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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro jul. 2014

 

ARTIGOS

 

Sobre o trauma: contribuições de Ferenczi e Winnicott para a clínica psicanalítica

 

About trauma: Ferenczi's and Winnicott's contributions to psychoanalytical clinic

 

 

Solange Maria Serrano Fuchs*; Carlos Augusto Peixoto Júnior**

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) - Brasil

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é refletir sobre as concepções teóricas de Sándor Ferenczi e de Donald Woods Winnicott a respeito do trauma, ressaltando a importância dessas contribuições para a abordagem teórico-clínica de pacientes difíceis em psicanálise, na qual a confiabilidade do analista, a contratransferência e o lugar do corpo e do afeto no âmbito psicoterapêutico tornam-se fundamentais. Estes elementos podem orientar o manejo clínico, principalmente no processo analítico de pacientes que apresentam dificuldades de simbolização. Dessa forma, pretendemos enfatizar a dimensão do cuidado presente nas postulações teórico-clínicas desses autores e sua importância frente aos impasses e desafios da clínica do trauma.

Palavras-chave: trauma; contratransferência; confiabilidade; corpo e afeto; cuidado.


ABSTRACT

The proposal of the article is to think about Sándor Ferenczi's and Donald Woods Winnicott's theoretical concepts regarding trauma, highlighting the importance of those contributions to the theoretical and practical approach to difficult patients in psychoanalysis, at which the reliability of the analyst, the countertransference and the significance of body and affection in the psychotherapeutic sphere play a vital part. These elements may guide clinical handling, especially in the analytical process of patients that present symbolization difficulties. Thus, we intend to stress the relevance of care in the theoretical and clinical postulates of these authors, as well as its importance when facing the impasses and challenges of the trauma treatment.

Keywords: trauma; countertransference; reliability; body and affection; care.


 

 

Introdução

É indiscutível o valor das contribuições de Sándor Ferenczi e de Donald Winnicott para a teoria e clínica psicanalíticas, principalmente no que diz respeito ao campo das patologias graves tão frequentes na clínica atual. Dada a relevância destas contribuições, pretendemos assinalar as ideias desses autores que nos parecem pertinentes para uma reflexão clínica em psicanálise, na qual a contratransferência, a experiência de confiabilidade e o lugar do corpo e dos afetos no âmbito terapêutico tornam-se fundamentais para a sustentação da relação transferencial, na medida em que dão acesso a certas intensidades que não puderam ser representadas. Dessa forma, tornam-se importantes instrumentos para orientar o manejo clínico, principalmente no processo analítico de pacientes que vivenciaram situações traumáticas e precisaram recorrer a defesas extremas como, por exemplo, a cisão egoica.

A experiência clínica de Ferenczi e Winnicott com pacientes graves apontou para a necessidade de ampliação do campo teórico em psicanálise, no qual novas conceituações e perspectivas precisaram ser desenvolvidas a partir da observação de fenômenos clínicos. Estes indicaram a necessidade de redimensionar a questão do infantil, do valor do objeto primário e seu papel preponderante nos processos de constituição e estruturação subjetiva. Tal experiência também possibilitou uma maior compreensão a respeito do desenvolvimento emocional primitivo através da investigação de fenômenos transferenciais e contratransferenciais, bem como a partir da observação dos efeitos das falhas nos processos de estruturação psíquica daqueles pacientes considerados difíceis. Nas perspectivas teóricas de Ferenczi e Winnicott, portanto, a dimensão relacional foi enfatizada não apenas nos processos de desenvolvimento inicial, como também no processo de subjetivação propiciado pela experiência analítica.

Não é nosso objetivo tecer uma comparação pormenorizada das ideias desses autores, mas demarcar a contribuição criativa dos mesmos para a clínica e a teoria psicanalíticas, apresentando inicialmente a perspectiva teórica de cada um deles sobre o trauma para, em seguida, abordarmos os aspectos valorizados por ambos no que diz respeito à qualidade da presença do analista, visando à criação de uma atmosfera terapêutica mais favorável à redução do sofrimento de pacientes graves.

 

A infância e o desamparo frente à confusão de língua

Quando a criança era criança
andava balançando os braços.
Desejava que o riacho fosse rio,
que o rio fosse torrente...
E essa poça, o mar.

Quando a criança era criança,
Não sabia que era criança.
Tudo era cheio de vida,
e a vida era uma só.

Quando a criança era criança
Não tinha opinião...
Não tinha hábitos,
sentava-se de pernas cruzadas,
Saía correndo...
Tinha um redemoinho no cabelo
E não fazia pose para fotos
[...]

Peter Handke, Canção da Infância, 1987

A poesia de Peter Handke (1987) "Canção da infância" ilustra a linguagem da ternura, a espontaneidade e a esperança que são próprias da infância, quando ela pode ser vivida como tal, oferecendo espaço para a criança imaginar, criar, construir, dar asas à sua imaginação e à sua onipotência, o que permite o desenvolvimento da capacidade de desejar; uma conquista possível, decorrente de um processo natural de amadurecimento que, no entanto, pode sofrer sérios desvios, interrupções ou impedimentos.

Ferenczi foi um dos primeiros psicanalistas a se deparar com casos clínicos graves, ou seja, a lidar com pacientes que sofreram esses impedimentos em seu desenvolvimento psíquico por consequência da ação do trauma decorrente de vivências que ultrapassaram em muito a capacidade de defesa. Nesse contexto, cabe assinalar a importância do ambiente em oferecer a proteção e o cuidado necessários.

Ao considerar que a linguagem da criança é a linguagem da ternura, Ferenczi assinala, sobretudo, a importância da qualidade do vínculo com os objetos para o amadurecimento emocional da criança. Cabe lembrar que esse aspecto foi amplamente enfatizado por diferentes teóricos das relações objetais precoces que foram direta ou indiretamente influenciados por suas ideias, dentre os quais se destacam Winnicott e Balint.

A questão do vínculo afetivo e da linguagem da ternura, proposta por Ferenczi, foi largamente desenvolvida por Balint (1936/1965, 1968/1993), por exemplo quando ele enfatiza a importância, no contexto do amor primário, da dependência amorosa entre o bebê e sua mãe para a constituição e o desenvolvimento do psiquismo primário, assim como as graves consequências provenientes das falhas ambientais no atendimento destas necessidades iniciais. Para Balint, as atividades libidinais mais precoces não se caracterizavam antes de tudo pela busca de satisfação pulsional, como enfatizavam Freud e Melanie Klein, pois eram "marcadas de modo prioritário por um investimento de ternura na figura materna" (Peixoto Júnior, 2013: 99).

Além disso, é importante assinalar também que o fato de Ferenczi mencionar a ingenuidade e a inocência como sinônimos de ternura, como lembra Pinheiro (1995), não significa que não haja sexualidade neste contexto, mas sim que a ternura é anterior à sexualidade genital. Há, portanto, uma ausência de simetria entre a sexualidade da criança e a sexualidade do adulto, tema nem sempre reconhecido por muitos psicanalistas, mas evidente na clínica de Ferenczi, que considerou urgente trazê-lo à discussão.

O trauma ou comoção psíquica é resultante, para o psicanalista húngaro, da confusão que a linguagem da paixão dos adultos pode provocar na subjetividade da criança, ainda marcadamente caracterizada pela linguagem da ternura. O trauma pressupõe, portanto, a intervenção de um fator exógeno que acarrete uma modificação no psiquismo descrita de diversas formas, em 1933, no artigo sobre a "Confusão de língua entre os adultos e a criança". Nesse trabalho, Ferenczi descreve amplamente o tema do desencontro entre a sexualidade da criança, pré-genital, e a sexualidade genital do adulto, explicitando as diferentes modalidades de "confusão de língua" que nele podem ocorrer. Em todas essas descrições, a falha do ambiente provoca o trauma. Dentre estas falhas, Ferenczi menciona as seduções normalmente incestuosas de um adulto ou mesmo o abuso sexual. Esta experiência de violência sexual, que constitui o modelo do trauma desestruturante na teorização de Ferenczi (1933/1992), refere-se ao primeiro tempo do trauma. O desmentido por parte de outro adulto – em quem a criança confia e a quem recorre em busca de amparo e sentido para essa experiência – corresponde ao segundo tempo. O desmentido vem conferir a essa experiência traumática um caráter intensamente desestruturante e patológico, uma vez que a criança busca se organizar psiquicamente através dos sentidos que são dados pelo outro, o adulto, o qual supostamente lhe ofereceria as condições necessárias para estabelecer uma relação mediada entre ela e seu mundo.

O adulto, ao desmentir a experiência física e mental vivida pela criança, provoca uma ruptura em sua capacidade de confiar em suas próprias percepções, o que é extremamente desorganizador. Além disso, a criança perde a confiança no outro, alguém familiar em quem ela, até então, confiava. Há, portanto, uma interrupção no movimento libidinal de introjeção de tudo aquilo que é passível de ser incluído e metabolizado no psiquismo, que é tomado por uma angústia indizível, causada pelo abandono e pelo desamparo a que a criança é submetida em total solidão. A esse respeito, Ferenczi lembra em seu "Diário clínico" (1932/1990): "o ser que fica só deve ajudar-se a si mesmo e, para esse efeito, clivar-se naquele que ajuda e naquele que é ajudado" (Ferenczi, 1932/1990: 240).

O ego clivado é capaz de produzir apenas representações precárias, pois perde as funções de síntese. A introjeção, que permite a inclusão no psiquismo das representações e associações, fica impedida. O que resta dessa experiência para a criança é a identificação com o agressor, fruto da introjeção inassimilável, por pura incorporação do sentimento de culpa do adulto. Isto leva a criança a sentir-se culpada de alguma coisa que ela desconhece, na tentativa de não abrir mão do adulto idealizado.

Além da modificação no psiquismo da criança, gerada pelo amor forçado, ou seja, pela confusão que a linguagem passional provoca no psiquismo em formação, Ferenczi, no importante artigo de 1933, fala ainda das punições passionais de adultos furiosos. Essas reações também provocam uma mudança autoplástica no psiquismo em desenvolvimento. Neste contexto, a personalidade procura tornar o choque inexistente, o que acarreta uma espécie de anestesia emocional e uma submissão imediata e incondicional da criança como única defesa possível. A raiva que ela sentiria dessa situação que lhe é imposta retorna para ela mesma, que se sente culpada pelo ocorrido. Essa leitura do trauma nos remete a uma compreensão a respeito do superego que se diferência da concepção freudiana, na qual sua formação seria correlativa ao declínio do complexo de Édipo.

Ferenczi (1933/1992) chama atenção para o fato de que muito precocemente a criança sentiria os efeitos da linguagem passional e repressora do adulto. Tal concepção a respeito do superego nos ajuda na compreensão da dor psíquica de pacientes que, diante de certas pressões da vida, sentem-se ameaçados pela crítica severa incorporada, na qual as próprias escolhas perdem sentido e, junto a isso, o próprio sentimento de si (Selbstgefühl)1 se torna inconsistente.

Na concepção de Ferenczi (1933/1992), em todos os fatores traumatizantes a dimensão relacional é o pano de fundo na configuração de um excesso não metabolizável imposto pelo adulto à criança. Ferenczi, portanto, inclui em sua concepção do traumático desde o aprendizado das normas de higiene até a violência sexual sofrida por uma criança, como vimos. Há, portanto, traumatismos necessários para a estruturação psíquica e, por outro lado, vivências que desorganizam, desestruturam a subjetividade por não poderem ser metabolizadas pelo psiquismo.

O autor considera que as medidas repressivas na educação também têm consequências sérias para o psiquismo da criança. Na verdade, esse tema é trabalhado desde "Psicanálise e pedagogia", um de seus primeiros artigos psicanalíticos, escrito em 1908, no qual critica a pedagogia fundada em dogmas rígidos, que levam a criança "a mentir para si mesma, a negar o que sabe e o que pensa" (Ferenczi, 1908/1991: 182). Ele retoma essa questão em "Transferência e introjeção", artigo de 1909, no qual assinala a perturbação brutal gerada no psiquismo da criança pela retirada prematura da libido investida na relação com os pais como forma de defesa frente a atitudes parentais exageradamente repressoras e pouco afetivas.

Além da severidade excessiva, Ferenczi (1929/1992) lembra que crianças que não foram desejadas por seu meio social, que não foram acolhidas por um objeto mediador da sua relação com o mundo externo, sofrem distorções graves em seu psiquismo, chamando a atenção para o fato de que, nessas condições, a criança torna-se o lugar de passagem preferido para o sadismo inconsciente dos pais.

O terrorismo do sofrimento é outra forma de traumatizar a criança, que fica refém, obrigada a cuidar dos adultos e a se tornar uma espécie de substituto materno, um cuidador, em detrimento dos interesses e necessidades de cuidados próprios da infância, o que leva a um amadurecimento precoce. Ferenczi (1933/1992) considera tal mecanismo de prematuração patológica, a progressão traumática, uma das reações possíveis frente ao trauma ou choque psíquico. Além desse mecanismo posto em ação frente à profunda divisão egoica gerada pela experiência traumática, a criança pode regredir a uma fase anterior, na tentativa de tornar tal vivência inexistente. Esse é o mecanismo descrito por Ferenczi como regressão traumática.

Em um artigo publicado postumamente em 1934, intitulado "Reflexões sobre o trauma", Ferenczi retoma o tema da comoção psíquica, assinalando de forma precisa os efeitos do choque traumático, e chega mesmo a falar em aniquilação do sentimento de si, abandono de si sem resistência como defesa extrema. A palavra Erschütterung – comoção psíquica – deriva de Schutt, que significa restos, destroços, fragmentação. A mudança autoplástica no psiquismo decorre do efeito provocado pelo fator surpresa, devido ao fato de que o choque sobrevém intensamente e sem preparação, ou seja, no que ele é precedido por um sentimento de segurança e confiança em si e no entorno.

A teoria de Ferenczi sobre o trauma foi construída a partir das observações de sua prática clínica; em seu "Diário clínico" (1932/1990) ele descreve algumas reações emocionais e sintomas corporais, "os símbolos mnêmicos físicos" que correspondem a importantes indícios de experiências traumáticas, nem sempre passíveis de serem traduzidas em palavras, posto que correspondiam a vivências psiquicamente irrepresentáveis.

Ferenczi considerou fundamental manter-se em sintonia com o estado emocional de seus pacientes, visando criar meios terapêuticos que lhe franqueassem alguma forma de acesso ao que não pôde adquirir sentido. Podemos dizer que sua preocupação era desenvolver uma prática clínica que não fosse uma repetição do trauma, oferecendo um espaço para a regressão terapêutica. Ferenczi percebeu que o movimento psíquico da regressão na análise não estaria relacionado à resistência, mas à necessidade de elaboração do trauma, o que possibilitaria maior integração das partes dissociadas do ego dos pacientes que precisaram recorrer a cisões frente ao trauma desestruturante.

A questão do trauma, como vimos, está presente desde seus artigos iniciais e de tal forma que podemos considerá-lo como o fio condutor da sua concepção clínica e teórica. Ao investigar as consequências geradas pelas vivências desestruturantes para o psiquismo e ao criar meios terapêuticos para abordá-los, modificando a técnica analítica em alguns momentos de seu percurso, o psicanalista húngaro contribuiu para a compreensão da psicose e dos casos difíceis da prática clínica.

 

A abordagem de Winnicott sobre o trauma

A noção de trauma na teoria de Winnicott pode ser compreendida a partir da conjunção de alguns fatores. Em primeiro lugar, o valor dado por ele ao ambiente. Dessa forma, podemos dizer que, seguindo a tradição da herança ferencziana, o autor considera fundamental o fator externo como preponderante na questão do trauma. Além disso, Winnicott enfatiza que o início da vida é marcado por um período em que a dependência do ambiente, no caso, da mãe suficientemente boa, é absoluta. Essa ênfase na dependência foi desenvolvida não tanto a partir da observação direta dos lactentes, pois resultou de estudos sobre a transferência e fenômenos contratransferenciais no atendimento a pacientes borderline, cuja etiologia, segundo Winnicott (1960b/1983), envolve uma distorção do tempo da dependência absoluta.

Um terceiro fator que nos ajuda a pensar a maneira de Winnicott conceber o traumático é a ideia de processo, que pressupõe uma dimensão temporal, ou seja, o trauma varia de significado de acordo com o estágio do desenvolvimento emocional da criança. Se o trauma implica, portanto, em uma não adaptação por parte do ambiente, em um estágio em que a dependência é absoluta, a falha materna provoca reação à intrusão e as reações interrompem o "continuar a ser". A esse respeito nos diz Winnicott:

O ponto principal é que essas falhas são imprevisíveis; não podem ser consideradas pelo lactente como projeções, porque este não chegou ainda ao estágio de estrutura do ego que torna isto possível e o resultado é o aniquilamento do indivíduo. A continuidade de sua existência é interrompida (Winnicott, 1963a/1983: 231).

Winnicott quer ressaltar que no estado de indiferenciação inicial mãe-bebê as falhas maternas e as reações a elas não resultam em frustrações como ocorreria em fases posteriores, mas correspondem a experiências invasivas, a angústias inomináveis, a sensações de aniquilamento e à desintegração. As falhas não são sentidas como falhas da mãe, mas como ameaças à existência do eu. Nesse estágio, não podemos falar propriamente em relação objetal; o que há é uma unidade mãe-bebê, e esse estado de união plena é uma necessidade, devido ao ego do bebê ainda frágil e sem condições de defesa para lidar com os estímulos excessivos do ambiente. A base para o estabelecimento do ego é um suficiente "continuar a ser" não interrompido por reações à intrusão. Quando essa experiência de continuidade é interrompida pela necessidade de reação, uma deficiência no setor da confiabilidade é introjetada.

Winnicott considera essencial para o bem-estar do lactente que a mãe desenvolva uma capacidade de se identificar com seu bebê. Esse fenômeno é chamado de preocupação materna primária, e é este estado que possibilita que a mãe seja capaz de reconhecer as necessidades do bebê, evitando falhas no cuidado inicial que representariam a vivência de ansiedades impensáveis ou arcaicas. Nesse estágio do desenvolvimento, o lactente não possui ainda condições de esperar muito tempo pelo atendimento de suas necessidades, precisando do suporte egoico imediato que é oferecido pela mãe. Essa é a experiência do holding psicológico e físico, a qual será importante e necessária por toda a vida, mas em níveis diferentes.

No início da vida, o bebê compreende o amor que é expresso em termos físicos através dos cuidados que constituem uma experiência de sentir-se amparado, sustentado. Da mesma forma, a confiabilidade no ambiente é vivenciada através dos gestos, do contato físico, através do ato e do ritmo, pois, nessa fase da vida, a linguagem verbal ainda não tem importância. Neste momento, o bebê registra aspectos relacionados à forma e não ao conteúdo. A comunicação nessa fase da vida é silenciosa, acontece pela via corporal e afetiva. A consistência da presença da mãe e a continuidade nos cuidados possibilitam que a capacidade de confiar se desenvolva, ou seja, permite a "crença na confiabilidade" dos objetos (Figueiredo, 2009).

Winnicott também enfatiza a importância da falha materna posteriormente, quando já há um ego integrado, ou seja, a importância da desilusão que é essencial para a criatividade. "Se a interação de fusão e separação é a essência da criatividade, o estabelecimento da separação é essencial" (Giovacchini, 1990/1995: 101). É a união mãe-bebê que permite que a separação possa ser vivida como tal pelo bebê. A criatividade surge como consequência da sobrevivência da mãe e do bebê ao ódio que a criança sente da mãe. A criança cria seu espaço próprio a partir dessa vivência de que a sobrevivência é possível, de que a mãe aceita o caráter criativo de seu bebê, de que ela aceita a separação. Para Winnicott, portanto, o trauma é contingencial e dependente das formas de interação com o ambiente que poderá ou não oferecer o cuidado necessário. Assim, pode-se notar como o fator ambiental é determinante na concepção winnicottiana.

Ao falar sobre o mecanismo de cisão no pensamento clínico e teórico de Winnicott, Outeiral e Godoy (2003) lembram a importância desse conceito, desenvolvido por Freud em "Inibição, sintoma e ansiedade"(1926/1996), no texto sobre "Fetichismo"(1927/1996) e também trabalhado em 1938 (1996) em "A cisão do eu no processo de defesa". SegundoOuteiral e Godoy o mecanismo de cisão é evidenciado em três originais conceitos de Winnicott: verdadeiro e falso self, na dissociação psique-soma e nos elementos masculino e feminino. Os autores também ressaltam que a cisão pode ser compreendida de acordo com diversas nomeações, tais como cisão ou clivagem no ego(Freud),cisão no objeto (Klein) e cisão no self (Winnicott).

Winnicott (1962/1983) também diferência cisão de desintegração. A cisão pode ocorrer no decurso do amadurecimento emocional e sua abrangência vai depender do ambiente facilitador, representado pela mãe suficientemente boa. Já a desintegração nos remete a estados muito primitivos e às ansiedades impensáveis. A falha no cuidado adequado leva à desintegração e não a um retorno ao estado de não-integração. O bebê vive inicialmente um estado de não-integração, um estado natural dessa fase na qual precisa do ego integrado da mãe como ego auxiliar que possibilita o atendimento às suas necessidades nessa fase da vida. Quando isso não ocorre, surgem ansiedades ligadas à experiência de não-integração que pode se transformar em desintegração. Além destas, podem surgir também ansiedades relacionadas à ausência de relacionamento entre a psique e o soma, o que, segundo Winnicott (1945/1988), resultará num sentimento de despersonalização. Uma terceira possibilidade são as ansiedades relacionadas à não constituição da casca limitadora e protetora que se forma quando a experiência de ser cuidado ocorre. O cuidado possibilita que o cerne ou o núcleo do ser possa vir a se tornar um indivíduo.

Winnicott (1952/1988) nos diz que as técnicas do cuidado suficientemente bom neutralizam a perseguição externa e previnem os sentimentos de desintegração e de perda de contato entre psique e soma. Ainda nesse artigo, o autor esclarece que o cuidado possibilita a criação de uma membrana limitadora (personalização) e, ao mesmo tempo que forma um interior, o mundo externo, que não existia até então sob o ponto de vista do bebê, começa a ser criado.

Em seu trabalho sobre a "Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self" (1960b/1983), o psicanalista britânicodescreve gradações de falso self, desde os quadros psicopatológicos que apontam para uma não existência, num grau de distorção do ego muito grande, ou, ainda, como organização defensiva (distorção menor). Além dessas, menciona o falso self como atitude social, numa dimensão de cuidado situada dentro de um quadro de normalidade. Em qualquer caso, o falso self ou self cuidador, assim batizado por uma paciente de Winnicott, mostra-se como uma estrutura que existe para defender o verdadeiro self.

Além da cisão psique-soma, e daquela entre verdadeiro e falso self, Winnicott faz referência ainda à cisão entre os elementos feminino e masculino, noção desenvolvida em "A criatividade e suas origens" (1971/1975). A base para o sentimento de self se constitui através da plena união entre o bebê e o objeto; e de tal forma que a provisão ambiental é oferecida de acordo com as necessidades do bebê. Esse é o elemento feminino que tem suas raízes na experiência fusional, na qual o objeto é subjetivo. Winnicott distingue essa vivência das satisfações pulsionais; a experiência de ser é muito mais abrangente e fundamental (1971/1975). Nestas condições, o cuidado oferecido pelo ambiente permite que o ego em desenvolvimento venha a suportar as excitações do id de forma que estas não sejam vividas como traumáticas, mas fortalecedoras do ego. A experiência de ser possibilita, portanto, que a dimensão pulsional possa ser percebida como parte do self. Winnicott relaciona, então, essa experiência de ser ao elemento feminino. O elemento masculino puro denota o fazer e ele é decorrente da base formada pelo sentimento de ser. O fazer pressupõe um objeto objetivamente percebido.

 

A dimensão do cuidado na clínica

Como já deve ter ficado evidenciado até aqui, o conceito de trauma nas concepções teóricas de Ferenczi e Winnicott foi desenvolvido a partir da experiência clínica com pacientes graves; aqueles considerados inanalisáveis pela psicanálise clássica que, durante um bom tempo, restringiu sua investigação teórico-clínica aos quadros sintomatológicos relativos às histerias, fobias e obsessões. O sofrimento neurótico, portanto, foi a principal referência clínica para a elaboração do método analítico e para a construção da metapsicologia freudiana, centrada principalmente no reconhecimento da dimensão intrapsíquica, do estatuto do desejo e das fantasias pertencentes ao campo da realidade psíquica.

Apesar de a noção de trauma ter sofrido modificações importantes no decorrer das investigações de Freud, principalmente após a virada dos anos 20, com a hipótese do segundo dualismo pulsional (pulsão de vida e pulsão de morte) e da compulsão à repetição (1920/1996), e ainda com as abordagens desenvolvidas com relação às temáticas da melancolia (1917/1996), da depressão (1923/1996), do masoquismo (1924/1996) e da angústia (1926/1996), não nos parece ter havido uma verdadeira reelaboração teórica ou adaptação da prática analítica no que diz respeito à técnica para os casos clínicos graves por parte da grande maioria dos freudianos da época.

Ferenczi, no entanto, desde aquele momento sentiu necessidade de adaptar a técnica analítica ao contexto clínico singular do sofrimento de seus pacientes. Apesar de algumas tentativas com relação à técnica terem sido falhas, dentre elas os excessos com relação à atividade, tais tentativas frustradas se constituíram para Ferenczi em "uma provocação irresistível", nas palavras de Balint (1967/1992: XVIII). Ferenczi sentia a necessidade de avançar na investigação a respeito da técnica, de forma tal que essas falhas serviram como contraponto a novas reformulações técnicas desenvolvidas no sentido de evitar retraumatismos e atender à necessidade de cuidado, na qual a dimensão terapêutica tornava-se uma prioridade para que a cicatrização (Balint, 1968/1993) ou uma possível elaboração do trauma pudesse ocorrer.

Essa forma de conceber o trabalho analítico é desenvolvida pelo psicanalista húngaro, mais precisamente em "Princípio de relaxamento e neocatarse" (Ferenczi, 1930/1992), artigo que marca a ruptura com a clínica da época e também com a técnica ativa, já que esta tinha como base o princípio de abstinência. Aos poucos, Ferenczi foi percebendo que a atitude do analista com os pacientes traumatizados precisava ser outra; considerava a atitude fria ou mesmo hipócrita por parte do analista um mal a ser erradicado da clínica psicanalítica. Na verdade, essa mudança já vinha se insinuando desde o seu trabalho "Contra-indicações da técnica ativa", publicado em 1926.

As propostas de Ferenczi, portanto – principalmente aquelas desenvolvidas a partir do final dos anos vinte, ou seja, o tato, a empatia analítica, o valor da dimensão afetiva e corporal e a importância da confiabilidade na relação analítica –, são conceitos fundamentais para a prática analítica atual que privilegia a dimensão do cuidado. Essas propostas, como dissemos, tornaram-se o centro da perspectiva teórico-clínica de Ferenczi desenvolvida, substancialmente, nos últimos anos de sua prática clínica. Mas a leitura mais pormenorizada de sua obra nos leva à constatação de que a base dessas ideias já estava presente desde seus trabalhos iniciais, visto que demonstravam certa elaboração nesse sentido.

O artigo de 1928, sobre a elasticidade, sem dúvida foi um marco para o aprofundamento das propostas inovadoras de Ferenczi com relação à técnica, que deveria ser mais flexível, considerando as necessidades do paciente, o que, segundo o autor, "não equivale em absoluto, a ceder sem resistência. Procuramos, é certo, colocar-nos no diapasão do doente" (Ferenczi, 1928/1992: 36). Essa ideia nos remete a duas atitudes do analista: uma que acompanha o paciente, reconhecendo que suas possibilidades se modificam no decorrer do processo, e outra, que lida com os limites das nossas intervenções.

Ainda nesse contexto, Ferenczi ressalta que a "atitude de observação objetiva e reservada" (1930/1992: 60) tem sua importância, e a diferência da atitude de "reserva severa e fria" (1930/1992: 61). Essa distinção é fundamental, pois nos parece que a primeira oferece espaço para o paciente poder entrar em contato com o seu mundo interno, em um processo crescente no qual se torna perceptível o nosso interesse sincero em escutá-lo, numa atitude "amistosamente benevolente", nas palavras de Ferenczi (1930/1992: 60), o que levaria ao desenvolvimento da confiança. Já a segunda nos remete a uma atitude defensiva por parte do analista, até mesmo caricata, que resultaria em um aumento das resistências ou mesmo em retraumatismos para o paciente.

Dessa forma, Ferenczi (1930/1992) ressalta a importância da análise do analista para que ele possa trabalhar em busca de uma terapêutica mais eficaz, equilibrando-se entre presença e ausência nessa linha tênue que lhe permitiria reconhecer certas associações que muitas vezes o próprio paciente não percebe. Mantendo-se também atento às resistências, ele possibilitaria ainda que pensamentos retidos e tendências inconscientes viessem à tona. De fato, nos diz Ferenczi (1928/1992: 32), "quase poderíamos falar de uma oscilação perpétua entre sentir com, auto-observação e atividade de julgamento". O autor também ressalta que a análise do analista permitirá ao mesmo tempo reconhecer o momento adequado e a forma de que deve revestir-se uma comunicação. Essa forma tem por base o tato psicológico, o Einfühlung, descrito por Ferenczi em seu artigo "Elasticidade da técnica psicanalítica" (1928/1992).

O tato é para Ferenczi a faculdade de sentir com, sentir dentro de si como o paciente está se sentindo, o que nos remete imediatamente à atitude cuidadosa do analista que sabe esperar o momento adequado para interpretar ou silenciar-se de acordo com o ritmo do paciente. Definitivamente, o cuidado ou o tato, base para a experiência integradora, é sustentado pela análise do analista, como também por sua auto-observação, ou seja, aquilo que lhe possibilita a apreciação consciente da situação dinâmica na relação transferencial.

No artigo de 1930 sobre relaxamento e neocatarse, há importantes considerações que interessam à clínica contemporânea, na medida em que se refere a um estilo de trabalho no qual é necessário o acolhimento da repetição, da atuação e de outras formas de comunicação não verbal, tais como os sintomas corporais, os "mnemos" orgânico-psíquicos ou mesmo a atmosfera ou certas sensações que, muitas vezes, transmitem mais sobre o estado afetivo do paciente do que as mensagens proferidas verbalmente.

Ferenczi preferiu "escutar" esses sintomas como formas de narrativa intensas e pregnantes, ainda que marcadamente silenciosas; formas que exigem grande disponibilidade emocional, psíquica e corporal por parte do analista não apenas para captá-las, ou torná-las metabolizáveis para o paciente, mas, principalmente, devido à necessidade de um constante trabalho psíquico no âmbito da contratransferência, ou seja, diante do efeito dessas comunicações sobre o seu psiquismo.

Ferenczi trouxe para a reflexão em psicanálise a importância da contratransferência de uma forma até então não elaborada. Considera fundamental que o analista leve em consideração a atmosfera, os sentimentos, as sensações, a expressão do corpo, os gestos, o olhar que emanam do paciente, pois tais indícios representam "comunicações" que precisam ser acolhidas pelo analista, para que possam ser transpostas em palavras, visando à superação da comoção psíquica através da elaboração dessas vivências não simbolizadas que precisam ser representadas. Dessa forma, esse discípulo de Freud trouxe ao primeiro plano de investigação em psicanálise a dimensão intersubjetiva presente na relação entre o analista e seu paciente. O analista precisa transitar entre a transferência e a contratransferência; precisa ter condições internas para lidar com o efeito das identificações projetivas, das palavras, dos silêncios, dos afetos, da corporeidade, das sensações, das pequenas percepções (Gil, 2005) que correspondem a comunicações do mundo interno de seu paciente. A esse respeito, Rozenthal (2014: 189) diz que "tais percepções imperceptíveis correspondem à dimensão primordial da subjetividade, a qual se encontra em contínuo processo de autoprodução".

A ideia de processo torna-se aqui fundamental, na medida em que a dimensão espaço-temporal na análise assegura uma história que é vivida e revivida; é passado e presente; é real e virtual, constituindo importantes paradoxos presentes na clínica. Nessas condições, o tempo é um tempo de espera, segundo o ritmo que é possível para o paciente. De acordo com esse ritmo, a interpretação oferecida pelo analista como proposição poderá ter efeito de holding, o que também significa cuidado clínico.

Muitas das contribuições de Ferenczi podem ser aproximadas das concepções desenvolvidas por Winnicott que, sobretudo, foi um clínico sensível em sua escuta. A experiência clínica de Winnicott também o levou a reconhecer a importância do desenvolvimento da confiabilidade no processo analítico. O psicanalista britânico chama a nossa atenção para o caso de pacientes com o ego mais integrado, que puderam introjetar as experiências com os objetos primários e que, consequentemente, puderam desenvolver a capacidade de confiar. Nestes casos, a confiabilidade é dada como certa e a confiança pode estar mais facilmente presente na relação analítica, o que facilitaria o desenvolvimento da transferência. No entanto, ele também observou que nem sempre era assim. Muitos pacientes precisariam desenvolver no processo analítico algo que não foi possível em seu processo de amadurecimento: a capacidade para confiar. A dor psíquica gerada pelo sentimento de desamparo e abandono já vivenciados por efeito do trauma torna os pacientes traumatizados extremamente ressentidos, desconfiados e atentos às reações do ambiente. Muitas vezes essas características estão presentes de forma velada, por detrás de uma atitude passiva na relação com o entorno, atitude essa relacionada àquelas mudanças autoplásticas já descritas por Ferenczi.

A desconfiança básica é, portanto, uma defesa que decorre da necessidade de proteção contra as angústias traumáticas vividas por ocasião das intrusões ambientais, que podem estar relacionadas ao sentimento de desamparo frente ao abandono por parte dos objetos, ou mesmo devido a sua presença excessiva, o que também pode gerar profundas distorções no ego. Tais vivências podem ser intensa ou cumulativamente desestruturantes (Khan, 1963/1977) e são geradas não somente pelo traumatismo em si, mas principalmente pela prova de incompreensão dos adultos ou do entorno que não oferece o cuidado necessário, o escudo protetor, segundo Khan (1963/1977).

Esses pacientes traumatizados precisam se proteger constantemente e demonstram essa necessidade através das racionalizações infindáveis, das dissociações psíquicas, das dissociações entre o corpo e o psiquismo, assim como por defesas extremamente rígidas contra o ambiente não confiável. Em síntese, eles precisam viver na análise condições mais favoráveis de existência, em contraste com as experiências traumáticas vividas anteriormente, muitas vezes numa fase bastante precoce de seu desenvolvimento emocional.

A teoria de Winnicott é construída a partir de fenômenos observados na clínica e em suas descrições fica claro o valor que ele dá ao ponto de vista do bebê, da criança e do paciente. Em sua concepção assinala a importância da capacidade de adaptação do analista às necessidades do bebê ou da criança que o paciente traz dentro de si.

Em seu artigo sobre a "Contratransferência"(1960a/1983), Winnicott nos diz que o trabalho do analista é feito a partir de seu ego corporal, lembrando que este não é um trabalho psíquico apenas, mas uma atividade na qual todo o psicossoma é "afetado". O autor aborda, inicialmente, a questão da contratransferência no trabalho com pacientes neuróticos e assinala a modificação necessária com relação ao trabalho com pacientes que precisam passar por um processo de regressão, no qual o analista precisará permanecer orientado para a realidade externa, ao mesmo tempo que identificado ou mesmo fundido com o paciente.

Ainda nesse artigo, refere-se também ao uso que o analista pode fazer de suas próprias reações conscientes ou inconscientes diante do impacto psicótico ou da parte psicótica do paciente sobre seu self. Lembra também que o paciente precisa ficar extremamente dependente nestes casos, mesmo quando há uma parte sadia da personalidade, a qual fornecerá indícios quanto ao manejo na análise.

O reconhecimento do campo transferencial como campo de afetação e de intensidades, no qual o analista se permite ser levado por seu paciente e acompanhá-lo em seu processo, se propondo a sentir como ele, é uma vivência que, sem dúvida, produz mudanças internas não somente no paciente, mas também no analista.

Nestas condições, para a compreensão da dimensão contratransferencial é necessário ter em conta o funcionamento psíquico do analista e sua disponibilidade psíquico-emocional frente às questões suscitadas pela contratransferência. O analista precisa acolhê-las e fazer um trabalho interno permanente através de uma investigação a partir do que surge, do que surpreende, do que provoca questionamentos, seja por efeito dos restos não analisados, por efeito projetivo ou por comunicação inconsciente do paciente.

A mobilidade psíquica do analista, efeito de sua análise em primeiro lugar, permite ao analista não estagnar o processo. Acompanhar o analisando representa poder escutá-lo e, ao mesmo tempo, se escutar. Ver seu paciente, mas ao mesmo tempo poder sair desse campo hipnótico da transferência, por vezes excessiva, e poder se ver, mantendo-se vivo como analista, entrando no processo, mas também saindo para sobreviver em sua função e lugar. É preciso que o analista desenvolva essa capacidade de poder acompanhar os dois sentidos da transferência – o do paciente com relação a ele; e o dele em relação ao paciente. Para isso, seria preciso considerar o que Ferenczi (1928/1992) chamou de uma metapsicologia dos processos psíquicos do analista durante a análise.

Winnicott (1964/1994) também assinala que nem sempre o paciente está em condições de receber a interpretação devido ao seu estado de integração. Nesses casos, o mais importante é a criação de um espaço de holding, em que o contexto de confiabilidade e o manejo das condições ambientais são mais importantes. Winnicott (1963b/1994) lembra ainda que um dos propósitos do interpretar é estabelecer os limites da compreensão do analista, o que propicia a criação de um espaço-tempo necessário para o processo de integração egoica do paciente.

Giovacchini (1995), um dos comentadores de Winnicott, ao falar sobre o setting de tratamento e a regressão, aborda a questão do silêncio. O silêncio do analista, nesse caso, tem um papel fundamental; o autor dá o exemplo de um rapaz extremamente perturbado que precisou se relacionar primeiramente com o setting e somente depois com o analista. Para esse paciente era necessário que se constituísse um espaço de contenção e sustentação para que somente depois ele pudesse se relacionar com o terapêuta. Uma interpretação feita antes disso seria invasiva, levaria, nesse caso, a mais uma ruptura de uma relação entre analista e analisando que não se constituíra ainda.

O silêncio do paciente nem sempre é entendido por Winnicott como resistência. O psicanalista britânico amplia em sua escuta os diferentes sentidos que o silêncio pode ter e, sobretudo, reconhece-o como uma necessidade para o paciente. Desta forma, assinala certa positividade quando o paciente na transferência se mantém em silêncio, pois o sentido será construído a partir de sua necessidade de um tempo para poder entrar em contato com o seu mundo interno, muitas vezes em estado de desorganização. O silêncio pode ser restaurador, organizador para o paciente, no sentido de uma maior integração egoica, não devendo nesse caso ser interrompido por uma interpretação.

Conforme vimos no decorrer deste artigo, apesar da especificidade das leituras de Ferenczi e Winnicott sobre o trauma, há importantes convergências em suas maneiras de conceber a clínica, na forma como entendem a presença do analista, visto que, em ambos, a sensibilidade e a flexibilidade tornam-se características importantes para o manejo clínico. É essa presença sensível (Kupermann, 2008) que possibilita que a confiança e a esperança se constituam. Com isso, a revivência do trauma anteriormente não representado pode se dar em condições mais favoráveis, o que torna viável a sua cicatrização. O cuidado na clínica tem por base a análise do analista, tema amplamente abordado por Ferenczi, que possibilita uma modalidade de presença no setting pautada por uma ética de implicação e reserva (Figueiredo & Coelho Jr., 2008). Nota-se, portanto, que Ferenczi e Winnicott sempre se preocuparam em enfatizar a dimensão do cuidado, destacando a importância da disponibilidade por parte do analista para entrar em sintonia com a necessidade do paciente ou da criança que o paciente traz dentro de si. Enfatizaram também que o analista precisa criar na transferência uma situação que possibilite ao analisando maior integração do ego, vivenciando aquilo que Winnicott (1969/1975) nomeou como "uso do objeto", o que significa que o analista possa sustentar um lugar no qual sobrevive paradoxalmente como um objeto que foi destruído, oferecendo assim as condições ambientais necessárias para um viver criativo, para que a experiência do brincar seja uma realidade.

 

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Outras fontes

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Artigo recebido em: janeiro de 2014
Aprovado para publicação em: junho de 2014

 

 

* Psicanalista; Doutoranda e bolsista da CAPES no Programa de Pós Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.
** Psicanalista; Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio
1 Segundo Hans (2006), Selbstgefühl pode ser traduzido por sentimento de si, pois abarca todo o modo como o sujeito se percebe; talvez mais próximo da ideia de autoconceito, o termo alemão, no entanto, também contém a palavra Gefühl (sentimento) que ressalta a presença do verbo sentir e os afetos em jogo.