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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo jan./jun. 2022

 

RESENHAS

 

Vaidade: a sedução pelo desejo mimético

 

 

Resenhado por: Julio Frochtengarten

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / juliofro@uol.com.br

 

 

 

Autor: Luis Carlos Uchoa Junqueira Filho Editora: Blucher, 2021

 

Uma transcrição das reflexões sobre as vaidades dos homens

A vaidade sempre esteve presente na história do homem: este, em sua origem, já teria a vaidade presente em todos seus feitos, desejando e buscando um prestígio que o destacasse dos demais homens. Uma volta ao tema é, por isso, sempre oportuno. O ensaio escrito em 1752, Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires Ramos da Silva de Eça, escritor e filósofo moralista nascido em 1705, parece ter sido a fagulha que deu origem ao livro de Junqueira. Como ele nos conta na Introdução, o ensaio caiu-lhe nas mãos, um tanto por acaso e, ao despertar-lhe interesse, foi tendo desdobramentos, acredito, insuspeitados na ocasião, muito além das ideias do próprio Aires. Para este, como o foi para muitos outros ensaístas, a vaidade é princípio fundamental a ocupar lugar canônico, constitutivo e estruturante, de guiar os passos do homem no mundo. Matias Aires, filósofo influenciado pelo pensamento jesuítico e pelo iluminismo, escreveu, pelo que se pode ver em vários trechos citados por Junqueira, um texto de estilo gongórico, colérico, com evidente intenção de reformador moral contra essa paixão que leva o homem a cuidar mais das aparências do que das substâncias, viver mais de mentiras que verdades, afastando-se da perfeição perdida; enfim, um vício da alma, na expressão do burguês enfurecido.

Diante da dimensão persuasiva do ensaio de Matias Aires, um leitor contemporâneo talvez se sentisse desanimado a prosseguir na leitura. Pois aí é que o livro de Junqueira surpreende e despertou minha admiração: como psicanalista que é, e apoiado em seus estudos em amplas áreas do saber humano, conhecimento empírico e psicanalítico e a universalidade da vaidade do homem, ele inicia acompanhando Matias Aires no exame da vaidade em várias teorias filosóficas - Espinosa, Descartes, Hobbes, Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, La Bruyere -, mas logo trilha, com muito engenho, seu próprio percurso. A seguir, examina a aparição da vaidade enquanto tema em textos psicanalíticos, caminhando, por fim, para o exame da vaidade enquanto desejo mimético - ao qual logo devo voltar - que irá desembocar nos importantes temas psicanalíticos da imitação e originalidade nos seres humanos.

Acompanhando o texto de Matias Aires, a vaidade desponta em diversas dimensões: associada a determinadas castas (como a nobreza), experimentada paradoxalmente em situações-limite (como sofrimento e desgraça), vivida como virtude e, finalmente, a vaidade de não ter vaidade. Sobre esta última, ao psicanalista não escapa que o livro tenha sido dedicado, por "vaidade inocente" - como o autor a chama - ao novo Rei de Portugal, D. Jose I; a respeito dele, escreve Junqueira, em fraseado fluente e lapidado: "Seu elogio incontinente às virtudes reais, soa tão inverídico quanto sua confissão de culpa de que, não resistindo a assumir publicamente a autoria dessas reflexões, estaria suavizando a gravidade de seu crime". Crime, o termo escolhido pelo autor, é bastante pertinente, uma vez que, para Aires, vaidade é a força motriz dos desmandos sociopolítico-culturais, associada ao egoísmo, hipocrisia e ao cinismo.

Um exemplo recente de imperfeição da dissimulação surgiu, há algum tempo, em entrevista do presidente Fernando Henrique Cardoso: indagado, declarou em sua resposta, que se considerava mais inteligente do que vaidoso. Afirmação paradoxal uma vez que a vaidade de se considerar mais inteligente do que vaidoso foi tanta que não lhe permitiu perceber a pouca inteligência de sua afirmação. Numa contradição performática, Fernando Henrique revelou-se mais vaidoso do que inteligente. Esse breve exemplo serve para ilustrar a vaidade de não ter vaidade ou, como se diz, a vaidade da modéstia. Tal armadilha foi bem contornada por Sócrates: ao alegar ser a pessoa mais sábia do mundo por saber que nada sabia, sua douta ignorância, fazia sua denuncia irônica e apontava a vaidade excessiva que se escondia por trás das imponentes declarações de sabedoria, feitas por seus adversários.

A partir do rol de preceitos que Aires vai fazendo, Junqueira torna a leitura das prédicas do autor mais palatável ao gosto atual. Assim, num trabalho certamente exaustivo, as encontramos não só agrupadas mas, frequentemente, acompanhadas de reverberações desses preceitos no autor: uma ampla classificação que organiza e sustenta a leitura, reunidas, entre outros, com uma pitada de ironia e sátira, sob os títulos: a) Malabarismos do pensamento; b) Uma guerra sem fim; c) A dramaturgia do interesse; d) O mistério do amor; e) O homem, um agente improvisado; f) Uma emoção sorrateira; g) A volubilidade das ideias.

O ensaio de Matias Aires é claramente inspirado nos famosos Ensaios de Michel de Montaigne, cujo primeiro volume foi publicado em 1580, edição seguida de incontáveis outras pelo mundo. No início do ensaio "Da vaidade", encontrei a afirmação: "Não haverá talvez maior vaidade do que escrever sobre esta e tão inutilmente. O que Deus tão divinamente escreveu deveria ser constantemente meditado pelas pessoas inteligentes" (p. 880). Ele aponta ainda que a vaidade baseia-se na crença do homem em ocupar condição privilegiada na ordem das coisas, no postulado da exclusividade humana da posse da razão, do homem ocupar a região central do universo, na sua superioridade em relação aos outros animais, criatura superior em função da qual tudo mais teria sido criado - a superioridade do saber e da razão do homem ante todas as outras criaturas. Escreve ele:

é por vaidade da imaginação que o homem se iguala a Deus, que ele se atribui as condições divinas, que ele se escolhe a si mesmo e se separa do batalhão das demais criaturas, que ele divide as partes que cabem aos animais, seus confrades e companheiros, e lhes distribui tal ou qual porção de faculdades e forças como bem lhe apraz. (Montaigne, 1580/2016, p. 882)

Após pesquisar o termo vaidade nas obras clássicas da psicanálise, constatando a ausência de referências diretas ao termo, mesmo nos índices remissivos das obras capitais de Freud e Klein, e nos dicionários de psicanálise, Junqueira atribui a ausência por ser esse termo uma expressão superficial de outros, como orgulho e autossuficiência. E termina sua incursão nessas obras com a brilhante conjectura que "vaidade poderia ser uma sedimentação filogenética dos esforços humanos de sobrevivência".

Daí, o livro se volta para as relações entre vaidade e desejo mimético que, pela importância que ganha no texto, veio, inclusive, a dar título ao livro. Essas relações e expansões são estabelecidas a partir do conceito criado por René Girard, historiador, crítico literário, filósofo e teólogo que viveu entre 1923 e 2015. De acordo com Girard, todo desejo é a imitação do desejo de outra pessoa, considerada, na teoria mimética, um mediador; sendo assim, as paixões miméticas - como vaidade, orgulho, inveja e ciúmes - seriam também a fonte de todo conflito, e não autônomas como quer a ilusão romântica. Para essa finalidade, o sujeito se serve de um mediador. A teoria mimética se insere entre dois polos, um de índole mais otimista (o Homo homini amicus, de Aristóteles) e outro mais pessimista (Homo homini lupus, de Thomas Hobbes). É desse conceito de Girard que o autor extrai a vaidade como um modo de atingir o outro, ser reconhecido por ele, sendo, ao mesmo tempo, um modo de se diferenciar dele. Por isso a vaidade é, em suas palavras, "a busca desesperada e inconfessável do que finge desdenhar". E a imitação é sua base. A partir desse ponto, o texto expande para abordar os múltiplos modos de imitação no curso da vida e, também, sua contrapartida, as possibilidades de originalidade.

Toda o exame que Junqueira faz da imitação ligada ao desejo mimético me remeteu à questão do duplo: o outro que se imita ou do qual procuramos nos diferenciar. Além de tantos outros autores que já escreveram sobre o duplo, Machado de Assis tem um pequeno conto, "Elogio da vaidade" (2017), escrito em 1878, em que o duplo se configura de forma brilhante, sendo justamente a Vaidade o personagem duplo da Modéstia. No conto, a Vaidade vangloria-se da sua importância na sociedade e na vida de cada um. O conto consiste no elaborado discurso pronunciado como elogio a si, encarnando perfeitamente a definição do desejo da personagem de ser percebida, admirada, louvada e engrandecida. De forma direta ela se compara o tempo todo à Modéstia, sempre em busca de apontar a inferioridade desta em relação a si, por vez ou outra nos frear em nossa autoadmiração. A personagem começa assim seu discurso:

Logo que a Modéstia acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse: Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais peca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste. Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se não o tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival. (Assis, 1878/2017, pp. 41-42)

No conto, essa personagem procura convencer o leitor que está presente em todos os lugares: desde o salão do rico ao albergue do pobre; e se queixa de ser "a caluniada amiga do gênero humano", "mais forte que o amor materno", aquela que "recebe o homem no berço para deixá-lo somente na cova".

A vaidade é um traço da personalidade do ser humano e ao olharmos para nós e nossas atitudes, certamente, a encontraremos. Como diz a personagem machadiana "não há como negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o enfado e a alegria sou eu".

Durante nossa vida construímos, a partir das experiências com o ambiente e nas relações, a percepção de mundo e até mesmo a autoestima. Sendo traço da personalidade não há cura para a vaidade. Seja como elogio em boca própria, orgulho, amor próprio; seja como pavonada, cabotinagem, soberba, basófia, megalomania, presunção; seja por se trazer o rei na barriga, cobrir-se com as penas de pavão, julgar-se estrela quando não se passa de pirilampo; a vaidade está sempre no coração do homem; e, afinal, presunção e água benta, cada um toma o que quer.

Como escreveu Clarice Lispector numa carta dirigida a sua irmã Tania Kaufmann: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro" (1948/2020, p. 354).

 

Referências

Aires, M. (2004). Reflexões sobre a vaidade dos homens. Martins. (Trabalho original publicado em 1752)        [ Links ]

Assis, M. (2017). Elogio da vaidade. In M. Assis, Teoria do medalhão. sesi-sp. (Trabalho original publicado em 1878)        [ Links ]

Lispector, C. (2020) Todas as cartas. Rocco. (Trabalho original publicado em 1948)        [ Links ]

Montaigne, M. (2016). Da vaidade. In M. Montaigne, Ensaios (livro iii, capítulo ix, 1.ª ed.). Editora 34. (Trabalho original publicado em 1580)        [ Links ]

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