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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

CARTA-CONVITE

 

A odisseia: a viagem de Ulisses

 

 

Corpo editorial: Celia Blini de Lima; Edoarda Anna Giuditta Paron; Evelyn Finguerman Prizant; Flávio Verdini; Maria Aparecida Angélico Cabral; Luis de Paiva Silva; Maria Luiza Lana Mattos Salomão; Mariana Eizerik; Orlando Hardt Junior; Patricia Shoueri

 

 

Vixere fortes ante Agamemnona multi.

(Horácio, Eneida)1

Nem mármores, nem monumentos dourados dos príncipes sobreviverão a esse poderoso verso.

(Shakespeare, Soneto 55)

Esta carta-convite inicia um diário de viagem que precederá os próximos volumes. Escolhemos como norteador da revista Ide o Zeitgeist2 da Odisseia, como "espírito da época", a viagem de Ulisses. Conceito que unifica várias temáticas e, assim, reúne um pensamento editorial que, de outra forma, permaneceria disperso em vários temas avulsos.

Escrita aproximadamente 650 a.C., a Odisseia é um dos primeiros textos escritos da literatura ocidental. Mais ainda, é a própria criação da linguagem mesclando nuances de dialetos da Grécia arcaica. O tom mítico da narrativa confunde o elemento histórico com aquele fantástico. Os mitos são o patrimônio da humanidade dentro de cada um, acervo de relatos de viagens que sempre podem ser reinventados, imaginados. Nessa concepção felliniana3 do mito, a Odisseia aproxima-se ao Édipo, tragédia ressignificada por Freud como eixo central da psicanálise.

Numa íntima relação do herói com o mar, o poema marítimo retrata a luta de Ulisses durante dez anos, arremessado de um lado para outro tentando voltar a Ítaca. Nessa viagem ilógica, vaga e desordenada o herói vai em busca de si mesmo, sendo decantado e depurado. Sua história, é nossa história, é o retorno à essência. A navegação tumultuada reflete a domesticação das forças interiores por meio da experiência que harmoniza o divino dentro de si mesmo.

Assim, logo após os primeiros capítulos que versam sobre a telemaquia, Odisseu conta sua história como quem conta sua própria autobiografia. Ele precisa convencer os feácios a investirem em seu retorno a Ítaca. Portanto, o próprio Odisseu deve se tornar um mestre em contar histórias. Ouvimos sobre suas famosas aventuras - dos Cicones, a terra dos Lotófagos, a ilha de Éolo, os Lestrigões, os Ciclopes, Circe, ao mar das sereias, Cila e Caríbdis, sete anos com a ninfa Calipso e assim por diante. Mas é significativo que essas narrativas sejam apresentadas como memória subjetiva e não como verdade objetiva. Ele conta sua história "como um poeta faria" (cap. XII, p. 370), mantendo sua audiência "fascinada no corredor sombrio" (cap. XIII, p. 2).

1 "Excerto de ode de Horácio na Eneida, na qual ele se chama a atenção para quantos valorosos guerreiros permanecem desconhecidos, pois não cantados, sem um Homero que os imortalize" (Sandler, 2007, p. 21).

2 Proposta norteadora adotada por Leopoldo Nosek na época em que foi o editor da Ide compartilhada em uma recente comunicação pessoal.

3 Fellini: "não se trata de uma memória que supostamente preserva o vivido e o ocorrido, mas de uma faculdade incontrolavelmente criativa, que aumenta, recria, retorce ou colore as histórias que reconta". Assim, Fellini declara: "inventei uma vida para recontá-la" (Folha de São Paulo, Carlos, 2020, p. C6). Odisseu está oscilando à beira de uma mudança interior dramática entre ser um astuto ou o contador de histórias, no sentido de buscar expressar a verdade emocional, por mais fantástica que seja, à maneira de um bardo. Seu progresso depende da identificação com o contador de histórias; se ele não capturar os corações dos feácios, não conseguirá sua passagem para casa. Desse modo, ele digere suas experiências levando-as a um ponto em que podem existir como sonhos, como realidade psíquica, imaterial e não como perseguição somática, pela ação (Meg Williams, 2003).

Esperamos, guiados pelo modelo da Odisseia, pensar na viagem da sessão de psicanálise, do analisando e do próprio psicanalista em busca de si mesmo, pela arte, pela cultura por áreas distintas, infinitas.

Desde 1975 a Ide possui um lugar privilegiado e especial em nosso meio. Publicação entre psicanalistas e outras disciplinas, na interface entre a psicanálise e a cultura, tornou-se uma aventura aprofundada da psicanálise, sempre atendendo em suas páginas esse anseio pelo objeto psicanalítico na ética ao perseguir a verdade e na estética, no sentido de sua efemeridade. Anseio tão necessário nesse momento de temor crescentemente ameaçador de catástrofes.

Segundo Mircea Eliade "é significativo que a destruição das linguagens artísticas tenha coincidido com o aparecimento da psicanálise. A psicologia profunda valorizou o interesse pelas origens que tão bem caracteriza o homem das sociedades arcaicas" (2000, p. 69).

Homero educou toda a Grécia com seus poemas que foram destinados para os membros de uma aristocracia militar, feudal e, também para nós ocidentais, pois sua literatura exerce fascínio inigualável por meio de Odisseu, herói que nos habita, um universo atemporal.

A Ide vem, neste momento, convocar os seus colaboradores para que possamos juntos empreender um verdadeiro reinício através da viagem de Ulisses, uma forma de indagação utilizada para a reflexão sobre o profundo âmago de nós mesmos na atualidade. Informamos que as propostas deverão ser encaminhadas à secretaria da revista até o dia 7/2/2021 para fabiana.santos@SBPSP.org.br. As orientações encontram-se em "Orientação editorial e normas para publicação de artigos e resenhas na revista Ide" no final da revista ou no site da SBPSP. Aguardamos as contribuições dos colegas para embarcar nesta estimulante viagem.

 

Referências

Eliade, M. (2007). Mito e realidade. Perspectiva.         [ Links ]

Sandler, P. C. (2007). Nota da tradução comentada. In W. R. Bion, Atenção e interpretação. Imago.         [ Links ]

Williams, M. H. (2003). Conversations with internal objects: family and narrative structure in Homer's Odyssey. British Journal of Psichoteray, 20(2), 219-235.         [ Links ]

 

 

Editora: Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci
Corpo editorial: Celia Blini de Lima, Edoarda Anna Giuditta Paron, Evelyn Finguerman Prizant, Flávio Verdini, Maria Aparecida Angélico Cabral, Luis de Paiva Silva, Maria Luiza Lana Mattos Salomão, Mariana Eizerik, Orlando Hardt Junior e Patricia Shoueri.

 

 


Podcast: https://open.spotify.com/episode/3SEg8HBQGaRya4z5Wfg2s4?si=VmVFycxh SIaN0wOeEIO7jQ

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