Em “Por que a guerra?”, Freud (1932/1976) inicia seu diálogo com Einstein falando da relação entre direito e poder, e propõe substituir poder por violência, já que, segundo o autor, as noções evoluíram uma a partir da outra. Para ele, é um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência, ela consistindo na superioridade seja da força muscular, das armas, da força intelectual, ou da força econômica, embora o objetivo da luta seja sempre o mesmo - um lado deve abandonar suas pretensões depois de sua força ser desmantelada.
Utilizo-me dessa ideia e do conhecimento das relações familiares dos irmãos Heinrich e Thomas Mann, cuja fonte é uma biografia de ambos, de autoria de Nigel Hamilton (1978), para fazer uma conjectura sobre as posições políticas tão díspares e tortuosas que Thomas Mann assumiu durante parte de sua vida e sobre suas mudanças radicais na maturidade. Acredito, com base nessas leituras, ser impossível lançar alguma luz sobre o autor, sua vida, sua literatura, sem associar seu percurso ao de seu irmão, também escritor de talento, reconhecido na Alemanha e festejado em toda a Europa. Por um lado, Heinrich, comprometido com uma visão humanista e internacionalista, inteiramente voltado para questões políticas e sociais; e, por outro, Thomas, em contato profundo com sua escrita, suas fantasias, com um desejo enorme de ser reconhecido, com sua relação de amor e ódio muito intensas e com sua atração pela doença e pela morte.
Como é sabido, e muito bem documentado, eles viveram durante um longo tempo de suas vidas numa duradoura e intensa guerra particular. Heinrich, aderido à causa humanista, em conflito com a Alemanha, sua monarquia, seu conservadorismo, e Thomas, um conservador, com medo das mudanças, dedicado a sua escrita impregnada de aspectos de sua vida pessoal; era um inovador na literatura, um pesquisador com grandes ambições literárias e às voltas com sua grande complexidade e sensibilidade.
Filhos de um comerciante tradicional muito bem-sucedido em suas atividades, líder na comunidade (tornou-se senador), luterano rígido e conservador, do qual tinham medo e de quem acreditavam ter de proteger a mãe, bem mais jovem, bonita, morena, de temperamento expansivo, com boa formação cultural, amante da música e da literatura. Ela tocava piano e cantava, mas era estrangeira (uma brasileira, de Paraty): sem dúvida, essas influências se fizeram sentir na formação dos filhos. Gostava de contar histórias para dormirem, lia para eles contos dos irmãos Grimm e de Perrault, entremeados por lembranças de sua infância livre, em contato com o mar, de brincadeiras com filhos de escravos, cujas vozes costumava imitar. Falava sobre enormes cobras venenosas, histórias vividas num país distante e exótico, só alcançáveis pela imaginação, e que devem ter contribuído para estimular e desenvolver a fantasia dos filhos.
A relação entre eles sempre foi difícil. Heinrich, quatro anos mais velho, ressentiu-se do nascimento do irmão. Havia entre ambos, desde o início, uma relação muito próxima, mas com grande rivalidade. Durante um ano, na sua infância, embora dormissem no mesmo quarto, ficaram sem se falar. De seu lado, Thomas tinha uma profunda admiração pelo mais velho e tentava imitá-lo em tudo.
Heinrich e o pai viveram uma grande queda de braço durante a adolescência. O jovem sentia-se totalmente atraído pelas artes, principalmente pela literatura. O pai, à força, o queria comerciante. Para impedi-lo de tornar-se escritor, enviou-o para trabalhar numa firma de livreiros conhecidos em Dresden, para aprender a profissão. O filho e os livreiros viviam, entretanto, às turras, e o pai tentava controlá-lo por carta, desde Lübeck. Por fim, antes de morrer, provavelmente como uma espécie de vingança, muda seu testamento, no qual liquida a firma e todos os seus bens, deixando tudo na mão de tutores com a ordem expressa de que os valores fossem usados na formação prática dos filhos e de que os tutores deveriam opor-se tanto quanto possível às suas carreiras literárias. Na realidade, essa mudança era endereçada a Heinrich, que tinha 18 anos e desejava ter a liberdade para seguir o que queria. O pai acreditava que Thomas era mais cordial, mais amoroso, e que não iria querer ser escritor.
A guerra estava declarada. A mãe, contudo, depois da morte do marido, e contrariando os tutores, paga a primeira edição de uma obra de Heinrich e estimula os filhos em suas ambições literárias. A morte do pai, para Heinrich, foi muito sofrida. Thomas, que admirava profundamente o irmão, começa a mostrar-se cada vez mais atraído pela carreira literária, embora ainda muito jovem e assustado com o que acontecera com o irmão mais velho.
Thomas, sempre muito protegido, busca a ajuda materna, porém, ela não o leva muito a sério em suas pretensões, já que seu desempenho escolar não era nada satisfatório. Conta que se insurgia contra os professores, afrontava-os com ironias, e a maioria deles o odiava. Durante dois anos, não consegue terminar seu curso, e a mãe - com a anuência do tutor - o impele a trabalhar numa companhia de seguros em Munique, para onde se mudaram. Nessa ocasião, sentado numa escrivaninha de trabalho, escreve sua primeira novela publicada, “A queda” (“Gefallen”, em alemão), bem recebida pela crítica (Hamilton, 1978, p. 75).
Com essa publicação e devido à péssima experiência com o filho mais velho, a mãe consegue, ajudada pelo advogado da família, que Thomas fosse liberado do trabalho pelos seus tutores e que se matriculasse para fazer alguns cursos, relacionados principalmente com a cultura geral e germânica.
Heinrich, aos poucos, torna-se um escritor conhecido e voltado para a política, um grande admirador da França, com seus ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, enquanto Thomas, segundo Heinrich, revela certa inocência, que permanecerá em toda sua obra, mostrando certa recusa em olhar a vida, a não ser em termos literários: sua escrita está relacionada a suas experiências pessoais, sua rica fantasia, que se evidenciava nas suas descrições minuciosas e precisas das paisagens e personagens, capturados em seu universo próximo, tanto nos aspectos físicos, como nos psíquicos. Lia muito, apreciava a música profundamente, era grande admirador de Schiller, Wagner e, depois, de Nietzsche, que lhe fora apresentado pelo irmão. Eram muito próximos, mas o mais velho, além de ser uma grande influência para Thomas, era também alguém a ser ultrapassado.
Thomas vai então para Palestrina, cidade italiana próxima de Roma, passar uma temporada com Heinrich. Ali começa a reunir material para um novo romance, o qual pretendia que fosse uma saga familiar, não muito longa, e que resultou em Os Buddenbrook (1901/2016a), iniciado aos 22 anos. Uma obra com influência de Tolstói, terminada em 1900, quando contava 25 anos, e que no futuro lhe renderia o Prêmio Nobel. Os Buddenbrook é a história da decadência de uma família, a sua, escrita num período de dois anos, o que evidencia sua disciplina, dedicação e talento. Quando retorna a Munique, onde trabalhava para uma revista, trazendo os manuscritos (já contando mil páginas), reserva duas horas todos os dias para a escrita do romance, e recusava grande parte da vida social para poder dedicar-se a ela. Tinha um lema muito simples, que atribuía a seu bisavô: o gênio provinha de uma boa noite de sono.
Nesse romance já aparece sua sensibilidade em caracterizar os personagens de maneira muito arguta. Como grande observador, e utilizando sua capacidade intuitiva, expôs os aspectos mentais de seus personagens, revelando-os e iluminando a personalidade dos retratados. O povo de sua cidade, Lübeck, que se viu retratado por ele, jamais o perdoou, e Thomas Mann também jamais perdoou o povo de Lübeck, que nunca o reconheceu.
Durante a espera pela aceitação e publicação do romance, seu irmão publicou dois livros que fizeram muito sucesso; Thomas o felicitou, não sem uma ponta de inveja e um grande sofrimento pela desconfiança quanto a sua própria capacidade literária. Finalmente, quando o editor decide publicar seu livro, em 1901, escreve ao irmão, dizendo que iria tirar uma foto à maneira de Napoleão para colocar no seu túmulo. Apesar das dificuldades, o livro faz um enorme sucesso.
De acordo com a biografia, os dois irmãos declaravam ter temperamentos nervosos, diziam-se criaturas frágeis do ponto de vista físico e emocional, e Thomas parecia não suportar bem os momentos desfavoráveis da vida. Deseja muito o sucesso, como uma maneira de provar suas capacidades ao pai, já morto, e fazer jus à trajetória paterna. Eles parecem atribuir à mistura de raças esse jeito doentio e exagerado de ser.
Após o sucesso de Os Buddenbrook (1901/2016a), o jovem Thomas é aceito na sociedade de Munique e começa a gozar de sua fama. Aparentemente, fica mais seguro de si. As tensões sociais e políticas, contudo, crescem na Europa, bem como as tensões entre os irmãos, com escritas e visões de vida tão diversas. As desavenças tornam-se de conhecimento público, e os críticos passam a tomar partido. Ambos começam a fazer-se críticas públicas, e Thomas parece ser o mais ferino. Heinrich passa a escrever mais, é convidado para muitas conferências, principalmente fora de seu país, alerta para o perigo de uma convulsão social, para a crescente militarização da Alemanha, para as possibilidades de uma guerra. Nesse período, Heinrich mantém-se mais longe da Alemanha. É muito criticado pelo irmão, e a distância entre eles se aprofunda.
Por essa época, Thomas conhece Katja, uma jovem de 19 anos, por quem se apaixona e com quem se casa. Ela é filha de uma família judia, uma das mais ricas e proeminentes de Munique. Ao casamento não comparecem os irmãos Heinrich e Carla, e nem mesmo a mãe. A divisão familiar entre os burgueses e os não burgueses é clara.
Thomas continua na busca de uma escrita mais intimista, subjetiva e próxima de Os Buddenbrook (1901/2016a), de Tonio Kröger (1903/2015b), sua novela preferida, depois revelada como autobiográfica. As diferenças na família aprofundam-se mais ainda. Thomas, embora fizesse algumas críticas à burguesia, era um burguês, conservador, preocupado com suas dores e seus sofrimentos pessoais. Quase uma montanha interpõe-se entre eles. Thomas necessita de sucesso financeiro e sente-se ameaçado quando isso não acontece.
Em 31 de julho de 1910, Carla, sua irmã mais nova, mais próxima a Heinrich e que aspirava a ser atriz, suicida-se. Essa morte causa a Thomas, ainda mais, um profundo sentimento de que os laços familiares estão se rompendo. A mãe nunca se recuperou dessa perda. Apesar disso, os dois irmãos ainda viajam juntos para a Itália, e, nessa viagem, Thomas reúne material de fatos ocorridos para sua novela Morte em Veneza (1912/2015b): a figura física do professor Aschenbach, por exemplo, foi tomada de empréstimo do compositor Gustav Mahler, a quem o escritor admirava e que havia morrido há pouco tempo. Os elementos psicológicos, segundo o autor, eram dele mesmo, que ficara completamente atraído, fascinado, pelo belo jovem polonês, vestido de roupa de marinheiro, atração que leva o personagem Aschenbach à morte. Os acontecimentos, os fatos, estavam todos lá, mas Thomas Mann foi capaz de sonhá-los e escreveu essa monumental novela.
Numa carta de 11 de julho de 1911, ao falar sobre Morte em Veneza, que estava escrevendo, disse: “toda e qualquer obra é uma percepção fragmentária, mas completa em si mesma da nossa individualidade, e esse tipo de percepção é o único e doloroso meio que temos para adquirir conhecimento pessoal” (Hamilton, 1978, p. 220). Num discurso que faz em homenagem a Freud diz, entre outras coisas, que esse livro já tinha sido discutido por psicanalistas, na revista Imago, e que os psicanalistas o haviam descoberto antes que ele descobrisse a psicanálise (Mann, 1929/2015a). A intimidade com os aspectos psicológicos apresentados nos personagens escolhidos - o que indica terem eles provindo de sua própria experiência - chama a atenção. Nesse texto, Thomas também demonstra um vasto conhecimento da obra freudiana.
Embora tivesse relutado em enviar Morte em Veneza para publicação e só o tenha feito por insistência de sua mulher, o livro fez um enorme sucesso. Inicia-se, então, um movimento para que fosse indicado ao Prêmio Nobel, o que não se concretizou e o jogou numa profunda prostração. Como consequência, entrou num processo recorrente de duvidar de sua capacidade literária e de acreditar que, ao contrário do irmão, não se achava preparado para os desafios dos tempos modernos.
Sua mulher tem então um problema pulmonar e é aconselhada a se internar num sanatório em Davos. Quando vai visitá-la, ele mesmo é diagnosticado com tuberculose; contudo, ao voltar para Munique, seu médico pessoal questiona e ridiculariza tal diagnóstico. Estava aí a semente para A montanha encantada, depois A montanha mágica (1924/2016b), que pretendia ser, inicialmente, um romance pequeno, leve, irônico, um contraponto a Morte em Veneza, um romance de decadência. Mas ele mesmo diz
que ela (A montanha mágica) se pensava bem diversamente do modo que eu tinha de pensar para me envolver nela… os problemas abordados estavam todos presentes em mim antes da guerra e foram unicamente atualizados e imersos no triste e sombrio ponto de vista da conflagração. (Hamilton, 1978, p. 230)
Nessa época, a situação econômica na Alemanha deteriora-se. Thomas sente-se dividido: os abastados, como ele, vivem bem, mas mostram-se temerosos da desordem, cheios de dúvidas em relação ao progresso, indiferentes à política e, ao mesmo tempo, em conflito com sua percepção da vida. Em 1912 começa a escrever o novo livro. Desejava nele retratar sua época, mas não se acredita capaz. Estava atormentado diante da batalha do século 20, intimamente partido, como A montanha mágica iria demonstrar. Finaliza o livro em 1924, quando é então publicado.
Em agosto de 1914 a Europa mergulhou na guerra. Thomas não a esperava nem a desejava, ficando bastante confuso e deprimido quando ela começou. Ao mesmo tempo que declarava não deverem artistas como ele envolver-se em assuntos políticos, começou a defender a Alemanha e a atacar os países que, segundo ele, a desprezavam e humilhavam. Passou a ser um porta-voz informal do Reich e um defensor das posições militaristas da Alemanha, acreditava que a guerra iria salvar o país, purificá-lo, livrá-lo da corrupção e criar fraternidade entre seus cidadãos: era um homem cheio de contradições.
Em uma carta a Heinrich, dizia sentir-se como num sonho, que deveria estar envergonhado por sua ingenuidade ao não ter considerado essa possibilidade e que, “se a guerra continuar por muito tempo, serei sem dúvida o que se chama um homem arruinado” (Hamilton, 1978, p. 235). O estranho é que ele não faz nenhuma menção às grandes perdas da guerra e continua mostrando uma profunda simpatia pela Alemanha. Em função disso, as relações entre os irmãos praticamente ficaram rompidas desde então.
Por essa época, pôs de lado os escritos de A montanha mágica e durante dois anos se dedicou a escrever “Seus pensamentos em tempo de guerra” (Hamilton, 1978, p. 238), em que discutia a ideia de cultura e civilização. Vivia uma grande contradição, parecia confuso e alucinado, enquanto professava essas ideias. Escreve uma carta a um jornal sueco em que ataca seus opositores, nomeadamente seu irmão, e defende furiosamente suas ideias sobre a Alemanha. Heinrich, que vinha permanecendo calado, publica um ensaio sobre Zola, no qual critica os intelectuais que se mantêm neutros. Thomas sente-se pessoalmente atacado, e a ruptura, a partir de então, é definitiva. Estamos no final de 1915.
Ainda não tinha conseguido voltar a escrever A montanha mágica, que interrompera para escrever outro livro, As reflexões de um apolítico (Hamilton, 1978), que só viria a público quando a guerra já estava perdida, e em que novamente criticava ferozmente seu irmão. Os amigos tentam convencê-lo a baixar o tom, mas ele se mantém irredutível. Não há dúvidas sobre suas posições claramente reacionárias, mas parece estar vivendo profundos distúrbios psíquicos.
Seu filho Klaus escreveu mais tarde que sua mãe não concordava com as ideias do pai sobre a guerra. Mas nunca se levantou uma voz em casa, embora fossem notáveis as divergências. Klaus escreve:
esse pai dos tempos de guerra parecia alheio, distante, essencialmente diverso do pai que antes conhecíamos e conhecemos depois desses anos de luta e amargura; a fisionomia paterna que assoma quando relembro esse período parece destituída de bondade e ironia, ambas componentes inseparáveis de sua personalidade; o rosto que visualizo tem um ar severo e sombrio; seus traços ao mesmo tempo orgulhosos e tensos se assemelham com o de um nobre cavaleiro espanhol, o errante herói e sonhador chamado Don Quixote. … Em agosto de 1916 sofreu um “esgotamento nervoso”. Depois de 8 dias já estava de novo trabalhando; desaparecia bem cedo e só era visto na hora do almoço. (Hamilton, 1978, p. 256)
Volta então a escrever A montanha mágica.
Em dezembro de 1917, Heinrich escreve a Thomas uma carta propondo reconciliação, que Thomas rejeita; em janeiro de 1918, ainda muito ressentido com os ataques que atribuía ao irmão, diz que, depois que Carla havia se matado, as relações entre Heinrich e Julia, a outra irmã, mantinham-se rompidas: as separações não eram mais novidade na família.
A montanha mágica: sua escrita e experiência
Acredito que seus escritos levaram-no a uma autorreflexão (uma autoanálise?), uma possibilidade de, aos poucos, entrar em contato com tudo o que o assombrava e que, de outra forma, concretizava-se na rivalidade fraterna. A importância simbólica do relacionamento entre os irmãos não passou despercebida a Thomas e forneceu a tensão estrutural de A montanha mágica, ficcionalizada na discussão entre Settembrini e Naphta.
Enquanto Settembrini e Naphta tentavam formar o ingênuo Hans Castorp, o filho enfermiço da vida, Thomas ia durante seus escritos conversando consigo mesmo, uma longa e sofrida conversa, quase interminável. Conversava sobre o tempo, elemento fundamental evidenciado no livro, falava de progresso, da tecnologia (o aparecimento do raio X, que tanto o assombrou), da burguesia da época, que parecia completamente indiferente aos acontecimentos da planície (as tensões sociais e a guerra), e aparentemente indiferente também em relação à própria doença e morte. As pessoas morriam, simplesmente desapareciam, eram despachadas na surdina, montanha abaixo, e ninguém parecia se dar conta disso.
Hans Castorp institui um hábito de visitar e consolar os moribundos. Um sinal de humanidade? Atração pela doença e morte? Um contato com a realidade? Observava os burgueses ali reunidos, grupo ao qual pertencia, mas que criticava por sua superficialidade, seu descompromisso com a vida, sua falta de cultura e até de boas maneiras. De certa forma, um retrato dele mesmo? Entrou em contato, interessou-se e passou a frequentar de forma envergonhada as dissecações psíquicas do dr. Krokowski, introduziu na sua escrita conhecimentos sobre aquela espécie de psicanálise com a qual demonstrava proximidade.
No capítulo “Neve”, o mais importante do livro, diante de uma situação em que o personagem se põe em risco de morte, movido por sua atração pelo perigo, seduzido e aprisionado pela beleza da paisagem, submetido a fantasias de onipotência e atraído pela curiosidade e pela morte, num estado de pavor e exaustão, diante da possibilidade de morrer por congelamento, ele adormece e sonha.
Conta então o sonho; descreve-o de forma visual, detalhada, rica, e, além de descrevê-lo, demonstra que sua elaboração psíquica produz no personagem uma mudança fundamental sobre sua percepção da vida, mudança que rompe com uma experiência de cisão, uma experiência destrutiva, de oposição entre amor e ódio, com uma crença do personagem, até então aderido a uma visão monocular, quando só podia conceber a vida como algo que se dá numa única direção: a morte. A inclusão do amor abre a possibilidade de um contato com aspectos construtivos e destrutivos, os integra, junta. E, então, pode ter uma experiência de natureza depressiva, no sentido de Klein, e nos apresenta uma descrição, a meu ver, poética, da elaboração psíquica. Hans Castorp, nesse momento, percebe que, na vida, além do ódio, existe o amor e que vida e morte são inseparáveis. Ele finalmente se (trans)formou.
Acredito também que o próprio autor sai transformado da escrita de A montanha mágica: um homem tomado pelo ódio pode entrar em contato com o amor, a amizade; um defensor da guerra transforma-se em um defensor da paz, um defensor do nacionalismo e um conservador torna-se democrata e, depois, socialista; transformações que não se deram no tempo do relógio, mas num outro tempo, num tempo psicológico, cheio de avanços e recuos, de percepções e ataques às percepções, como acontece em nossas mentes.
Mas, ainda em 1918, Thomas dedica-se ao capítulo final de sua autodefesa, As reflexões de um apolítico (Hamilton, 1978, p. 261), que devem esclarecer o caminho para a A montanha mágica. No final de 1918, pôs um ponto final em seu próprio eu conservador e autojustificativo. Não escreve mais propaganda de guerra. Mesmo as Reflexões ele desejava que fossem lidas como ficção e diz: “Se eu o houvesse encontrado mais cedo… Ninguém permanece precisamente como era, quando se conhece a si mesmo”.
Um pequeno poema, que escreve por ocasião do nascimento de sua filha Elisabeth, em 1918, a meu ver, ilustra sua mudança e sua percepção dela:
Por último nasceste, e não obstante
A primeira na verdade me pareces,
Pois anos importantes
Passaram desde quando
Em minha maturidade,
Me tornei pai pela última vez.
Toda a realidade que me cercava
Não provinha mais do sonho do que da vida?
Assim me deu alento aquilo tudo
Que me deixava em confusão outrora.
Apesar das mudanças perceptíveis, os irmãos não voltam a se relacionar. Heinrich faz 50 anos e é muito festejado. Thomas permanece em silêncio. Convidado para uma palestra numa universidade, contudo, faz questão de escrever ao professor que o convidou para que desconsidere as ideias de As reflexões de um apolítico e que tome as diferenças entre as posições dos irmãos apenas como diferenças de temperamento, de personalidade, uma posição de princípios que produziu um antagonismo, mas que se baseia numa fraternidade profundamente arraigada. Estava agora interessado em criar (atitude amorosa), não mais em denunciar. Embora fosse um conservador, aceitava a democracia e acreditava mesmo que era um fato inevitável.
Heinrich é internado em janeiro de 1922, com um grave problema de saúde, e Thomas finalmente se reaproxima do irmão, escrevendo para ele um bilhete: “Foram tempos difíceis os que ficaram para trás, mas agora que ultrapassamos a montanha as coisas vão melhorar, para nós dois juntos, se seu coração sentir o que eu sinto”.
Thomas publica a A montanha mágica em 1924. É agora um democrata, um crítico feroz do nazismo e de Hitler. Por um discurso que faz em 1933, criticando Wagner, a quem tanto admirou, perde sua nacionalidade. Nem volta para a Alemanha. Permanece exilado na Suíça e de lá vai finalmente para os EUA, onde ao chegar proclama: “democracy will win”. Os irmãos, apesar das enormes diferenças, permanecem amigos até o fim da vida.
Em 1929, finalmente, Thomas Man é premiado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Refleti muito sobre esta minha escrita. Enquanto fui me informando e pensando sobre ela, fui tomada por muitos sentimentos. A escrita foi acompanhada de emoções. Intrigava-me o que teria acontecido com essas pessoas. Pessoas brilhantes, imaginativas, sensíveis? Os instintos, amorosos e destrutivos, como explicitado por Freud, se impõem. Por que será que a escrita da A montanha mágica, esse romance de formação, que acompanha a transformação de Hans Castorp, não caminha no mesmo passo que na vida do escritor? A escrita é uma elaboração intelectual, mas percebia que passava, pelo menos em Thomas Mann, por um viés psicológico, não consciente. Será que tal descompasso tem a ver com o tempo psicológico para transformar uma elaboração de algo que, ainda que escrito, o livro, não está devidamente elaborado e tornado consciente? Estamos falando do ódio à realidade psíquica? Quando escreve a poesia para sua filha, ele nos revela (mas será que se revela?), de fato, que vivia um sonho, que nada tinha a ver com a realidade da vida?
Por outro lado, ele de fato mantinha aquilo que chama de compromisso com a verdade. Não se furtava a tratar de suas questões, desnudava-se perante seu público e revelava como isso era uma imposição do seu eu interior e ao mesmo tempo um sofrimento. As vicissitudes pessoais e familiares (a morte da irmã Julia, também por suicídio, o contato com o seu ser homoerótico, pleno de sensualidade, com a doença e a morte, com o ódio assassino, cruel, destrutivo, que aparecem, em menor grau, no personagem literário Naphta e, de modo superlativo, no real, Hitler) me parecem de algum modo situá-lo diante de um espelho, e seu ser sensível e civilizado se envergonha.
Quero crer que sua formação, sua inteligência, sua determinação e disciplina, herdadas do pai, de um lado, e sua sensibilidade latina, materna, de outro, permitiram-lhe ser o novo Thomas Mann, que, tendo elaborado seu próprio ódio, foi capaz de, após a Primeira Guerra Mundial, tornar-se a monumental voz a favor da democracia e uma liderança feroz contra Hitler e seu autoritarismo.