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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Composições possíveis: psicanálise, música e utopia

 

Possible compositions: psychoanalysis, music and utopia

 

 

Débora da Fonseca SegerI; Edson Luiz André de SousaII

IPsicóloga; Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: deboraseger@hotmail.com
IIPsicanalista - membro da APPOA; Professor do PPG Psicologia Social e PPG Artes Visuais (UFRGS). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: edsonlasousa@uol.com.br

 

 


RESUMO

Ainda que as aproximações entre o campo psicanalítico e o artístico sejam frequentes, a música tem sido, entre as artes, aquela que menor atenção tem recebido dos principais teóricos da psicanálise. O presente artigo busca, assim, aproximar estas duas áreas, situando-se no rastro de possíveis interlocuções entre o arcabouço teórico psicanalítico e a temática musical. Para tanto, exploramos, primeiramente, as referências à voz e à musicalidade encontradas nas teorizações psicanalíticas, dando especial ênfase à concepção lacaniana de voz como objeto a e à pulsão invocante na constituição do sujeito. Em seguida, buscamos ampliar a discussão, trazendo algumas relações entre música e utopia tecidas na obra do filósofo Ernst Bloch.

Palavras-chave: psicanálise; música; voz; pulsão invocante; utopia.


ABSTRACT

Although the approximations between the fields of psychoanalysis and art are common, music has not received the same attention by the main theorists of psychoanalysis. Thus, this article objective is to approach these two areas, identifying possible interlocutions between psychoanalysis and music. We explore references to voice and musicality as found in psychoanalytical theory, especially the lacanian concept of voice as an object a, and the role of the invocation drive in the constitution of the subject. Then, we extend the discussion adding some relationships between music and utopia as elaborated in the work of the philosopher Ernst Bloch.

Keywords: psychoanalysis; music; voice; vocal drive; utopia.


 

 

Anterior a toda diferenciação, indizibilidade apta
a se revestir de linguagem, a voz é uma coisa

Zumthor, 1997: 11

 

Introdução

A aproximação da psicanálise com a arte não traz novidade, uma vez que Freud, desde seus primeiros escritos, fez uso de criações artísticas, principalmente obras da literatura, para dar corpo e forma para suas próprias produções. Entretanto, ainda que as discussões psicanalíticas envolvendo literatura e artes plásticas sejam numerosas, os mais importantes teóricos da psicanálise pouco se deixaram interrogar pelo campo musical.

Segundo Lecourt (1992/1997), se, por um lado, Freud reconhece o sonoro como vetor privilegiado dos afetos e demonstra, através de algumas passagens de sua obra, que não é indiferente ao que a música provoca, por outro demonstra certa resistência a adentrar o universo musical e vivenciar situações que lhe dificultem interpretações a partir da palavra. Em seu texto "O Moisés de Michelangelo", Freud (1914/1974) discorre de forma esclarecedora sobre sua relação com a arte e, especialmente, a música. Vale transcrever o trecho:

Tenho observado que o assunto de uma obra de arte tem pra mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para o artista, o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. [...] Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta (Freud, 1914/1974: 253).

Lacan (1962-1963/2005), porém, ainda que também não se detenha a pensar a música ao longo de sua obra, ao situar a voz como objeto pulsional passando a incluí-la na série dos objetos a primordiais, abre caminho para possíveis diálogos com o campo musical. A partir desta articulação, surge, ao lado das pulsões oral, anal, fálica e escópica, a pulsão invocante, que seria, segundo Lacan (1963-1964/1998: 102), "a mais próxima da experiência do inconsciente".

 

Ao pé do ouvido, ao pé da letra

Para seguirmos este trajeto teórico e suas repercussões nas elaborações de psicanalistas contemporâneos, devemos, antes, retornar brevemente ao surgimento do próprio conceito de objeto a. Para desenvolvê-lo, Lacan (1963-1964/1998) parte do princípio de que há uma diferença entre a satisfação visada como alvo pela pulsão, que poderia ser dada através de um objeto, e a satisfação de fato possível de ser obtida. Esta última se mostraria sempre incompleta e estaria mais relacionada ao caminho pulsional em torno de um objeto indiferente do que ao efeito do encontro com um objeto específico. Esta hipótese, no entanto, já poderia ser vislumbrada no ensino freudiano quando o autor nos diz: "Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo [...] na natureza da própria pulsão sexual é desfavorável à realização da satisfação completa" (Freud, 1912/1970: 171).

Lacan (1963-1964/1998: 159) afirma: "A pulsão apreendendo seu objeto, apreende de algum modo que não é justamente por aí que ela se satisfaz". Ora, reside justamente nessa impossibilidade seu grande diferencial em relação às necessidades biológicas. Será através desta dimensão paradoxal da satisfação que Lacan (1963-1964/1998) articulará a função do impossível. Para ele, contudo, "o impossível não é forçosamente o contrário do possível, ou bem ainda, porque o oposto do possível é o real, seremos levados a definir o real como impossível" (Lacan, 1963-1964/1998: 159).

Segundo o autor, a satisfação da pulsão, portanto, não acontecerá ao atingir o objeto, pois o próprio objeto da pulsão não será outra coisa que "a presença de um cavo, um vazio" (Lacan, 1963-1964/1998: 170). Sua satisfação se daria no contorno do objeto, em seu retorno em circuito a partir da zona erógena correspondente à sua fonte. Diz ele: "O que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o vaivém em que ela se estrutura" (Lacan, 19631964/1998: 168). Esta relação do percurso pulsional com uma impossibilidade de realização da satisfação completa será base das torções na teoria freudiana que permitirão a Lacan se aproximar da idéia de objeto a.

Ainda sobre o circuito das pulsões, Lacan (1963-1964/1998) completa:

[...] esse movimento circular do impulso que sai através da borda erógena para a ela retornar como sendo seu alvo, depois de ter feito o contorno do que eu chamo de objeto a. Ponho que [...] é por aí que o sujeito tem que atingir aquilo que é, propriamente falando, a dimensão do Outro (Lacan, 1963-1964/1998: 183).

Como observa Laznik-Penot (1997), Lacan consegue, neste ponto de seu desenvolvimento teórico, articular o conceito de sujeito e sua constituição no campo do Outro através do enlaçamento pulsional. Não será sem sentido, portanto, que todas as chamadas fontes da pulsão, as zonas erógenas, sejam estruturas de borda.

Trazendo à discussão os tempos do percurso pulsional desenvolvidos por Freud, Lacan (1963-1964/1998) comenta:

Quando ele falar dessas duas pulsões [...] ele se aterá a bem marcar que não há dois tempos nessas pulsões, mas três. É preciso distinguir a volta em circuito de uma pulsão do que aparece - mas também por não aparecer - num terceiro tempo. Isto é, o aparecimento do ein neues Subjekt [um novo sujeito] que é preciso entender assim - não que ali já houvesse um, a saber, o sujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer um sujeito. Esse sujeito que é propriamente o outro, aparece no momento em que a pulsão pôde fechar seu curso circular. É somente com a aparição ao nível do outro que pode ser realizado o que é da função da pulsão (Lacan, 1963-1964/1998: 169).

Assim, ao retomar o par "ver/ser visto" abordado por Freud, os tempos ativo e reflexivo da pulsão, Lacan (1963-1964/1998) situa no terceiro tempo, "fazer-se ver", o fechamento do circuito pulsional capaz de fazer advir o sujeito. De uma forma geral, como esclarece Laznik-Penot (1997), o primeiro tempo da pulsão corresponderia a um ir em direção a um objeto externo, o segundo tempo trataria de tomar como objeto uma parte do próprio corpo e, finalmente, o terceiro tempo, incluiria se fazer objeto de um outro (Outro), fazendo advir o sujeito da pulsão. Diz Lacan (1963-1964/1998: 187): "O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante. Mas por este fato mesmo, isto - que não era nada senão sujeito por vir - se coagula em significante".

O trajeto das pulsões, como explicita Catão (2009), seria, desta forma, possível unicamente pela mediação de um Outro, através do qual as pulsões dariam acesso ao significante em substituição ao objeto impossível de ser encontrado. Assim, é exatamente onde o Outro falha em satisfazer a busca por completude que o circuito pulsional se estabelece em seu eterno circundar o objeto a, permitindo advir, na cadeia significante, o que chamamos de sujeito.

Neste sentido, Lacan (1963-1964/1998: 171) mostra que o circuito pulsional "nada mais assegura à consciência senão o objeto, a título de algo que deve ser contornado", deixando o sujeito inevitavelmente diante do fato de que "seu desejo é apenas vão contorno da pesca" (Lacan, 1963-1964/1998: 174).

Será, portanto, dentro deste contexto teórico que Lacan situará a voz como objeto pulsional passando a incluí-la na série dos objetos a primordiais, a dizer, seio, fezes, olhar, o falo. Lacan (19621963/2005), no entanto, alerta que é preciso ter cuidado ao pensarmos esta divisão, pois nenhum dos objetos a pode se separar das repercussões que tem sobre todos os demais. Diz ele: "Une-os uma solidariedade íntima, que se expressa na fundação do sujeito no Outro por intermédio do significante, e no advento de um resto em torno do qual gira o drama do desejo" (Lacan, 1962-1963/2005: 266-267).

Surge, portanto, ao lado das pulsões oral, anal, fálica e escópica, a pulsão invocante. Respeitando os três tempos do circuito pulsional já expostos, Catão (2009) propõe a divisão dos três tempos no registro da pulsão invocante nos seguintes termos: ouvir (o chamado do Outro primordial), se ouvir (acontece a posteriori, quando o primeiro grito do infans retorna da mãe sob a forma de uma demanda) e, finalmente, se fazer ouvir (aparecimento do sujeito da pulsão).

Será a partir de um texto do psicanalista Theodor Reik, que Lacan (1962-1963/2005) introduzirá a questão da voz. Este artigo escrito por Reik faz referência a um instrumento de sopro utilizado no judaísmo chamado Shofar. Lacan toma este instrumento como uma espécie de exemplo do que ele compreende por objeto voz. Desta forma, já introduz a impossibilidade de reduzi-lo à simples articulação fonética:

O que sustenta o a deve ser bem desvinculado da fonetização. A linguística acostumou-nos a perceber que esta não é outra coisa senão um sistema de oposições, com o que ele introduz de possibilidades de substituição e deslocamento, metáforas e metonímias. Esse sistema apoia-se em qualquer material capaz de se organizar em oposições distintivas entre um e todos. Quando alguma coisa desse sistema passa para a emissão, trata-se de uma dimensão nova, isolada, de uma dimensão em si, a dimensão propriamente vocal (Lacan, 1962-1963/2005: 273).

Lacan (1962-1963/2005) fala, portanto, de algo que está além da articulação e simples encadeamento fonético, algo que se passa a partir de uma emissão. Esta afirmação também se dá no sentido de diferenciar linguagem de vocalização. Ele cita os surdos para ilustrar a existência de outras vias para que se receba a linguagem além da vocal. No entanto, Lacan (1962-1963/2005: 299) enfatiza que "uma relação mais que acidental liga a linguagem a uma sonoridade", situando, nesta direção, o papel da sonoridade como possivelmente instrumental.

Ora, qualquer um que já pôde observar uma mãe conversando com seu bebê pode facilmente perceber que, nesta "comunicação", o aspecto sonoro não deve ser observado com indiferença. Catão (2009), ao discorrer sobre a forma diferenciada com que mães costumam falar com seus bebês, enfatiza as características prosódicas específicas deste tipo de fala e o poder de atração que os elementos acentuados na voz materna exercem sobre o infans. A autora, no entanto, observa que marcas diferenciais de entonação e acento também ocorrem na linguagem de surdos, mostrando que estas dimensões da prosódia materna podem estar presentes mesmo na ausência de som.

De qualquer forma, o fundamental na voz materna reside na transmissão de uma dupla vocação, que, por um lado, cativa o infans, por outro transmite uma ritmicidade que lhe será constituinte. Como explica Catão (2009: 169): "A voz da mãe seduz pela ausência de sentido, pela continuidade musical. Mas é a descontinuidade consonantal da fala materna que portará a lei".

Portanto, estas duas dimensões veiculadas pela voz materna cumprirão duas funções distintas, porém simultâneas e intrinsecamente ligadas:

A melopeia da voz materna, como objeto que tenta obturar a hiância entre mãe e bebê, ensina ao pequeno infans o caminho do gozo. Ao mesmo tempo, seu ritmo escande o real do organismo e, por seu movimento sincopado, abre a possibilidade da diferença (Catão, 2009: 210).

Para que possa advir como ser falante, o infans deve, antes, advir como efeito de musicalidade. Assim, para que isto possa ocorrer é preciso que ao infans seja transmitido, pela musicalidade da voz materna, um significante originário que o introduza na alternância ritmada entre presença e ausência do Outro primordial, criando condições para que, em um segundo tempo lógico, ele possa reconhecer a ausência na presença do Outro, sua incompletude e, assim, adentrar o universo simbólico (Didier-Weill, 1997).

Segundo Didier-Weill (1997), se, em um primeiro momento, o infans se encontra indiferenciado em um caos intemporal, é, através das escansões rítmicas transmitidas pela voz da mãe que ele poderá receber a marca de um nome primordial. Assim, mesmo antes de perceber o sentido dos fonemas, é a percepção de uma simples nota musical escandida na sonata materna, como chama o autor, que inscreverá este primeiro nome, que, no entanto, não corresponde à palavra enquanto representação, à qual ele ainda não tem acesso.

Como acontece com um nome próprio, esse nome primordial aparece como sendo intraduzível, não remetendo a uma significação, mas como a nomeação do que há de real no infans. Didier-Weill (1997) relacionará a emergência deste primeiro nome com o que Lacan chamou, no Seminário 9, de traço unário, inscrição do simbólico no real, ainda sem mediação do imaginário. Este traço corresponde ao significante zero de significância, S1, conotando a pura diferença e a descontinuidade que permite a percepção da unidade. Da imersão na indiferenciação totalizante em que se encontrava o infans surgiria agora como aquele que reconhece, na alternância rítmica, ausência ou presença do Um primordial. Desta forma, a partir da relação dos sons entre si, de sua musicalidade, o infans acede a esta primeira nomeação que é fundamentalmente da ordem da sintaxe.

Porém, em um tempo lógico seguinte à inscrição da existência do Um primordial, ao reconhecer que presença e ausência se relacionam de forma sincrônica ao invés de diacrônica como acreditara, o infans acessa o traumático ao escutar a ausência na presença do Outro primordial: não há Um. Ao descobrir a castração, o pré-sujeito apela à palavra para poder veicular essa sincronia que é revelada pela escuta do furo constituinte do Outro. Através de sua entrada agora definitiva no simbólico, o sujeito pode então sair do trauma com o qual se deparou ao verificar a existência da falta e pode então simbolizar, em palavra, a sincronia "há e não há Um" (Didier-Weill, 1997).

Nessa operação, porém, o sujeito consentirá perder seu acesso direto à materialidade vocal, devendo esquecer a voz recebida, que seguirá a partir daí velada pelo processo de significação (Vivès, 2009). Portanto, compreender a voz como objeto a implica tomá-la como este real do corpo que se perde na operação de separação constituinte dos campos do sujeito e do Outro e permite o advir do sujeito como efeito de significação.

Para que o objeto voz possa cair, no entanto, é preciso que ele se mantenha como inscrição significante. Situamos aqui a dimensão da letra, uma vez que esta resultará desta queda da voz como som, insistindo como presença do real no simbólico, como explica Catão (2009). Nas palavras da autora:

A pulsão obriga o sujeito a um contínuo movimento em direção à significação. A nomeação de uma coisa por uma palavra protege do investimento pulsional dessa coisa. A palavra protege da pulsão. Sua violência, presente no som, vem a ser dividida pelo sentido a partir do instante em que um som faz série com outro som. Nesse encadeamento, o objeto sonoro perde seu valor de objeto pulsional e se transforma em letra unida a uma outra letra (Catão, 2009: 214).

A voz como objeto a, portanto, surgirá na dimensão de alteridade, indicando a existência de um real inaudito e inapreensível, seja nas palavras, nos fonemas ou nas obras musicais. Aponta, dessa forma, não para o que pode ser ouvido e sim para o vazio na escuta; como observa Catão (2009: 174), "a voz é menos o dito que o querer dizer", é resto não simbolizável que segue a impulsionar a enunciação e fomentar a cadeia significante que nos constitui.

 

Ouvindo o imprevisível

Retomemos agora o que nos disse Freud (1914/1974) sobre sua relação com as obras artísticas. Sobre ele a arte exercia um poderoso efeito, levando-o a tentar explicar para si mesmo o porquê deste efeito. Freud (1914/1974) relata que, no caso das obras musicais e da comoção gerada por elas, sente-se particularmente revoltado, pois não consegue apreender para si por que meios elas o atingem.

Esta mesma resistência à significação que afasta Freud do campo musical será, no entanto, um dos fatores determinantes do importante papel que este ocupará no desenvolvimento teórico do filósofo Ernst Bloch. Não se deixando capturar jamais pela palavra, a música será considerada, aqui, uma irredutível experiência de abertura, que convida à tentativa de entendimento, ao mesmo tempo que se recusa a ser definida por elementos que não sejam eles mesmos musicais (Bloch, 1923/2000).

Na medida em que não adere diretamente a referentes externos, a música nunca se define em lugar específico. Segundo Bloch (1959/2006a: 379): "O som paira, não está claro onde se localiza. Do mesmo modo, não fica bem nítido o que expressa". Vem daí o privilégio de sua liberdade e seu eterno ressoar na direção de uma dimensão que escapa e extrapola qualquer norma de sentido preestabelecida. Ainda sobre o som, o autor discorre (Bloch, 1959/2006b: 143): "Algo está faltando; ao menos essa falta o som expressa com clareza. Ele próprio contém algo obscuro e sedento de si mesmo; ele se move como um sopro e não está assentado num certo lugar, como a cor".

Como defende Santaella (2005) em seu estudo sobre as matrizes sonora, visual e verbal da linguagem e do pensamento, há, no som, uma preponderância do caráter qualitativo em detrimento da referencialidade, uma vez que a lógica da matriz sonora caracteriza-se por ocorrer sob o domínio da sintaxe e suas relações intrínsecas. Para a autora, "não há material mais livre e propício à mais pura experimentação e invenção sintáticas que o som" (Santaella, 2005: 80).

Ainda que a lógica da sintaxe não se restrinja ao suporte sonoro, o som se presta particularmente à exploração das possibilidades da sintaxe até seus limites últimos. Define Souza (1983: 23): "O campo da linguagem musical é por excelência o campo das relações. Em música, todas as coisas são relativas, umas às outras".

Existindo somente na evanescência fugidia de sua execução, a pura significância da organização sintática dos elementos musicais, talvez remonte o momento em que o intemporal absoluto do real deu lugar à conquista subjetiva do tempo através da ascensão do S1, nomeação primeira, intraduzível e fora do campo do significado que abriu caminho para a fundação do sujeito no Outro. Observa-se que a nota musical, da mesma forma, também não pode ser traduzida por outra nota, guardando esta mesma estrutura intraduzível que revela sua relação estreita com o real.

Porque é movente e imperpetuável para além do instante de cada performance, a música se faz sempre outra, dando a escutar, ao soar, também suas virtualidades inauditas. Talvez pudéssemos pensar, nesse sentido, a voz como objeto a enquanto isso que aparece, sempre pelo avesso, como resto inacessível das composições sintáticas que o elemento sonoro, aqui em sua condição de letra, pode integrar.

Também nesta direção, podemos pensar que o potencial utópico da música nunca se manifestaria na simples presentificação do que já está no mundo ou na produção de uma imagem sonora específica e fechada do que deveria ser. Ao contrário, para Bloch (1959/2006b: 153), a música "porta uma seiva bem especial, que se presta para citar aquilo que ainda está sem palavras", constituindo-se em uma aposta no eterno indesignável do vir a ser, convidando a pensar a possibilidade mesma da possibilidade, um soar para frente que restitui ao futuro sua ligação fundamental com o que ainda não é.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 30 de janeiro de 2013
Aceito para publicação em 06 de fevereiro de 2013