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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.46 no.78 São Paulo  2024  Epub 10-Jan-2025

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v46n78.33 

RESENHAS

PAULA REGO ENSAIOS PSICANALÍTICOS

Cintia Buschinelli1 

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Vencedora do Prêmio Fepal (2002) com o artigo “Interpretação psicanalítica: uma composição dodecafônica”. Editora da revista Ide (2010) e editora associada da Revista Brasileira de Psicanálise (2014-2016). Organizadora do Ciclo de Cinema e Psicanálise na Fundação Cinemateca Brasileira (São Paulo). São Paulo

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Fundação Cinemateca Brasileira (São Paulo). São Paulo

Melícias, Ana Belchior; Ferreira, Ana Luísa; Malpique, Celeste; Vale, Ana Teresa; Ribeiro, Ana Eduardo; Marta, Rita. Portugal: Freud e Companhia, 2024.


Seis psicanalistas encontram uma pintora

Fosse o sentido estético o único papel da arte na cultura e poderíamos dizer que não seria pouco. Basta pensarmos nos nossos ancestrais, homens da caverna, totalmente vulneráveis às intempéries da vida primitiva, que já estavam lá, deixando suas marcas nas paredes de suas cavernas, com desenhos que expressavam sua maneira de viver e que possivelmente também os ajudavam a sobreviver.

Ocorreu-me a pergunta formulada por uma artista: “Será que a arte cura?” Essa pergunta tão certeira sobre a presença da arte em nossas vidas, supostamente adoecidas, propõe uma reflexão que ultrapassa a noção da arte como um estímulo estético para todos nós.

Temos, na ponta da língua, uma resposta afirmativa, pronta para ser dita, sem pestanejar.

Sim, cura.

Mas, se aprofundarmos um pouco mais a pergunta tão singular, que de certo modo retira a arte de seu pleno sabor estético e a situa em um campo terapêutico, poderíamos, de pronto, lançar uma outra pergunta:

Mas de que é que a arte cura?

Como tenho o privilégio de ter uma neta artista, que desde muito cedo na vida mostrava talento em seus desenhos infantis, resolvi ir direto à fonte, interrogando-a.

- Luna, a arte cura? - perguntei.

Ela, de imediato, respondeu:

- Sim, cura - e continuou -, mas também adoece.

E completou: - Quando estou no processo de criar, já com a tela, as tintas e os pincéis na mão, tenho uma ansiedade e angústia tão fortes, que só desaparecem quando terminei o trabalho. Muitas vezes fico feliz com o resultado, e em outras, nem tanto, mas a angústia desapareceu.

A partir desse comentário vindo da fonte, podemos pensar que a arte para o artista pode ter um duplo caminho: o de criar a dor e, simultaneamente, encontrar o remédio para essa dor.

E para nós, meros observadores da arte, qual seria a função dela em nossas vidas?

Entre curar e adoecer, que acredito experiências próprias do artista, eu escolheria um outro sentimento intensíssimo que a arte é capaz de provocar: o de estranhamento.

A arte nos toca de uma maneira que raramente conseguimos explicar. Vai muito além do sentimento de bem-estar que a visão de algo belo pode nos trazer. Temos um sentimento de estranhamento profundo que as palavras não conseguem alcançar.

Um sentimento de impacto, surpresa, desconforto, alegria, dúvida ou o que quer que seja, deixando entrever que algo nos aconteceu. Sempre saímos modificados quando entramos em contato com uma obra de arte.

Seria esse sentimento, que a arte proporciona, a cura de algo em nós?

Cura de uma dor, de uma ignorância a nosso respeito, de um estreitamento de nosso horizonte emocional, de uma ausência de sentido, cura momentânea de nossa solidão…

A arte, pelo estranhamento que provoca, nos faz sentir compreendidos.

Sobre o sentimento de estranhamento, não há como nós psicanalistas não saltarmos para 1919, e aterrizarmos em “O estranho”, texto ímpar de Freud.

Cito-o, a seguir:

Quando passamos a rever as coisas, pessoas, impressões, eventos e situações que conseguem despertar em nós um sentimento de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida, a primeira condição essencial é obviamente selecionar um exemplo adequado para começar … (Freud, 1919/1976)

Aqui, nesse momento em que mergulhamos na obra de Paula Rego, muito desse sentimento de estranheza toma conta de nós. Particularmente, esse sentimento indefinível, que tem a capacidade de nos impregnar com algo pouco afeito a palavras, mas um composto de sensações que levamos conosco e que não nos abandona facilmente.

E refletindo nesse sentimento estranho, revendo minha experiência como observadora, posso garantir que esse estranhamento vai sendo absorvido sensorialmente e permanece em algum lugar de nossa memória afetiva.

E mais, essa permanência da obra em nós, penso agora, tem o selo do que efetivamente seria arte. Levamos a obra em nós, mas a tela que observamos, que ficou intacta, presa na parede ou impressa num livro, continua como fonte permanente e ininterrupta de produção de sentidos. Todas as vezes que voltamos a observá-la, o efeito de estranhamento se produz.

Talvez perante a pergunta inicial, perante a resposta de Luna e perante a obra de Paula Rego, eu tenha neste momento compreendido quando uma tela pode ser considerada uma obra de arte: quando sua inesgotável capacidade de produzir estranhamento se faz presente.

Acredito que nem o artista sabe como produziu arte, nem nós sabemos o que é que existe naquele objeto, que, apesar de tantas e tantas vezes por nós observado, continua produzindo um sentimento de algo que é estranho.

Resta relembrar que para nós, observadores, ela é realmente uma dádiva.

E as autoras desse livro que ora apresento parecem debruçar-se sobre essa dádiva e sobre esse estranhamento. Ao término da leitura desse livro que você tem em mãos, caro leitor, não por acaso me veio em mente uma das obras mais originais e significativas da literatura ocidental, escrita pelo dramaturgo e romancista italiano Luigi Pirandello.2

Refiro-me a Seis personagens à procura de um autor.

Na antítese do texto de Pirandello, nesse caso em particular, temos a felicidade de partilhar não a procura de seis personagens por um autor, mas sim o encontro de seis psicanalistas com uma pintora.

Paula Rego, a artista cujo olhar expressivo e corajoso sobre a opressão da vida íntima feminina veio à luz em um período político de combate à liberdade de pensamento, receberá o olhar e reflexões atentas das seis psicanalistas.

Com base em um profundo encontro entre cada psicanalista e a obra da pintora, notamos que foram produzidos seis ensaios que oferecem a nós, leitores, uma miríade de pontos de vista que abrem caminho para construirmos nossa própria visão da mulher, pintora e ativista Paula Rego.

Ana Belchior Melícias, editora e uma das autoras desse conjunto de escritos, inaugura o livro com o ensaio “A polissemia do feminino”.

Ao abrir o caminho para os textos que vêm a seguir, ela se apoia no documentário Paula Rego: histórias e segredos, dirigido por Nick Willing, filho de Paula Rego.

As entrelinhas da história da vida de Paula Rego são costuradas por Ana com agulha e linha psicanalíticas, produzindo para nós, leitores, um bordado com cores fortes e simultaneamente delicadas, ou seja, uma produção psicanalítica por excelência. Encontramos amalgamada a vida da pintora e a mente psicanalítica de Ana.

Não é pouco, caro leitor.

Ana Luísa Ferreira, através do ensaio “A ambiguidade e o feminino”, destaca as elaborações teóricas dedicadas à compreensão da origem e construção das representações primitivas e arcaicas que a pintura de Paula Rego propõe. Ana Luísa destaca o quanto a indiferenciação menina-mulher está presente na obra da pintora.

Já Celeste Malpique observa a obra de Paula como se essa exalasse um certo humor negro, além de observar nas pinturas da artista um tanto de perversidade feminina.

Ana Teresa Vale se debruça sobre o “Feminino, sexualidade e aborto” destacando o quanto a obra de Paula traz à luz, de um modo pictórico, essa vivência tão carregada de ambivalências geradas pela experiência do aborto. Esse, um tema do universo feminino que jamais saiu de cena.

Ana Eduardo Ribeiro, em “O ciclo da virgem”, propõe reflexões sobre a estética do grotesco. Observa como são perturbadoras essas pinturas de Paula, pois revelam o que há de mais íntimo no universo feminino. Algo por vezes negado ou subtraído.

Rita Marta põe foco no sentido da bissexualidade na esfera do feminino, que em Paula Rego surge em pares ora separados, ora amalgamados, como observa a autora.

Por fim, encontramos para encerrar a leitura uma extensa e profunda entrevista que Ana Melícias realiza com a pintora.

Uma entrevista que tem como subtítulo a palavra “Conversa”, indicando o caráter coloquial e afetivo do diálogo entre a psicanalista e a pintora.

Uma das riquezas desse livro está justamente em mostrar como uma obra de arte chega a cada observador mesclada pelo psiquismo deste. Assim, o ensaísta, ao refletir na obra de arte, se dá a conhecer ao leitor sem disfarce. Esse é o caso das psicanalistas cujo pensamento está presente em cada uma das frases desses ensaios.

Para concluir, cabe lembrar que é um livro sobre sete personalidades: Paula Rego, Ana Belchior Melícias, Ana Luísa Ferreira, Celeste Malpique, Ana Teresa Vale, Ana Eduardo Ribeiro, Rita Marta.

Você, leitor, assim como eu, terá um grande prazer em conhecê-las. Boa leitura!

2Luigi Pirandello (1867-1936), prêmio Nobel de Literatura em 1934, dramaturgo, poeta e romancista italiano, foi um grande renovador de teatro, com profundo sentido de humor e originalidade.

Referências

Freud, S. (1976). O estranho. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 273-318). Imago. (Trabalho original publicado em 1919) [ Links ]

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