Como psicanalistas cabe-nos explicar quais são os motivos inconscientes dos comportamentos, sentimentos, valores, julgamentos e ideias, dos indivíduos, dos grupos e das massas. Em nossas análises sobre a vida social, com a psicanálise aplicada à vida político-social, seria nossa tarefa explicar quais são os determinantes inconscientes, os fatores emocionais, que estariam na base dos indivíduos antidemocráticos, estejam estes no poder ou não, considerando o cenário atual, nacional e internacional, no qual muitos sistemas sociais democráticos correm perigo ou estão em clara deterioração.4 Nossas perguntas e contribuições são do seguinte tipo: como são gerados os delinquentes ou antissociais?, como é possível às pessoas apoiar propostas de governo simplórias, fascistas e, até mesmo, contrárias a seus próprios interesses?, por que uma sociedade, tendo a opção do voto, pode acabar por eleger delinquentes (ou ditadores) para governar, sabendo que estes são pessoas com história de comportamentos e ideias pregando a intolerância, a violência, por vezes, conhecidos publicamente como antidemocráticos sociais?, que impulsos fundamentais movem os antissociais e os ditadores e, mais importante ainda, aqueles que apoiam ou votam em candidatos com esse perfil? Nossas respostas não implicam, no entanto, afirmar que a gênese de fenômenos complexos (delinquência, autoritarismo, ditaduras) poderia ser reduzida somente a seus determinantes psico-histórico-afetivos, dado que sabemos e reiteramos sua determinação polifatorial, mas sim que esses aspectos inconscientes, que procuro aqui analisar, devem ser considerados como mais um dos fatores que explicam esses fenômenos.
Wilhem Reich, em seu livro Psicologia de massas do fascismo, cuja primeira edição foi publicada na Alemanha em 1933, procurou mostrar que o fascismo é um fenômeno produzido por uma massa de pessoas oprimidas: “o ‘fascismo’ é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida” (Reich, 2015, p. xvii).
Conhecemos a história de como o nazismo foi gestado, do ponto de vista sócio-histórico-econômico, com a opressão imposta ao povo alemão depois da Primeira Guerra Mundial, analisada, por exemplo, no filme O ovo da serpente, dirigido por Ingmar Bergman, em 1977.
Ao lado de uma compreensão sociopolítico-econômica, cabe aos psicólogos e psicanalistas analisarem a gênese e o modo de funcionamento psicológico dos homens que tornam possível e são até mesmo os operadores de sistemas antidemocráticos, homens que são o ovo, o coração e a cabeça da serpente.
Para Reich, são justamente os zés-ninguéns da vida que acabam por edificar e dar sustentação socioafetiva ao fascismo:
A mentalidade fascista é a mentalidade do zé-ninguém, que é subjugado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado. Não é por acaso que todos os ditadores fascistas são oriundos do ambiente reacionário do zé-ninguém. O magnata industrial e o militarista feudal não fazem mais do que aproveitar-se deste fato social para os seus próprios fins, depois de ele se ter desenvolvido no domínio da repressão generalizada dos impulsos vitais. O fascista é o segundo sargento do exército gigantesco da nossa civilização industrial gravemente doente. (Reich, 2015, p. xix)
Mas quais seriam os motivos inconscientes que levaram e levam alguns, no escrutínio democrático, a escolher homens contrários ao próprio regime democrático? Quais são os motivos inconscientes que impulsionam o comportamento dos antissociais? Tais perguntas também estão articuladas com uma outra, fundamental, que diz respeito a saber quais são as condições de possibilidade psicológicas para que uma sociedade possa ser democrática?
As condições para a existência de uma sociedade democrática
Talvez seja melhor começar com a pergunta mais geral: o que é necessário, do ponto de vista da organização psicoafetiva dos indivíduos, para que uma sociedade seja democrática? Winnicott responde de maneira objetiva, afirmando que é necessário um número significativo de pessoas saudáveis para que uma sociedade democrática seja possível:
numa sociedade sadia, em que a democracia possa florescer, uma proporção suficiente de indivíduos tem de haver realizado uma integração satisfatória da própria personalidade. A ideia de democracia bem como o modo de vida democrático originam-se da saúde e do crescimento natural do indivíduo, e só podem ser conservados pela integração das personalidades individuais, em tantos quantos sejam os indivíduos sadios ou relativamente sadios viventes na comunidade. Os indivíduos sadios devem existir em número suficiente para suprir as necessidades das personalidades não-integradas que não podem dar contribuição. Caso contrário, a sociedade democrática degenera-se e assume outra forma de organização. (1961/1999d, p. 69)
Por sociedade democrática, entenda-se, por um lado, uma sociedade na qual os dirigentes são escolhidos livremente pelos cidadãos em função de suas avaliações identitárias, de comunhão de valores, de julgamento crítico de pessoas e propostas, reconhecendo as semelhanças e tolerando as diferenças entre as pessoas; por outro, que os cidadãos, até mesmo por definição, sejam iguais perante a lei, mais ainda, que o reconhecimento do outro como diferente seja acompanhado de tolerância, que o enfrentamento e debate entre os diferentes sejam feitos pelo diálogo e pela argumentação. Evidentemente, todo processo democrático ou atitude democrática exclui todo tipo de força, autoritarismo e manipulação ideológica ou propagandista.
Por pessoas saudáveis5 compreendam-se aquelas que se desenvolveram emocionalmente a ponto de poderem apreender a si mesmas e aos outros como pessoas inteiras e diferentes (ou seja, o que se caracteriza como tendo conquistado a subjetividade na qual eu e outro sejam apreendidos como dois), mais ainda, que reconhecendo o outro tenham a possibilidade de se pôr no lugar do outro (o que chamamos, em psicanálise, de ter a capacidade de realizar identificações cruzadas). Em Winnicott, encontramos uma noção descritiva da saúde:
A vida de um indivíduo são se caracteriza mais por medos, sentimentos conflitantes, dúvidas, frustrações do que por seus aspectos positivos. O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida, responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de atribuírem a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso. Pode-se dizer, em suma, que o indivíduo saiu da dependência para entrar na independência ou autonomia. (Winnicott, 1971/1999c, p. 10)
Noutro momento, ainda referindo-se à saúde, mas agora em termos da vida sociocultural, ele complementa sua definição: “o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades pessoais sem ser antissocial, e, na verdade, sem falhar em assumir alguma responsabilidade pela manutenção ou pela modificação da sociedade em que se encontra” (Winnicott, 1965/1983a, p. 80).
Nesse sentido, pessoas saudáveis são pessoas integradas em sua personalidade,6 sentindo-se como “pessoas inteiras” e reconhecendo os outros como “pessoas inteiras”. Elas sabem que fazem parte do mundo e que são responsáveis por si mesmas e pelos outros, podendo responsabilizar-se por suas ações e inações, por seus acertos e erros, bem como esperam e solicitam que os outros se ponham da mesma maneira; pessoas inteiras podem encontrar e administrar seus conflitos considerando o que ocorre no seu mundo interno, numa apreensão parcial do que seria a realidade do outro, como também do que pode ser uma realidade compartilhada.
Uma sociedade democrática é uma sociedade madura, ou seja, composta por uma quantidade significativa de pessoas saudáveis.
No entanto, é evidente que numa sociedade nem todos os membros são saudáveis, havendo também, em sua composição, um número de indivíduos que são incapazes de contribuir para o bem social. Winnicott faz a seguinte pergunta: “qual é a proporção de indivíduos antissociais que uma sociedade pode conter sem que a tendência democrática ... submerja?” (Winnicott, 1950/1999a, pp. 253-254).
Ressalvas sobre a concepção de saúde na psicanálise (não moralista nem normativa)
Ao enunciar uma noção de saúde, sempre corremos o risco de voltar atrás no que se refere a uma conquista da psicanálise, que é não normatizar os indivíduos, considerar que a diversidade de organizações psíquicas, dos modos de ser-estar no mundo, não separa os homens entre bons e maus, entre normais e perversos etc.
Para compreensão da noção de saúde do ponto de vista da psicanálise, é necessário termos em mente alguns de seus princípios:
O psiquismo não é propriamente uma unidade, mas é composto por sistemas, ou partes, que, em conjunto, põem em conjunção (as vezes, oposição) diversos impulsos, interesses, valores etc. (noutros termos, o que Freud considerou como os supostos sistemas do aparelho psíquico, tais como, por exemplo, o Id, o Ego e o Superego);
A organização psíquica, a organização dos modos de ser-estar e relacionar-se consigo mesmo e com o mundo são uma construção histórico-relacional, impulsionada tanto pela vida instintual (pressões corporais) quanto pela vida identitária relacional (às vezes denominadas necessidades egoicas ou necessidades de ser);
A nosografia psicanalítica procura distinguir dinâmicas de ser-estar-relacionar-se com o mundo e classifica as patologias muito mais em função dessas dinâmicas do que em função de um conjunto de sintomas. Nesse sentido, referimo-nos, grosso modo, em termos dos quadros nosográficos, aos neuróticos, os psicóticos e, entre eles, os deprimidos, bem como aos borderlines; e, outras vezes, a sintomas que não constituem quadros nosográficos, mas podem estar presentes em diversos tipos de organização psíquica (tais como os sintomas psicossomáticos, as adições e, no foco que estamos desenvolvendo, as atitudes antissociais).
A saúde e a organização psicoemocional dos modos de ser-estar no mundo do ser humano são sempre estabelecidas, com maior ou menor estabilidade, de modo relacional e contextual (seja em termos históricos, seja em termos da situação do ambiente no presente), tendo, por assim dizer, uma existência e persistência dinâmica.7 Isto significa considerar, por exemplo, que uma pessoa pode funcionar neuroticamente num determinado contexto e, noutro, posto em outros modos de relação, ou impulsionado e estimulado por outras relações, em termos e dinâmicas psicóticas (com o outro e com a realidade): os modos de ser-estar-no-mundo são relacionais.
Antissociais e anti-indivíduos
Temos, então, que analisar de quais tipos de indivíduos uma sociedade é composta, considerando que nela temos: pessoas saudáveis, doentes psiquiátricos, antissociais e, ainda, um grupo significativamente grande de pessoas que não conseguiríamos pôr nessas categorias (dos que podem ou não contribuir para a convivência numa sociedade democrática), um grupo de “indeterminados” que poderiam ir para uma ou outra direção, a depender da situação.
Dediquemo-nos, agora, à compreensão dos indivíduos antissociais, diferenciando entre os antissociais manifestos e os ocultos, considerando-os como pessoas imaturas, inseguras, ou, ainda, doentes, para que possam contribuir para a vida social:
Caso existam, em determinado momento numa sociedade, x indivíduos que demonstrem falta de senso social, desenvolvendo uma tendência antissocial, há uma quantidade z de indivíduos reagindo à insegurança interna através da tendência alternativa - a identificação com a autoridade. Essa identificação é doentia, imatura, pois não é uma identificação com a autoridade que surge da autodescoberta. É o senso da moldura sem o senso do quadro, um senso da forma sem a manutenção da espontaneidade. É uma tendência pró-sociedade, mas anti-indivíduo. As pessoas que se desenvolvem dessa maneira podem ser chamadas de “antissociais ocultas”. (Winnicott, 1950/1999a, p. 254)
Os antissociais ocultos, em termos de seu desenvolvimento emocional, não são pessoas saudáveis (integradas em sua personalidade), que podem reconhecer o outro também como uma pessoa diferente dela mesma. Neste sentido, tanto os antissociais manifestos como os ocultos têm um conflito interno (opressão, desamparo, perda de confiabilidade no mundo), um sofrimento e uma insegurança, que os fazem, desesperadamente, resolver esse conflito realizando dois tipos de tentativa de solução, procurando:
impor suas afecções, sentimentos e valores ao mundo;
adotar alguma solução externa no mundo, dado que não encontram a solução em si mesmos, solução esta que é uma promessa ou ideia simplória que resolveria, em definitivo, seus sentimentos de opressão e insegurança.
Em especial, o que caracteriza o antissocial oculto é sua insegurança e imaturidade, de modo que ele apela para a resolução autoritária, que lhe aparece como “remédio para todos os males”, identificando-se, então, com figuras autoritárias (a democracia exigiria deles uma dialética relacional que parece aumentar sua sensação de insegurança). Neste sentido, estes acabam por apoiar e identificar-se com figuras autoritárias:
Os antissociais ocultos proporcionam um tipo de liderança que é sociologicamente imatura. Além disso, esse elemento numa sociedade fortalece muito o perigo que deriva de seus elementos francamente antissociais, especialmente quando as pessoas comuns permitem com muita facilidade que os indivíduos que têm impulso para liderar venham a ocupar postos-chave. (Winnicott, 1950/1999a, p. 255)
Caso um indivíduo antissocial (manifesto ou oculto) chegue ao poder (e não tendo capacidade para o diálogo e o encontro construtivo com o outro, sendo incapaz de lidar com diferenças e funcionando apenas em função de slogans vazios), ele precisará de gente que o apoie: “Uma vez nessa posição, esse líder imaturo imediatamente começa a se rodear de indivíduos antissociais óbvios, que lhe dão boas-vindas, como se ele fosse seu chefe natural” (Winnicott, 1950/1999a, p. 255).
Todo o processo sugestivo e, por vezes, mesmo coercitivo que um líder ou uma instituição realiza (empresas, escola, Estado e, certamente, todas as instituições religiosas, seja no que diz respeito ao poder geral daquela igreja, seja no que se refere à influência de seus representantes) também contribui para o comportamento de apoio a autoridades ditatoriais, e, ainda que este seja um aspecto fundamental, estou remetendo-os a esse fenômeno que diz respeito aos processos de identificação com uma autoridade ou líder como o caminho mais simples, rápido, mesmo se redutor, para encontrar uma solução existencial de um estado de opressão e submissão.
Assim, o elemento mais significativo e determinante para a compreensão de governos não democráticos, em termos da constituição psíquica dos indivíduos, é a compreensão dos comportamentos dos antissociais, sejam eles manifestos ou ocultos.
A psicologia do antissocial
Retomemos, então, a compreensão do que são e como são gerados os indivíduos antissociais, procurando aprofundar o entendimento dos motivos inconscientes que os impulsionam.
John Bowlby (1944, 1952, 1969, 1973, 1980) propagandeou para o mundo a tese segundo a qual a delinquência tem como origem a criança ser separada precocemente de seu cuidador primário, em geral, a mãe. Winnicott, por sua vez, ampliou essa tese, afirmando que a tendência antissocial é um sintoma advindo da deprivação sofrida pela criança:
Na base da tendência antissocial existe uma experiência inicial boa que foi perdida. Com toda a certeza, um dos aspectos essenciais é o de que o bebê tenha alcançado a capacidade de perceber que a causa do desastre foi devida a uma falha do ambiente. (Winnicott, 1958/2000, p. 415)
Para Winnicott, a atitude antissocial corresponde, pois, a uma tentativa, desesperada, de fazer com que o ambiente volte a ser confiável, requisitando e culpando o ambiente pela quebra e aflição sofrida:
A tendência antissocial representa o sos ou o cri de coeur da criança que, em um estágio ou outro, foi deprivada, deprivada da provisão ambiental que seria apropriada na idade em que lhe faltou. A deprivação alterou a vida da criança; causou-lhe uma aflição intolerável, e a criança tem razão em reclamar o reconhecimento do fato de que “as coisas estavam bem e, depois, não ficaram bem”, e de que isto constitui um fator externo, fora do controle da criança. (Winnicott, 1989/1994, p. 54)
Isso não quer dizer que a criança caiu do paraíso para o inferno do abandono, mas que antes da falha ambiental as coisas eram razoáveis, suportáveis, e, com a(s) falha(s) do ambiente em atender a criança em suas necessidades, ocorre o desamparo e uma reação extrema que a faz atacar o ambiente, não para destruí-lo, mas para que ele retorne a ser razoável, um tipo de teste, uma maneira paradoxal de depender do ambiente atacando-o. Esse sintoma poderá estar presente em diversos tipos de organização psíquica, em termos da nosografia psicanalítica:
Uma criança deste tipo acha-se engajada em retornar, através da deprivação e da aflição intolerável, ao estado que existia antes da deprivação, quando as coisas não eram muito ruins. Não podemos classificar este estado, que pode conduzir à delinquência ou à reincidência, junto com os outros estados que etiquetamos com as palavras psicose, depressão e psiconeurose. (Winnicott, 1989/1994, p. 54)
O roubo, a mentira, a agressão e a destruição dirigida ao mundo estão, na verdade, dirigidos à mãe-ambiente, mãe que ele sente ser sua de direito: “O roubo localiza-se no centro da tendência antissocial, com seu correlato, mentir. A criança que rouba um objeto não está em busca do objeto roubado, mas da mãe sobre a qual ela tem direitos” (Winnicott, 1958/2000, p. 411). O antissocial, nesse contexto, não se sente, por exemplo, roubando, dado que retirar algo do mundo é como pegar algo da bolsa da mãe, ou seja, tirar algo que ele sente como pertencendo a ele. Ou ainda, dizendo de outro modo, o antissocial sente que o mundo deve a ele, e nada mais justo do que cobrar essa dívida à força ou às escondidas, já que o mundo negou o seu direito e continuaria a negá-lo.
Evidentemente, reduzir o impulso a roubar e contar mentiras apenas ao fenômeno psicoafetivo que leva à busca pela mãe seria tão simplório como errôneo, dado que o roubo e a mentira também estão associados a problemas gerados pela injustiça social (e todos os seus derivados), à vingança social e individual pelas desigualdades e frustrações, como também a impulsos agressivos e destrutivos, aspectos estes que não seriam redutíveis ao fenômeno da deprivação. Não obstante, a deprivação enquanto fenômeno a ser considerado na origem da delinquência e da atitude antissocial não deixa de ser uma constatação factual.
Winnicott aponta alguns outros comportamentos infantis como, talvez, expressão de uma deprivação, por exemplo, a tirania infantil:
Os primeiros sinais de deprivação são tão comuns, que muitas vezes passam por algo normal. Por exemplo, o comportamento tirânico, que muitos pais enfrentam com um misto de reação e submissão. Não se trata, neste caso, de onipotência infantil, pois esta é uma questão de realidade psíquica, não de comportamento. (Winnicott, 1958/2000, p. 412)
Outro sintoma, na mesma direção, é a sofreguidão:
Um sintoma antissocial muito comum é a sofreguidão, juntamente com o seu correlato, a inibição do apetite. Ao estudarmos a sofreguidão, encontraremos o complexo de deprivação. Dito de outro modo, se a criança é sôfrega (comilona) haverá algum grau de deprivação e uma certa compulsão para buscar uma terapia para essa deprivação através do ambiente. O fato de que a mãe dispõe-se ela própria a satisfazer a sofreguidão da criança leva ao sucesso dessa terapia na grande maioria dos casos em que essa compulsão é observada. (Winnicott, 1958/2000, p. 412)8
Outros comportamentos infantis poderiam, ainda, ser relatados como índice, estando na gênese da compulsão a roubar (associados, assim, à deprivação), tais como a compulsão a desarrumar, molhar a cama e destruir.
A deprivação corresponde, em todas as suas maneiras, a um abandono ou desamparo, mais do que isto, este é uma retirada da sustentação ambiental que estava sendo fornecida. Aquele que sofre a deprivação é ciente do que teve e do que acabou de perder, causando-lhe um sofrimento tântrico: o que ele quer e necessita está tão próximo de sua memória e tão distante de seu presente. O ódio toma, então, conta dele nessa situação, ele sente o que lhe ocorreu (ser abandonado) como injusto! Diz Winnicott:
O abandono constitui a base da tendência antissocial e, por mais que não gostemos de que roubem nossa bicicleta, que tenhamos de usar a polícia para impedir a violência, podemos ver e entender por que esse menino ou aquela menina nos força a aceitar um desafio, seja pelo roubo, seja pela destrutividade. (Winnicott, 1984/1999e, p. 98)
O comportamento do antissocial (roubar, mentir, não se preocupar ou não poder ver o outro, agredir as pessoas e o mundo em maior ou menor escala etc.), quando tratado em seu início - via provisão ambiental adequada -, pode ser eliminado ou suprimido. No entanto, se esse comportamento perdura (dado que o ambiente não responde de forma adequada ao pedido de socorro do antissocial, clamando pelo retorno da confiabilidade ambiental), então, a atitude antissocial instala-se como um padrão de comportamento, de forma mais consistente, como um modo de ser-estar no mundo, alimentado pelos ganhos secundários que gera e pela falta de resposta adequada do ambiente.
Quando isso ocorre, o antissocial gera uma situação que gira em falso, reiterando seu modo de ser-estar no mundo: o objetivo inconsciente da atitude antissocial é obter novamente a sustentação e a confiabilidade ambiental (desfazer o sentimento de abandono sofrido, recompondo a segurança e confiabilidade no outro), no entanto, os efeitos de seu comportamento no ambiente (atacando o ambiente) geram justamente o inverso do que ele precisa, geram a desconfiança social, a vingança do ambiente contra a agressão (em maior ou menor grau), a reação de punição etc. Por outro lado, a atitude antissocial tem ganhos secundários imediatos (um objeto roubado, um prazer adquirido, não ser acusado, já que mente etc.), ainda que os ganhos secundários jamais possam substituir o que se perdeu, desfazer o sentimento de ser abandonado. Assim, o antissocial, insistindo em sua procura e aproveitando os ganhos secundários de seu comportamento, está constantemente reiterando seu abandono e seu vazio: é por isso que ele precisa roubar, mentir e atacar, para sempre, dado que o que ele procura não está nos objetos e nas suas agressões, mas na reparação do desamparo, na reaquisição da confiabilidade ambiental, na confiabilidade pessoal e afetiva no e com o outro... o que jamais poderá advir dos objetos e como ganho secundário das mentiras.
Covardia e atitude antissociais
O antissocial é uma pobre criança desamparada, abandonada, que grita para o mundo palavras de ordem e slogans vazios, na tentativa de negar sua fragilidade, negar sua opressão, atacar e desqualificar o mundo, apresentando-se, paradoxalmente, como invulnerável em sua grande vulnerabilidade. Mais ainda, negando o mundo (a cultura, o conhecimento), o antissocial, dada sua insegurança e incapacidade para o enfrentamento direto (seja pelo diálogo, seja pelo confronto pessoal com o outro), faz esses ataques e enfrentamentos nas sombras ou em cenários protegidos (por grupos, entornos, ataques virtuais etc.), nunca se pondo em pé de igualdade para enfrentar o outro e o mundo, já que se sente (e é) impotente para isso.
Em Montaigne encontramos um ensaio no qual afirma que “a covardia é a mãe da crueldade”. Nesse ensaio, ele mostra que o homem que tem coragem bate-se com um inimigo e tem apreço pelo embate, pelo enfrentamento, no qual mede forças com seu oponente, reconhece-o em nível de igualdade, e se compraz em subjugá-lo. No entanto, os covardes não afrontam seus inimigos de frente, agindo sempre nas sombras. Diz Montaigne:
A valentia, que se exerce somente contra o que lhe resiste, “só se compraz em imolar um touro quando este se defende”, susta o golpe se vê o inimigo à sua mercê; mas a pusilanimidade, não tendo figurado neste primeiro ato e querendo participar da festa, entra em cena no segundo ato, o do massacre e do sangue. (Montaigne, 1595/1980, p. 317)
Essa covardia é, no mais das vezes, um comportamento característico dos tiranos (no momento, para nós, os antissociais), estes acabam até mesmo sendo sanguinários na sua covardia. Diz, ainda, Montaigne:
O que torna os tiranos tão sanguinários é a preocupação com a própria segurança. A covardia que trazem no coração não lhes sugere outras medidas de salvaguarda senão exterminar os que os podem ofender, mulheres inclusive, incapazes de um arranhão: “tudo abate porque tudo teme”. As primeiras crueldades cometem-se espontaneamente; delas nasce o temor de uma justa vingança, o que provoca toda uma teoria de novas crueldades. (Montaigne, 1595/1980, p. 319)
Curiosamente, o covarde e cruel parece também estar unido a um certo sentimentalismo, ainda que dirigido não a sua vítima ou inimigo, mas a outras instâncias da sua vida. Diz Montaigne: “Vi gente cruel ter a lágrima fácil a propósito de coisas insignificantes” (p. 317).
A proximidade ou mesmo identidade entre o antissocial e o tirano, o covarde e o homem cruel, me parece poder ser afirmada de forma parcial ou total. O que estou tentando esclarecer, aqui, é como está constituída a personalidade, ou o modo de ser-estar no mundo, desses pobres-diabos, como já os denominou Freud (1923d).
A psicologia do ditador e o medo da Mulher
Tracei algumas linhas sobre qual é o perfil do antissocial e associei-o, agora, à figura ou personalidade do ditador. Mas qual seria ou quais seriam os fundamentos emocionais que constituem a personalidade emocional do ditador?
Uma pergunta certamente difícil de ser respondida, mas que encontra em Winnicott alguma indicação, quando ele afirma:
se estudarmos a psicologia do ditador, é de esperar que se encontre, entre outras coisas, que em sua luta pessoal está tentando controlar a mulher cujo domínio ele inconscientemente ainda teme, procurando controlá-la servindo-a, atuando para ela e, por seu turno, exigindo total sujeição e “amor”. (Winnicott, 1964/1982, p. 11)
Para Winnicott há um fato, por vezes esquecido ou mesmo recalcado, na constituição emocional de todo Homem: o fato de que a vida começa com a experiência da dependência de uma Mulher. Se tudo corre bem, se essa dependência ocorre de maneira que se garanta o desenvolvimento saudável, então deve-se reconhecer que “todo indivíduo mentalmente são, todo aquele que se sente como pessoa no mundo e para quem o mundo significa alguma coisa, toda pessoa feliz, está em infinito débito com uma mulher” (Winnicott, 1964/1982, p. 10).
Mas esse fato do desenvolvimento emocional não parece ter resultado, grosso modo, numa sociedade ou cultura que reconheça seu débito em relação à Mulher, sua gratidão e mesmo a valorização da Mulher. Este fato inicial, então recalcado, como um mecanismo de defesa, ressurge na forma de sintomas: o medo da dependência, a desqualificação da Mulher etc. Diz Winnicott:
Se não houver um verdadeiro reconhecimento do papel da mãe, então aparecerá em nós um vago medo de dependência. Esse medo adquire por vezes a forma de um medo à mulher, em geral, ou a uma determinada mulher; e, noutras ocasiões, assumirá formas menos facilmente reconhecíveis, mas incluindo sempre o medo de ser dominado. (Winnicott, 1964/1982, p. 11)
Winnicott comenta que o trabalho psicanalítico mostra que “todos os indivíduos (homens e mulheres) mantêm um certo medo da mulher” (1950/1999a, p. 263). Esse medo advém de diversas situações experienciadas e fantasiadas pelas crianças:
a) medo dos pais, na infância muito precoce; b) medo da figura combinada: uma mulher que tenha muitos poderes, até mesmo potência masculina (a imagem da feiticeira); c) medo da mãe, que teve um poder absoluto no início da existência infantil: o poder de prover ou fracassar as bases para o estabelecimento inicial do self individual. (1950/1999a, p. 263)
Todo Homem começa sua vida nas mãos de um Deus vivo! Diz, então, Winnicott sobre esse fato da natureza humana:
é realmente muito difícil que um homem ou uma mulher aceitem de verdade o fato da dependência absoluta e, depois, relativa naquilo que ela se aplica ao homem e à mulher já adultos. Por tal razão há um fenômeno separado que denominamos mulher, que domina todo o cenário e afeta todo o nosso raciocínio. mulher é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher. (Winnicott, 1986/1999b, p. 150)
Na história mítico-religiosa do mundo ocidental cristão, a mulher foi criada do homem (uma costelinha de Adão!), invertendo a gênese histórico-factual em que todo homem nasce de uma mulher. No desenvolvimento dessa inversão, Deus foi posto no lugar dessa Mulher, de Deus advirá, então, responsável pela origem e pela criação; mais ainda, esse Deus é um Pai todo-poderoso, aprofundando ou recalcando, assim, o lugar originário da dependência inicial da Mulher. Pode-se supor que a diminuição e desqualificação da mulher seja a reiteração desse recalque.
Quando a relação de dependência absoluta inicial é vivida de forma perturbada, quando há falhas significativas nessa relação de sustentação inicial, ou seja, quando a criança não tem as suas necessidades suficientemente bem atendidas, e o comportamento do ambiente se estabelece como um padrão de comportamento, a criança tem a experiência constante de correr perigo, de ser aniquilada, invadida ou mesmo agredida. Quando algo assim ocorre, então, a dependência é algo traumático, instala-se a desconfiança e a insegurança, instala-se a angústia e o ressentimento... e o indivíduo precisa combater isso a qualquer custo. O antissocial faz isso atacando o ambiente, comportando-se como se fosse invulnerável ao ambiente, desprezando o ambiente, desprezando a Mulher e diversas outras expressões que podem estar associadas à Mulher (entre elas, a homossexualidade).
Como expressão reativa a esse tipo de falha na situação de dependência primária, temos, então, a constituição da psicologia do ditador, como mecanismo de defesa contra a dependência, contra o abandono. O ditador, numa inversão de posições, faz com que todos dependam dele, e ele, por sua vez, estando no topo da pirâmide, não depende de ninguém, só tem dependentes, agindo para que todos dependam dele e todos lhe prestem vassalagem. A arrogância que o caracteriza, como também a arrogância daquele que tem um comportamento antissocial, arrogância que sentem como necessária, corresponde a uma defesa maníaca contra o abandono que os constitui.
O ditador foge da dependência como o diabo foge da cruz; o antissocial ataca o ambiente, em busca da recuperação da dependência ambiental confiável, também procurando desfazer seu desamparo, lutando contra a dependência que tem e condena. Nesse contexto, não é por acaso que essas pessoas antidemocráticos tratem de maneira tão depreciativa a Mulher, contexto em que a covardia e a agressão parecem ser uma constante: ressentimento e vingança parecem ser o seu lema e suas intenções.
É importante ressaltar que esse tipo de análise não é redutível à questão de gênero (masculino e feminino, homem e mulher no sentido biológico do termo), dado que o ser humano é, do ponto de vista da psicanálise, bissexual, ou seja, o medo da Mulher e da dependência, com o retorno desse recalcado em forma de agressão e desprezo, atinge, igualmente, em termos de gênero, a homens e mulheres. Além disso, dada a experiência estrutural e estruturante que a dependência de uma Mulher (na origem) representa no processo de constituição de si mesmo, há diversos modos de lidar com a mulher, com todos os tipos de identificação e de projeção, que, por sua vez, farão parte não só dos processos de constituição de si mesmo, de apreensão e apercepção de si mesmo e do outro, como também do estabelecimento dos modos prioritários de escolha objetal (seus tipos e modos).
Como construir uma sociedade democrática do ponto de vista do desenvolvimento emocional de seus membros?
Qual seria a receita para construir uma sociedade democrática? Seria possível impor, ou inserir, uma estrutura social democrática a uma sociedade, às pessoas que a compõem, levando-as a viver ou funcionar democraticamente? Ou seja, pode, a sociedade democrática, advir de fora para dentro, no que se refere a seus indivíduos? No quadro argumentativo que estou apresentando, a sociedade democrática adviria dos indivíduos para o socius, ou seja, de dentro para fora, e não de fora para dentro. Isso também implica dizer que de nada vale impor uma estrutura democrática a uma sociedade que não tem pessoas que possam suportar e defender esse modo de ser-estar com o outro:
perceber-se-á a impossibilidade de tornar democrática uma dada comunidade; qualquer tentativa nesse sentido já se configuraria como uma força aplicada sobre a comunidade a partir do exterior, ao passo que a força só poderia ter efeito se viesse de dentro, gerada pela saúde de cada indivíduo. Entretanto, uma sociedade sadia é capaz de dar carona a uma certa proporção de indivíduos incapazes; também a família sadia pode conter crianças dotadas de fraca capacidade de integração. (Winnicott, 1961/1999d, p. 69)
A construção da democracia é uma questão de profilaxia, e seu fundamento repousa na produção de pessoas saudáveis, o que, por sua vez, é uma questão de desenvolvimento emocional e sustentação ambiental: “a essência de uma democracia realmente repousa no homem comum, na mulher comum, no lar comum” (Winnicott, 1950/1999a, p. 258).
O que significa a expressão lar comum (para além de suas concepções moralistas e normatizadoras)? Em primeiro lugar, lar comum me parece não ser uma boa expressão, devendo ser substituída por uma outra, tipo lar saudável, um lar que não é composto por pessoas doentes, ou seja, não composto por casos psiquiátricos, antissociais ou imaturos num sentido mais amplo, em que a instabilidade e a falta de confiabilidade é uma constante. Num lar saudável, razoavelmente saudável (logo, que não visa a perfeição) - na linguagem de Winnicott, diríamos, um lar suficientemente bom -, pode haver uma sustentação ambiental para atender razoavelmente às necessidades do bebê e das crianças (ou seja, sem decepcioná-las, sem desiludi-las, sem fazê-las “perder a esperança de serem atendidas nas suas necessidades”). Por necessidades, compreenda-se, em termos gerais, as necessidades instintuais e, mais fundamentalmente, as necessidades egoicas (como a de ser e continuar sendo, de ser no mundo sem perder demais a espontaneidade, de ter um lugar para viver etc.),9 o que implica a possibilidade de cuidado e de prevenção aos abandonos que estão, pois, na origem dos comportamentos antissociais. São essas as características ambientais que podem criar o contexto para a produção do desenvolvimento emocional, da saúde e, portanto, da democracia: “Bons lares comuns [lares razoavelmente saudáveis]10 fornecem o único contexto em que se pode criar o fator democrático inato” (Winnicott, 1950/1999a, p. 257).
Temos, então, um problema de difícil solução: numa sociedade composta por um número significativo de pessoas antissociais, não teríamos essas condições. No entanto, a sociedade também é composta por sujeitos maduros ou sujeitos que dependem de apoio para poderem ser maduros, e isso aponta o caminho para a construção da democracia: “A alternativa valiosa é apoiar os indivíduos emocionalmente maduros [saudáveis],11 mesmo que eles sejam poucos, e deixar que o tempo faça o resto” (1950/1999a, p. 262).
Se, por um lado, isso também implica uma série de possíveis atitudes de suporte ou cuidado sociais, ações do Estado que podem contribuir para a estabilidade existencial das pessoas e das famílias, por outro, ainda cabe a nós, psicólogos e psicanalistas, indicar maneiras de relacionar ou cuidar de indivíduos antissociais.
É interessante retomar a maneira com a qual Wilhem Reich afirma que devemos enfrentar os indivíduos fascistas (em nossa linguagem, os indivíduos antissociais):
O fascismo só pode ser vencido se for enfrentado de modo objetivo e prático, com um conhecimento bem fundamentado dos processos da vida. Ninguém o consegue intimidar nas manobras políticas e diplomáticas e na ostentação. Mas o fascismo não tem resposta para os problemas práticos da vida, porque vê tudo apenas no reflexo da ideologia ou sob a forma dos uniformes oficiais. Quando se ouve um indivíduo fascista, de qualquer tendência, insistir em apregoar a “honra da nação” (em vez da honra do homem) ou a “salvação da sagrada família e da raça” (em vez da sociedade dos trabalhadores); quando o fascista procura se evidenciar, recorrendo a toda espécie de chavões, pergunte-se a ele, em público, com calma e serenidade, apenas isto: “O que você fez, na prática, para alimentar esta nação, sem arruinar outras nações? O que você faz, como médico, contra as doenças crônicas; como educador, pelo bemestar das crianças; como economista, contra a pobreza; como assistente social, contra o cansaço das mães de prole numerosa; como arquiteto, pela promoção da higiene habitacional? E agora, em vez da conversa fiada de costume, dê respostas concretas e práticas, ou, então, cale-se!” (Reich, 1969[1942]/2015, p. xx)
Um elemento importante a destacar nesse conselho de Reich está na frase “pergunte-se a ele, em público, com calma e serenidade”, dado que a ação antissocial - baseada em slogans vazios, agressões e bravatas - não pode se sustentar e é, então, exposta em sua pobreza, em sua falta de sustentação, remetendo-o justamente àquilo que é seu problema: o desamparo, a insegurança, o abandono, o ressentimento e a sua imensa fragilidade e dependência.
Cabe, ainda ressaltar, nessa direção, que não é possível combater o discurso e arrogância do antissocial, exigindo e chamando-o para o campo do diálogo racional, dado que é justamente uma das suas defesas emocionais a procura por enunciados simples, rasos, totalitários, sem contestação ou alteridade, cujo sentido analítico não está presente, mas cujo sentido emocional encarna a sua revolta interna. Noutros termos, no caso do antissocial: “A lógica perde poder quando a deliciosa simplificação da posição persecutória foi alcançada” (Winnicott, 1968/2019, p. 237).
Como podemos lidar com os antissociais?
Pode-se lidar com o antissocial de duas maneiras: tratando-o psicoterapeuticamente, quando isso é possível, e limitando-o em seu poder destrutivo ou agressivo, quando não é mais possível curá-lo. O comportamento antissocial, se cuidado em seu início ou gênese (ocorrida a deprivação, e surgido o sintoma), pode ser desfeito fornecendo-se a provisão ambiental adequada e, nesse sentido, devolvendo à criança a segurança relacional que ela reivindica: ao “mimar” a criança - procurando entender e atender às suas necessidades -, ao invés de puni-la, essa tendência antissocial pode ser eliminada. O tratamento da atitude antissocial, nesse cenário, corresponde a fornecer à criança provisão ambiental - o que não é um tratamento psicanalítico, ainda que seja feito com o entendimento psicanalítico do sintoma -, com a qual a criança poderá redescobrir um ambiente confiável no qual poderá experimentar seus impulsos, testando o ambiente, o que certamente causará um impacto relacional no terapeuta, que deverá, então, estar preparado para suportar esse impacto:
De acordo com a teoria apresentada neste estudo [da origem da atitude antissocial], é o ambiente que deve dar nova oportunidade à ligação egoica, uma vez que a criança percebeu que foi a falha ambiental no apoio ao ego que redundou originalmente na tendência antissocial. (Winnicott, 1958/2000, p. 147)
Sempre que possível, isso deve ser feito. No entanto, se o comportamento antissocial acaba se instalando, seja pela falta de resposta adequada do ambiente, seja pelos ganhos secundários imediatos, reiterando-se no tempo, é mais difícil, geralmente impossível, reverter esse modo de ser, dado que, por um lado, o antissocial tem confirmada a ideia de que não pode contar com o ambiente, seja porque a compensação imediata mostra-se de valor emocional mais seguro do que uma “suposta confiabilidade no ambiente” (que sempre pode ser duvidosa, dado que já falhou outras vezes, além de não fornecer algo imediato, permanente e objetivo, para o indivíduo). Assim: “Não podemos esperar curar muitos daqueles que se tornaram delinquentes, mas podemos esperar compreender como prevenir o desenvolvimento da tendência antissocial” (Winnicott, 1958/1983b, p. 30).
O antissocial manifesto põe em risco a vida social e os agrupamentos, cabendo, então, aos membros saudáveis da sociedade e àqueles que ocupam lugar de comando agir para separá-los dos grupos, limitá-los em sua ação (às vezes de modo coercitivo) e mesmo explicitar (interpretar) seus motivos emocionais, tanto em termos privados quanto em termos públicos. Antissociais manifestos já consolidados nesse modo de ser são, em grande parte, intratáveis em termos psicoterápicos (mas, se fossem, seria na direção de devolver a eles a possibilidade de confiar, primeiro, em alguém e, depois, nos ambientes e lugares em que vivem, com base na relação pessoal psicoterapeuticamente estabelecida). Reconhecendo a dificuldade, por vezes, impossibilidade, trata-se de tentar, no que se refere aos objetivos sociais, impedir que ajam, bem como expor, de forma privada e pública, sua inconsistência e seus motivos inconscientes que estariam na origem de suas ações.
No caso dos antissociais ocultos, a mesma coisa, deve-se tornar explícita a identificação com a autoridade sem o conteúdo que sustentaria essa autoridade (“moldura sem o senso do quadro”), deve-se expor que essa identificação é um mecanismo de defesa contra a insegurança e os sentimentos de fragilidade. Está aí uma grande parte da luta a ser travada em favor da democracia, para protegê-la dos antissociais.
No entanto, o campo de ação social está, na verdade, dirigido muito mais ao grande número de pessoas de organização psíquica “indeterminada” do que no combate ao antissocial. A ação sobre estes recai, por um lado, na exposição do mundo afetivos dos antissociais manifestos e na exposição da identificação imatura dos antissociais ocultos e, por outro, no trabalho de apoio aos diversos modos de sustentação ambiental confiável que podem fornecer as condições de possibilidade aos “indeterminados” de confiar nas instituições sociais, em seus agrupamentos, via relações interpessoais de confiança.
Evidentemente, o trabalho mais eficiente na busca da democracia, em termos de práticas de ação social, corresponde ao apoio (eleição e defesa) de pessoas saudáveis para ocupar postos de coordenação e comando social, tendo em vista a possibilidade de criar lares comuns confiáveis e, então, deixar que o desenvolvimento emocional saudável ocorra ao longo do tempo.
Considerações finais
Cabe, ainda, fazer uma ressalva importante na consideração dessa argumentação que afirma que a formação das pessoas com comportamento autoritário e antissocial está marcada pelo medo da Mulher e pelo abandono (e/ou deprivação), lembrando que há várias outras determinantes nesse processo de formação do caráter, dos valores da lei moral nos indivíduos, várias formas de frustração, opressão e submissão, entre elas, a sensação de injustiça quando a pessoa observa as dificuldades da vida em família ou no trabalho, que concorrem para a produção dos fenômenos que estamos analisando. Tal como tem sido considerado em quase todos os ramos da ciência, os fenômenos são sempre polifatorialmente determinados (nunca havendo apenas uma causa como a sua explicação, o que evita um tipo de raciocínio causal linear). Do mesmo modo, por exemplo, que a gênese do autismo não pode ser reduzida a determinantes genéticos ou ao ódio inconsciente da mãe, ou ainda às determinantes transgeracionais (mas a uma soma conjuntural e específica desses determinantes, em cada caso), também não é possível considerar que o ditador, o pequeno fascista ou o zé-ninguém covarde e autoritário são fruto apenas do medo da Mulher ou do abandono na infância.
Certamente, nem tudo advém do abandono (deprivação) e do medo da Mulher, ainda que estes fatores devam ser considerados. No entanto, a compreensão desses determinantes afetivos na história de constituição dos indivíduos pode levar não só a aprofundar o entendimento das lógicas irracionais que animam certas discussões políticas, a compreender não propriamente a racionalidade, mas sim a própria irracionalidade com seus argumentos sustentados no campo dos sentimentos e reações afetivas, como também pode servir para pensarmos todo o campo das políticas públicas de cuidado com a educação e com a saúde mental, criando condições para evitar que esses fatores psicopatogênicos (instabilidade ambiental primitiva, gerando medo da dependência ou da Mulher, dado que estas não são, primariamente, confiáveis; abandono e deprivação em períodos precoces - às vezes, nem tão precoces - do desenvolvimento) tenham um peso significativo nos planos de ação do Estado visando a construção (ou a defesa) de uma sociedade democrática.