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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro dez. 2013
ARTIGOS
Indenização por abandono afetivo: a judicialização do afeto
Compensation for emotional abandonment: the judicialization of affection
Julio Cezar de Oliveira BragaI; Betty Bernardo FuksII
IAdvogado; Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida RJ); Sócio titular do Escritório de Advocacia Oliveira Braga; Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do Rio de Janeiro. E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com
IIPsicanalista; Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ). E-mail: betty.fuks@gmail.com
RESUMO
O presente artigo se destina a retratar a resposta do Estado às demandas de indenização dos danos morais causados por abandono afetivo, considerado como a ausência de interesse e de convivência afetiva do pai na relação com o filho. O abandono afetivo violaria os princípios da dignidade, da afetividade e da responsabilidade parental acolhidos na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil Brasileiro. O discurso salvacionista do Direito, no afã de proteger a dignidade humana, acaba por tutelar o afeto, encarcerar o desejo e exacerbar o mal-estar, tal como na era vitoriana, na qual a Psicanálise adveio. Se a mediação simbólica é indispensável ao laço social, a psicanálise, como crítica da cultura e em diálogo com o Direito, pode alertar os juristas sobre os riscos de seus excessos. A partir do legado de Sigmund Freud e Jacques Lacan pretende-se ampliar a discussão do tema com vistas a oferecer diferentes possibilidades de se pensar o sujeito de Direito na contemporaneidade.
Palavras-chave: abandono; afeto; responsabilidade; Direito; psicanálise.
ABSTRACT
This article aims to portray the response of the State to the demands for compensation for moral damages caused by emotional abandonment, regarded as the lack of interest and interaction in a father's relationship with his son. The emotional abandonment would violate the principles of dignity, affection, and parental responsibility recognized in the Federal Constitution, the Child and Adolescent Statute, and the Brazilian Civil Code. The law's salvationist discourse, in the attempt to protect human dignity, ends up safeguarding affection, imprisoning desire and exacerbating disaffection, as it was in the Victorian era, from which psychoanalysis arose. If the symbolic mediation is indispensible to social bonds, psychoanalysis, as a critique to culture and in dialog with the law, can alert jurists about the risks of their excesses. From the legacy of Sigmund Freud and Jacques Lacan, we intend to unfold this discussion and offer different possibilities of reflecting on the right-holder in contemporary life.
Keywords: abandonment; affection; responsibility; law; psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
A questão do laço social como modo de tratamento do mal-estar é o ponto de partida da crítica freudiana à cultura. Concebendo o sujeito do inconsciente como essencialmente atravessado pelo social, Freud logrou estabelecer, ainda na aurora da fundação da psicanálise, conexões valiosas à sua disciplina: história, arte, religião, educação, direito, filosofia, entre outras. A psicanálise procurou iluminar muito do que esses campos deixavam à margem, restos não apreendidos sobre a relação do sujeito com o real e a facticidade da relação entre os homens. Lacan (1959-1960/1988), por sua vez, atento a essa herança freudiana de colocar questões relevantes à prática teórica da psicanálise na interface com outros campos do saber, enfatizou a importância de os analistas estarem atentos à subjetividade de sua época. Em função dos legados que Freud e Lacan deixaram aos analistas e aos profissionais das disciplinas afins da psicanálise, procuraremos apresentar neste texto alguns pontos de partida que tornem possível um diálogo entre psicanálise e direito, circunscrito a um assunto extremamente em voga na cena contemporânea do judiciário: o abandono afetivo parental.
O termo abandono afetivo parental sofreu uma redução ao longo de seu uso, passando a ser conhecido no meio forense por abandono afetivo. Esse sintagma designa o distanciamento ou a ausência afetiva dos pais no convívio com seus filhos. Ainda que as obrigações alimentícias sejam cumpridas, os pais deles se distanciam, por motivos tanto conscientes como inconscientes, privando-os da convivência e do cuidado afetuoso. E, apesar de referir-se à possibilidade de o abandono advir de qualquer um dos entes parentais, ou seja, tanto do pai quanto da mãe, a prática revela, até o presente momento, que o abandono afetivo é comumente protagonizado pelo pai. Tal fato se deve, na grande maioria das vezes, ao fato de que a prole continua residindo com a mãe após a separação do casal, ainda que venha se constatando que a adoção da guarda compartilhada vem crescendo a partir de 2008. Logo, o abandono afetivo não guarda necessariamente relação com o cumprimento de obrigações financeiras. A pensão alimentícia pode estar sendo cumprida, mas os chamados "deveres de afeto", esperados da paternidade responsável, acabam não adimplidos pelo pai abandônico.
As demandas de indenização por abandono afetivo se alicerçam no princípio da dignidade da pessoa humana que, acolhido na Constituição Brasileira de 1988, produziu uma verdadeira transformação na ordem jurídica, nos valores e anseios da sociedade. O Direito passou a dedicar maior atenção à parte mais vulnerável das relações de ordem privada e pública: a mulher, a criança, o adolescente, o idoso, o consumidor, o sócio minoritário e o meio ambiente. O interesse estatal na proteção jurídica das relações privadas tornou-se mais atuante com vistas à promoção do princípio da dignidade. Por conta disso, o melhor interesse da criança, a paternidade responsável e a afetividade decorrentes daquele princípio constitucional imporiam aos pais o dever de dedicarem à prole não somente apoio alimentar ou material como também amparo afetivo para a salutar formação psíquica e emocional.
De pronto surgem questões: o Estado deve intervir e dar resposta a tudo que lhe demandam? Deve tutelar o afeto transformado em bem? Teria controle sobre o desejo do sujeito? Seria possível conviver sem desejo? Cuidar sem afeto? Que qualidade de convívio se busca? Como compreender a crescente judicialização dos afetos no âmbito da sociedade contemporânea? De que forma a psicanálise pode contribuir, como crítica da cultura, para se repensar esse fenômeno?
DESENVOLVIMENTO
A convivência dos pais com o filho, fundada na efetividade do afeto, vem sendo considerada um bem jurídico tutelado pelo Estado e, por conseguinte, a ausência ou frustração do afeto considerada ato ilícito a gerar danos passíveis de reparação civil. Com base nessa interpretação, as relações familiares, notadamente o vínculo paterno-filial, estariam protegidos pelo conjunto de princípios jurídicos e normas legais que visam à defesa do "patrimônio" moral do filho.
Desde o ano de 2003, diversas ações vêm sendo ajuizadas perante o Judiciário Brasileiro em busca de indenização por danos morais e materiais, supostamente causados pelo abandono afetivo. Em abril de 2012, uma decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao contrário de uma anterior, proferida pela Quarta Turma da mesma Corte, manteve a condenação do pai a indenizar sua filha pelo valor de R$ 200.000,00, com acentuada repercussão nacional, levando o polêmico tema à discussão em fóruns interdisciplinares, debates em programas televisivos e radiofônicos, congressos, revistas impressas e virtuais.
Para a Ministra Nancy Andrighi, as atitudes de não cuidado afetivo, a falta de cuidado em situações de dependência e carência, gerariam no filho sentimentos de impotência, de perda, e a sensação de ser traído por aqueles deveriam dele cuidar: "Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico. [...] Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever" (Andrighi & Uyeda, 2012).
A decisão do STJ entendeu que, não obstante o desmazelo do pai em relação à sua filha, esta superou tais vicissitudes e cresceu com razoável aprumo, a ponto de conseguir inserção profissional, constituir família, ter filhos e conduzir sua vida apesar da negligência paterna. Em continuidade a Ministra escreve:
Entretanto, mesmo assim, não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe. Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações (Andrighi & Uyeda, 2012).
No sentido diametralmente oposto, para o ministro Massami Uyeda, voto vencido naquele julgamento, o lamento da filha adulta por "uma infância perdida, de uma adolescência perdida" (Andrighi & Uyeda), deve ser visto por outro ângulo:
Ora, se atentarmos para a realidade dos fatos, qualquer filho, qualquer filha, enfim, qualquer pessoa poderá dizer assim: mas estou sendo preterido em relação aos meus irmãos e qualquer dado subjetivo poderia motivar um pedido de indenização por dano moral. Ora, isso faria com que quantificássemos ou potencializássemos as mágoas íntimas - muitas legítimas, algumas supostamente legítimas - de filhos, de irmãos, de pais, de marido e mulher também, porque o dever dos cônjuges está entre prestar assistência, amar e tal (Andrighi & Uyeda, 2012, grifos nossos).
Observa-se nos discursos opostos dos dois ministros que o cenário jurídico encontra-se assim polarizado quanto à legitimidade e eficiência da medida de responsabilização civil do pai acionado por abandono afetivo.
Quando se pensa nas tentativas, sempre frustradas e nefastas, de imposição de um padrão de comportamento e afetos humanos às "justas medidas" ditadas por uma ordem externa repleta de "boas intenções", não há como deixar de fazer referência ao mito grego do leito de Procusto1. Tal metáfora é usada para criticar as intervenções ilegítimas na subjetividade humana em diferentes registros do conhecimento: educação, economia, religião, moda, cultura, política, mídia, globalização, neurociências. E aqui, no Direito e, em especial, no tema objeto deste artigo, não seria diferente ao se pensar a adequação ou o controle estatal dos afetos nos relacionamentos interpessoais e familiares.
Analogamente ao mito de Procusto, o Estado vem oferecendo aos jurisdicionados conforto hospitaleiro para atender às demandas de guarida no exaustivo caminho da vida, mas, em contrapartida, acaba por estirar sua intervenção e amputar a potência do desejo que advém da falta, por não ser reconhecida. A Justiça ao intervir "cegamente" na subjetividade humana não se questiona: qual seria a medida do afeto? E se o afeto, mesmo presente, não for suficiente à satisfação da demanda do outro? O afeto pode ser medido?
Quando se discute a intervenção estatal na tutela dos afetos, que mima e mina o sujeito entre o desejo e o dever de afeto, é tempo de começar a refletir sobre o que vem afetando o homem na contemporaneidade à luz da psicanálise; e isso justamente porque ela enfatiza que o laço social não pode ser considerado, a priori, como já dado e que a dinâmica pulsional faz interagir forças independentes e poderosas que lutam entre si, sem conciliação. Com base nesses princípios, Freud (1930/1997), em "O mal-estar na civilização", indaga: por que a felicidade buscada por todos é tão difícil de ser conquistada pelo homem? Por que apesar de todo o desenvolvimento tecnológico há tanto sofrimento e mal-estar na sociedade? A resposta é que há um certo grau de sofrimento inerente ao humano, em razão das três fontes de desconforto existencial: "o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade" (Freud, 1930/1997: 37), sendo este último fator - a relação com o outro - o mais penoso dentre as demais causas de sofrimento humano.
Freud (1908/1996) retoma a tese do conflito entre pulsão e cultura enunciado em "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" para mostrar que se renuncia à busca impossível de um gozo pleno em favor da vida social, cabendo ao social e suas instituições - Estado, família, religião, dentre outras -, remediar ou amenizar esse sofrimento. Trata-se de uma relação ambivalente que o sujeito mantém com a cultura: adere ao contrato social, requer a proteção da comunidade, indispensável à sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, repudia o controle que emana de suas cláusulas normativas.
O estado de tensão entre forças antitéticas constituintes do sujeito se apresenta de forma mais delineada na primeira composição social: a família. Para dar conta do desamparo constitutivo da condição humana, o sujeito está sempre buscando restaurar a sensação de plenitude experimentada na condição de bebê junto à mãe, antes da separação imposta pela função paterna exercida pelo Outro ou pelas exigências da vida. Entretanto, sempre se depara com a realidade dos limites e frustrações e percebe que não consegue obter plenamente o prazer, não alcançando a subtração da dor de existir. A satisfação é sempre parcial.
Freud (1930/1997) exibe, em "O mal-estar na civilização", o cenário da cultura de seu tempo marcada pelo excesso de drenagem das pulsões. Para suportá-lo, dizia, o sujeito precisa fazer uso de paliativos sem os quais seria difícil trilhar caminhos tão áridos, e embarca na tentativa de imersão no lago da plenitude anterior à represa das energias pulsionais, onde a vida seria confortável, menos decepcionante e exigente. Dessa forma nos são apresentados os meios para enfrentar uma vida marcada pelo sacrifício da libido e da agressão, uma novela trágica na qual se formularam questões primordiais em torno do desamparo e da castração simbólica, a perda de algo que nunca se teve.
No cenário contemporâneo a denegação dos limites impostos ao gozo em busca do ideal imperativo de bem-estar vem crescendo. Contudo, ao desejar eliminar o desamparo, mais desamparado o sujeito se encontra, pois muito embora seja constituído por uma interdição, o sujeito passa a vida negando esse fato de estrutura. Os efeitos da derrisão do simbólico são a sensação de maior desamparo e a busca por maiores "alívios". Renato Nunes Bittencourt, ao pensar a cultura contemporânea, reforça esse entendimento quando observa que o nosso tempo busca todos os meios para escapar da dor e do desamparo, almejando "acima de tudo a aquisição de um utópico estado de prazer eterno" (Bittencourt, 2010: 47). Ou seja, na atualidade, o ideal de satisfação deve ser alcançado a qualquer preço. Não se pode ser triste, menos ainda desanimado. Um indivíduo assim não consome, não está afinado com a contemporaneidade do hiperconsumo.
Lipovetsky (2007) emprega o termo "hipermodernidade" para designar o momento no qual a sociedade de hoje se encontra inscrita. Se a modernidade caracterizou-se pela crença iluminista da verdade absoluta, apregoada nos discursos totalizantes firmados em uma razão universal, e a pós-modernidade denunciou a falência desse projeto, por sua vez na "hipermodernidade" assiste-se não à mudança radical daqueles valores modernos, mas à sua supervalorização experimentada por meio de uma cultura de excessos de bens materiais, virtualização das relações e despersonalização das experiências humanas. O hiperconsumo, aponta o filósofo, funciona como um paliativo aos dissabores, os percalços e as frustrações da vida privada. "A febre consumista irrompe a título de lenitivo, de satisfação compensatória, como um expediente para 'reerguer a moral'" (Lipovetsky, 2007: 30).
O excesso de consumo e o número crescente das relações virtuais em redes sociais demonstram parcialmente esse traço contemporâneo de defesa contra a possibilidade do desprazer, efeito de eventuais desencontros, rejeições e frustrações, confirmando a análise feita por Freud (1930/1997), quando conclui que a relação entre os homens é a maior causa de sofrimento humano. Zygmunt Bauman (2004) confirma essas teses ao definir o excesso de consumo atual como algo que favorece o produto para uso imediato. Até mesmo o amor, diz o sociólogo, foi transformado em objeto a ser consumido: "A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a experiência amorosa" (Bauman, 2004: 21-22). Bauman (2004) defende a tese de que as relações humanas estão cada vez mais flexíveis, gerando níveis de insegurança que aumentam a cada dia. Cada vez mais as relações podem ser desmanchadas muito facilmente, seja nas relações amorosas e vínculos familiares, seja entre os seres humanos de maneira geral.
O Direito, cunhado no caldeirão social, não poderia deixar de absorver esse mal-estar contemporâneo, passando a integrar o "exército da salvação" que tenta satisfazer plenamente as demandas, suprir faltas, evitar ou reparar frustrações na vã tentativa de eliminar o sentimento de desamparo no homem. Assim, em uma cultura guiada pelo empuxo ao gozo e pela expectativa de completude, diante daquilo que falta, cada escolha porta a idealização de um encontro pleno, irretocável, baseado na crença de uma conjunção absoluta. Mas, como restou desenvolvido nos tópicos anteriores, a psicanálise discursa sobre a impossibilidade dessa plenitude frente ao desamparo, limites externos e tensões internas que estruturam o sujeito, que só podem cessar no encontro com a morte.
Partindo do pressuposto de que na sociedade contemporânea o sofrimento tornou-se inadmissível, Bauman (2009) sustenta que as dores da vida passam a ser mais facilmente suportadas se administradas pelas autoridades competentes como punição merecida por mau comportamento àqueles que as impingiram, conferindo ao "sofredor" um confortável estado alienante de vitimização. Contudo, ressalta o pensador, essa terapêutica pode afastar a atenção dos que sofrem da verdadeira causa de seu sofrimento, além de ser sedutor convite para incluir qualquer desconforto ou ambição frustrada na lista dos sofrimentos injustificados. Contextualizando tal fenômeno no campo do Direito, Bauman (2009) percebe que o Poder Judiciário, ao aderir a essa bula terapêutica, acaba perseguindo um culpado cuja condenação oferecerá outra vantagem: a compensação financeira das dores humanas. Em suas palavras:
Uma pessoa, ou sujeito de direito, pode ser processada, e não faltam especialistas jurídicos ávidos por assumir a causa do sofredor. Além dos benefícios materiais que os sofredores e seus advogados podem obter a partir do veredicto positivo de um tribunal, a suposta vitimização será então legitimamente confirmada, e assim o impacto terapêutico da explicação da dor mediante a vitimização será reforçado, ainda que as causas da dor saiam intactas desse procedimento (Bauman, 2009: 66-67, grifo nosso).
No mesmo sentido, Alexandre Morais da Rosa (2008), em seu artigo "Mercando a dor no Poder Judiciário: a questão do dano moral pelo abandono afetivo", faz uma interessante costura entre diferentes pensadores da cultura, destacadamente Jacques Lacan, Slavoj Žižek e Charles Melman, ambientados sobre o tecido da obra shakespeariana O mercador de Veneza, para considerar que a pretensão reparatória do abandono afetivo está sendo embalada por um mal-entendido princípio do afeto.
No dizer do jurista, essa interpretação equivocada vem conduzindo à "patrimonialização" do Direito de Família, que perverte a proposta constitucional de humanização do Direito, usada obliquamente para alcançar objetivos outros, emoldurados por "contornos funestos". Reportando-se a Lacan, Rosa (2008) confirma que o Direito, afeto ao gozo, vem se transformando sob a marca narcísica da contemporaneidade em um direito do conforto ou de salvação, no qual não há espaço para limites, frustrações e perdas:
Se a realidade de exclusão causa insatisfação, se o outro olhou de maneira atravessada, não quis cuidar, abandonou, este se coloca na condição de vítima, e reivindica reparação, muitas vezes, moral. [...] Aliás, dano moral passou a ser "band-aid" para qualquer frustração da realidade, sem que a ferida seja cuidada, como se a convivência com o outro não fosse traumática (e violenta) por definição. Os exemplos se diversificam: pais demandam indenização moral, porque não podem ver os filhos; filhos querem indenização moral, porque os pais não os querem ver. Maridos e mulheres que se separam e exigem dano moral pela destruição de outro sonho feliz-de-cidade. Demandas postas, acolhidas/rejeitadas, e trocadas por dinheiro, cuja função simbólica é sabida: pago para que não nos relacionemos (Rosa, 2008: 91-92).
Na evolução do Direito de Família, o conceito de autoridade foi sendo substituído pelo de responsabilidade parental, em que os deveres dos pais acabam sendo superiores aos seus poderes, estes cada vez mais reduzidos diante dos direitos subjetivos da criança. É o que aponta Jean-Pierre Lebrun (2004), para quem esses desdobramentos jurídicos que borram os contornos simbólicos do pai, fragilizando sua atuação, acabam por levar à confusão entre pai e genitor, função paterna e presença física, restando então, enaltecida, a busca pela presença afetiva do pai biológico, supostamente garantidora da harmonia, da organização familiar e saúde do filho.
Deve-se levar em conta que, para Lacan (1959-1960/1988), a cobrança ferrenha da presença do pai em relação à Lei que ele sustenta na família, ou na sua substituição por outra entidade, paradoxalmente, pode produzir efeitos devastadores. Vejamos:
Quando o pai é colocado no lugar de legislador ou se prevaleça dessa faculdade para ser o pilar da fé, como modelo de integridade ou de devoção, como virtuoso ou virtuose, como servidor de uma obra de salvação, de algum objeto ou falta de objeto que haja, da nação ou natalidade, de salvaguarda ou salubridade, todos eles ideais que só lhe fazem oferecer demasiadas oportunidades de estar em posição de demérito, de insuficiência ou até de fraude e, em resumo, de excluir o Nome-do-Pai de sua posição de significante (Lacan, 1959-1960/1988: 586, grifo nosso).
É claro que isso nos leva de volta a Freud e, mais precisamente, a uma passagem importante de "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1997), onde o velho sábio mostra-se perplexo diante do mandamento bíblico "Amarás a teu próximo como a ti mesmo", considerando-o como mais uma das exigências idealizadas impostas ao homem pela cultura para conter a sua agressividade. Máxima que, invariavelmente, conduz a maior agressividade e violência, por exigir sacrifícios sobre-humanos e gerar no outro expectativas que podem não ser correspondidas. Tais exigências "éticas" em nome de uma felicidade a serviço do bem, em que se espera do homem mais do que ele possa dar, acabam por produzir o aprisionamento de seus desejos e afetos convertidos em neurose e sintomas, que o farão ainda mais infeliz. O paradoxo que encontramos é que quanto mais se abre mão dos próprios desejos, mais se torna exigente e crítico o supereu. O bem do afeto convola-se no mal do sofrimento humano. Dessa forma, lê-se em Freud (1930/1997):
Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira (não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual, de vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de amar o próximo se acha em jogo). Ela merecerá meu amor se for de tal modo semelhante a mim em aspectos importantes que eu me possa amar nela; merecê-lo-á, também, se for de tal modo mais perfeita do que eu que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (Freud, 1930/1997: 64-65).
Relendo "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1997), Lacan (1959-1960/1988), em seu Seminário: livro 7, envergou as bases filosóficas da ética aristotélica e kantiana para apontar em direção a uma outra - a ética da psicanálise - em nome da qual se advoga a causa do desejo. Para o mestre de Paris, a experiência moral, uma vez referida à punição, direciona o homem não para uma legislação articulada e flexível, mas na direção de um bem que ele impõe como ideal de conduta, negando assim o seu desejo e as diferenças existentes no seu próprio psiquismo e no seu entorno. Entretanto, Lacan (1959-1960/1988) também oferece outra possibilidade de interpretação, aparentemente paradoxal, que pode ser extraída da própria gênese daquele mandamento bíblico do amar o próximo como a si mesmo, qual seja: retornar o sujeito a seu próprio desejo, quando de sua relação de afeto com o outro.
Afinal, se o ápice desse preceito ético termina em algo tão "escandaloso", como pontua Lacan (1959-1960/1988: 97), há de ser considerada alguma falibilidade nesse discurso enquanto sintoma: "é por ser próprio à lei da relação do sujeito humano consigo mesmo que ele se constitua, ele mesmo, como seu próprio próximo em sua relação ao seu desejo". No referido Seminário, ele define que a ética para a psicanálise exige a sustentação do desejo que direciona a ação, a conduta do sujeito, reportando-se à dimensão da experiência trágica da vida. O trágico do desejo estaria no fato de ele desconhecer os limites que antecipam o abismo, nada o fazendo recuar. Tampouco haveria nele qualquer relação de preservação ou ganho de determinado bem ou interesse em si mesmo. O desejo, para a psicanálise, não se presta aos serviços do bem, a não ser para sua própria satisfação, não se deixando dominar pela vontade do sujeito, por ser-lhe anterior, desconhecido, incontrolável e independente, porquanto referido ao desejo do Outro, deslocando-se de um objeto ao outro.
Com isso, ousamos afirmar que o Direito, quando postula a tutela do afeto, transformando-o em um bem a ser protegido cegamente pela lei, acaba por produzir um megaprincípio resultante da fusão do princípio aristotélico (que prima pelo serviço dos bens) e do princípio moral do categórico kantiano (que erige a lei acima de tudo). Agrada-se assim "a gregos e kantianos" para, em nome de uma pretensa dignidade, perverter os limites da castração, sufocar o desejo, fazer adoecer o sujeito e extrair disso tudo um gozo mortífero das relações afetivas, que se pretende supostamente proteger.
CONCLUSÃO
Na verdade, sob o emblema de conclusão, o que se pretende nesse momento é levantar as considerações tecidas, que aliaram a experiência profissional advocatícia e a interação dialógica mantida com a psicanálise. Portanto, não se trata de uma conclusão propriamente dita que se destine a fechar uma posição, mas, ao contrário, são conjecturas que permitam novas aberturas e discussões sobre o tema. Um outro olhar, uma outra leitura, uma outra escuta que aponte para novas possibilidades de resposta ao problema da judicialização do afeto no campo do abandono afetivo.
Ao estabelecer critérios predeterminados de um bem viver em prol da função educativa que, efetivamente, não lhe pertence, o Poder Judiciário, ao atender às demandas indenizatórias por abandono afetivo, não se dá conta de que, ao condenar o pai ausente a "retornar" sob a forma pecuniária, além de desconsiderar suas motivações psíquicas, condena, antes de mais nada, a suposta vítima do abandono a permanecer no árido solo do ressentimento.
Ressentir-se significa "atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir sobre nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar", enfatiza Maria Rita Kehl (2001: 13). Portanto, o ressentimento constitui "movimento" de expulsão de toda a responsabilidade que o sujeito possui de poder dar um curso mais criativo à sua vida, em vez de ficar submetido ao passado, rancoroso e vingativo, transferindo para o outro a suposta incapacidade de responder e tomar o curso de seu próprio destino. Impede-se, com a posição ressentida endossada por alguns Tribunais, que a potência de vida advinda da falta que constitui o desejo do sujeito possa ressignificar suas experiências, por mais dolorosas que sejam, o que é proposto pela práxis da psicanálise.
O Direito tem por função impor limites ao gozo, mas, em vez disso, muitas vezes os juristas o pervertem, impondo ao outro exigências que o próprio Estado não consegue atender dentro de suas atribuições e competências. Em função disso, estamos dispostos a confirmar as considerações de Lacan (1938/2008) sobre os efeitos do excesso de intervenções na família:
[...] se a psicanálise manifesta nas condições morais da criação um fermento revolucionário que só pode ser apreendido numa análise concreta, ela reconhece, para produzi-lo na estrutura familiar, um poder que ultrapasse qualquer racionalização educativa. Este fato merece ser proposto aos teóricos - qualquer que seja o lado a que pertençam - de uma educação social com pretensões totalitárias, a fim de que cada um tire suas conclusões segundo seus desejos (Lacan, 1938/2008: 59).
A projeção do Estado faltante, em sua tríade judiciária, legislativa, executiva, aponta para a falta do Outro - o pai, a mãe, a família -, mas não se apercebe da sua própria falta. A militância advocatícia no Juízo de Família revela um contrassenso na atuação do Estado em seu interesse de preservar as relações de convivência afetiva entre filhos e pais separados. Invariavelmente, os pedidos de divórcio consensual ficam limitados à fixação de somas alimentícias, regras de visitação e partilha patrimonial, homologados de forma célere.
Não há tempo nem espaço, e nem preocupação em reunir os pais para lhes asseverar sobre a importância do convívio com seus filhos, no momento da separação. A pressa na decretação do divórcio ou na resolução dos problemas de ordem financeira e patrimonial solapa os interesses subjetivos dos filhos. Tampouco se vê tal atitude nos processos litigiosos. As disposições sobre a vida dos filhos menores se resumem cada vez mais às regras de visitação pré-moldadas.
A meta judicial, em regra, dedica-se à apuração dos custos do alimentando e do valor da pensão que pode ser paga pelo alimentante. Mera matemática financeira. A calculadora tornou-se o mais importante instrumento nas mãos dos Juízes e Promotores nas audiências para a resolução dos problemas no Juízo de Família. Assim se estimula, inesperadamente, uma torção perversa do valor simbólico da família, agora transformado, concretamente, no dinheiro a ser gasto com os filhos. O que se revela é que tal dispositivo está absolutamente de acordo com a demanda de nossa sociedade pós-moderna na qual as relações intersubjetivas são mediadas pelo dinheiro.
Por outro lado, o afeto presente no desejo de convivência, merecedor de reconhecimento pelo Estado para fazer-se respeitar na comunidade jurídico-social, não pode ser convertido em dever de convivência. O Estado deve tutelar a liberdade do afeto e não aprisioná-lo, como pretendem os Projetos de Lei comentados, que, sob o uso da força, fazem do laço afetivo um nó de forca. O afeto somente poderá existir se decorrente do desejo entre os sujeitos e não imposto por outrem. De outro lado, também questionável é tentar transformar a falta de afeto em um bem fungível ao dinheiro. Aqui se deve lembrar a pergunta de Cristo - "Pai, por que me abandonastes"? - que tais projetos renunciam a escutar. A solução econômica revela a própria perversidade do sistema: já não cabe mais endereçar a pergunta de Cristo à Alteridade. Por esse caminho, muito em breve a tentativa de preenchimento da falta de afeto pela recompensa pecuniária poderá levar o filho a propor: "Pai, por que não me abandonas?".
Onde o afeto não se manifestou, dentro de determinado padrão moral ou de conduta, onde o vazio emergiu, o sujeito contemporâneo, por não suportar tal fato da vida, erige em lugar da falta tudo o que for possível para tamponá-la e assim poder conviver de forma mais fácil e aparentemente feliz com a sua realidade. Ilusão do gozo que acaba, na verdade, levando todos - pessoas, objetos e dinheiro - a serem postos sobre um mesmo cadafalso, à derrocada de um vazio ainda maior, profundo e muitas vezes mortífero.
Propõe-se respeitar o afeto e sua falta. Respeitar o desejo do sujeito constituído pela falta que o locomove pela vida, desejo que designa a potência da falta como lembra Colette Soler (2012). O Direito, na maioria das vezes, não reconhece que o desejo prepondera sobre a vontade, por se contentar com a redução legalista da razão.
Tratando a falta, a frustração e a tristeza como patologias, as decisões judiciais condenatórias do pai que não desejou seu filho, capitaneadas pelo recente acórdão proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no voto da ministra Nancy Andrighi, compara o cuidado afetivo às relações de enfermagem e, assim, prescreve a imposição legal da presença "afetiva" como obrigação inescapável e, na sua ausência, a indenização, ambos como medicamentos para fortalecerem o leucêmico laço afetivo.
Nesse aspecto, a comentada decisão alinha-se perfeitamente à sociedade contemporânea cada vez menos tolerante à falta e à dor. Absorvendo os traços do hiperconsumo que tamponam a castração, em que o afeto vira moeda em relações cada vez mais contabilizadas a crédito e a débito, próprias do discurso capitalista, o Direito vem ensejando intensa judicialização das relações afetivas em busca do ilusório estado de conforto. Tentativa vã de dissimular as tristezas, mesmo que coerentes com as experiências vividas.
Diante da crise do simbólico em uma sociedade voltada ao real do gozo, em que a mediação pela palavra perde força devido ao afastamento dos laços diante da virtualidade das relações humanas, o declínio da função paterna, tão comentada na atualidade, acaba sendo objeto de restauração pelo Estado, sob a pior forma possível. Adotam-se, em nome do bem, práticas autoritárias que apostam no incremento da repressão e na legitimação do uso da força em nome do Pai primevo, o gozador que denegava limites, invadia as fronteiras da subjetividade e excluía a alteridade em nome do próprio gozo. Assim se reanima o cadáver insepulto do Pai da horda, lá onde a ordem só pode ser mantida sob a regulação do Pai morto.
Quando o entendimento judicial "mima" o ordenamento jurídico e diz se a lei quer, a lei tem, promove-se a infantilização do sujeito, que, sem defesas, sucumbe às vicissitudes da vida. Pais, mães e filhos, todos são infantilizados em suas relações tuteladas pelo Estado. Compreende-se assim que as condenações indenizatórias dessa natureza, ao colimarem o preenchimento do desejo ou de sua falta, acabam na verdade, esvaziando a potência que pode advir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS
Personagem da mitologia grega de nome Damastes apelidado de Procusto (o estirador). Hospedava viajantes a caminho de Atenas. Não se sabe se para agradar seus hóspedes ou a si mesmo, Procusto criou uma cama perfeita para o descanso dos visitantes, onde um homem ideal estaria encaixado em perfeita harmonia. Os hóspedes, quando não se ajustavam aos padrões do leito, enquanto dormiam passavam a ser vítimas de Procusto, que lhes cortava os excessos de seu corpo ou os esticava até a morte. Teseu terminou com a obsessão homicida de Procusto, obrigando-o a deitar no seu próprio leito, atravessado, e cortou todas as suas partes do corpo que sobraram fora da cama.
Recebido em 7 de julho de 2012
Aprovado para publicação em 31 de agosto de 2013