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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.2 Rio de Janeiro jun. 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

A perversão feminina e o laço social na atualidade

 

The female perversion and social bond

 

 

Denise Teles Freire Campos

Psicanalista; Doutora em Psicopatologia pela Université de Provence; Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu da PUC-Goiás

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo discutir a perversão feminina no campo da psicanálise e sua relação com o laço social face às transformações da cultura na atualidade, sobretudo a "feminização do corpo social" e o "declínio da função paterna". O texto retoma os fundamentos da perversão como modo de economia do desejo, a formulação freudiana do fetiche como o substituto do falo materno e a permanência de uma identificação primária com a mãe para afirmar a existência de uma vertente perversa em mulheres. A ideia de um "mundo perverso" é uma metáfora má para o entendimento da perversão feminina. O que nos propomos a discutir é como, para algumas mulheres, no processo de identificação (Freud, 1905; 1921), a lógica da identificação como internalização dos atributos do objeto, então na dialética do ser o objeto, é trocada pela lógica do ter o objeto (lógica da identificação como posse do objeto e tentativa de permanecer na posição de falo do Outro), instalando a voracidade do gozo neste ter.

Palavras-chave: psicopatologia; perversão; feminino; psicanálise; laço social.


ABSTRACT

This work discusses the "female perversion" in the psychoanalysis field and its relation with the social bond face to the current culture transformations, especially the "feminization of the social world" and the "decline of the paternal function". The text takes up the fundaments of the perversion as way of saving of the desire, the Freud's theory of fetish as the substitute to the maternal phallus and the permanence of a primary identification with the mother, to affirm the existence of a perverse strand in women. The idea of a "perverse world" is a bad metaphor to understanding female perversions. What we purpose ourselves to discuss is how, to some women, in the identification process (Freud, 1905; 1921), the identification's way as internalization of the object's attributes, then in the dialectics of "being" the object, is replaced by "having" the object (The identification's way as possession of the object and the attempt of remaining in the position of phallus of Other), installing the voracity of enjoyment in this "having".

Keywords: psychopathology; female perversion; social bond; psychoanalysis.


 

 

Apesar de ser rejeitada por muito tempo, a perversão feminina é um tema que voltou a ser discutido no campo da psicanálise nas ultimas décadas. Dois desenvolvimentos alteraram o contexto destas discussões. Em primeiro lugar aparece, depois de Freud e especialmente a partir de Lacan, uma nova forma de considerar esta "formação", atribuindo-lhe o estatuto de "estrutura" (Dor, 1991a; Fédida, 1991). E isto coloca o problema de identificar o funcionamento perverso em seus traços e sintomas. Sobretudo a tarefa se torna mais ingrata, tanto pela "polimorfia exuberante dos sintomas" no perverso, quanto por sua proximidade com a neurose obsessiva e com a histeria em determinados traços. Em segundo lugar, em alguns momentos este tema reaparece associado às transformações da modernidade, particularmente no período mais recente desta, a atualidade. Não é por acaso que a atualidade é marcada, segundo a sociologia (Giddens, 1993), pela "feminização do corpo social". A leitura apressada de alguns eventos da realidade cultural mais recente pode induzir um pensamento simples que associa às "mudanças culturais" as chamadas "novas formas de subjetivação", entre elas a perversão feminina.

O que se quer aqui sustentar é uma posição clínica para além da ideia de que o interesse pela perversão estrutural nas mulheres se tornou plausível ou possível por causa da "pós-modernidade" e seus poderosos mecanismos de perverter os corpos e subjetividades. A hipótese é atrativa: de um lado um universo cultural homogeneizado pela massificação e globalização, no qual não faltam apelos hedonistas, individualistas, consumistas etc; de outro lado se "observa" uma "feminização do corpo social", entendida por alguns autores como sinônimo de ocupação da esfera pública pelas mulheres. A esta feminização soma-se o chamado "declínio da função paterna". Então, surge uma fórmula, encontra-se aí uma "explicação" necessária para o "reaparecimento" da questão clínica da perversão feminina.

Necessária sim, mas não suficiente para o desenvolvimento do processo clínico. Tal postura de "sociologizar" os destinos da libido, alinhando as "novas formas de subjetivação" às transformações históricas, não é suficiente para examinar a perversão, menos ainda a perversão feminina. Em toda evidência é importante afirmar que a atualidade criou mecanismos poderosos para perverter os corpos e as subjetividades. Porém esta colocação sem a referência ao material clínico poderia promover a ideia de que a perversão, como estrutura, não existiria nas mulheres antes do período mais recente da modernidade, antes da cultura da atualidade.

O que proponho aqui é uma linha de investigação que segue o princípio freudiano da primazia da clínica sobre as "verdades inabaláveis da teoria". Com relação ao laço social, mais importante que apontar a ocupação do espaço público simbólico pelas mulheres, em busca de um significante do feminino que não se reduzisse à maternidade, é apontar que a ciência (como discurso do mestre e da verdade) promove ou convida ao achatamento do desejo no imaginário. Esta abordagem permite discutir como o problema das "subjetividades" - perversas ou não - está intrinsecamente associado aos processos de identificação, que, por sua vez, instauram a dialética do ser e do ter, tanto no contexto da afirmação de uma perversão estrutural nas mulheres, quanto no contexto de um real da "feminização do corpo social". Por que não dizer "feminização do laço social"?

Ao apresentar a "teoria dos quatro discursos", Lacan ([1969-1970] 1992) propõe um modelo, por que não dizer um "paradigma", para os discursos que permitem ou engendram o laço social. Este modelo articula um sujeito e um significante pelo qual ele se apresenta ao significante de um Outro perdido; e um discurso deste mesmo sujeito face aos substitutos do Outro. Os laços sociais possíveis, dentre os quais está a análise (a cura analítica), constituem o espaço no qual cada sujeito, através de seu sintoma, expressa sua singularidade. Podemos pensar que estes laços sociais se inscrevem e contribuem na produção daquilo que Freud chamou de civilização, como sinônimo de cultura. É interessante notar que Freud nunca negou o peso de uma realidade no desenvolvimento libidinal de cada um em particular. Ao contrário, os destinos libidinais de figuras parentais jogam seu peso nas identificações operadas na saída do complexo de Édipo. Aqui pesa mais o real da cultura do que o "real" da materialidade objetiva. Também em Lacan (1969-1970) a subjetividade não é um elemento etéreo, imanente:

Para ser eficaz, nosso esforço, que é, como sabemos perfeitamente, uma colaboração reconstrutiva com aquele que está na posição do analisante, a quem permitimos, de certa maneira, que enverede pelo seu caminho [...] não deve fazer-nos esquecer que a configuração subjetiva tem, pela ligação significante, uma objetividade perfeitamente localizável, que funda a própria possibilidade de ajuda que trazemos sob a forma da interpretação (Lacan, [1969-1970] 1992: 82).

Porém, ao mesmo tempo, ao analisar a "alienação" (Lacan, [1964] 1973), a advertência é incisiva: se a psicologia e a sociologia se dedicam a capturar as relações entre os seres e entre estes e o "real" da cultura (as estruturas sociais também incluídas), para a psicanálise esta captura de um imaginário socialmente tangível não é suficiente para dar conta da explicação das motivações humanas, a "psicanálise nos lembra que a psicologia humana pertence à outra dimensão" (Lacan, [1964] 1973: 231).

Há pelo menos um consenso teórico com relação à "cultura da atualidade" em termos da aceleração do ritmo da mudança e da fragmentação das instituições e dos laços sociais. Se a primeira característica se apresenta de certo modo como irrefutável, a segunda é objeto de intenso e complexo debate. Que há um desgaste, crise, reordenamento das instituições modernas, dando espaço a recombinações (para usar um termo caro à antropologia), à produção de micromodelos, isto parece inegável. Contudo, nenhum dos chamados "novos modelos" se impõe como modelo. Estas teses casam bem com a ideia de uma polimorfia sexual e relacional como legítimas e questionam a noção mesma de perversão.

Assim, em laboriosa colaboração com os autores que afirmam a feminização do social, a fragmentação dos laços sociais e o declínio da função paterna, nos ocuparemos em apontar que a questão do feminino ("n'est pas toute") não está toda nos movimentos do imaginário atual. A ideia de um "mundo perverso" é uma metáfora má para o entendimento da perversão feminina. O que nos propomos discutir é como, para algumas mulheres, no processo de identificação (Freud, [1921] 1987), a lógica da identificação como internalização dos atributos do objeto, então na dialética do ser o objeto, é trocada pela lógica do ter o objeto (lógica da identificação como posse do objeto e tentativa de permanecer na posição de falo do Outro), instalando a voracidade do gozo neste ter.

 

A CONCEPÇÃO FREUDIANA DO FETICHISMO

Em seu texto dedicado explicitamente à questão do fetichismo, Freud ([1927] 1995: 180) alerta para a simplicidade do significado do fetiche: "o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que outrora o menininho acreditou e a que [...] não deseja re-nunciar". Assim, o fetichismo é tido como a recusa da percepção da diferença anatômica entre os sexos, ou seja, recusa da percepção de que a mãe não tem pênis.

A visão do corpo nu de uma mulher adulta (e em especial do corpo nu da mãe) não é suficiente para que a criança acredite que ela não possua um falo. Dentre as vias possíveis, a criança pequena, seja ela do sexo masculino ou feminino, pode desenvolver uma rejeição da castração materna. No entanto, a percepção da ausência de pênis no corpo nu da mulher causa um conflito com o seu desejo de possuir uma mãe fálica. Assim, ela cria um substituto do falo materno, fazendo um compromisso entre a angústia da percepção e o desejo.

A estrutura "fetichista" pode ser então compreendida como uma dada configuração resultante da dinâmica recíproca entre complexo de castração e complexo de Édipo. Uma configuração na qual se distingue inicialmente um processo de divisão do ego, resultante do momento em que o ego deve se confrontar ao reconhecimento de um perigo "real" (ameaça de castração) e renunciar à satisfação instintual, ou rejeitar a "realidade", convencer-se de que não há perigo e continuar a satisfação. Em alguns casos, porém,

a criança não toma nenhum destes cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente [...]. Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; pelo outro, no mesmo alento, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico (Freud, [1940 [1938]] 1985: 309).

A ameaça "da realidade" à qual Freud se refere é a ameaça de castração no menino, e as duas tendências terão sua cota através de uma solução de compromisso (entre a angústia da percepção e o desejo): o instinto pode ser satisfeito e a "realidade" respeitada, ao preço de uma fenda no ego. Esta operação permite que a referência do pênis no corpo masculino (pois se trata aqui do menino) seja preservada, ao mesmo tempo que ele transfere a importância do pênis da mãe para outro lugar do corpo feminino. Assim, o menino reconhece a castração da mãe, sem desistir da mãe-fálica e da satisfação a ela associada. Deste modo, o menino "criou um substituto para o pênis de que sentia falta nos indivíduos do sexo feminino, o que equivale dizer, um fetiche" (Freud, [1940 [1938]] 1985: 311).

O substituto do falo criado pela criança, nesse momento, vem ocupar o lugar da angústia, ou seja, a angústia da castração, fazendo com que o sujeito permaneça em um estado primário do seu desenvolvimento sexual. A obtenção do prazer não se dá com o objeto, posto que este foi substituído por outro, mas sim na fantasia, onde o objeto permanece inalterado. O aspecto essencial da angústia da castração "consiste no fato de que, pela primeira vez, a criança reconhece, ao preço da angústia, a diferença anatômica entre os sexos" (Nasio, 1995: 13).

O substituto remete ao objeto, é através dele que o objeto se faz presente, mas não é a fonte do prazer, senão o que ele representa. Entretanto, segundo Freud ([1905] 1987), existem graus diferentes de fetichismo que vão desde a normalidade, como nos casos de amor, nos quais os amantes trocam pequenos pertences como forma de se fazerem presentes, aos casos ditos patológicos, aqueles em que o anseio pelo fetiche se fixa, ocupando o lugar do alvo sexual normal, e também se desprende da pessoa e se torna um único objeto sexual.

Tal configuração somente é possível porque, segundo Freud ([1927] 1995), não se trata de um recalcamento, no sentido exato, mas de uma recusa da realidade, ao preço de uma divisão do ego: a percepção continua a existir, mas é alvo de uma ação enérgica de rejeição. Esta recusa se refere, em primeiro plano, à recusa em reconhecer a diferença entre os sexos (Aulagnier-Spairini, 1990).

Assim, a formulação freudiana pode ser lida mais claramente: o fetiche é o substituto do falo materno.

 

O FETICHISMO COMO PARADIGMA DAS PERVERSÕES

Uma questão retomada por Clavreul (1990) aponta que o reconhecimento da ausência de pênis na mãe ocorre, tanto para a menina quanto para o menino, sob o fundo de uma fantasia partilhada da presença de pênis em todos os seres. Assim, um ponto central da castração é o da aquisição do saber sobre a ausência, aquisição que se faz ao preço de intensas lutas internas. Deste modo, um aspecto fundamental do reconhecimento da diferença entre os sexos está na descoberta, pelo sujeito, qualquer que seja seu sexo biológico, de que sua posição subjetiva anterior repousava principalmente num saber errôneo, "saber enganador":

e essa descoberta é plena de ensinamentos a respeito do que é a fragilidade de uma posição subjetiva, pois se trata não apenas de ter de conhecer uma particularidade anatômica singular mas contingente, mas também de ter de integrar o fato de que apenas a ausência pode ser causa do desejo (Clavreul, 1990: 127).

Exatamente este ponto constitui, para o autor, a particularidade da formação perversa, pois para o perverso não é uma falta que é a causa do desejo, mas uma presença (o fetiche). Assim, a descoberta da diferença entre os sexos deveria ser a ocasião de uma reinterpretação relativa à causa do desejo e "definitivamente, esta reintegração faltou ao perverso" (Clavreul, 1990: 127). Assim, para o perverso coloca-se sempre a necessidade de transgredir uma lei, ou, para além disso, ele recusa a "lei" da castração para tentar substituí-la pela lei do seu desejo. Dessa forma, o objeto-fetiche constitui a presença que o perverso deseja impor para anular a ausência (e o reconhecimento da ausência como causa do desejo).

Por tal, vários autores (Rosolato, 1990; Valabrega, 1990; Perrier [1967] 1990; Granoff & Perrier, 1991) não hesitam em propor o "modelo" fetichista como paradigma teórico importante para a compreensão das perversões. O que não constitui uma posição freudiana, segundo a qual o fetiche não corresponde à repressão de um fragmento do id pelo ego e a serviço da realidade, nem ao "desligamento" de um fragmento de realidade, mas sim a um processo de divisão do ego.

A tese que diz que o fetichismo pode ser considerado um paradigma deve ser sempre tratada com uma grande flexibilidade, posto que não parece claro em Freud, segundo nosso ponto de vista e ainda de outros, que ele seja aplicável somente às perversões. Em um texto dedicado exatamente ao estudo das perversões sexuais a partir do fetichismo, Valabrega (1990) inicia seu argumento afirmando a estrutura distinta do fetichismo e seu "pertencer indiscutível às perversões sexuais"; no entanto, finaliza ampliando a importância do mesmo em outros quadros. Rosolato (1990) afirma que o fetichismo pode ser tomado como ponto de referência em outras patologias e tal "ampliação" se justifica por uma ênfase do mecanismo de splitting do ego como estrutura que deve ser melhor investigada.

Podemos então retomar o que constitui um "modelo" do fetichismo, composto de três elementos, a saber: a sobrevivência fantásmica do pênis da mãe; uma recusa, como mecanismo que permite que a diferença entre os sexos seja, ao mesmo tempo, negada e reconhecida; e uma divisão do ego, que permite o processo de recusa.

Resta ainda um ponto estruturante nas perversões: na medida em que a lei do pai é denegada como lei mediadora do desejo, a dinâmica desejante fixa-se de modo arcaico à entrada (sem entrar totalmente e sem sair definitivamente) do Édipo. Como afirma Dor (1991a: 42), "o perverso encontra-se subtraído a este 'direito ao desejo' e [...] não cessará de procurar demonstrar que a única lei do desejo é a sua e não do outro". Os traços estruturais que caracterizam o funcionamento perverso são o desafio e a transgressão, que se apresentam no perverso articulados de modo único: no perverso não é a posse do objeto fálico que é desafiada, mas a própria Lei-do-pai, que é primeiro destacada para depois ser transgredida com o testemunho ou a cumplicidade de um "parceiro", representante do Outro.

No perverso, o fato de não cessar de tentar demonstrar que a única lei do desejo é a sua convida ao trágico. O que permanece importante para ele é produzir a devassidão na vida do Outro, tirá-lo da ordem que rege sua vida e colocá-lo em um gozo do qual o perverso detém o controle.

 

A FEMINIZAÇÃO DO CORPO SOCIAL E DAS TROCAS IMAGINÁRIAS

A feminização do corpo social constituiu-se de longos e lentos processos históricos cujos primeiros passos tomaram forma sob o controle do corpo burguês e a separação entre as esferas pública e privada. Em seguida, na virada do século XIX para o século seguinte, se estabelece a conquista do espaço público pelas mulheres (Roudinesco, 2003). Recentemente, próximo à segunda metade do século XX, emerge um conjunto de processos mais focados nas experiências individuais e menos constituídos de lutas coletivas em confrontação com a resistência das "instituições masculinas". Tratava-se de liberar a sexualidade feminina, presa, durante a instalação da modernidade, ao poder dos pais e maridos e, durante o século XX, atormentada pelo risco constante da gravidez. O exercício da liberdade de escolhas e de práticas ficava suspenso no limiar do risco da maternidade. O declínio do patriarcado tem como corolário evidente a ascensão do poder das mães.

Durante boa parte da era contemporânea, o cânone do feminino foi a maternidade. Isto evidentemente no ideário patriarcal e industrial. Para empregar uma metáfora falante, podemos pensar que a maternidade foi o sintoma do recalcamento da sociedade moderna. Sintoma no sentido psicanalítico é aquilo que esconde e, ao mesmo tempo, revela (Del Volgo, 1997). É plausível a metáfora: a maternidade foi o ápice do papel feminino na família burguesa, clímax do amor-romântico; foi também a pedra usada para esconder a mulher e o feminino, para subsumir o feminino. Porém foi ainda o caminho pelo qual o poder foi redistribuído por vias tortas. A maternidade constituiu a pedra fundamental da dependência emocional ao sexo masculino. Não será então por acaso que na segunda metade do século passado a marca da autonomia das mulheres não será a escolha do parceiro ou a conquista do mercado de trabalho, mas sim a rejeição da maternidade.

Uma transformação importante vai acompanhar a mudança na sexualidade feminina no âmbito das relações amorosas. O declínio do amor-romântico e a instalação do amor-relacionamento (Giddens, 1993). A relação amorosa passa a ser, ela também, uma construção constante na qual cada parceiro (não mais, necessariamente, um homem e uma mulher) exerce uma reflexibilidade incessante sobre si mesmo e sobre o outro, cujo destino é monitorar a identidade através da sexualidade.

A ordem tradicional moderna, enraizada na família nuclear, obedecia ao princípio de reconstituição da força de trabalho e do acúmulo futuro de riquezas: a modernidade, até a metade do século XX, é a era do neurótico: não há felicidade ou prazer a ser gozado no presente, no futuro talvez, com muita resignação e sacrifício da libido!

A feminização do corpo social pode ser entendida como uma transformação radical nas relações, ou seja, também na economia imaginária das trocas libidinais. Porém de modo algum ela pode ser entendida como retorno do matriarcado ou ainda que o feminino tenha ocupado um poder monolítico e hegemônico como o do patriarcado. De algum modo, sem contradizer os autores sociológicos, podemos pensar em uma desestabilização do logos como princípio regulador das relações sociais e das instituições e um retorno do pathos. Homens e mulheres, em suas tarefas identitárias e nos destinos possíveis de suas pulsões, se encontram face a um padecimento (pathos).

A questão da feminização do social na atualidade deveria ser pensada em referência à relação entre subjetividade e alteridade. No caso da perversão, uma questão se abre: mudando a cultura (sobretudo no tocante às referências de gênero, aos elementos "simbólicos" que marcavam a diferença entre os sexos), mudaria a direção do desejo materno e, consequentemente, o ponto de ancoragem das perversões?

 

UMA SOCIEDADE PERVERSA OU UMA "SOCIEDADE FETICHISTA"?

Aqui podem ser interpelados dois pensamentos aparentemente contraditórios: de um lado, Birman (2001) afirma que as perversões são uma forma privilegiada de subjetivação na atualidade; de outro, Giddens (1993) fala do "declínio das perversões". De que modo uma forma de subjetivação pode ser lida ao mesmo tempo como em declínio e valorizada socialmente? De fato a expressão de Giddens deixa margem a uma interpretação equivocada, pois não se trata de declínio no sentido de desprestígio ou diminuição, o que ele no fundo analisa é que não se fala mais de perversão. Nós acrescentaríamos que não se fala mais de perversão enquanto tal: as formas "diversas", polimorfas (para retomar o registro freudiano), enfim as sexualidades pré-genitais ou as "sexualidades periféricas" na expressão incômoda e imprecisa de Foucault são valorizadas, reguladas e integradas no campo da normalidade "pós-moderna". Os perversos, em sua pluralidade de destinos libidinais, não serão encontrados nos consultórios ou nos serviços especializados de atenção à saúde mental. Salvo raras exceções, não serão também e de modo algum considerados criminosos ou sofrendo de alguma degeneração moral qualquer. Não serão perseguidos em praça pública, nem tidos como casos de polícia. Porém a "sociedade" e a ciência (medicina e psicologia, aqui, de mãos dadas) exercerão outra forma de regulação, na qual o saber sobre seu destino pulsional, a verdade que o sujeito constrói sobre seu gozo não mais será reconhecida como pertencente ao sujeito: a verdade do sujeito será objeto de investigação científica e de uma aceitação pela via da explicação: algo ou alguém se desviou durante o processo de subjetivação, processo de formação da escolha de objeto. Não mais caso de polícia, as perversões serão, doravante, assunto de mídia, sobretudo a televisiva.

As perversões serão objetos mediáticos privilegiados, objetos valorizados na sociedade do espetáculo sem, contudo, seus sujeitos poderem ser nominados como perversos. Em uma sociedade na qual a identidade sexual é uma tarefa, para a qual a sexualidade do tipo "papai-mamãe" não é referência, a existência de múltiplas e variadas "sexualidades" é reinserida como vitrine. O diferente, o exótico, o estranho, o estrangeiro, o "pervertido" compõem um espetáculo de pura exterioridade.

Podemos pensar com Debord (1997) que o nosso tempo histórico é este do espetacular, a imagem como superfície captável toma valor de realidade; é a aparência tomada em sua extrema visibilidade. A aparência ocupa o espaço da insustentável leveza do ser. É uma tese "sedutora" pensar que vivemos um tempo em que o sujeito é uma presa da cultura consumista e acaba por encontrar seu prazer em coisas, em mercadorias, em produtos que consome.

Na sociedade atual são estabelecidos os paradigmas do consumo e os parâmetros da felicidade, que serão doravante mensuráveis (Baudrillard, 1970). Neste contexto, o espaço da subjetividade é o da "escolha" entre os modelos de consumo possíveis e acessíveis. A "subjetividade" será então fetichizada, tornando-se um estilo de consumo através do qual o sujeito se apresenta. Mais que isto, no estilo de consumo o sujeito se reconhece, toma a mercadoria e seu espetáculo como significantes válidos de seu próprio eu. A tese de Baudrillard é a do consumo, é uma linguagem em que os objetos perdem o valor de uso. Na essência perdem também a capacidade de suportar o gozo por um excesso de efemeridade. Uma vez conquistado, o objeto (produto) imediatamente se esvazia, o gozo não está lá: deve-se procurá-lo no próximo produto. A relação com a mercadoria é uma tragédia ocultada na qual os objetos perdem a capacidade transicional de suportar a ausência do objeto, eles perdem a função de metonímia de um legítimo objeto libidinal.

Cultura intrigante esta da atualidade: não vivemos em uma sociedade que baniu a repressão sexual, abrindo espaço para cada um gozar como lhe aprouver? As diversas formas da sexualidade não são permitidas ou, ao menos, relativamente aceitas? Por que o sujeito iria procurar seu gozo em "produtos", em objetos materiais, se basta um clique para encontrar o parceiro perfeito para seu gozo?

Foucault (1984) defende a tese da "implantação perversa" como um conjunto de operações através das quais a diversidade das formas sexuais foi classificada, objeto de uma verdadeira taxonomia criteriosa e reguladora, não mais pela interdição ou punição. Em seguida, as formas foram objeto de inscrição (detalhada, criativa e generosa) na sociedade do consumo e do espetáculo. Para Foucault, estas operações não foram resultantes da ação de um único agente, de um mecanismo central, menos ainda de um "projeto perverso". O perverso encontrará agora as lojas e produtos adequados, incluindo os produtos em carne e osso, ao vivo e em cores, para atender ao seu estilo de consumo, ou seja, seu estilo de prazer. A cultura se tornou tão perfeita, tão eficaz que se sabe por antecipação o exato produto capaz de trazer o gozo ao sujeito. Antes mesmo que o próprio sujeito saiba quem ele é...

A cultura da atualidade atacou as figuras imaginárias do Pai, representante da lei e da autoridade, e da Mãe, como valor do feminino. Também incitou pais e mães reais a não ocuparem o espaço de suas funções imaginárias, postos em busca de suas identidades, em muitos casos em busca da eterna juventude. Aqui, recaímos no desamparo. O aplacar da desesperança e impotência, o continente para alojar a angústia e acalmá-la não mais contarão nem com a maternagem, nem com o Nome-do-Pai.

Se a alteridade é fundamental na constituição do sujeito, na sociedade do desamparo ela não estará ausente, pois não é da absoluta ausência do Outro e de seus substitutos que se trata. A alteridade se apresenta no campo da ambivalência, como uma alteridade líquida. Desenha-se a posição do perverso, a do espaço da ambivalência face ao Outro, ou de cisão do ego; e é esta posição que permite o desafio perverso, elucidado no paradigma do fetichismo: tentativa de tamponar a falta para aplacar o desamparo. O outro fetichizado tem a função de tampão: o processo não é mais metafórico, mas de uma simbolização líquida, às portas (na passagem) do Édipo, sem conseguir retornar, sem suportar entrar completamente. A simbolização possível é mais vaga, fundada no deslocamento, a metonímia. Depois de muito vagar, de novo encontramos a figura do fetiche.

Aceitando a tese da alteridade líquida, que em síntese se revela como relação líquida (ambivalente) com o outro fetichizado (cuja aparência e cujo espetáculo configuram uma pseudoconcreticidade do outro), não se pode cair no engodo simplista de que a atualidade promove um aumento das estruturas perversas. Ela, a cultura, convida a manifestações perversas. Não é sem consequência o trabalho clínico de Berlink (1998) que relata casos de "sintomas" perversos em uma estrutura histérica. Convergem ainda outros trabalhos (Granoff & Perrier, 1991; Aulagnier-Spairini, 1990; Rosolato, 1990), também sustentados na prática clínica.

A atualidade convida e favorece uma "solução de compromisso" entre o desamparo e a tentativa de tamponar a falta com objetos-fetiche sem que isto conduza necessariamente a patologias no sentido de disorders.

Porém o apelo à melancolia faz-se sempre presente, apelo cuja face culturalmente aceita é a depressão (Cerqueira-Leite, 2002), reativa ao desamparo. O "flerte" com o pathos, no sentido de sofrimento, é recorrente, desde que o imaginário dominante se encarregue de ofertar uma solução "científicamente aceitável". Como Freud ([1905] 1987: 145) já alertava, um "certo grau desse fetichismo costuma ser próprio do amor normal".

 

PERVERSÃO: POSIÇÃO, MANIFESTAÇÃO OU "TRAÇOS-ESTRUTURAIS"?

A discussão sobre a qualidade da perversão como estrutura no mesmo nível que a neurose e a psicose não é recente, nem simples. Por tal razão os argumentos devem ser examinados com cuidado. Embora não seja este o objetivo do presente trabalho, esta polêmica é retomada para, ao final, apontar dois eixos importantes da clínica das perversões: a construção diagnóstica e a relação com a cultura. Assim, parece-nos útil demarcar ao menos três perspectivas.

Em primeiro lugar, Freud ([1905] 1987), desde o princípio de suas teorizações acerca dos aspectos clínicos das perversões, está interessado em seus mecanismos. Ele promove uma ruptura, tornando flexível a fronteira entre o normal e o patológico, vinculando as "perversões" às pulsões parciais e estabelecendo outro eixo para a discussão que não o da normalidade moral. Também é inegável que os casos de fetichismo lhe despertavam um vivo interesse científico. Sua posição inicial (Freud, [1905] 1987) é de articular as perversões com o complexo de Édipo: elas podem ser entendidas, a partir daí, como uma fixação em uma etapa anterior ao Édipo, portanto como uma espécie de desvio ou falha no desenvolvimento. Porém, em 1927 [1995], ele se aproxima dos mecanismos de base: uma recusa (denegação, ou negação de segunda ordem) e a clivagem do eu, associando então as perversões ao complexo de castração, estabelecendo assim um "novo tipo" de economia libidinal, nem neurótica, nem psicótica. Para al-guns autores, a "perspectiva freudiana das perversões" somente atinge plena compreensão com o desenvolvimento do conceito de falo e do tripé real/imaginário/simbólico em Lacan (Dor, 1991b; Granoff & Perrier, 1991; Julien, 2002). Para Freud, a ideia de que "manifestações perversas" podem estar associadas à histeria ou à neurose obsessiva é absolutamente aceitável. Deste modo, pode-se pensar clinicamente a perversão sem a preocupação de defini-la como estrutura ou não: a perversão seria uma "dupla posição" de reconhecimento de que a mãe não tem o falo - de onde emerge a angústia da castração - e a negação deste reconhecimento.

Uma segunda perspectiva deriva em parte da ambiguidade freudiana, aquela que trata a perversão como um "estado provisório", como designando um campo de manifestações (do gozo das pulsões parciais) e não uma estrutura. Um exemplo mais elaborado pode ser visto quando Dejours (1999), em A banalização da injustiça social, postula a retomada da noção de "posições", inspirado na noção kleiniana, para explicar a submissão ao mal no mundo do trabalho. Neste mundo e, particularmente, na atualidade do trabalho moderno, a banalização da injustiça, da dominação e do mal se faz por uma "submissão", voluntariamente aceita, do sujeito a práticas do tipo per-verso; isto sem que o sujeito seja de fato um perverso. Este paradigma indica como um sujeito estruturalmente neurótico pode adotar uma espécie de "regressão" como modo defensivo contra a angústia que faz parte do funcionamento da organização de trabalho.

No campo da psicossomática encontra-se uma leitura na qual não se falará em "estrutura psicossomática", mas em "eventos ou episódios psicossomáticos" (Fédida, 1977; Del Volgo, 1997). Aqui também aparece a ideia de "posição": como o sujeito (especialmente na clínica das psicoses) pode defensivamente e em um dado período desenvolver um episódio psicossomático. O "sintoma" corporal viria como recurso que permite o recolhimento da libido para um funcionamento mais primário, seguido de um restabelecimento de condições egoicas para sustentar, mesmo que precariamente, uma relação de objeto e o processo analítico. A ideia é relativamente simples: uma "estruturação" instável ou precária do conflito neurótico criaria as condições para, em momentos de crise, um retorno a for-mas arcaicas de satisfação pulsional, ou seja, uma economia libidinal como se fixada em etapas pré-edipianas, em modos de gratificação das pulsões parciais.

Quando se fala em "posição" ou em vertente perversas, evita-se o debate, nem sempre útil na prática clínica, sobre a fixação do sujeito em uma estrutura.

Uma terceira perspectiva é adotar a perversão como estrutura, entendendo uma estrutura como um dado modo "fixado", constante (padronizado ou estereotipado) de obtenção de prazer; tal adoção tem a finalidade de possibilitar o diagnóstico diferencial e o direcionamento do tratamento (Dor, 1991a; 1991b). Este modo padronizado é resultado do modo singular de inscrição do sujeito na função fálica e se manifesta pelos chamados "traços estruturais".

Como tais, só podem fornecer informações quanto ao funcionamento da estrutura porque representam "painéis de significação" impostos pela dinâmica do desejo. De fato, a especificidade da estrutura de um sujeito se caracteriza, antes de mais nada, por um perfil predeterminado da economia do seu desejo que é governada por uma trajetória estereotipada. São semelhantes trajetórias, estabilizadas, que chamarei, por assim dizer, traços estruturais. As referências diagnósticas estruturais aparecem então como indícios codificados pelos traços da estrutura que são, eles próprios, testemunhas da economia do desejo (Dor, 1991b: 21-22).

Três condições são necessárias e complementares nesta abordagem: a) a renúncia a uma postura causalista (Gori, 1996), adotando radicalmente outra, segundo a qual a escuta deve ter "prioridade sobre o saber nosográfico e as racionalizações causalistas" (Dor, 1991b: 16); b) adotar uma perspectiva diagnóstica diferencial e não de objetivação do sofrimento ou do próprio diagnóstico; c) manter o diagnóstico em suspenso, em aberto, como uma construção que orienta o processo, porém não busca o enquadramento, a classificação e normalização.

Em tempos de DSM-IV não se deve esquecer que o diagnóstico tem efeitos de subjetivação sobre o paciente, que pode tomá-lo como significante válido do próprio eu. Desde Freud, para a psicanálise toda avaliação é essencialmente subjetiva, se sustenta na fala do paciente e se inscreve em uma lógica intersubjetiva (Stein, 1987).

Para sintetizar, o emprego da noção de "traços estruturais" nos parece frutífero, pois produz um "curto-circuito" na polêmica da estruturação e, simultaneamente, autoriza o uso de critérios diferenciais de compreensão da perversão, inclusive em mulheres que manifestem uma vertente (Campos, 2004) perversa constante ou relativamente "fixada". E abre o caminho para problematizar como o sujeito, sendo ou não estruturalmente perverso, se acomoda a uma posição, uma economia do desejo do tipo perverso. É bom lembrar que o espaço da fala do paciente, campo único e irrevogável do trabalho analítico, é parasitado pelo imaginário. Em uma cultura cujos ídolos e "celebridades" agem pela imposição da lei do seu desejo e, em geral, de modo intencionalmente destrutivo do outro, pode-se vislumbrar um convite ou incitação à produção de manifestações ou episódios perversos. É claro que, se essas leituras sobre a cultura da atualidade e sobre a perversão se confirmarem na realidade clínica, a realização de uma avaliação diagnóstica diferencial se torna tarefa bem mais árdua.

 

O FETICHISMO E O FEMININO

Embora tenha sido dominante a ideia da não-existência da perversão na mulher, as construções teóricas que se seguiram a Freud tornaram o campo desta afirmação bastante flexível. Podemos afirmar que este ponto teórico encontra-se relativamente em aberto, visto que em vários estudos clínicos, que se dedicaram aos destinos da libido feminina, se reconhecem ora traços, ora "componentes" fetichistas, dos quais podemos citar pelo menos quatro exemplos:

a) Em alguns casos da relação mãe-bebê: como componente, a relação entre mãe e bebê é susceptível de derivar em uma relação perversa "do tipo análogo à perversão fetichista" à condição que o bebê (objeto real) se torne, para a mãe, uma tela sobre a qual ela projeta a falta (ausência), que é causa de seu desejo, para além de seu objeto de amor (Granoff & Perrier, 1991).

b) O mesmo "componente fetichista" deve ser interrogado no caso das mulheres que se prestam ao prazer dos fetichistas, pois, como assinala Clavreul (1990), pouco importa se esta parceira finja gostar ou apenas se submeta às práticas do perverso, o que está em jogo é o fascínio que este exerce, de tal modo que a parceira sofra igualmente da lei do fetiche, que substitui a lei da diferença entre os sexos (a ausência de pênis na mãe) como causa do desejo.

c) Nos casos de uma relação "devastadora entre mãe e filha" (Campos, 2000).

d) Como também em alguns casos clínicos de mulheres com dificuldades de ter filhos e apresentando um "irresistível desejo de ter um filho" (Campos, 2000; Lessana, 2002).

É de se notar que, para muitos dos autores citados, se de um lado a possibilidade de uma estrutura fetichista, com a construção inequívoca de um "objeto-fetiche", é absolutamente descartada para as mulheres, de outro lado a existência de uma vertente perversa e fetichista (um versant perverso) é, sem hesitação, reconhecida. Assim, o objeto fetiche é marcado por se constituir certo "prolongamento" simples do corpo da mãe, que se liga ao objeto mas dissimula o sexual: "mesmo a mulher e o pênis podem desempenhar este papel" (Rosolato, 1990: 25). Metaforicamente, o "ser mulher" pode ser fetichizado, ocupando o papel de um "componente fetichista" da relação entre mãe e filha.

Podemos então apontar, junto com outros autores, que o fetichismo não existirá entre as mulheres "sob a forma da construção de um objeto-fetiche". Nas mulheres, a relação com o objeto libidinal será a base para a construção da "estrutura fetichista".

 

A IDENTIFICAÇÃO PRIMÁRIA À MÃE

Os mecanismos segundo os quais a identificação e o investimento de objeto se distinguem na menina não foram suficientemente teorizados e são ainda pouco conhecidos até hoje. Na nossa perspectiva, tomando como referência o conjunto de nossas interrogações e trabalhos clínicos, a identificação primária, pré-edipiana, das meninas para com suas mães tem um papel estruturante tanto na construção da "identidade feminina" para além do gozo fálico, como na formação das perversões femininas. Embora alguns autores citados acima falem de "traços", "componentes" ou "posições" perversos na mulher, a clínica da devastação (ravage) mãe-filha ou do "irresistível desejo de ter um filho" aponta que este versant perverso pode ser o que Dor (1991b) chama de "traços estruturais", ou seja, que apontam para uma estrutura.

Do mesmo modo, vários autores que estudam o desejo de ter um filho no contexto da "Reprodução Assistida" tomam posição em favor de uma interpretação clínica da função da criança solicitada como sendo o objeto imaginário que fantasiosamente viria preencher ou curar uma ferida narcísica. Entretanto, uma questão se impõe: esta ferida narcísica ocorre em qual nível de narcisismo? Aquele da imagem do eu, cujo modelo ideal de mulher seria a imagem da "mãe onipotente" - portanto, o narcisismo relativo ao ideal do ego estruturado e referente à trama edipiana -, ou, em outro nível, a ferida teria um referente mais arcaico, no qual o eu e o objeto de investimento libidinal não estariam ainda distintos? Neste segundo caso, a expressão "mãe onipotente" não pode ser considerada pertinente para falar de um objeto fantásmico completo, perfeito. Devemos aqui recordar que Freud ([1922] 1991) afirma a identificação como a manifestação mais precoce de uma ligação afetiva com outra pessoa. A identificação primária opera em um estádio no qual sujeito e objeto não estão diferenciados e constitui um dos processos fundamentais que permitem a formação do ego através da incorporação dos atributos do objeto.

Neste panorama clínico, diversos trabalhos associam o "desejo de ter um filho" a uma identificação extrema das pacientes com suas mães. Embora uma boa parte desses estudos situe a identificação no plano dos conflitos edipianos e na esfera do ideal do ego ("ser mãe" equivalendo a "ser mulher", no ideal do ego feminino), Chatel (1993) e Delefosse (1995) abrem outra perspectiva, na qual entrevemos a coabitação de uma identificação tardia (datada do período da formação do superego, então, pós-edipiana) e uma outra identificação mais constitutiva, uma identificação primária da menininha com sua mãe.

Assim, parece-nos pertinente assinalar uma feminilidade que não se constrói em referência à "inveja do pênis". Pode-se pensar na condensação de dois movimentos: a identificação à mãe-falo (identificação primária) e o ódio à mãe-mulher (possuidora do falo paterno), cujo avatar é a identificação ao pai.

Podemos pensar, assim, numa identificação primária com a mãe como forma de ser mulher. Desta forma, uma identificação posterior com o pai seria somente uma espécie de via de alcance da mãe, posto que a mãe busca no pai aquilo que ela, enquanto mulher, não tem. Stein diz: "Não saberíamos, então, nos identificar ao falo sem se fazer falo de alguém" (Stein, 1987: 227).

Desta maneira, para que a mulher possa ter o seu próprio falo ela deve conseguir ser o falo da mãe. É por este viés que a menina divide o segredo com a mãe e aprende com ela como é ser mulher. Na verdade, parece-me que Freud já pressentia uma função anterior ao Édipo, uma equação maior: a menina já vem "deslizando no interior de uma longa equação":

Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de fase pré-edipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos homens. Muitos fenômenos da vida sexual feminina, que não foram devidamente compreendidos antes, podem ser integralmente explicados por referência a essa fase (Freud, [1931] 1987: 265).

A permanência de uma identificação primária "não-recalcada" para com a mãe, na mulher, desloca a questão do valor simbólico da equação segundo a qual o filho seria o substituto do falo - uma vez que o filho poderia se inscrever antes na lógica de uma negação da castração materna, ou seja, da sobrevivência da mãe-fálica com quem a menina permanece identificada sob um modo primário, por assim dizer, fusional ou identitário, em relação à identidade feminina.

Segundo Julien (2002), Lacan havia identificado uma posição "atrás do véu" na qual o sujeito ocupa o lugar da mãe como objeto-fetiche. Isto converge com a nossa proposição da existência de uma estrutura perversa nas mulheres, na qual se trata de um fetichismo da relação mãe-filha e não da construção de um objeto-fetiche externo e contíguo ao corpo materno. Converge ainda com a tese de uma identificação primária pré-edipiana, não completamente recalcada nestes casos.

Os argumentos e perspectivas aqui postos, em um trabalho conduzido de forma análoga ao "Moisés e o monoteísmo" de Freud, nos permite afirmar a existência de variados indicadores clínicos de um funcionamento perverso em mulheres que não se justificam com base nas características da cultura atual de feminização e fetichismo. Podemos pensar com Julien (2002) e com Lacan ([1956-1957] 1994) que, quando uma mulher se encontra fixada em um gozo fálico (fixada em "trajetórias estereotipadas que dão testemunho da economia do desejo" (Dor, 1991b: 22), ela "está (toda?)" na posição perversa e apresenta os mesmos traços estruturais que o perverso do gênero masculino.

 

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Recebido em 16 de junho de 2009
Aceito para publicação em 10 de agosto de 2010

 

 

Denise Teles Freire Campos
Psicanalista; Doutora em Psicopatologia pela Université de Provence; Docente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da PUC-Goiás. Av. Lineu de Paula Machado, 826, ap. 101- Jardim Botânico - 22470- 040 - Rio de Janeiro - RJ. Tel.: (21) 3027 4888 / (21) 7700 2930 / (62) 9293 3807 E-mail: phdcampos@terra.com.br

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