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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

A subjetividade do analista e os estranhamentos da clínica1

 

The psychoanalyst subjectivity and the clinic strangeness's

 

 

Leda Herrmann

Psicanalista membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atual diretora de cultura e comunidade da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI). Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora aborda o tema do texto, "a subjetividade do analista e os estranhamentos da clínica", descrevendo a dificuldade que encontrou logo depois de iniciar as primeiras frases do texto. Dificuldade que a paralisa e que só pôde ser vencida quando alcança o sentido do impacto causado pelos dois termos do título – "subjetividade do analista" e "estranhamentos da clínica". O texto trata também das imposições a que o indivíduo é submetido pelas condições do mundo em que vivemos e que o colocam no lugar de itinerante, submetido à velocidade em que as informações sobre o mundo lhe chegam, impedindo-o de conhecê-lo diretamente. São condições que põem o analista frente aos estranhamentos da clínica.

Palavras-chave: Subjetividade. Estranho. Clínica psicanalítica.


SUMMARY

The author deals with the psychoanalyst subjectivity and the strangeness of the clinic explaining about the difficulty she has found immediately after writing down the paper preliminary sentences. Such difficulty that has paralyzed her could only be solved in the moment she got to the meaning of the impact caused on her by the two expressions of the paper title – psychoanalyst subjectivity and the strangeness of the clinic. The paper deals also with the impositions that the conditions of the world we live in submit its man, putting him in an itinerant place. This man is also under the pressure on the way the high speed of information about the world gets him. In certain respects this prevents him to know directly how that world is. Under such conditions the analyst faces the clinic strangeness's.

Keywords: Subjectivity. Strangeness. Psychoanalytical clinic.


 

 

Preâmbulo imposto pelo desafio de escrever um texto

Confesso que não mais me apavoro ante a perspectiva de ter que escrever um texto, mas ainda a tarefa se me apresenta como um desafio, e o desafio que ele representou para mim merece ser descrito

Em uma comunicação curta, vou tentar trabalhar o tema a que me propus através da descrição do meu processo na preparação do texto.

Em meados de janeiro 2019, recebi por e-mail do Grupo de Estudos Psicanalíticos (GREP) de Uberaba o convite para participar de uma mesa do Pré-Congresso do Triângulo Mineiro, a ser realizado em março, com o título: "A subjetividade do analista e os estranhamentos da clínica".

Claro que eu sabia que a FEBRAPSI estaria em março em Uberaba, mas confesso que me surpreendi com a organização do grupo e me senti lisonjeada com o convite tão gentil e honroso. Sempre tive desejo de conhecer o Triângulo Mineiro para além de Uberlândia.

Já em janeiro, estava às voltas com o acúmulo de trabalho e compromissos que o ano me reservara. Li o título da mesa, achei interessante, anotei rapidamente o resumo do convite. O que me surgiu de pronto foi uma frase: "alterações de setting pelas condições do mundo em que vivemos - resistências do analista". Acho que a frase me surgiu como provocação, para pensaro texto que eu deveria preparar, e anotei essa frase na mesma folha. Juntei-a ao convite, já impresso, e iniciei uma pasta "Triângulo Mineiro - março", que ficou guardada junto às outras dos compromissos da FEBRAPSI. Pelo menos acalmava meus traços obsessivos por causa da perspectiva que se estava configurando para o ano de 2019.

 

A preparação e escrita do texto

Em março de 2019, tinha reservado a tarde de uma segunda-feira para trabalhar a apresentação. Retomei a minha pasta de janeiro e, lendo a sintética frase anotada ("alterações de setting pelas condições do mundo em que vivemos - resistências do analista"), dei-me conta de que a tarefa a ser empreendida não seria fácil. Mas, já sentada em frente à tela do computador, não demorei a escrever as primeiras frases. Em seguida, parei, estanquei. Susto?

Havia começado assim:

Pelo fato de ter sido, por quatro anos, diretora do Instituto de Formação da Sociedade de São Paulo, pensar a clínica sempre me remete aos caminhos da formação. Formação de analistas é o objetivo comum de nossos institutos. Mas o caminho que a formação toma em cada instituto nos fala do analista que pretende formar, o que, de certa forma, vai conformando a clínica de seu candidato.

Por que esta minha declaração?

Há uma outra que preciso fazer para responder à pergunta formulada. Encantei-me com o título da mesa - "A subjetividade do analista e os estranhamentos da clínica" - e fiquei muito feliz por ter recebido o convite para dela participar.

Aqui parei, estanquei. Precisei de uma pausa ao tentar responder para mim mesma, diante do computador, essas declarações prévias sobre a especificidade da formação de cada instituto nos indicando o analista que pretende formar e conformando a clínica de seu candidato. E foi aí que me dei conta do impacto que as duas afirmações do título da mesa me provocaram, ou seja, subjetividade do analista e estranhamento da clínica.

Fixado que estava meu olhar na tela, precisei desviá-lo olhando para o jardim que fica de meu lado esquerdo, separado da sala por uma porta de vidro. E me perdi no verde das samambaias, do gramado, das grandes bromélias sem flores. Recuperei-me ao me dar conta do peso da tarefa que tinha pela frente. Transitei do ímpeto entusiasmado ao susto pelo caminho que estava tomando e que podia me levar a lugar nenhum. Tive a nítida sensação que não cumpriria a tarefa de preparar a apresentação. Minhas ideias se embaralharam, as que tivera antes de postar-me frente ao computador, e apenas os dois termos do título da mesa saltavam aos meus olhos na tela: subjetividade do analista/ estranhamentos da clínica.

Precisei de um tempo para me dar conta de que a situação clínica joga nesse vórtice analista ou paciente. Vórtice bem mais controlado quando somos o analista diante de uma vivência emocional de impasse. Nossa subjetividade de analista ou paciente é tocada, abalada, e a recuperação se dá quando podemos alcançar uma outra representação, um sentido que ainda não se pudera mostrar.

Essa descrição que fiz, de uma situação que me retirava do impasse com o texto, é a descrição que percorre o âmago da ação clínica do analista e da psicanálise. A clínica nos estranha continuamente, nossa subjetividade é arriscada o tempo todo. Dei-me conta de que também por isso quis iniciar meu texto com considerações à formação.

O que chamei de âmago da ação clínica da psicanálise foi a grande invenção freudiana e o ponto de partida para a construção de uma nova ciência. Freud mesmo refere em vários textos que enfrentou o desafio representado pelos sintomas conversivos das histéricas desistindo de procurar suas causas neurológicas para investigar que sentidos esses sintomas faziam na história dessas pacientes. Era um novo caminho para a psiquiatria da época e uma invenção para o tratamento dessas neuróticas.

Entendi por que na segunda-feira me veio como primeira ideia pensar na formação e em sua organização nos institutos de psicanálise. Temos que colecionar anos de estudo da produção psicanalítica, pelo menos a de Freud, para alcançarmos o espírito investigativo e de produção de conhecimentos que se dá concomitantemente na ação de cura de nosso procedimento clínico. Foi isso que Freud fez e explicou ao longo da sua obra, a inusual conjunção de pesquisa/investigação e cura que seu método da talking cure inventou. Isto é, no caso das histéricas, permitir através de um processo interpretativo que o sintoma pudesse dar lugar ao sentido que ele substituía e que era emocionalmente inalcançável para elas.

É esse o espírito investigativo freudiano, aberto para o imprevisível e o novo, que deve ser garantido pela formação dos institutos. As teorias sobre o homem e seu mundo construídas a partir de Freud por muitos analistas, pelo menos no mundo ocidental, nos dão a base para podermos lidar com a ação clínica da psicanálise. Mas elas, fascinantes e explicativas que são, são capazes de nos levar ao ímpeto de aplicá-las, impedindo a escuta mais livre do nosso paciente. Elas são também um porto seguro para não nos perdermos no abalo identitário que a situação clínica nos impõe com seus estranhamentos. Abalo que também experimentei no início da preparação deste texto. Fuji para o jardim, não de corpo, mas metaforicamente, diante do impasse para continuar com a tarefa a que tinha que me dedicar.

A minha experiência dirigindo o Instituto de São Paulo e no contato com alguns institutos da América Latina e do mundo me mostrou que na formação andamos em uma corda bamba cujo equilíbrio não é fácil de se manter. De um lado a formação teórica nos puxa, no estudo de Freud e de outros autores. De outro, a formação clínica também o faz e pode nos iludir com a tentação de que o manejo clínico interpretativo do analista (na sua formação, paciente em sua análise didática) possa de certa forma dispensar o estudo contínuo da teoria.

Penso ser útil aqui lembrarmos a recomendação de Bion tão repetida "sem memória e sem desejo". É uma recomendação para que trabalhemos na clínica:

1) sem memória de teorias para não cairmos na tentação de usá-las para de pronto entender o paciente, isto é, aplicando as teorias em qualquer manifestação do paciente, de certa forma ignorando a mediação da escuta psicanalítica;

2) sem desejo de cura entendida no sentido médico como remoção de sintomas. As manifestações do paciente, sejam sintomáticas ou não, precisam fazer sentido para nós e para o paciente. Sem essa atitude, estando fincados nas teorias já constituídas, correndo o risco de não reconhecermos os estranhamentos da clínica quando com eles nos deparamos.

Chegando nesse ponto da escrita, já me sentia mais à vontade para voltar à minha curta observação de janeiro: "alterações de setting pelas condições do mundo em que vivemos - resistências do analista", bem como reforçar a ideia já apresentada sobre o âmago da ação da psicanálise residir em estranhamentos.

Aqui recorro ao pensamento de Fabio Herrmann sobre o mundo em que vivemos, desenvolvido na terceira parte de seu livro Andaimes do real: psicanálise do cotidiano.

Desde a primeira metade do século passado, o mundo vai apresentando condições diferentes das que existiam antes. Torna-se mais urbano que rural, as cidades, por sua vez, ficam mais populosas, as informações circulam muito mais rápido pelo incremento dos meios de comunicação, que se diversificam seja por meio da imprensa, seja via rádio e televisão, começando a se impor na América do Norte e na Europa.

O homem nesse mundo passa a ser informado sobre suas condições, perdendo o contato da experiência direta que o permitia conhecer de onde provinham as coisas do mundo que habitava, que o ovo vinha da galinha e o leite, da vaca.

Já no início deste século, à rapidez da informação acrescenta-se o imediatismo da comunicação que os meios digitais proporcionam, principalmente na comunicação pelas redes sociais. O diálogo, em que eu falo e depois você responde, transforma-se no monólogo das comunicações que nos avassalam pelos celulares, iPads e notebooks, em que notícias são comunicadas, não importa a fonte ou a comprovação de veracidade, e não há lugar para um interlocutor, como o antigo telefone mesmo propiciava.

O lugar do homem neste mundo em que vivemos, da segunda década do século XXI, é o lugar do itinerante. Corre atrás de seus compromissos, que não raramente são em outra cidade que não a sua. Lembro-me de uma paciente que atendi logo no início dos anos 2000 que "itinerava" entre o trabalho, a casa da mãe e a casa do namorado. O que tinha de seu e não mudava era o carro, uma mala e o celular. Este permitia que não perdesse os recados da mãe ou do namorado para saber onde pernoitaria. As queixas da paciente eram uma vivência de muita insegurança e medo de perder o trabalho, cujo local era uma constante pelo menos durante oito horas de cada dia.

O mundo em que vivemos passou a ser "o do tudo é para agora", da ausência do interlocutor presente, substituído pela comunicação por meio de recursos de informática que poderíamos considerar como comunicação impessoal, embora dirigida a alguém. Nas duas horas em que estava no computador depois de um dia de trabalho, já havia lido algumas mensagens no celular e respondido a alguns e-mails. É nesse mundo que vivemos, analistas e pacientes. Suas condições nos impactam em nossas subjetividades.

Os pacientes de hoje, por viverem no mundo da pressa e da comunicação que dispensa a presença do interlocutor, são avessos à condição da autorreflexão. Eles nos procuram em busca de respostas para perguntas, às vezes ainda não formuladas, e muito dificilmente se dispõem a análises de alta frequência. Essas condições apontam para interferências no setting tradicional. Elas vão se dar principalmente quanto às formulações para as interpretações, ou melhor dizendo, no processo interpretativo que, na minha experiência, vai ficando mais parecido com uma conversa modulada pelo campo transferencial. Essas interferências atuam também para a diminuição da frequência das sessões. Trata-se de interferências da ordem da técnica e não do método psicanalítico que acima descrevi como o âmago da ação clínica da psicanálise, ou seja, a ação de ruptura de sentidos ou representações que se congelam, ruptura que permite o surgimento de outros sentidos que estavam impedidos por algum bloqueio de ordem emocional. A técnica admite mudanças e flexibilizações, pois não é responsável pelo efeito terapêutico da psicanálise. Todas essas situações podem ser consideradas estranhamentos da clínica e tocam a subjetividade do analista. Nosso "treino" na formação nos prepara para enfrentarmos esses estranhamentos com a poderosa arma da escuta psicanalítica, propiciada pela ação clínica inventada por Freud.

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (2011). Resumo da psicanálise. In S. Freud. Obras completas (P. C. de Souza, trad., vol. 16). São Paulo: Companhia das Letra. (Trabalho original publicado em 1924).         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: psicanálise do cotidiano (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LEDA HERRMANN
Rua Girassol, 34/102
05433-000 - São Paulo-SP
tel.: 11 3088.8123
herrmannfl@globo.com

Recebido 15.04.2019
Aceito 15.06.2019

 

 

1 Trabalho apresentado no Pré-Congresso do Triângulo Mineiro "O Estranho in/confidências". Grupo de Estudos Psicanalíticos (GREP) de Uberaba.

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