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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015
ARTIGOS
O "Caso Amílcar Lobo": notas sobre o alcance da psicanálise no campo social
The "Amilcar Lobo incident": notes about the psychoanalysis scope in social field
Fuad Kyrillos Neto*; Philippe Augusto Carvalho Campos**
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) - Brasil
RESUMO
O artigo parte do fato histórico da psicanálise no Brasil conhecido por "Caso Amílcar Lobo" e visa investigar seus desdobramentos no plano da teoria psicanalítica. O apanhado bibliográfico que gira em torno do caso fora sintetizado em duas apropriações gramaticais divergentes, as quais sugerem uma questão referente aos limites epistemológicos da psicanálise, isto é, como se dá a articulação entre a clínica e o campo dos estudos culturais. Com vistas a articular essa questão, reportamo-nos a autores que também a flanquearam e acabamos por nos centrar em certos construtos da obra de Lacan dos quais nos utilizamos como síntese, a saber, os conceitos de desejo do psicanalista, Outro e discurso do psicanalista.
Palavras-chave: Caso Amílcar Lobo, história da psicanálise, desejo do psicanalista, discurso do psicanalista, psicanálise e sociedade
ABSTRACT
The article points the historical fact known as "Amílcar Lobo incident" and aims to investigate its deployments in a psychoanalytical theory plan. The bibliographical summary that gravitates around the case was synthesized in two divergent grammatical appropriations, which suggest an issue about the epistemological limits of psychoanalysis, namely, how it given the articulation between the clinic and the cultural studies field. In order to articulate this issue, we report to others authors that too flak it and ended up to center is some constructs of Lacan's work, that we resort as synthesis, namely, the concepts of psychoanalyst desire, big Other and psychoanalyst's discourse.
Keywords: Amílcar Lobo case, psychoanalysis' history, psychoanalyst desire, psychoanalyst's discourse, psychoanalysis and society.
Introdução
As discussões ao longo da trajetória da psicanálise sobre o papel do psicanalista na condução do tratamento fiaram-se em torno de termos como contratransferência (Freud, 1910/1976), Weltanschauung (Freud, 1933/1996; Ferenczi, 1993), neutralidade (Russo, 1980) e, mesmo, desejo do psicanalista (Lacan, 1964/1998; Cottet, 1984), evocados com a intenção de definir o modo de operar do psicanalista ou da dinâmica analítica. Permanecendo essa discussão em suspenso, tais termos, não escolhidos ao acaso, evocam uma dimensão outra daquela da clínica e remetem a algo que vem de fora e ameaça perturbar o setting analítico. A partir daí, certas questões se fazem presentes no escopo das discussões realizadas neste manuscrito: o ruído do extraclínico que insiste em tomar parte na clínica é algo que carece de neutralização? O ato mesmo de a psicanálise fazer parte de um contexto, de um entorno político, institucional e cultural, faz com que a neutralidade do psicanalista seja colocada entre aspas porque o neutro nada mais é do que uma postura política pretensamente mascarada, denegada? A psicanálise responde por si e qualquer extrapolação seria um erro metodológico? De forma sintética, afirmamos que o objetivo do trabalho é analisar a paridade ou a disparidade da articulação política-psicanálise e suas implicações.
Para empreender a análise crítica da questão, lançaremos mão de objetos que em maior ou menor grau encarnam perspectivas conflitantes. Temos no contínuo histórico da psicanálise uma dita "ortodoxia", que foi amplamente criticada por trazer consigo a insígnia de burguesa. No Brasil e no nosso caso, a fim de delimitar o escopo do trabalho, trataremos da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro - SPRJ - como representante dessa perspectiva. Por outro lado, os críticos, outrora chamados de esquerda freudiana, hoje em voga, a esquerda lacaniana (Stavrakakis, 2007) e os teóricos do freudo-marxismo, amplamente criticaram essa ortodoxia, principalmente por não levar a cabo a radicalidade da descoberta freudiana, circunscrevendo a psicanálise a uma terapêutica. Voltando ao nosso caso, esse papel será encenado por Vianna (1994) e os psicanalistas que narraram e discursaram sobre a Crise na psicanálise (Cerqueira Filho, 1982).
O que fica de mal resolvido nessa contenda é a relevante falta de acordo sobre as implicações metodológicas da matéria criada por Freud, de modo que o discurso que veio a fazer frente sobre as elaborações de Vianna e, subjacentemente a isso, a uma esquerda psicanalítica brasileira - e, se formos mais longe, a toda uma esquerda psicanalítica - fora proferido - em verbo e escrita - primeiro por Jean Allouch, na ocasião do lançamento do livro de Vianna na França - na qual Allouch fora hostilizado no auditório -, e posteriormente em livro deste: A etificação da psicanálise, de 1997.
Ainda sobre essa falta de acordo entre os psicanalistas, ao analisar essa questão meios certamente não nos faltam, e é exatamente essa profusão gigantesca de ferramentas passíveis de ser elencadas que torna a tarefa tão árdua. Adjetivamos de árdua porque a escolha dos conceitos, se muito delimitada, torna-se passível de uma intensa arbitrariedade e, por outro lado, se ampliada, arriscamos adentrar numa seara conceitual sem limites, na qual acordos terminológicos serão travados sem, no entanto, havê-los, e limites epistemológicos serão rompidos desmesuradamente. Optaremos, portanto, por nos utilizarmos do primeiro aspecto e apenas salpicá-lo, na medida do possível, com extrapolações epistemoterminológicas. Portanto, utilizar-nos-emos de um recorte da teoria de Lacan a partir do qual o estabeleceremos como crivo para as apropriações subsequentes da psicanálise.
Voltando às encarnações que nos servirão de sinédoques às colocações sobre teoria psicanalítica, iniciaremos o escrito fornecendo um breve resumo do relato de Vianna sobre o conhecido caso "Amílcar Lobo", uma narrativa que não consiste somente de um relato, pois é permeado por construtos teóricos caros a psicanalistas de esquerda quando na época da ditadura militar. Posteriormente, trataremos de especializar as diferentes abordagens sobre o caso e a crise na SPRJ a partir das posições de Vianna e Allouch. Feito esse percurso, passaremos às elaborações conceituais a partir das quais arranjaremos o campo anteriormente exposto.
O "Caso Amílcar Lobo", uma "Crise na psicanálise": apresentação de uma contenda histórico-metodológica na psicanálise
Em vários momentos do livro no qual é relatado o caso acima referido - Não conte a ninguém -, Vianna (1994) versa sobre o discurso das duas sociedades envolvidas no escândalo do "analista torturador" - sejam elas: Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) e Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). Tanto no momento em que as Sociedades se defendem e defendem o analista torturador quanto no momento em que se retratam sobre sua postura conivente com a tortura, o discurso institucional de ambas e de alguns de seus membros é o mesmo: "atacam a psicanálise, nós a defendemos" (Vianna, 1994, p. 127).
De acordo com o relato de Vianna, frente à ditadura e à denúncia do candidato a analista que era também torturador, ou no mínimo auxiliava com procedimentos médicos os que à tortura eram submetidos - a saber, o candidato Amílcar Lobo -, a postura das duas associações analíticas supracitadas era de "apoliticismo" e "neutralidade", tal como é colocado em diversas páginas do livro. Em muitos momentos, as notas oficiais dessas associações eram permeadas por teorias conspiratórias nas quais existiam "indivíduos sem escrúpulos" (Vianna, 1994 , p. 48), de dentro da associação, cujas finalidades eram "destruir a instituição psicanalítica".
Entretanto, a leitura feita por Vianna dessa postura defensiva e oclusiva quanto ao entorno político - sob a máscara do "apoliticismo" e da "neutralidade" - e à denúncia que colocava em cheque o interior das associações segue na seguinte direção:
A psicanálise não consegue manter o "exterior político" separado do externo, porque, querendo ou não, o exterior político penetra no interior da instituição.
No "caso" Amílcar Lobo, pretendendo manter as sociedades psicanalíticas politicamente puras, neutras, e até acima da questão política que se impunha no Brasil após o golpe militar de 1964, em especial com relação ao horror assassino da tortura a presos políticos, proclamando-se no exercício de preservarem e "salvarem a psicanálise", essas sociedades não conseguiram desviar-se do público. Pelo contrário. Ainda que manifestando-se publicamente como entidades distantes ou acima da situação política do país, terminaram, como já assinalara Derrida, por se tornarem instrumentos da forma mais repressiva do político, ao utilizarem os mesmos métodos repressivos governamentais em suas próprias relações tanto internas quanto externas ( Vianna, 1999, p. 164-165).
Posteriormente, tendo vindo a público o caso através do Jornal do Brasil no ano de 1986, a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro publica uma nota pública de retratação. Após a confissão de Amílcar Lobo quanto à sua participação em torturas, a SPRJ informa que "pessoas ligadas à repressão e à tortura jamais podem exercer, por muito tempo, uma atividade por essência libertadora como a psicanálise" ( Vianna, 1999, p. 123) e que "o exercício da psicanálise está, pois, em contradição franca com a prática de torturas de qualquer espécie" ( Vianna, 1999, p. 123). Esse tom é o mesmo adotado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro que, em nota oficial, informa que "a psicanálise não pode instituir-se e desenvolver-se sob qualquer forma de coerção ideológica e autoritarismo" ( Vianna, 1999, p. 126) e que as instituições psicanalíticas estão em graves responsabilidades éticas perante o caso ( Vianna, 1999, p. 127). Em ambas encontra-se certa convergência com a postura adotada por Vianna sobre a psicanálise, a de uma psicanálise que não pode ser conivente tanto com um sistema político ditatorial quanto com indivíduos ligados à repressão e à tortura sob a desculpa de salvar a psicanálise ( Vianna, 1999 , p. 131).
O livro de Vianna tem como preponderância o aspecto factual, sendo necessário garimpar sua raiz semântica, tarefa à qual nos lançaremos agora por três vias: partiremos do próprio discurso de Vianna; iremos até outras obras que circundam essa querela: Os guardiães da ordem (Coimbra, 1995), Transferências cruzadas (Kupermann, 1996) e Crise na psicanálise (Cerqueira Filho, 1982). Por fim, passaremos a Allouch, o qual capta a influência de Derrida em seu embasamento teórico. Neste momento se faz necessária uma explicação.
Esta última obra à qual nos referimos foi escrita em decorrência de uma pergunta realizada por Allouch na ocasião de lançamento do livro de Vianna, na França, no ano de 1997:
"O que a psicanálise tem a ver com isso?" [segue a narrativa de Allouch]. Tive apenas o tempo justo de refazê-la, de modo um pouco diferente, uma segunda vez: "Como se sabia que se tratava de um psicanalista torturador?". Mal foi formulada, antes mesmo que eu pudesse acrescentar qualquer coisa que permitisse a todos escutar a pergunta de outra maneira que não com preconceitos solidificados num conjunto binário, onde aqui estava o bem e ali estava o mal, houve um clamor, quase uma grita de indignação. O que é que eu dizia! Logo se declarou, e o público aplaudia semelhante declaração (mais tarde, esse público ficou mais dividido), que eu avalizava o torturador e seus cúmplices, que eu não era digno de ser um psicanalista, que eu negava aquilo que era mais eticamente sagrado no Ocidente e outras pérolas do mesmo teor (Allouch, 1997, p. 23).
Após esse incidente, Allouch escreve o livro A etificação da psicanálise - Calamidade - Uma psicanálise derridiana?, no qual lança duas teses, a de que a psicanálise estaria passando por um processo de etificação, ou seja, "uma ética psicanalítica que toma o lugar do método freudiano" (Allouch, 1997, p. 11) e a de que "a extensão do método do tipo anátomo-clínico, ou formal, ou freudiano a uma ordem ético-política não poderia ser feita com um mesmo gesto" ( Allouch, 1997, p. 97), "não se pode deitar a nação ao divã" (Allouch, 1997, p. 42).
Apropriação da psicanálise: leituras
Esperamos que nesse processo seja possível lavrar três perspectivas conflitantes sobre a psicanálise que circundam esse ardil; denominá-las-emos: "normalizadora", produzida por setores hegemônicos das SPBRJ e SPRJ; "crítica", proveniente de psicanalistas que pleiteavam uma politização das instituições psicanalíticas brasileiras, tal como o discurso de Vianna, e "clínico-metodológica", aquela produzida por Allouch.
Ao longo de todo o livro de Vianna, saltam aos olhos as tentativas da SPRJ de se defender e defender Amílcar Lobo (Vianna, 1994, p. 40), escondendo os fatos de sua ligação ou da ligação de Lobo com o aparato da ditadura (Vianna, 1994, p. 45-49). Temos, então, um primeiro sintoma: a SPRJ apoiava, de fato, a ditadura - essa é, inclusive, uma das teses fundamentais de Vianna. Decorrem disso os seguintes diagnósticos:
• Em Vianna, citando Derrida, " A psicanálise não consegue manter o 'exterior político' [autoritário, ditatorial] do interno, porque, querendo ou não, o exterior político penetra no interior da instituição [como forma de poder]" (1994, p. 164), cuja pretensa neutralidade e apoliticismo mascaram.
• As microinstituições reproduzem em menor escala as macroinstituições, culminando também no nefasto jogo de poder do "'baronato da psicanálise': altos custos do tratamento, a gerontocracia nas instituições psicanalíticas, as discriminações ideológicas contra candidatos à formação, o falso "apoliticismo", e até mesmo a ignorância das obras de Freud" (Pellegrino, 1982, p. 31).
• Em Coimbra (1995, p. 73, 77-78), a tese da produção de subjetividades, uma psicanálise transmitida como pedagogia cujo fundamento é o fortalecimento da subjetividade asséptica, neutra e pretensamente objetiva da época.
• Transferência de/como poder, em Kupermann (1996, p. 195), a qual envolvia "manipulação da transferência como forma de poder e pecúnia" em que "o analista (e o saber psicanalítico) era colocado no lugar onipotente de detentor da verdade" (Kupermann, 1996, p. 196).
Assumiremos esses aspectos como característicos da psicanálise "normalizadora"; adotamos esse termo porque essa psicanálise ditatorial consiste exatamente em criar um "bom rebanho" (Kupermann, 1996, p. 196), fazendo com que o sujeito abrisse mão do próprio desejo se enquadrando na sociedade (Kupermann, 1996, p. 185), tendo como efeito
a incorporação de supostos "ideais psicanalíticos' - no caso, aqueles alinhados à manutenção dos poderes na vida social e à reserva de mercado dos analistas didatas vigente na SPRJ -, tais como os regulamentos da formação, a representação do didata como detentor exclusivo do saber e a sua recíproca, a representação do candidato como aquele que não sabe, ao qual resta obedecer a ordens superiores. Ideais psicanalíticos autênticos - a abertura para a fala, a escuta do desejo e do sofrimento, o combate às hipocrisias culturais - tão presentes nos primórdios da invenção freudiana, foram providencialmente recalcados e mesmo proibidos ( Moreira, Bullamah & Kupperman, 2014).
Apesar das diferentes nuances com as quais a psicanálise normalizadora é predicada, seu aspecto alienador e sua reprodução de estruturas macroinstitucionais numa escala microinstitucional como aspecto fundamental são sempre preservados. Contudo, se não faltam convergências quanto à crítica à psicanálise normalizadora, o mesmo não se pode dizer sobre as outras duas perspectivas.
No que tange à perspectiva denominada crítica, essa "Crise" à qual o livro se refere se deu basicamente devido a medidas autoritárias intrainstitucionais que reverberaram na concepção e prática corrente da psicanálise e numa posição política conivente com o regime ditatorial brasileiro. Ressaltamos, no entanto, que em nenhum momento, por mais que certa gramática marxista e/ou de esquerda seja tomada de empréstimo pelos autores, é explicitada, no livro, a tese de uma psicanálise humanista, comunista ou socialista: sua tese nuclear centra-se na crítica do autoritarismo que era produzido e reproduzido no interior da SPRJ, o qual, por sua vez, advinha como um reflexo do exterior cultural/social/político.
Allouch (1997), por sua vez, acusa Vianna, com toda uma junta de psicanalistas, de etificar a psicanálise. Contudo, como Vianna não diz explicitamente em seu livro que "a psicanálise tem compromisso com a moral e os direitos humanos" e não é sujeito de tal enunciado, Allouch faz o trabalho de recuperar esse enunciado ausente, porém latente no discurso de Vianna. Daí as teses de um "supereu que estende seu domínio à psicanálise" (Allouch, 1997, p. 57), e concomitante a isso a psicanálise constitui-se de um método que, de "algum modo", a isola de qualquer parecer sobre o domínio social/político.
O discurso de Allouch quanto ao caso de Amílcar Lobo vai na seguinte direção: "Porque a análise freudiana não consiste em 'aplicar' o saber freudiano ao caso, mas em acolher o caso segundo certo método que, interditando-se tal aplicação, permite ao caso contestar, se isso ocorrer, o método freudiano" (Allouch, 1997, p. 41). Assim, a identificação de um candidato pela tarja, pelo traço de "torturador" nada mais seria que um traço entre vários traços passíveis de serem tomado s como entrada em análise. E mais, indicaria um "supereu que estende seu domínio à psicanálise" (Allouch, 1997, p. 57), contradizendo, assim, o método analítico como tal. Adota-se, então, um crivo político e/ou moralista - pela suposição de que um torturador é, por extensão, perverso - no qual a tais e quais indivíduos não cabe psicanálise. Allouch então sugere "três substituições": "uma crise institucional vem no lugar de um caso, uma pessoa no lugar de outra, uma ética no lugar de um método" (Allouch, 1997, p. 12).
Antes de contrapô-las, trataremos de nos referenciar teoricamente para tanto.
Psicanálise: uma teoria do individual?
Embora no atual cenário os pensadores que fazem a articulação entre psicanálise e estudos culturais (política, sociologia etc.) tenham ganhado projeção - tais como Butler, Laclau, Zizek (Stavrakakis, 2007) -, aparentemente não se encontra uma literatura vasta que se contraponha a esses pensadores no sentido de tratar da impossibilidade de tal empreendimento. Partindo dessa lacuna teórica, pode-se supor que ela fora superada ou tenha sido posta de lado pelos teóricos. Não nos interessa aqui discutir o porquê dessa situação, mas tentaremos argumentar sobre as condições de possibilidade e impossibilidade referentes a essa articulação, o que nem sempre fica claro na bibliografia.
Partindo da consideração de que esse debate não se encontra exaurido, mas, antes, suspenso, propomo-nos a discutir neste tópico as duas diferentes perspectivas que parecem se nos apresentar. Grosso modo, podemos definir os escritos que discutem a relação entre psicanálise e política (ou outra matéria do campo das ciências sociais) por duas perspectivas. A primeira delas articula a reverberação da descoberta da psicanálise no âmbito cultural, colocando-a como um saber que acabou por trazer implicações e fundar um novo paradigma a partir do qual se entende a subjetividade, porém que não carrega consigo nenhuma implicação necessária para uma compreensão estrutural e/ou política da sociedade, a psicanálise se reduz à matriz clínica (Allouch, 1997; Castel, 1978; Figueira, 1991). E, por outro lado, uma segunda, que insiste numa juntura necessária entre clínica e ciências sociais, da qual faz parte o grupo mais proeminente, supracitado, na atualidade.
Sucintamente, poderíamos reduzir a três os argumentos que causam polêmica a uma conexão necessária entre psicanálise e estudos culturais: 1) as delimitações epistêmicas incompatibilizam o trânsito dos objetos próprios às matérias (Allouch, 1997); 2) a psicanálise não contém nada de político, pois do que se trata é da neutralização de qualquer elemento político no interior de seu enquadre metodológico (Castel, 1978); 3) a conexão entre as duas disciplinas se dá num nível sociológico, referente aos impactos do advento da psicanálise sobre a cultura. Quanto ao último, não nos restam dúvidas, seja na propaganda (Curtis, 2002), na indústria livresca do self (Illouz, 2011) ou mesmo no cotidiano (termos como Freudianslip ou recalque), de que a psicanálise se configura como um fato sociológico. Porém passemos à análise dos outros dois.
Criticar a escola lacaniana pela transposição de um domínio epistemológico a outro é correlato a uma crítica do estruturalismo. Basicamente poderíamos dizer que essa corrente de pensamento nasce com a extensão dos pressupostos linguísticos de fundação saussuriana ao domínio da antropologia (Benveniste, 1989). Basicamente Lévi-Strauss utilizou-se da lógica de valoração diferencial do signo linguístico como forma-análise (Saussure, 1969) e observou que a estrutura - política, social ou de poder - de diferentes sociedades poderia ser estudada a partir do sistema de trocas linguísticas (Lévi-Strauss, 2014), manifestando aí um procedimento de analogia ou isomorfismo no qual um domínio manifesta, de modo encoberto, outro. Partindo desse pressuposto, duas perguntas nos são impostas: o que o paciente manifesta na clínica de um saber social? O que um saber social pode significar no tratamento clínico? Acreditamos que ao responder a essas duas perguntas, responderemos à questão feita por Allouch (1997, p. 23): "o que a psicanálise tem a ver com isso" [a discussão política/institucional]?
Vários teóricos fazem a associação entre uma estrutura social e o rapto de subjetividade, uma modulação subjetiva empreendida por ela. Bourdieu (1996) com o Campo, Althusser (1996) com os Aparelhos Ideológicos de Estado, Hegel (1997) com o sittlichkeit etc.; essa mesma estrutura é encontrada em Lacan, que a nomeia por Outro. O Outro é uma ordem preexistente ao sujeito que o captura tão logo ele adentre ao meio social; em Freud podemos associá-lo ao ideal do ego ou ao superego. O conceito de Outro, em Lacan, nos remete à dialética do reconhecimento em Hegel.
O humano se reconhece como tal a partir de seu reflexo em outro humano. Originariamente o Eu é um desígnio vazio, sem propriedade, na ânsia de preencher esse buraco otológico: o Eu é desejo, mas, como tal, o animal também deseja. Assim, o homem é apenas rebanho até então, nada o diferencia do animal; o elemento propriamente humano do rebanho de homens é o desejo de cada um buscar não um objeto - o desejo animal -, mas o desejo de outro homem, a subjetividade do outro. O desejo, então, se desloca num circuito autorreferente de reconhecimento: o homem desejante do desejo de outro é colocado, para definir o si, no dilema: se o desejo da subjetividade alheia é o desejo da minha própria, o desejo humano é o desejo de ser reconhecido em seu desejo, o desejo de ser desejado pelo outro (Hegel, 1997; Kojève, 2002). Nesse circuito dialético, vários momentos se tornam fenômeno do desejo: meu desejo é o desejo do outro; meu desejo é o desejo de que o outro me deseje; o desejo é o desejo de algo que sempre é reenviado a outro lugar, impossível de circunscrever e obturar-se num objeto, o qual sempre se desloca para outro - Lacan nomeia esse objeto: a.
A passagem do outro ao Outro pode ser descrita como a clássica passagem do Singular ao Universal em Hegel. Inicialmente, temos a reificação do objeto: o "o"utro encarnado, uma representação imaginária, para dizer como Lacan. Posteriormente, esse objeto é elevado à universalidade e substituído pela categoria abstrata que ele representava como objeto: o "O"utro como conceito, instância simbólica, que passa a governar a estrutura. Assim, a subjetividade humana não é simplesmente sequestrada pelo Outro, é engendrada por ele, mas como tal, devido ao objeto de desejo ser sempre um engodo, sempre escapar, sujeito e estrutura - ou, Outro, cultura, civilização - não se completam, há sempre esse resto (a). E o "desejo reproduz a relação do sujeito com o objeto perdido" (Lacan, 1964/1998, p. 867).
É nesse procedimento de frustração - para dizer como Freud - que deve ser concebida uma análise. Lacan articula o desejo do psicanalista não simplesmente à neutralidade do psicanalista, a uma purificação, propõe um lado ativo pelo qual este deve funcionar: deve fornecer um lugar vazio (sem resposta, frustrante) para que o paciente se realize desejando a partir do desejo do Outro (cf. Lacan, 1992, p. 109). Nessa ciranda, o analista deve ocupar o lugar que faça com que o analisando se dê conta de que sua demanda é, na verdade, uma demanda decorrente da alienação de seu desejo no Outro. No ato de tomar seu posto, diremos que o analista acentua a clivagem existente entre o ideal do ego e o objeto de desejo (Cottet, 1984, p. 138). Assumindo que uma psicanálise acentua a diferença entre o sujeito e o Outro, ela somente pode ser - discordando de Castel (1978) - desalienante e libertadora (em oposição à sua função neutralizante). Assim,
o desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito se coloca, pela primeira vez, em condição de a ele se sujeitar. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque está fora dos limites da lei, apenas onde ele pode viver (Lacan, 1964/1979, p. 109).
"Na condição de se sujeitar" por quê? Lacan possui quatro hipóteses de funcionamento do sujeito quanto à sua economia subjetiva, quatro discursos por meio dos quais nos posicionamos frente aos nossos atos, leis, saber, objetos, por intermédio dos quais o Outro nos enlaça (Lacan, 1969-1970/1992).
Entre os quatro discursos, o que causa uma transformação subjetiva, destituição subjetiva, o discurso que faz com que o sujeito advenha e seja posto em causa - a partir da lógica do inconsciente e da ética da psicanálise - é o do psicanalista. O sujeito é convocado a assumir uma posição ética frente a seu desejo e à sua verdade (um saber sobre o desejo). Partindo da interpretação de Lacan sobre a célebre frase de Freud, "onde o id estava o eu deve advir": "é que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata" (Lacan, 1999, p. 525), assumir o lugar da verdade, o estatuto ético do sujeito, é, por definição, assumir o lugar da verdade que escapa, que desafia - a lei, a ordem, decorrências da separação entre sujeito e Outro. Dito de outro modo, a capacidade de o sujeito se sujeitar diante do significante primordial: dizer "não" e romper o ciclo de perpetuação sintomática. Em suma, a psicanálise ou o laço fornecido pela psicanálise é desalienante, ao passo que nas outras três formas de relação o que opera é uma reprodução de um modus operandi imposto (pelo Outro).
Clínica e sociedade: interfaces e tensões
Voltamos à pergunta: "o que o paciente manifesta na clínica de um saber social e o que um saber social pode significar no tratamento clínico?". Se considerarmos a comorbidade entre civilização/linguagem (Freud/Lacan, respectivamente) e mal-estar, resta-nos perguntar onde estão ou quais as vias preferenciais e/ou características de manifestação do mal-estar em determinada época. A partir da afirmativa de Lacan de que "É numa exterioridade jaculatória que se identifica esse algo pelo qual o que me é mais íntimo é, justamente, aquilo que sou obrigado a só poder reconhecer do lado de fora" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 219), esse lado de fora do sujeito é um lado de fora relativo ao sujeito: "é preciso partir não do Outro, mas de um Outro, o um do significante inscrito no Outro, condição necessária para que o sujeito se agarre a ele" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 351), que somos levados ao raciocínio de que é no Outro que se encontram os significantes com os quais o sujeito se configura. Assim, a depender das coordenadas simbólicas disponíveis nesse campo exterior, eleitas como significantes que representam o sujeito, somos levados ao sofrimento ou ao sintoma como tendo uma história e um contexto social de forja, uma configuração simbólica de engendramento. Portanto, parece-nos certo que a clínica guarda um saber sobre o social no exato momento em que o sujeito vem denunciar, na clínica, a parte que lhe cabe no Outro, o que torna patente uma estrutura simbólica e uma forma de captura do sujeito por essa estrutura.
Agora, "o que um saber social pode significar no tratamento clínico?". Aqui nos encontramos no ponto mesmo em que se faz necessário separar uma perspectiva apriorista de outra, dialética ou histórica.
O encontro com a questão pela primeira perspectiva se dá em dois locais: um da neutralidade desejada e outro como pressuposta. O primeiro ponto onde nos situaremos será aquele da purificação do analista, ou "regra da abstenção ideológica", tal como colocada por Baranger (Russo, 1980), na qual o psicanalista toma parte num processo de neutralização progressiva que se dá na medida em que ele se desprega de toda matéria social e atinge o lugar - mesmo que ideal e impossível, conforme colocado pelo autor - apriorista de uma escuta imaculada. Castel (1978, p. 49) já coloca a questão por outro viés, parte do pressuposto de que "enquanto detém o poder o processo analítico neutraliza. Ele reproduz o poder neutralizante do psicanalista 'neutro'". Cabe aqui ao dispositivo analítico pasteurizar qualquer efeito patológico, um "colocar entre parêntesis" da realidade como processo de descoberta do real (analítico) (Cap. 33-34). Basicamente, Castel nos diz que a psicanálise já é aquilo que Baranger deseja que fosse e "se alguma coisa ameaça a psicanálise é o retorno daquilo que ela própria recalcou, que ela desde sua origem contém, a partir desta matriz contratual" (Castel, 1978, p. 33). Desse modo, a matriz contratual exclui do escopo teórico as causas, históricas, factuais, materiais, de produção teórico-discursivas próprias da psicanálise, ou seja, o trabalho da psicanálise em seu campo histórico é encontrar suas próprias fraturas, suas formações de seu inconsciente institucional e neutralizá-las.
Abrindo um parêntese, com Castel, o que podemos afirmar é que a psicanálise guarda um saber social, contudo um saber social psicanalítico sobre sua forma neutralizante, psicanalítica, de conceber a sociedade. E sobre o saber social necessário à clínica diremos que, em Castel, ele é nulo, primeiramente porque toda ameaça (à psicanálise) é lida como um sintoma (intrainstitucional) ainda não neutralizado, e segundo, porque todo saber social sabido carece de neutralização, é uma patologia da razão, ou seja, a transposição para o enquadre epistemoclínico é automaticamente inoculação.
Nessa segunda perspectiva, que denominamos dialética ou histórica, somos forçados a conceber a interioridade recalcada nas instituições psicanalíticas (tese de Castel) como uma exterioridade semântico-discursiva que a captura. Dessa maneira, os pontos de pontuação e as palavras pescadas para uma enodação interpretativa fazem parte do campo da escuta analítica sobredeterminada por uma matriz exterior. Lembremos a fórmula do discurso do analista:
S2 (o saber) ocupa, aqui, o lugar da verdade do discurso do psicanalista. Esse saber é nomeado como saber mítico por Lacan. Inicialmente, esse saber será descrito como oposto ao saber do mestre, na medida em que este último, ao ser talhado por significantes que representam a si mesmos, rejeita a dinâmica da verdade e "serve para recalcar aquilo que habita o saber mítico" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 85), donde se extrai que o saber mítico serve precisamente para pôr movimento, no saber do Mestre, os S1 instituídos. Tal processo caracteriza-se pelo fato de o saber mítico conter o duplo recalcado - a negação, ou melhor, o saber mítico é a coisa e seu inverso - de um S1 que lhe permite estruturar seu campo relativo. Em Lacan, a verdade somente é dita pela metade, num semidizer, e o mito é exatamente a outra metade que contém a chave da interpretação, o segredo (recalcado). "É somente a forma de saber mítica que pode evitar excluir o a, porque oferece não o absoluto, claramente estabilizado, tautológico, mas, antes, um sistema de oposições incorporadas em imagens e fantasias que oferece identidades, significados, ou valores não inequívocos" (Bracher, 1997, p. 125); consequentemente, "O mito se transcende por enunciar uma significação para o real" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 116).
Por conta disso, como vimos, a partir de Lacan não cabe ao psicanalista uma escuta neutra, mas aquela ativamente separadora, aquela que acentua a clivagem entre o sujeito e o Outro, promovendo sua cisão. Compete ao psicanalista não somente tomar parte no universo discursivo do sujeito, intervir tendo como base um discurso que comunique e fazer parte do universo semântico, mas saber ler nesse universo suas fraturas significantes. Ou, ainda, para que se dê uma análise, faz-se necessário, além de uma (in)compreensão mútua - minimamente, os dois falarem o mesmo idioma e o psicanalista não matricializar os significantes que escuta, tomá-los como dados -, um saber de outra ordem, saber mitificar, ou melhor, "mitematizar" os significantes - lembramos que os mitemas são, em Lévi-Strauss, as unidades atômicas dos mitos, as quais contêm a coisa e seu inverso.
Retomando a pergunta (esta um tanto mais complicada que a primeira): "o que um saber social pode significar para a clínica?", cito novamente Bracher:
a posição de um analista no que diz respeito à cultura significa: ler os vários, mutualmente disjuntos e mesmo contraditórios discursos de uma cultura a fim de revelar o a, fantasia inconsciente, causa do desejo, que opera por trás da fachada dos significantes mestres e do aparato significante como um todo. Expondo o real que o sistema de significantes - e particularmente os significantes mestres - falham em apreender, pode-se interpelar sujeitos para uma ativação de sua condição alienada, para sua não identidade com seus significantes mestres, e assim criar ímpeto para a produção de novos significantes mestres (Bracher, 1997, p. 126; tradução nossa)1.
A "diferença pura", portanto, somente será obtida a custo de suas determinações relacionais ou contextura de forja, em cada ponto de Real da rede significante que o saber mítico revela. Mas, se considerarmos que tanto a escuta analítica quanto o sintoma encontram-se sobredeterminados por sua contextura, acreditamos que, por fim, podemos dizer com Zizek:
Quando os estudos culturais ignoram o real da experiência clínica, a última vítima não são os estudos culturais, mas a clínica em si, a qual permanece aferrada num empirismo pré-teórico. E vice-versa, quando a clínica falha (em levar em conta suas pressuposições teóricas) a última vítima é a teoria em si, a qual, destacada da experiência clínica, permanece um exercício ideológico vazio. O horizonte último, não é, aqui, a reconciliação entre teoria e clínica: sua lacuna intrínseca é a condição positiva da psicanálise. Freud já escrevera que as condições nas quais finalmente seria possível, a psicanálise não seria mais necessária. A teoria psicanalítica é, em última análise, a teoria do porquê de sua prática clínica estar fadada ao fracasso (Zizek, 2006; tradução nossa)2.
Retomando o caso Amílcar Lobo...
Pretendemos agora a contraposição e a análise das duas gramáticas psicanalíticas acima propostas.
Nossas perlaborações permitem denotar uma instituição impregnada do aparato simbólico do regime ditatorial; assim, a rede de acobertamento do candidato Amílcar Lobo e a conivência da SPRJ com os militares evidenciam a tese de que a SPRJ se comprometera com a política, não com a psicanálise - asserção com a qual Allouch (1997, p. 15) concorda. Duas sínteses decorrem daí:
1) De um lado temos a tese da reprodução, pela perspectiva crítica: as "microinstituições reproduzem, em escala liliputiana, as vicissitudes estruturais e as mazelas das macroinstituições" (Cerqueira Filho, 1982, p. 59); de outro, na abordagem clínico-metodológica, há a ideia de que essa crise pela qual a SPRJ passava fora substituída em Vianna (1994) por um caso, e tal caso fora circunscrito numa perspectiva etificada da psicanálise. Por esse percurso chegamos a um ponto de convergência no qual a conclusão se encaminha na seguinte direção: sim, as estruturas se replicam e, sim, Vianna toma um significante qualquer como S 1 devido a seu crivo moralista.
2) Allouch diz que não é com um mesmo gesto que se pode transpor os limites de um método freudiano a uma ordem ético-política; a partir de um enquadre psicanalítico, não se responde melhor sobre política que um "Nobel de química" (Allouch, 1997, p. 112-113). Ora, o Outro, o simbólico, engendra indivíduos, práticas e subjetividades e é denunciado na clínica. Se procede essa afirmação, podemos dizer que há algo de extra-analítico no domínio da psicanálise. Certamente não é com um mesmo gesto que modulamos domínios epistêmicos, afinal a nação não se deita ao divã, mas tanto a psicanálise tem algo a dizer ao social - por sua capacidade de forja de uma contextura para o sintoma, para o mal-estar - quanto a ordem ético-política tem algo a dizer para a psicanálise - por meio do saber mítico, funda-se o encontro preciso com os negativos dos significantes-mestre, necessários para a cisão entre sujeito e Outro.
Sobrevém daí que tanto Vianna quanto Allouch apresentam complementaridades e disparidades; não demonstram, em seus discursos, uma perfeita contraposição. Seria necessária, antes, uma justaposição de suas perspectivas para dar o alcance devido ou, ao menos, o que acreditamos ser devido, a partir do crivo teórico que nos propomos elaborar. Em Allouch há a tese correta de que Vianna teria tomado um caso por um enquadre etificado da psicanálise; parece-nos certo também que o método com o qual se pode estender a psicanálise a outras áreas dos estudos culturais não é o mesmo. Contudo, o "caso do psicanalista torturador" não deixa de ser sintoma - ou, se se preferir, numa linguagem não clínica -, signo de uma matriz coercitiva e ditatorial que se replica em estruturas subsidiárias. Por fim, um psicanalista tem algo a dizer sobre o político a partir de sua matéria, diferentemente da "química", como colocado por Allouch; há uma ligação intrínseca entre psicanálise e construtos culturais.
Considerações finais
Quando empreendemos uma análise teórico-crítica do caso do "psicanalista torturador" e da referida crise pela qual passava a psicanálise no Brasil nos finais da década de 1980, optamos por outro caminho que aquele de colher fatos, o trabalho próprio da historiografia; interessou-nos, antes, sumarizar fatos e enquadrá-los numa matriz. Mesmo que, porventura, o conceito deixe a desejar, se relacionado ao objeto a que se refere, acreditamos que o problema teórico que esse fragmento da história da psicanálise revela transcende sua localização histórica mesma. Diremos que persiste, ainda hoje, uma falta de clareza sobre os limites, a extensão ou a operação da psicanálise no que tange à articulação entre o elemento propriamente analítico, a clínica e os construtos culturais (Nobus & Quinn, 2005; Schroeder, 2008; Stavrakakis, 1999). Assim, o uso de um evento histórico auxilia em fornecer proporções da apropriação de diferentes gramáticas do discurso psicanalítico.
O estudo sugere um atributo para a psicanálise: "subversiva". A partir dos enunciados sobre o desejo do psicanalista e seu discurso, fica patente certo compromisso da psicanálise com a subversão de um discurso; o "saber mítico" seria, assim, a variável que sela essa junção pelo fato de fornecer aquilo que o discurso mascara. É curioso notar o quão cara essa palavra é aos regimes ditatoriais, que qualificam subversivos exatamente aqueles sujeitos que representam um outro discurso daquele da ordem. Se levarmos em conta o Discurso do Mestre como o discurso próprio da cadeia significante obturada, o título do Seminário 17 de Lacan torna-se carregado de sentido por colocar esse mesmo discurso como O avesso da psicanálise. Sucede daí a impossibilidade de a psicanálise se fazer valer nos limites da Ordem.
Referências
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Artigo recebido em: 14/02/2014
Aprovado para publicação em: 16/03/2014
Endereço para correspondência
Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br
Philippe Augusto Carvalho Campos
E-mail: philippe.a.c.campos@gmail.com
*Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com pós-doutorado pelo Departamento de Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
**Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Aluno do Programa de Iniciação Científica da UFSJ - PIIC/UFSJ.
1from the position of an analyst with regard to culture means reading the various, mutually disjoint and even contradictory discourses of a culture in order to reveal the a, unconscious fantasy, cause of desire, which operates from behind the facade of the master signifiers and the entire signifying apparatus. By exposing the real that the system of signifiers, and particularly the master signifiers, fail to grasp, one can interpellate subjects to an activation of their alienated condition, their non identity with their master signifiers, and thus create an impetus for the production of new master signifiers (Bracher, 1997, p. 126).
2When cultural studies ignore the real of clinical experience, the ultimate victim is not cultural studies itself but the clinic, which remains caught in pretheoretical empiricism. And, vice versa, when the clinic fails (to take into account its historical presuppositions), the ultimate victim is theory itself, which, cut off from clinical experience, remains an empty ideological exercise. The ultimate horizon is here not the reconciliation of theory and clinic: their very gap is the positive condition of psychoanalysis. Freud already wrote that, in the conditions in which it would finally be possible, psychoanalysis would no longer be needed. Psychoanalytic theory is ultimately the theory of why its clinical practice is doomed to fail (Zizek, 2006).