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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 02-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.01 

EDITORIAL

EDITORIAL 2022: UMA ODISSEIA ANTROPOFÁGICA

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci1 

Analista didata e professora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em saúde mental pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP). Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Roma La Sapienza. Pós-doutora pelo programa de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).

1Universidade Federal de São Paulo, Universidade de Roma La Sapienza, Universidade de São Paulo (IP-USP). Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina


Dedico este número da Ide à querida colega e amiga dessa intensa jornada da vida. Vida por ela vivida, intensa, Maria Flavia Stockler (In memoriam).

Lá vai o trem com o menino

lá vai a vida a rodar

lá vai ciranda e destino

cidade e noite a girar...

Em transe, Ferreira Gullar escreve a música para ser cantada na Bachiana n. 2 de Villa Lobos. Afirma o poeta:

não escrevi essa letra pensando que um dia seria gravada; escrevia-a porque aquela reversão da lembrança foi um fator a mais de emoção, um choque mágico, que se incorporava ao poema. Por isso, pus ali uma indicação meio irônica: “Para ser cantada com a Bachiana n. 2, Toccata”. É que, quando menino, meu pai, que fazia comércio ambulante, me levava nas viagens de trem entre São Luís e Teresina. O trem saía de madrugada e, ao amanhecer, cortava o Campo dos Perizes, um vasto pantanal, povoado de garças, marrecos, nhambus, pássaros de todo tamanho e cor. (Ferreira Gullar, “Trenzinho do caipira”. Folha Ilustrada, Folha de S. Paulo, 6 dez. 2009)

Alta música aliada à alta poesia, uma busca presente desde os tempos dos Lieder, palavra que designa canções em alemão, nelas o compositor atinge algo sublime e verdadeiro, a forma, na integração de literatura - texto cantado -, escrita pianística e linha vocal. Como em Schubert, que aos 17 anos compõe o monólogo “Margarida na roca”, do Fausto de Goethe. Nela, o acompanhamento pianístico tenta descrever o movimento da roca de fiar da heroína, enquanto a melodia retrata a crescente angústia na ausência do amado.

Na composição o brilhantismo consiste muitas vezes em reunir uma formação clássica ao contexto do folclore - uma antropofagia? O brasileiro Heitor Villa Lobos viveu entre 1887 e 1959, e visitou Paris na década de 1920. Influenciado pela personalidade do inquieto compositor russo Igor Stravinsky, teve sua fase neoclássica, como atesta seu ciclo de nove Bachianas brasileiras. Peças de vários estilos e formações, que visavam imprimir o espírito de Bach à música nacional do Brasil. Autor de mais de 500 obras, entre sinfonias, quartetos de cordas e canções para piano, foi chorão no Rio de Janeiro, onde tocava violão com músicos populares de seu tempo. Escreveu música, na linha dos compositores nacionalistas, com “cara de Brasil”. No “Trenzinho do caipira”, escutamos o apito da maria-fumaça e as rodas do trem passando pelos trilhos desbravando a Amazônia, ao som dos pássaros e do cenário deslumbrante da mata. A forma alcançada, com seus pictogramas e evocações auditivas, desperta os espectadores, que participam intimamente na viagem-sonho.

Antropófago ou Manifesto antropofágico foi publicado em 1928 pelo poeta Oswald de Andrade, figura-chave do movimento cultural do modernismo brasileiro e colaborador da publicação Revista de Antropofagia. Foi inspirado na pintura de Tarsila do Amaral, o Abaporu, que vem dos termos em tupi aba (homem), porá (gente) e ú (comer), significando “homem que come gente”. O manifesto fundamentou o movimento antropofágico. Em suas linhas ininterruptas e curvas, o Abaporu é um pensamento sendo pensado, digerido e deglutido. Nas linhas “vemos” um índio, um negro, um homem, uma montanha, a natureza, o movimento e a música; uma forma integradora. Intuímos, para além da imagem, a paisagem, o bioma, uma ligação irrefutável entre solo, florestas, rios e povos indígenas.

E quem não se lembra, em 1967, do Festival dos Festivais? “Alegria, alegria”, “Disparada”, “Domingo no parque”: mesmo aquele que não viveu a magia das canções e o encantamento da poesia, uma reverie grupal dos poetas resilientes diante dos anos de chumbo, elas foram um grande alento, hinos de coragem e de inspiração para a minha geração e aquelas anteriores e posteriores. Caetano Veloso e outros compositores viram no Manifesto uma grande influência artística no movimento Tropicália. Caetano afirmou que a ideia de canibalismo cultural caiu como uma luva entre os tropicalistas. Estavam “comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. No álbum Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968, Gilberto Gil e Torquato Neto referem-se explicitamente ao Manifesto na canção “Geleia geral”.

A antropofagia em sua definição é um ritual de guerra cujo sentido espiritual é incorporar as qualidades do oponente. Para os índios tupinambás, ser comido era considerado uma das formas mais honrosas de morrer, porque significava que o guerreiro era corajoso e tinha o espírito forte, o que nos parece um paradoxo, mas não se trata disso, incorporar visa libertar o atributo, imortalizar a alma guerreira.

Enfim, os movimentos psíquicos ilustrados na arte antropofágica, movimentos de incorporação e de excorporação, introjeção e projeção, são próprios da busca de conhecimento e do pensar. A forma2 advinda pode tornar-se uma experiência emocional de descoberta de sentido, mesmo que efêmero.

Finalizo aqui exortando meus caros leitores: oxalá com este breve prelúdio possa ter-lhes ofertado um saboroso antepasto (assaggio), que desperte o desejo-apetite para devorar a revista inteira!

2 Gosto da definição sobre o que é metapsicologia proposta por Luiz Carlos Junqueira Filho em seus trabalhos: “a metapsicologia seria o conjunto dos esforços econômicos empreendidos pelo psiquismo para representar a experiência emocional através de artimanhas estéticas geradoras de estranhamento e/ ou perplexidade” (Berggasse 19, 11(2), 122, 2021).

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