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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro jul. 2014
RESENHAS
A dor psíquica
The psychic pain
Rodrigo Ventura*
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP) - Brasil
Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ) - Brasil
Resenha de:
Fortes, I. (2012). A dor psíquica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 223 p.
Navegando na fronteira tensa entre a psicanálise e a filosofia, Isabel Fortes arriscou-se a penetrar no território da dor e do sofrimento humano. Em tempos hedonistas, em que a anestesia subjetiva é lugar comum, Isabel foi ousada e corajosa ao realizar uma leitura positiva a respeito da dor psíquica. Sorte a nossa!
A autora introduz o livro nos lembrando de um pressuposto básico do ofício de psicanalista: "escutar a dor do outro" (p. 25). Não para eliminá-la, já que a dor é parte integrante da vida, mas, bem ao contrário, para, ao legitimá-la, encontrar modos de lidar com essa intensidade que gerem vitalidade ao invés de produzirem mortificação. Jogando luz sobre as noções de força e de excesso, Isabel propõe remar contra o imperativo contemporâneo de ser feliz a qualquer preço.
No primeiro capítulo, intitulado "Hedonismo versus Erotismo", a autora faz uma análise crítica do hedonismo da atualidade, que tenta excluir a dor por meio do consumo de objetos de bem-estar, da medicamentalização exagerada e da coleção de sensações imediatas de prazer. Um mundo caracterizado pelo esfacelamento das verticalidades que outrora garantiam um pouco de proteção, "gera uma constelação em que imperam a incerteza, o risco e a instabilidade" (p. 43) e torna o desamparo um habitante temido no coração dos homens.
Como nos adverte Freud em seu texto "Mal-estar na civilização" (1930), segurança e liberdade atuam em lados opostos no terreno da subjetividade, pois, necessariamente, o aumento de uma implica na diminuição da outra. Na Modernidade, caracterizada por uma segurança que sufocava as liberdades individuais, o sofrimento era expressão direta da renúncia pulsional. Entretanto, nos dias de hoje, mais livres e também mais arriscados, "a presença da liberdade e do gozo não significou o fim do mal-estar" (p. 46). O "não pode!" foi substituído pelo "deve!" e o sujeito continua procurando algum alívio para seu desassossego. Diante desse cenário, "a dor excluída é também fonte de dor" (p. 48), pois a ilusão de uma felicidade perpétua torna a realidade em que vivemos uma fonte permanente de sofrimento.
Inspirada nos trabalhos de Bataille, Isabel encerra esse capítulo recorrendo à noção de erotismo, que aponta para os princípios da perda, do gasto improdutivo e da dilapidação dos bens, visando a fazer um contraponto ao hedonismo. Processo que não é de acumulação, a experiência erótica traz para o primeiro plano o trabalho de gasto do excedente. É vital escoar o excesso de intensidade, diz Bataille. Assim também diz Freud, que concebeu um aparelho psíquico que se constitui com a tarefa de capturar, transformar e encontrar destinos para o excesso pulsional. Trabalho erótico de estabelecimento dos circuitos pulsionais capazes de proporcionar as experiências de satisfação. A partir da aproximação entre Freud e Bataille, Isabel conclui que o erotismo enquanto experiência do excesso é principalmente uma experiência do desamparo.
A noção freudiana de desamparo (Hilflosigkeit) está diretamente relacionada com a impotência do bebê em lidar com o excesso dos estímulos internos. Essa palavra alema traz consigo os significados de desespero e de sensação de estar indefeso diante de algo avassalador. Premido pelo desamparo, o bebê chora e a pessoa que dele cuida o auxilia na realização da ação específica, oferecendo objetos de satisfação possíveis (o seio, por exemplo) e inaugurando a geografia dos circuitos pulsionais e das marcas psíquicas. É nesse sentido que Isabel pensa o desamparo como condição de possibilidade para uma abertura do sujeito ao campo da alteridade. Porém ela adverte: "tal caminho não é sem dor!" (p. 64).
Os próximos dois capítulos do livro formam o núcleo essencialmente dedicado à teoria psicanalítica. O segundo capítulo, intitulado "Positividade da pulsão de morte", bem poderia se chamar apenas "Positividade da pulsão". Explico-me. Nesse capítulo, Isabel prioriza uma leitura econômica do aparelho psíquico concebido por Freud. Explorando o desenvolvimento das noções freudianas de eu-real originário, signo de percepção, marca (Prägung) e trauma, ela enfatiza a dimensão intensiva e excessiva da subjetividade. Isso tudo para desembocar com um pouco mais de musculatura no território da pulsão. Portanto, mesmo que não esteja explícito, fica evidente que é o conceito de pulsão que a autora toma como noção-chave para dar conta da questão que se propõe a pesquisar.
O pano de fundo desse percurso histórico pela obra freudiana é a percepção de que existem duas maneiras possíveis de lidar com a dor: uma reativa, regulada pelo princípio de prazer e marcada pela evitação do desprazer gerado pelo acúmulo de intensidade no aparelho psíquico; a outra, afirmativa, situada para além do princípio do prazer, que tenta produzir prazer sem evitar a dor. A primeira busca aquietar as intensidades, enquanto a outra faz da intensidade o seu motor na busca pelo prazer. Isso tudo soa melhor no próprio texto de Isabel:
Nesta vertente, a questão da dor e do prazer é deslocada para o campo das intensidades, ou seja, o que está em jogo aqui não é a visão hedonista de que viver é ter prazer e fugir da dor, mas sim uma proposta ética de viver a vida na sua intensidade, ainda que de maneira dolorosa. (p. 83).
É com as linhas desse pano de fundo que a autora costura a noção de pulsão. A pulsão é um estímulo (reiz) que inquieta o sujeito e perturba a sua paz. Jorrando sem cessar do corpo, a pulsão é uma força (drang) constante a exigir trabalho do psiquismo. "A pulsão é ao mesmo tempo força e trabalho" (p. 114), afirma Isabel tentando pensar essa exigência de trabalho não exclusivamente como trabalho de simbolização, isto é, de ligação da força pulsional no registro das representações, mas como trabalho de dispêndio de energia, que se dá em todo e qualquer movimento pulsional. Sem esse trabalho de mobilização pulsional, os fluxos interrompem-se e o represamento é inevitável. E, como nos advertiu diversas vezes Freud, libido estagnada e acumulada gera sofrimento e dor. Portanto, para além do campo das representações e para além do princípio do prazer, Isabel afirma, uma vez mais, que é possível lidar de forma afirmativa com a dor, transformando excesso em potência e prazer. O pano de fundo transforma-se então no protagonista da cena.
No terceiro capítulo intitulado "O masoquismo", Isabel explora a ideia de masoquismo como uma posição existencial de sujeição ao outro. Na perspectiva masoquista, acaba por se considerar melhor ser humilhado e sofrer do que perder o objeto de amor e ser condenado à solidão do desamparo. Retomando La Boétie, ainda tão atual, há um desejo de servidão. "Escravizar-se ao outro de maneira masoquista seria então o modo privilegiado de ser da subjetividade contemporânea" (p. 124). Tomando essa assertiva como ponto de base, a autora explora as noções de masoquismos moral e feminino, destacando como elemento comum o mecanismo da culpa. A dor da culpa estanca a vida e a mobilidade pulsional. Trata-se de uma forma negativa de experimentar a dor, que não passa e não deixa a vida passar.
Porém Isabel encontra na terceira forma de masoquismo postulada por Freud, o masoquismo erógeno, um caminho pelo qual o sujeito não se refugia na servidão ao outro para se proteger do desamparo. "O masoquismo erógeno consiste em uma experiência da dor atravessada pelo erotismo" (p. 159) na qual o medo cede ao desejo e a fragilidade humana é vivida como uma força. É o trabalho de Eros, enquanto afirmação da vida, frente à pulsão de morte. Diante das duas formas de pensar a questão do masoquismo, seja como posição de servidão seja como via erótica, Isabel toma partido da erotização da dor como forma positiva e produtiva para lidar com essa intensidade.
Em seu último capítulo, "O sofrimento como vitalidade ou mortificação", Isabel recorre a Nietzsche, o enfant terrible da filosofia, para pensar a dor enquanto força ativa e também enquanto matéria-prima a ser "trabalhada neste ato de reconstrução psíquica, de recriação de uma subjetividade e de seu mundo" (p. 177). A partir de alguns conceitos nietzscheanos fundamentais, entre os quais podemos destacar o trágico, o amor fati, o ressentimento e a má-consciência, a autora tenta pensar uma clínica psicanalítica como uma experiência da perda de uma ilusão de completude e de um sentido previamente dado, para que então outras ordenações de si possam advir.
Não há cura ou salvação para o sofrimento humano. Apesar do aparente paradoxo, Isabel defende que não é possível sair do sofrimento negando-o, mas, bem ao contrário, é mergulhando nele que alguma travessia pode acontecer. Ante a estagnação do sofrimento, apostar na mobilidade e no fluxo. Ante a aridez do sofrimento, apostar na possibilidade de "desejar de outra forma" (p. 199). É nessa direção que Isabel, sendo coerente com o argumento central de seu livro, concebe a psicanálise enquanto uma experiência na qual o desamparo e a dor se desdobrem em potência de viver. Assim como Faulkner sentência sem meios-tons no final de "Palmeiras selvagens" (1939) – "entre a dor e o nada, escolho a dor" –, Isabel encerra seu livro defendendo, com rigor e estilo, uma forma ativa de lidar com o sofrimento humano que, ao invés de nadificá-lo, arrisca-se a buscar um destino erótico para aquilo que é insuportável na existência singular de cada um de nós.
* Psicanalista; Membro Efetivo do EBEP (Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos) e do CBP-RJ (Círculo Brasileiro de Psicanálise – seção Rio de Janeiro); Graduado em Filosofia pela UERJ; Mestre e Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.