida como uma resposta às questões fomentadas pela sociedade do espetáculo.
Palavras-chave: Artes plásticas. Experiência. Lygia Clark. Psicanálise. Sociedade do espetáculo.
SUMMARY
This work deals with the artistic paths of the brazilian artist Lygia Clark, that is centered on the proposal to relocate man in the world. Her work can be read as an answer to the questions fostered by the society of the spectacle.
Keywords: Visual arts. Experience. Lygia Clark. Psychoanalysis. Society of the spectacle.
Em 1967 o filósofo Guy Debord publica A sociedade do espetáculo, em que aborda as transformações do mundo, do que era diretamente vivido para uma representação. O ponto para se entender o espetáculo está na proliferação das imagens; ele é produto direto das técnicas de difusão maciça de imagens e por meio delas é o lugar da falsa consciência, pois se apresenta como a própria sociedade, quando, de fato, são duas realidades separadas. E mais, a natureza da imagem faz com que o mundo real aspire a ela e tenha a sua legitimidade garantida pelo seu aparecimento na esfera imagética.
O espetáculo é uma relação entre as pessoas mediada por imagens. Desse modo, ele se apresenta como um "pseudomundo" à parte, objeto de mera contemplação. Temos, assim, a alienação do espectador em favor daquilo a ser contemplado.
É inevitável percebermos o pensamento visionário de Debord, ainda que sua postura esteja inserida no bojo da crítica social dos anos 1960, quando o mal-estar pós-guerra impulsiona toda uma geração para a busca da liberdade de experimentação.
É aqui que podemos situar a artista plástica brasileira Lygia Clark, que inicia a sua trajetória artística no final dos anos 1940, adotando a principal questão da arte moderna: religar arte e vida, sob a influência do paisagista brasileiro Burle Marx e do pintor francês Fernand Léger.
Fiel ao compromisso com a utopia modernista de união da arte à vida, Lygia busca libertar o objeto de arte de seu aspecto formalista e de sua aura de sacralidade, libertar a arte da dimensão especializada para torná-la uma dimensão da existência, fazendo da vida uma obra de arte (Rolnick, 2002).
Esse compromisso a leva a filiar-se ao movimento neoconcretista em 1959, uma posição crítica carioca contra o excessivo racionalismo dos concretos paulistas, que se detinham nos problemas formais reduzindo-os a soluções plásticas e ao dogmatismo geométrico. Como reação, o neoconcretismo traz a noção de orgânico; uma proposta de encarnar, na obra, a vida como impulso criador. Uma proposta experimental que valoriza o significado existencial e afetivo da obra de arte1.
Portanto, esse é o cerne da obra de Lygia Clark, que, ao levar o projeto moderno ao limite, alcança as premissas da arte contemporânea, cuja abertura elimina as categorias e os materiais tradicionalmente a ela destinados.
Em 1960 produz a série Bichos, nome que ela dá a estruturas geométricas de metal industrializado presas por dobradiças, que garantem mobilidade e organicidade à estrutura.
Bichos
A artista inicia um caminho que efetuará até o fim de sua vida: a passagem do objeto de arte permanente para o corpo do espectador. Porque Bichos só conquista seu estatuto pleno pela ação daquele que o manipula, uma vez que o movimento só se perfaz na criação de diferentes formas pela intervenção dele.
Com Bichos opera-se uma subversão na cena artística. O objeto de arte sai do plano bidimensional e conquista o espaço real, fazendo parte do mundo. E como ele não é para ser apenas visto, mas tocado, retira o espectador do passivo lugar do olhar, tradição da história da arte. Trata-se de uma obra que introduz o espectador na cena, incluindo-o como sujeito e coautor. E mais, ela se realiza no aqui e agora.
A partir dessa experiência, Lygia muda a sua concepção de obra e passa a configurá-la como "proposições". Mudando a concepção de obra, o artista perde o estatuto de autor; ele agora propõe situações, é o "propositor". E muda também o estatuto do espectador.
Uma de suas proposições é Caminhando, de 1963. Nela, o participante é convidado a recortar com uma tesoura toda a extensão de uma fita de Moebius - na qual direito e avesso são indistinguíveis - feita de papel, de modo a sempre prosseguir em uma nova volta, tornando sua largura cada vez mais fina e expandindo a torção até a ruptura. Com a fita separada em duas, está concluída a obra.
Caminhando
Se em Bichos a artista cortava a matéria, em Caminhando é o espectador quem a corta, realizando a obra. De maneira mais evidente que no trabalho anterior, a poética da artista depende da ação do outro, fazendo com que a experiência da poética não esteja na relação do artista com a obra, mas na do espectador com ela. Em Caminhando, diz Lygia, "o sujeito é um itinerário fora de mim" (1999, p. 164).
Confirmando sua afirmação de que "o Bicho não tem avesso", Caminhando segue esta premissa de objeto dentro/fora (Clark, 1999, p. 21). Afinal, essa é a vocação da fita de Moebius.
No corpo humano, o órgão que tem este estatuto paradoxal dentro/fora é a pele. A pele está no início da constituição do ser humano, por ser compartilhada pela mãe e pelo bebê na experiência de um corpo único.
Mais adiante, o contato do corpo da mãe no corpo do bebê oferece à criança a percepção de sua pele como superfície de contato. Os gestos maternos, seu toque, vão dando integridade ao seu envelope corporal. É o corpo da mãe e suas palavras que inscrevem traços, dão sentido e iniciam a construção de uma narrativa, de uma história (Anzieu, 1989). Percurso de um corpo físico que se torna corpo erógeno, corpo simbólico e corpo da cultura; percurso que inaugura o processo de subjetivação.
É esse o corpo sobre o qual Lygia incide, com suas proposições. Como diz: "Em tudo o que faço há realmente a necessidade do corpo humano que se expressa ou para revelá-lo como se fosse uma experiência primeira" (Clark, 1980, p. 231).
E, dessa forma, ela dá um salto na história da arte. Não se trata mais da obra ou do objeto nem da apresentação do corpo ou da apresentação da experiência do artista, como a action-painting de Pollock ou as performances corporais de Yves Klein. Agora, trata-se da proposta de vivência do corpo do espectador, jogando com o sujeito em sua própria constituição.
Desse modo, Lygia toca incisivamente nas questões do sujeito contemporâneo, questões já delineadas por Debord quando o apresenta como aquele que, ao se submeter à tirania da dimensão imagética, perde a unidade do mundo, alienando-se na cisão entre realidade e imagem.
Fruto da passagem do capitalismo de produção para o capitalismo do consumo - cultuado pelo discurso da publicidade -, da formação de uma cultura simultaneamente de massa e individualista e da evolução da tecnologia, a sociedade do espetáculo é a visão do mundo capitalista que se objetivou em imagens. Portanto, trata-se de uma relação social capitalista mediada por imagens. E fazer-se visível ao outro é ter certeza de ser reconhecido por ele, se existir é antes de tudo aparecer, a imagem torna-se uma prova de reconhecimento intersubjetivo (Bosco, 2015). Consolida-se o aprisionamento do homem contemporâneo, cujo senso de existência se reduz a ser imagem e, assim, apresentar-se a si mesmo e para o outro.
Ele também é condenado à virtualidade e à rapidez do devorar consumista, que o torna paradoxalmente saciado e insatisfeito. É um homem sem tempo, submetido à velocidade da informação, que só tem valor no momento que é nova, é contemporânea de seu tempo e nele se explica (Benjamin, 2012).
E como é característica do contemporâneo trabalhar em um eterno presente, há uma aceleração que traz a contínua sensação de não se ter tempo. Não se dispõe de tempo para que uma vivência se transforme em experiência; consequentemente, o espaço da experiência encolhe (Matos, 2009). Como diz Benjamin (2012), a pobreza da experiência refere ao homem almejar a libertação de toda experiência.
Diante dessas questões, Lygia busca recolocar o homem no mundo, criando condições para isso. Com suas proposições, convoca ao alargamento de um tempo interno em que a vivência da obra pode se constituir como experiência. Ao fazer isso, ela incide sobre o sujeito através do corpo, desestabilizando-o e possibilitando que ele se retome. Sua ideia é a de mobilizar a percepção e a sensação, que permitem a apreensão da alteridade do mundo. E, com isso, fazer do sujeito o locus de unidade entre experiência e conhecimento (Rolnick, 2002).
Isso a aproxima da concepção do sujeito winnicottiano, imerso em um espaço de experiência que simultaneamente o constitui e o descentra de si mesmo.
Sim, porque Winnicott (1975) privilegia o lugar da experiência ao reivindicar uma terceira área entre a delimitação interior e exterior, como o espaço entre o direito e o avesso de um mesmo tecido. Trata-se do paradoxo dentro/fora buscado por Lygia. Lugar potencial que é e não é dentro e fora, é a área iminentemente da experiência e constitui um espaço onde o sujeito está sempre em trânsito de um a outro, entre si e a alteridade do mundo, continuamente se criando.
É nesta região da experimentação e do brincar que o homem pode ser criativo e somente sendo criativo ele descobre o seu eu (self), pois é ali que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Portanto, para Winnicott, o eu (self) se constrói na experiência; o homem só pode ser na experiência.
É o que podemos ver em Caminhando: uma proposta potencial, pois a linha que a tesoura traça não existe previamente no mundo, ela se faz na ação do corte do papel até o fim do percurso.
Nostalgia do corpo
Sua obra, que migrara do plano ao espaço e do ato do espectador ao seu corpo, nos anos seguintes atinge a subjetividade de forma mais contundente, quando Lygia desenvolve a série Nostalgia do corpo, com objetos sensoriais que evocam cheiros, toques, sons.
Dessa série, o trabalho Pedra e ar (1966), que consiste em um saco plástico cheio de ar e fechado por um elástico, no qual se apoia um seixo. A instrução de uso que o acompanha recomenda segurar o saquinho com a palma das mãos, pressionando-o em movimentos de sístole e diástole que fazem a pedra subir e descer, como a inspiração e a expiração próprias da pulsação vital.
A participação do espectador ganha nova dimensão, porque a obra só se realiza na relação sensível que estabelece com quem a manipula. Através das sensações táteis ele reencontra seu próprio corpo enquanto movimento de vida - consciência da vida, algo buscado pela artista também do ponto de vista pessoal. Pois é importante notar que o saco plástico foi o objeto por ela utilizado por ocasião de um acidente automobilístico que fraturou o seu pulso; consequência de uma das suas inúmeras crises que antecediam cada nova fase ou se davam após a realização de alguma obra por demais impactante para ela. É da potência criativa do uso do objeto que Lygia extrai a força para sair da crise e voltar ao trabalho criativo. E é o que ela propõe ao espectador (Rolnik, 1999).
Na sequência, a série Roupa-Corpo-Roupa: o eu e o tu. A instalação A casa é o corpo: labirinto, exposta na Bienal de Veneza de 1968, oferece uma vivência sensorial e simbólica ao visitante, ao penetrar por uma estrutura de oito metros de comprimento, com ambientes denominados "penetração", "ovulação", "germinação" e "expulsão".
É dessa série também o trabalho A casa é corpo. Um homem e uma mulher vestem macacões de grosso tecido plastificado, com um capuz cobrindo os olhos, e ligados no umbigo por um tubo de borracha. Cada vestimenta possui um forro diferente: palha de aço, espuma, borracha, de maneira que provoque diferentes sensações de âmbito feminino e masculino em quem o veste, e seis zíperes abrem acesso ao toque do outro. Vestindo a obra, o corpo do espectador se integra a ela, dissolvendo-se qualquer classificação identitária. E a partir das sensações provocadas que ele vai situar-se no mundo, vai se reconfigurar na experiência de que sua casa é o corpo.
A atenção agora está no "corpo vibrátil". Como na experiência de holding descrita por Winnicott, segue-se à não integração uma integração psicossomática, que garante o sentimento de continuidade do ser, base para o processo de personalização. Uma integração que refere ao sentimento de ocupar ou habitar um lugar, sentindo-se bem em seu corpo como em sua própria casa (Bonaminio, 2011).
Baba antropofágica
Em outubro de 1972 Lygia desenvolve, na Sorbonne, uma pesquisa cujo foco se afasta completamente de qualquer sentido de obra ou de experiência de obra: trata-se apenas da vivência do espectador.
O trabalho que inicia essa etapa é Baba antropofágica, na qual um grupo de pessoas recebe um carretel de linha que deverá ser colocado na boca. Um dos membros desse grupo deita-se no chão, de olhos vendados. Os outros sentam-se ao redor e envolvem o seu corpo com a linha até esvaziar o carretel. Em seguida, enfiam as mãos no emaranhado de linhas molhadas de saliva e o forçam até que a trama se desfaça totalmente. Então, o grupo compartilha a vivência verbalmente e a obra se encerra.
Um ritual de passagem que alude ao canibalismo como absorção e ressignificação do outro. Em que corpos se afetam em um processo multissensorial que desencadeia tanto devir quanto vivências corporais das primeiras sensações e memórias, vivências dos primeiros modos de apropriação subjetiva que se sustentam na sensorialidade do corpo, iniciando um movimento que é o que lhes confere valor de processo (Roussillon, 2006).
Desse encontro de corpos surge um corpo coletivo sem distinção eu/outro, do qual todos saem transformados. O toque da pele, a saliva, o som da palavra. O casulo de fio e seu rompimento - a experiência sensório-motora do primeiro impacto da alteridade do mundo. Uma situação que evoca os momentos iniciais da constituição do sujeito que se forma sempre a partir do outro, sempre em referência ao outro - inicialmente a mãe, cujos desejos, toques e palavras nos introduzem na cultura.
Daí narrar ao outro, levar a vivência à linguagem para ser compartilhada e reconhecida pelo outro, podendo assim tornar-se experiência e constituir a subjetividade. Lygia propõe o processo de passagem da vivência, que é da ordem do vivido mas ainda não apropriado, para a experiência, que implica um sujeito que atribui um sentido àquilo que viveu (Bleichmar, 1999).
Se, nos trabalhos anteriores, espectador e obra existem a partir da relação da ação corporal, agora a obra é a vivência que perdura como experiência e transformação em cada participante, até que se reconstitua de outra maneira, em outra experiência, nas possibilidades múltiplas do sujeito.
Pois, ao eleger o corpo como o lugar privilegiado, Lygia Clark o entende como lugar igualmente privilegiado para todas as possibilidades de ser e de estar no mundo. E novamente se aproxima de Winnicott (1975, p. 93), que indica que, para um bom procedimento terapêutico, importa ao analista "proporcionar oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios que constituem a matéria-prima do brincar". Afinal, para ele o processo de análise ocorre na superposição de duas áreas lúdicas: a do analista e a de seu paciente, em última instância a da mãe e a do bebê.
Não por acaso que a pesquisa de Lygia tenha atingido o limiar da arte. Pois, a partir do movimento que tem início com Bichos e segue com Caminhando, ela atinge uma radicalidade extrema em sua última obra, Estruturação do self, quando passa a fazer experimentações corporais em seu "Laboratório Terapêutico". Um trabalho com viés clínico, visando a produção de novas subjetividades.
REFERÊNCIAS
Anzieu, D. (1989). O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Benjamin, W. (2012). Obras escolhidas 1. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Bleichmar, S. (1999). Palestra proferida em Porto Alegre, na Constructo Instituição Psicanalítica. [ Links ]
Bonaminio, V. (2011). Nas margens de mundos infinitos. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Bosco, F. (2015). Violência e sociedade do espetáculo. In A. Novaes (Org.). Fontes passionais da violência (pp. 35-58). São Paulo: Sesc. [ Links ]
Clark, L. (1980). Lygia Clark. Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa. In Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte. [ Links ]
______. (1999). Lygia Clark. Catálogo da exposição. Barcelona; Rio de Janeiro: Fundació Tapies e; Paço Imperial. [ Links ]
Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. [ Links ]
Matos, O. (2009). Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Unesp. [ Links ]
Rolnick, S. (1999). The experimental exercise of freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, Hélio Oiticica and Mira Schendel. The Museum of Contemporary Art: Los Angeles. [ Links ]
______. (2002). Subjetividade em obra: Lygia Clark, artista contemporânea. In www.pucsp.br/nucleodesubjetividade. [ Links ]
Roussillon, R. (2006). Paradoxos e situações limites da psicanálise. Rio Grande do Sul: Unisinos. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
______. (1990). A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Endereço para correspondência:
SILVANA REA
Av. São Gabriel, 149/1104
01435-001 - São Paulo - SP
tel.: 11 2872-6214
silvanamrea@gmail.com
Recebido 01.05.2017
Aceito 28.05.2017
1 O manifesto neoconcretista de 1959 foi assinado por Amilcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e pelo psicanalista Theon Spanudis.