O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez. (Lispector, 1998, p. 40)
Ah, eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente … A criati-
vidade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe, mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida … o terror da franqueza seja determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criadora inconsciência do mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.
(Lispector, 2016a, pp. 520-521)
Que seria de mim se não fosse Ângela?
a mulher enigma que me faz sair do nada em direção à palavra.
(Lispector, 1999, p. 119)
O escritor mineiro Guimarães Rosa afirmou certa vez que lia Clarice Lispector não para a literatura, mas para a vida. Clarice não representa a chamada
“realidade”, adornada em linguagem literária, mas busca, pela palavra escrita, ser vida no seu sentido mais fundo. (Rosenbaum, 2011, p. 217)
Há anos, precisamente uns 40 anos, comecei, muito timidamente, a ler Clarice Lispector, sem contar que na minha adolescência havia folheado algumas páginas de A paixão segundo G.H. Confesso que suportei alguns parágrafos longos, pois fui logo em seguida acometido de angústia, medo, sentimento de confusão mental e tive o que não é raro quando se adentra em seus textos - uma mínima crise de labirintite. O tempo foi fluindo, e nunca mais tive coragem de voltar à leitura daquela “bruxa” genial. Clarice não se lê impunemente, é daqueles autores que é impossível consumir, no sentido voraz e intelectual: ler Clarice é estar disponível, internamente, a intimistas e provocadores do pensar sobre as alegrias e os infernos humanos.
Clarice, neste meu improviso, talvez um tanto pretensioso, diante da comunidade psicanalítica, traz uma enorme contribuição ao “fazer analítico”, quando este a todo o tempo está envolvido com a questão que une a literatura e a psicanálise: a busca da palavra, a procura de uma linguagem para oferecer aos leitores (escritores e analisandos) uma possibilidade de mergulhar na beleza e na angústia humana.
estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida, porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser. Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável. É difícil perder-se. É tão difícil, que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me era já ter uma ideia de pessoa e nela me desgastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver. (Lispector, 2009, pp. 9-10)
Nesses fragmentos apresento questões a serem refletidas por nós, psicanalistas: primeiro, o clamor, a angústia, o desespero do personagem evocando a capacidade do analista de estar disponível para aceitar, acolher e exercer a função de “continência” e “paciência” com estados esquizoparanoides, angústias de fragmentação de um ser humano incapaz, nesses momentos, de se albergar, “a loucura é vizinha da mais cruel sensatez” (citação acima). Aqui faço uma ressalva: quando me refiro acima à palavra “personagem”, quero realçar que personagem penso ser uma palavra que denuncia autor-leitor-analista-analisando, na medida em que todos estamos implícitos na riqueza cruelmente verdadeira da narrativa de Clarice. Clarice é ela, somos todos nós, animais-humanos, compostos de uma natureza ainda misteriosa, mas que mostra na vida cotidiana seus aspectos neuróticos, perversos e psicóticos. Não me refiro a diagnóstico, mas ao que a própria autora denominava “instantes já” ao longo de toda a sua obra, assim como os psicanalistas usam o termo: aqui e agora na(da) sessão.
Tanto em todos os textos da nossa autora como na sala de análise estão implícitos escritor-narrador-leitor, assim como no atelier de psicanálise (Bion, 1978) narrador-analisando/analista leitor/analista leitor de si mesmo/analisando releitor… Diálogos entre as partes, no espaço da transferência/contratransferência que a cada momento ou sessão se transforma ou não na capacidade criativa dos pares. A cumplicidade analítica desenvolve-se na trama inconsciente da transferência-contratransferência, reforço.
Clarice em seu conto “Encarnação involuntária” é enfática quando escreve: Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la… preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente…” (2016b, p. 428). Clarice já intuía o perigo da contraidentificação permanente, o que levaria o escritor e o analista a não mais discriminarem o que é seu e o que é do outro. A técnica da escrita de Lispector, ou o que passarei a chamar de “método de apreensão da realidade sensorial e psíquica”, leva-me a pontuar o objetivo deste texto: o que os psicanalistas têm para aprender com o “método clariciano”, no sentido de colaboração efetiva ao exercício do “fazer analítico”.
Na minha experiência clínica de décadas, a cada dia fico convencido de que é imprescindível, na formação permanente de um psicanalista, que a literatura seja um subsídio maior (talvez seja exagero meu) para que possamos, antes de ler as teorias, ler as pessoas, na sala de análise. Clarice, nesse sentido, impressiona quando dos fatos do cotidiano apreende, de fora para dentro, a intimidade do Ser, suas angústias, sofrimentos, alegrias, terrores, afinal, as nuances da vida animal-humana dos seres vivos. Diga-se de passagem, como a autora observava, além de ter uma relação afetiva com os animais inferiores, com o antes do humano e com hipóteses sobre um funcionamento primitivo dos civilizados. Em seu texto Água viva, Clarice (2019) já nos remete ao profundo do Ser, já no primeiro parágrafo, para a constante pesquisa do Inconsciente, quando escreve:
É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor da separação, mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio [“louca, mas não doida”, o grifo é meu], já estudei matemática, que é a loucura do raciocínio -, mas agora quero o plasma - quero me alimentar diretamente da placenta [lembro W. R. Bion em Domesticando pensamentos selvagens (1977/2016)]. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar, pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena. (2019)
É inevitável, pelo menos para mim, mas acho que também para todos nós, psicanalistas, não apreender e fazer uma conexão com a experiência analítica, assim como uma recomendação a todos nós: se quisermos entrar e experimentar “o mais escuro uivo humano da dor…”, talvez concordemos com Bion (1977/2016). Conforme provoca e lembra nossa autora, quando escreve: “O que estou sugerindo é que, além dos estados de mente consciente e inconsciente, pode existir algum outro. O mais aproximado que consigo, no sentido de oferecer a isto um título provisório, seria ‘Um estado de mente inacessível’” (p. 67). E aí, Clarice escreve:
É que agora sinto necessidade de palavras - e é novo para mim o que escrevo, porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é minha quarta dimensão… a palavra muda no som musical … para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes já. (2019, p. 8)
Nós, psicanalistas, quando deparamos com a falta de inspiração e momentos de não-saber, no “instante já”, por intolerância e vergonha em nós mesmos, tiramos da “cartola mágica” lembranças encobridoras, memórias, teorias, linguagem de psicanalês.
Retomo a preciosidade, a humildade e a coragem da pesquisa do íntimo humano da nossa “analista selvagem”:
Que mal tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo… Quero escrever-te como que aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras como quem pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra… será que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim. (2019, pp. 10-11)
Os escritores, os poetas, Freud já afirmava que eles chegaram antes. Nesse momento estou interessado em pensar Clarice, autora, escritora, personagem, angustiada e contente, pois seu preferido tema durante toda a sua obra sempre foi “brincar com os paradoxos, com oxímoros, com a dialética estonteante e profunda”. Clarice é para se ler, ler, reler, reler. Friso aqui, após essas citações acima, como Lispector, além de uma investigadora permanente da alma humana, traz uma questão a ser considerada por todos nós, psicanalistas. Necessárias recomendações técnicas que penso acrescer à teoria de observação analítica, como também à técnica, no sentido da postura, do desenvolvimento da capacidade criativa e artística do estilo analítico. Sua intuição, suas “conjecturas imaginativas” e seu amor e dedicação constante para conhecer o animal-humano através dos aspectos da linguagem, da ontologia e de sua inspiração filosófica.
Em seu belo livro de 2021, Jayro Schmidt escreve, logo na Nota do Autor:
Agora se sabe, pela voz da própria autora, por que sua obra é para poucos, não importam quais sejam as condições existenciais, obra que exige disponibilidade mental - obra para raros.
Então, quando comecei esse estudo estava ciente de que deveria entrar em algo luminoso, com refulgência de vitral - nave claríssima de mistérios. Se não fosse isso, Clarice não teria dito que a arte de sua escrita vinha “da elaboração inconsciente, que aflora à superfície como uma espécie de revelação”. (Schmidt, 2021)
Essa citação mais uma vez reforça a minha ideia, neste escrito, da necessidade de realçar o estudo da obra clariciana, tanto para os jovens quanto para os experientes psicanalistas, como disciplina indispensável à infinda formação analítica.
Há um fragmento precioso de Bion tergiversando sobre a sala de análise e, ao mesmo tempo, dando ênfase ao seu “vértice estético-artístico” como ferramenta no trabalho analítico, quando ele escreve:
Sugiro que valeria a pena considerá-lo não como consultório, mas como um atelier. Que tipo de artista é você? É um ceramista? É um pintor? Um músico? Um escritor? Na minha experiência, uma grande maioria de psicanalistas não sabe na realidade que espécie de artistas eles são. (1978, p. 31)
Logo em seguida alguém da plateia pergunta: “Que tal se eles não são artistas?” Bion, de pronto, responde: “Então estão no ofício errado”.
Fragmentos na obra de Clarice à guisa do pensar psicanalítico
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável… Voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive, apenas duas pernas… Estou desorganizada porque perdi o que não precisava?… É difícil perder-se. (Lispector, 2009, p. 10)
O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade. (Lispector, 2009, p. 11)
Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia o caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringiu dentro de minha pele. Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão. (Lispector, 2009, p. 11)
Improviso 1
Clarice aponta para estados de mente que atravessam o recurso neurótico, “o normótico”. Aconteceu a queda, a desorganização, a não estabilidade habitual do ser humano que vive uma existência sem os requintes ricos e perigosos. Criativos, eu diria, pois aquele que é “doido”, e não “louco”, após o naufrágio, sai enriquecido, ousando a mudança: “E substituirei o destino pela probabilidade”. Análise não é para todos, análise é um convite a descer aos infernos, acompanhado como ousou Dante na Divina comédia. Lispector nos leva a lembrar sempre que o “instante já” da sala de análise, requer coragem para dispensar a “terceira perna”. É um convite para pensar no sentido bioniano, ainda que ambos, analista e analisando, sintam medo, angústia, como também momentos de alegria enriquecedora. Dispensar o destino pela probabilidade é enfrentar o vazio, o silêncio verbal e não verbal, a dor psíquica que se vive quando se deixam de lado as fantasias de onisciência e onipotência, para se experimentar o medo da paixão - transferencial/contratransferencial -, cenário que possibilita o resgate dos afetos, a retirada das máscaras defensivas. Necessário se faz perder-se, somente a desrazão leva à verdadeira subjetivação. Volta-se a poder ser o que se vai sendo, e não uma destinação obediente a um Super Eu severo, como também às ordens de uma civilização aparente.
Não. Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio… meu único nível é viver. Só que agora sei de um segredo. Que já estou esquecendo, ah sinto que já estou esquecendo
…
Para que eu continue humana meu sacrifício será o de esquecer? … Sei que vi - porque para nada serve o que vi … Não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária. Desculpa eu te dar isto, eu bem queria ter visto coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil. Estou tão assustada, que só poderei aceitar que me perdi, se imaginar que alguém me está dando a mão.
(Lispector, 2009, p. 14)
Improviso 2
A autora-narradora nos mostra a importância do viver e do analisar - os psicanalistas não sabem, ou às vezes sentem que a observação das defesas, das fantasias e principalmente do sofrer psíquico exige um tempo longo de observação antes que se possa “interpretar”. O silêncio é uma forma de falar sem falar, é uma postura de paciência antes de buscar uma linguagem que atinja a dor psíquica. Explicar, compreender racionalmente não oferece a “mão” que G.H., no caso, pede. O silêncio traz a pausa da música, e a pausa é musicalidade pré-verbal, é o afeto que passa ao outro coração, que grita para ser acolhido. O outro fala em esquecer, mas a beleza e a dor que o personagem evidencia não merecem esquecimento, pois as pessoas e as partes primitivas do existir humano com que Clarice nos brinda não têm mais espaço para recalques secundários, a simbolização ficou manca ou quase ausente. No texto clariciano podemos refiro a Clarice escrevendo psicopatologia, muito pelo contrário, nossa autora mergulha nas “partes psicóticas” de qualquer ser humano). A nota é de 13 de setembro de 1959:
O contato com pacientes psicóticos é uma experiência emocional que apresenta algumas características precisas, diferenciando-a da experiência de contato mais comum. O analista não se encontra com uma personalidade, mas com uma apressada improvisação de personalidade ou, talvez, com um jeito [mood, no original: estado mental temporário, humor, da nota do tradutor]. É uma impressão de fragmentos… pedaços incongruentes de sorriso… lágrimas sem profundidade, jocosidade sem cordialidade, pedaços de ódio, tudo isso e muitas outras emoções e ideias fragmentadas aglomeradas entre si para apresentar uma fachada lábil … porque não estamos interessados nas estruturas comuns de personalidade para as quais Freud proveu os termos “ego”, “id” e “superego”, estamos interessados nos fragmentos destroçados dessas estruturas, fragmentos que foram juntados, mas não rearticulados. (Bion, 1959, pp. 87-88)
Vejo ser essa caminhada difícil, alegre e angustiante, em que G.H. (Clarice) está conjecturando na busca de ser verdadeira. É só pensar no que ela escreve:
Não era usando como instrumento nenhum de meus atributos que eu estava atingindo o misterioso fogo manso daquilo que é o plasma - foi exatamente tirando de mim todos os atributos, e indo apenas com minhas entranhas vivas. Para ter chegado a isso, eu abandonava a minha organização humana - para entrar nessa coisa monstruosa que é a minha neutralidade viva. (Lispector, 2009, p. 96)
O medo grande me aprofundava toda. Voltada para dentro de mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto … Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão limpo como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar … como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nível da Natureza … e eu sentia com susto e nojo que ‘eu ser’ vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana … Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade - meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata … segura minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua … tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança. (Lispector, 2009, p. 96)
Improviso 3
O fragmento acima se refere ao clímax da paixão - a metáfora da barata. Clarice nos revela questões profundamente submersas quando numa experiência analítica não se desce às nuances da pulsão de morte ou, dito de forma mais atual, das vicissitudes da análise do narcisismo, das partes perversas da personalidade em curso. Fantasias suicidas e homicidas, ódio à própria realidade psíquica, às origens humanas e inumanas do ser. No texto, tanto G.H. como a barata se olham e se descobrem nas afinidades, semelhanças e origens. É conhecida a prevalência atual da depressão no contemporâneo, mas o que é depressão se não a máscara do ódio a si mesmo e à realidade? Suspeito que uma análise aparentemente bem-sucedida só se entenda caso a dupla analítica possa navegar profundamente por ondas submersas da experiência odiosa! Aí está, talvez, a possibilidade de encontrar o amor a si mesmo e aos outros através do perdão.
Benedito Nunes, empreendendo uma abordagem filosófica da obra de Clarice, à qual dedica vários livros, a respeito da metamorfose contida no texto da autora, escreve:
Projetam-se diante dela, em figuras mutáveis, os contrastes inconciliáveis da existência - amor e ódio, ação e inação, violência e mansidão, crueldade e piedade, santidade e pecado, esperança e desespero, sanidade e loucura, salvação e danação, pureza e impureza, liberdade e servidão, o belo e o grotesco, o humano e o divino, o estado natural e o estado de graça, o sofrimento e a redenção, o inferno e o paraíso… G.H. passa por um processo de conversão radical. A experiência do sacrifício de sua identidade pessoal impõe-lhe a dolorosa sabedoria da renúncia, traduzida numa atitude negativa de despersonalização ou “deseroização”… Pela negação de si mesma, ela alcança a sua verdadeira e própria realidade. (Nunes, 1989/2006, pp. 59-60)
Nosso filósofo reúne dessa maneira o caminho de uma análise, claro que inspirado na narrativa clariciana, mas é importante realçar que nós, analistas, devemos ter condições internas, analíticas, autoanalíticas, de navegar junto ao parceiro de trabalho (o analisando). Essa é a contribuição que podemos aceitar, hoje em dia, dispondo-nos a analisar as pessoas na pós-modernidade e contribuindo na formação de jovens analistas. Penso que nunca tivemos maior necessidade de ênfase sobre a clínica psicanalítica, ainda que seja importante a preocupação com a aplicação da psicanálise nas questões que extrapolam nossos consultórios, espaços únicos para preservar e favorecer o verdadeiro “ato analítico”.
Ainda se referindo a questões significativas em A paixão segundo G.H., encontro considerações feitas por Yudith Rosenbaum, quando a autora lembra Clarice:
Desde sua abertura - “A possíveis leitores” - o livro quebra expectativas de um romance tradicional a ser digerido por um leitor passivo: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação do que quer que seja se faz gradualmente e penosamente - atravessando o oposto do que é esperado” … Esse romance [mostra Rosenbaum], que se faz de avanços e recuos, repetições e adiamentos da narrativa (pois a frase de abertura do capítulo seguinte repete a última do anterior), exige do leitor um tipo de desaprendizagem, semelhante ao despojamento que a personagem percorre, para assim poder experimentar uma espécie de “alegria difícil”, que a escritora diz ter vivido com seu livro. (Rosenbaum, 2002, pp. 39-40)
Improviso 4
A trajetória de uma análise não é tão diferente assim, muito pelo contrário. Os momentos que se experimentam nos processos psicanalíticos são preenchidos desse vai e vem, desses instantes de avanços e recuos, claro que premidos pelas resistências e pelo não infrequente pavor (consciente e inconsciente) de abrir sua intimidade no ambiente da dupla. Bion (1965/2004) escreve em Transformações sobre os tais períodos pré-catastróficos/catastróficos e pós-catástrofe, em que o analisando vive, experimenta estados emocionais significativos: ou tenta recuar (apelar para a “terceira perna”), ou atravessar o mar revolto entre rochedos, tal como na Odisseia, ou, afinal, começar a elaborar uma nova forma de funcionamento mental na qual imperem a paciência, a tolerância para conviver com menos aflição nas infindas passagens das “posições esquizoparanoide e depressivas”: paradoxos inevitáveis do que se espera alcançar nos estado de “pessoa formada”. Acrescentaria, no entanto, que, no caso de pessoas já formadas, trata-se de uma expectativa “forçada” da nossa Clarice, pois a feitura e o desenvolvimento do nosso ser-no-mundo estarão sempre em aberto, como as composições musicais modernas e pós-modernas, o que Clarice sabia, advogava e se maravilhava com isso. Após Hiroshima, não há mais espaços para “harmonias clássicas, fechadas”, há uma constante dissonância suportável, criativa e ofertada para “ouvidos corajosos”.
O psicanalista há que encontrar, como na tentativa da nossa autora, uma linguagem atual, fora dos cânones; uma comunicação através da procura incessante da palavra. Como lembra Yudith Rosenbaum,
Porém, pensar a função da literatura em Clarice (aplicando ao fazer psicanalítico, grifo meu) é pensar a dialética entre as funções sádicas e o movimento criativo que almeja a reconstrução do mundo demolido. A escrita clariciana é ela mesma o testemunho de um salto sobre os fragmentos de uma intensa explosão psíquica e criativa. A totalidade da obra talvez seja a única transcendência possível para a luta incansável entre a linguagem e a realidade vivida. (1999, p. 177)
Na esteira dessas considerações, não poderia deixar de ir ao encontro de Wilfred Bion na seguinte passagem de sua obra:
Será que algumas destas “partículas sobreviventes” podem ser evidenciadas naquilo que se pode observar agora na fala humana da pessoa com quem estamos falando, bem como em nós mesmos que produzimos a fala? Esta me parece ser uma das descobertas fundamentais da psicanálise: estados mentais arcaicos, pensamentos e ideias arcaicas, padrões primitivos de comportamento, tudo isto pode ser detectável em pessoas mais civilizadas e cultas, já que, em pessoas mais primitivas, é de se esperar que estejam menos camufladas. (Bion, 1977/2016, p. 53)
É aqui que estou propondo “um método clariciano” para desenvolver ainda mais nossa investigação no sentido de buscar uma linguagem e palavras que possam simbolizar as partículas foracluídas nos traumas mais precoces e na herança biológica dos seres vivos.
Neste momento, por enquanto, usufruindo dos travessões, dos três pontinhos iniciais e finais, dos espaços de silêncio, do ir e vir, voltar, transformar, dos paradoxos e oxímoros, enfim, da forma clariciana de tentar a escrita e a comunicação, forma que atinge seu ápice, particularmente, no livro Água viva, livre de obedecer aos ditames de uma “literatura linear”, e sim vertical e helicoidal, em que o “acorde linguístico” não se fecha, podemos, junto com autores como Bion, em especial, ter a ousadia de falar de uma contribuição metodológica para fazer face aos seres humanos, hoje sofrendo de grande desorganização à procura de Ser e Existir.
Georges Didi-Huberman, filósofo e historiador da arte, num texto em que passeia pelas crônicas de Clarice de uma maneira filosófica e literopoética, aponta: “Que essas Crônicas sejam autoanalíticas significa, antes de tudo, que elas não são autobiográficas … eu não quero contar a minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo publicar autobiografia” (Lispector, citada por Didi-Huberman, 2021, p. 11). Adiante o autor enfatiza:
Lispector busca doar a sua solidão na própria medida em que ela busca compreender, tocar a dos outros. Ela envolve, portanto, algo que não tem nada a ver com um espaço para confissões pessoais: mais precisamente um pensamento das emoções, um saber não convencional - nem psicologia, nem sociologia - fundado sobre a prática da escrita como uma forma de mover o pensamento. Faz falar (enuntiare) a emoção fora de todo fechamento do em mim (en-moi); faz tirar (emovere) o pensamento fora de toda certeza do em-si (en-soi). (Didi-Huberman, 2021, p. 14)
Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam. Minha forma interna é finalmente depurada e, no entanto, o meu conjunto com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes realidades. Não conheço a proi-
bição. E minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda.
E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.
A observação psicanalítica não diz respeito ao que ocorreu e tampouco ao que vai ocorrer, mas sim ao que está ocorrendo… É necessário que toda e qualquer sessão psicanalítica não tenha história nem futuro. Aquilo que é “conhecido” sobre o paciente não tem a menor consequência: ou é falso ou irrelevante… o único ponto de importância, em qualquer sessão, é o desconhecido. O analista não deve permitir que nada o distraia de intuir o pensamento. (Bion, 2000/1959)













