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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

O objeto que se deixa apagar: a função do negativo na constituição psíquica

 

The object that lets itself erased: the function of the negative in the psychic constitution

 

 

Natália De Toni Guimarães dos Santos*; Silvia Maria Abu-Jamra Zornig**

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-RJ - Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho se propõe pensar a função do objeto primordial na constituição psíquica a partir da obra de André Green. Distanciando-se do modelo pós-freudiano anglo-saxão, que dá às relações de objeto e à díade mãe-bebê um lugar primordial na fundação do aparelho psíquico, Green aposta na potência da criação de um novo modelo teórico-clínico contemporâneo que empreenda uma costura fecunda entre a perspectiva relacional e a pulsionalidade, partindo da noção de terceiridade como matriz fundadora do psiquismo. O pai se inscreve, desde sempre, na relação mãe-bebê, como figura de ausência, ao ocupar um lugar na mente e no desejo da mãe, configurando uma triangulação primordial. A função materna, assim, ao comportar em si a marca do pai enquanto processualidade, atua não só no registro da presença, mas também como negatividade estruturante, imprescindível para que a mãe se torne um objeto que se deixa apagar.

Palavras-chave: terceiridade, cena primária, trabalho do negativo, constituição psíquica.


ABSTRACT

This paper proposes to think the function of the primary object in the psychic constitution, from the work of André Green. Distancing himself from the post-Freudian Anglo-Saxon model, which gives the object relations and the mother-infant dyad a prime place in the foundation of the psychic apparatus, Green invests in the power of creating a new contemporary theoretical and clinical model to undertake an fruitful seam between the relational perspective and the pulsionality, starting from the notion of thirdness as the founding mother of the psyche. The father falls, always been, the mother-child relationship, as a figure of absence, to occupy a place in mind and desire of the mother, setting up a primary triangulation. The maternal role, thus to behave itself the mark of the father as processuality, operates not only in the record of presence, but also as a structuring negativity, essential for the mother to become an object that lets herself get erased.

Keywords: thirdness, primal scene, work of the negative, psychic constitution.


 

 

A psicanálise enquanto um saber e uma práxis que visa compreender e trabalhar a subjetividade tem como marca fundamental estar sempre referida ao seu fundador, Sigmund Freud, sem jamais pretender superar seus pressupostos principais que, justamente, caracterizam a especificidade do campo psicanalítico. No entanto, à medida que a sociedade caminha e que o pensamento clínico se desenvolve para além do freudismo, os psicanalistas são convocados a dar conta das problemáticas que surgem na clínica, promovendo a ampliação do escopo teórico-clínico e contribuindo, com toda a diversidade de abordagens hoje existentes, para o aprimoramento da técnica, para a busca sempre renovada da eficácia terapêutica e, assim, para o avanço do saber.

Na contemporaneidade, diante da forte onda de medicalização que vai ao encontro da urgência do tempo, da demanda de cura imediata e indolor, como prometem as famosas “pílulas da felicidade” referendadas pela psiquiatria atual (Birman, Fortes & Perelson, 2010), a psicanálise, um tanto desacreditada, é desafiada em sua capacidade de responder às novas configurações subjetivas que se apresentam no nível da clínica. Mas será que se trata, de fato, de configurações inéditas, patologias propriamente contemporâneas, ou será que as condições de possibilidade para a escuta analítica desses quadros é que é nova? Em meio a tal cenário, no qual parece se configurar uma certa “crise” da psicanálise, despontam novos encaminhamentos da técnica analítica, reinventada a cada dia na prática clínica.

Como propõe Fernando Urribarri (2012b) em seu artigo “O pensamento clínico contemporâneo: uma visão histórica das mudanças no trabalho do analista”, é importante atentar para a dupla dimensão complementar da história da psicanálise: sua dimensão interna, relativa aos conflitos internos dentro da pluralidade das correntes psicanalíticas; e sua dimensão externa, referida à relação conflituosa com a cultura, conforme apontamos acima. O que nos interessa privilegiar aqui é a primeira dimensão, ressaltando a potência que essa pluralidade conflituosa traz ao campo psicanalítico como um todo, ao fomentar sua fecundidade diante da necessidade compartilhada de superar os impasses teóricos e clínicos ligados às crises dos modelos pós-freudianos. O autor identifica aí duas direções principais: atualizar e renovar os modelos pós-freudianos e construir um novo modelo especificamente contemporâneo.

Evocamos como emblema da tendência à construção de um modelo teórico-clínico novo, que não se prende à “melancolia de um luto interminável de Freud”, mas que se presta a um “trabalho de luto e criação, sem o qual a filiação é alienação e a paternidade um simulacro” (Urribarri, 2012a, p. 144), as valiosas contribuições do psicanalista francês André Green. Discípulo de Jacques Lacan, Green rompe com ele, justamente por ter Lacan reivindicado para si esse lugar de mestre, fazendo de seu próprio modelo uma doutrina, o que acabou se distanciando de sua intenção inicial de empreender uma releitura de Freud. Junto com outros psicanalistas, como J. Laplanche e P. Aulagnier, Green, tendo aprofundado sua leitura freudiana, se abre ao intercâmbio com outras correntes, inaugurando um modelo pluralista que dá origem ao seu “pensamento clínico contemporâneo” (Urribarri, 2012b).

Às voltas com os denominados “casos fronteiriços” ou limítrofes, Green (1975/1988) aposta na necessidade de mudanças na posição do analista para que este seja capaz de escutar as múltiplas línguas dos pacientes. Especialmente nos casos não-neuróticos, nos quais a capacidade de simbolização e metaforização está comprometida em algum grau, torna-se imprescindível escutar o não-verbal, a corporeidade, o que está aquém e além do significante formal. Nessa clínica, mais fundamental do que interpretar ou tornar consciente o inconsciente é dar acesso ao paciente aos processos de simbolização, trazendo para primeiro plano a importância dos elos, dos símbolos, das ligações. A ideia de construção ganha lugar de destaque, assim como o campo intersubjetivo que se configura entre analista e analisando, ao lado de uma concepção mais ampla de contratransferência: enquadrada e referida à elaboração imaginativa do analista. Diante de uma forma paradoxal de transferência, na qual é preciso sentir o que o analisando não é capaz de sentir (Roussillon, 2011), o analista é convocado em sua função de objeto simbolizante, dando forma e sustentação ao que aparece em negativo e não enquanto representação de palavra.

O contexto analítico, aí, não é mais silencioso, mero apoio para o trabalho de análise, torna-se parte mesmo da situação analítica, com todos os seus elementos, tornando-se ferramenta de diagnóstico (Urribarri, 2012b). O enquadre, portanto, deve estar bem estabelecido dentro do analista (Green, 1975/1988), sendo compreendido como “terceira instância e dispositivo simbolizante, fundamento e condição que possibilita o método e processo analíticos” (Urribarri, 2012a, p. 149). O enquadre analítico é, nesse sentido, um terceiro, um espaço que possibilita o encontro e a separação, a discriminação entre o espaço psíquico do sujeito e o espaço psíquico do objeto. Delimita-se, dessa forma, um espaço intermediário que viabiliza a comunicação analítica, favorecendo tanto a contenção como a distância (Urribarri, 2012b) – ideia que nos remete à noção winnicottiana de espaço transicional. Retomaremos esse ponto mais adiante.

A despeito, no entanto, dessas questões concernentes ao campo clínico interessa-nos direcionar nosso olhar para os desdobramentos teóricos desse novo modelo no que tange aos primórdios da constituição do aparelho psíquico. Da investigação do trabalho do analista passamos então à reflexão sobre a função simbolizante do objeto primordial, à análise da função materna, conforme nos propõe a obra de Green. Função objetalizante e desobjetalizante, estrutura enquadrante e trabalho do negativo são as principais noções que abordaremos aqui, com o objetivo de melhor compreender a função materna, segundo a especificidade das contribuições desse autor de grande relevância na contemporaneidade.

Conforme mencionamos acima, Green se distancia dos modelos pós-freudianos, que, num afã por sublinhar a importância da perspectiva relacional, negligenciam a dimensão pulsional e intrapsíquica na constituição do psiquismo – lógica dominante num primeiro tempo da história da psicanálise, o freudismo (Urribarri, 2012b). Sem cair num extremo ou noutro, Green investe numa costura, numa imbricação necessária entre o pulsional e o relacional, sem privilégio de uma perspectiva sobre a outra. Um primeiro ponto a ser destacado, nessa linha de pensamento, é uma concepção de terceiridade ou triangulação como solo fundante do aparelho psíquico. No início, são três elementos e não apenas dois.

Essa referência ao três nos primórdios da vida psíquica não estabelece um Édipo originário, propõe uma forma inédita de compreensão da cena primária freudiana, o “fantasma isomórfico do Édipo” (Urribarri, 2012a, p. 152). Diferentemente do caso clássico do Homem dos Lobos, o que está em jogo, para Green, não é a realidade da cena primária de que o sujeito é testemunha, mas justamente o contrário: a fantasia da mesma pelo sujeito, devido ao fato de não tê-la testemunhado, de ter estado ausente do gozo dos pais. A cena primária configura-se, assim, como um esquema em que o sujeito converte-se em terceiro, é excluído em face do casal parental, porém, num primeiro momento, sem a elaboração da dupla diferença dos sexos e das gerações própria ao complexo edípico. Assim, ao mudar o foco do dois para o três, Green, ao mesmo tempo que mantém a força da perspectiva relacional, intersubjetiva, traz para primeiro plano a pulsionalidade em sua dimensão constitutiva.

O fantasma fundamental, dessa forma, é relativo não ao seio primordial, mas à fantasia da cena primária, entendida como matriz triangular do psiquismo, anterior à fase edípica, sobre a qual se articulará a castração. O objeto primordial, a mãe, não comporta apenas, tal como a mãe winnicottiana, em estado de preocupação materna primária (Winnicott, 1956/1978), uma função de ego auxiliar, em posição de continuidade intersubjetiva com o sujeito nos primórdios de sua constituição psíquica, podendo adaptar-se suficientemente bem às necessidades da criança a partir da função de holding ou sustentação. Além do aspecto materno ou arcaico, que lhe permite essa identificação fina com a criança, a mãe é determinada por uma paixão incestuosa e inscrita na triangularidade relativa à fantasia da cena primária. Todo sujeito, nesse sentido, seja qual for sua estrutura, alcança o Édipo na medida em que tem um lugar no Édipo dos pais (Urribarri, 2012a); é marcado, em sua origem, pela pulsionalidade deles.

Assim, a criança é inscrita numa triangulação originária, enquanto figura de ausência no coito dos pais, embora esteja ali, ao mesmo tempo e paradoxalmente, como presença potencial. Ao ser confrontada com o conteúdo sexual da fantasia da cena primária, é preciso, inicialmente, que a criança não reconheça sua diferença sexual e geracional em relação aos pais, o que a colocaria como terceiro excluído. Ela empreende então uma tentativa narcísica de completude, apoiada nos cuidados e nos investimentos de que é objeto, de unir-se ao casal parental – que aqui possui esse caráter de indiferenciação entre o homem e a mulher.

Portanto, é somente a partir da presença qualitativa do objeto que investe no sujeito que, aos poucos, a distância que os separa pode ser representada, que sua ausência da cena primária poderá ser tolerada. Para que a criança, então, possa simbolizar sua exclusão da cena primária, é necessário que ela possa fantasiar ser pensada pelos pais. Roussillon (2008), autor que assim como Green empreende essa articulação entre o pulsional e o relacional, enfatiza o processo necessário para que o sujeito possa suportar sua exclusão: primeiro é preciso que a criança se sinta incluída, pensada, investida. Justamente aí reside a potencialidade organizadora da cena primária, matriz fundadora do psiquismo.

Há, desse modo, três elementos desde a origem do psiquismo: mãe, pai e criança. “Por mais evidente que seja que a relação principal do bebê é inicialmente com a mãe, a situação é triangular: o pai inscreve-se como figura de ausência” (Urribarri, 2012a, p. 150). O pai tem um lugar: ele está presente na mente da mãe, é o outro do objeto com que a criança se depara desde o início. É o pai enquanto função – algo ou alguém que seja objeto do investimento da mãe – que instaura um espaço entre mãe e criança. A existência dessa figura de ausência possibilita que a criança não seja inteiramente tomada pela mãe em sua satisfação direta, mas que possa dela se destacar enquanto um sujeito separado. Por isso, segundo essa perspectiva teórica, não se pode falar propriamente em um momento inicial de fusão ou indiferenciação mãe-bebê, já que a presença em negativo do terceiro está dada desde sempre, implicando na concepção do objeto primordial como um outro sujeito, que porta a marca da alteridade e, portanto, do enigma sexual que direciona uma parcela de seus investimentos para alhures.

Embora Winnicott ressalte, com o conceito de preocupação materna primária, que a mãe ocupa um determinado lugar diante do seu bebê, de modo que este tenha a ilusão de serem, mãe e filho, um só – enfocando aí a díade mãe-bebê e deixando de lado o pai nos primeiros tempos da vida psíquica –, seria uma leitura apressada afirmar que para esse autor há uma fusão entre mãe e criança, mesmo no estágio da dependência absoluta. Ao abordar a experiência de ilusão (Winnicott, 1945/1978), em que a criança tem a ilusão de sua onipotência, na medida em que o seio se apresenta a ela no momento mesmo em que ela o deseja, o terceiro elemento é representado como o campo entre mãe e bebê, compartilhado por ambos, onde se dá esse encontro cujo agenciamento não se pode determinar. Ao mesmo tempo que há o sentimento de onipotência do bebê de criar o seio, há o encontro com algo real que vem do outro e que traz, em alguma medida, a marca da alteridade do outro. O seio é, nesse sentido, um objeto criado-encontrado que flui entre realidade e fantasia nesse campo compartilhado por mãe e bebê. A ênfase na mutualidade dessa experiência implica que não haja questionamento dentro-fora no nível da experiência do bebê, mas sim complementaridade. Em nosso ponto de vista, isso é o essencial no conceito de preocupação materna primária e não exatamente uma fusão mãe-bebê, já que não pode haver mãe e bebê sem um pai.

A essa altura – escreve Kohon (2005) – quase todos já sabemos: se é certeza que não existe um bebê sem uma mãe, também é certeza que não existem um bebê e uma mãe sem um pai, imaginário ou real que seja. [...] Mãe e bebê (assim como paciente e analista) só podem existir no contexto de um terceiro elemento, que não precisa estar fisicamente presente para ter lugar (Urribarri, 2012b, p. 57, grifos do autor).

No texto sobre o papel de espelho da mãe, Winnicott (1967/1975) apresenta com mais clareza a ideia de uma relação intersubjetiva entre os dois parceiros: “Em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali” (Winnicott, 1967/1975, p. 154, grifos do autor). O espelhamento que a mãe faz de seu bebê não é uma relação de identidade: o que a mãe parece para o bebê “está relacionado com” – não é o mesmo que ela vê no bebê. Então, embora a criança não sobreviva sem uma mãe que atenda às suas necessidades e não consiga discernir os limites entre ela e o outro ou o ambiente, há sempre a perspectiva de um espaço entre mãe e bebê: um espaço transicional, potencial, que une mãe e filho, que possibilita o encontro e a separação, que porta a marca da realidade objetiva e da criatividade subjetiva, sem a necessidade de definição entre esses polos. Trata-se de uma zona híbrida, paradoxal, onde é possível sonhar e ao mesmo tempo “relacionar-se” com o objeto não-eu, buscar a satisfação direta, mas também, aos poucos, começar a representar sua ausência. O espaço transicional, assim, tem como função ser um espaço criador de uma nova categoria de objetos (Green, 1975/1988).

Green (2003), no artigo “A intuição do negativo em O brincar e a realidade” afirma que a transicionalidade de Winnicott refere-se a um simbolismo no tempo, à noção de processualidade, descrevendo a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a objetividade e marcando a qualidade dinâmica dessa experiência. Trata-se de “um movimento no espaço, vinculado ao tempo” (Green, 2003, p. 72). Há, portanto, um longo caminho entre os processos primários e os processos secundários, entre as primeiras formas pictográficas, sensórias e a simbolização propriamente dita. No entanto, os processos secundários estão numa relação de continuidade com os primários, uma vez que a representação-palavra está sempre impregnada de significantes formais primários. Ou seja, não se pode dizer senão através da forma, do ritmo, da escansão.

Assim, ao recusar a fórmula: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, reivindicando a tese freudiana da irredutibilidade do inconsciente à linguagem, Green advoga em favor de uma concepção relativa à “heterogeneidade do significante psicanalítico” (Green, 1973, citado por Urribarri, 2012a, p. 148). Essa lógica nos possibilita pensar num conceito ampliado de representação, função básica do psiquismo, abarcando as diferentes instâncias do processo de simbolização, “desde o nível protorrepresentacional da moção pulsional e do representante psíquico da pulsão, até o nível representacional do afeto e das representações de coisa e de palavra” (Green, 1984, 2002, citado por Souza, 2013, p. 32).

O desenvolvimento dos processos de simbolização depende, portanto, da resposta que o objeto dá às primeiras inscrições do sujeito. Essas inscrições primárias só ganham sentido a partir do trabalho do objeto, de sua função simbolizante, no contexto da sintonia estésica (Roussillon, 2008), do compartilhamento sensório-afetivo, que possibilita uma amarração de sentido para o sujeito. O autor propõe a ideia de “homossexualidade primária em duplo” para indicar como nos primórdios da subjetivação o objeto precisa estar presente para conter e metabolizar as intensidades afetivas do infante, mas ao mesmo tempo se manter como um “outro sujeito” para favorecer o acesso aos processos de simbolização primários, dentro de uma lógica da diferença (Roussillon, 2008).

Essa é a concepção de mãe para Green: elevada ao patamar de função, a mãe enquanto objeto primordial – em estado de preocupação materna primária, para evocar o arcabouço teórico winnicottiano – desempenha uma função estruturante do psiquismo, na medida em que, a partir de sua maleabilidade, consistência e disponibilidade, ela consegue responder à função objetalizante, investindo o sujeito e os objetos ao redor. A função objetalizante, portanto, coloca em operação a relação ao objeto, desde que este se apresente como uma presença sintônica, enquanto duplo do sujeito (Roussillon, 2008), suficientemente semelhante e suficientemente diferente, para que possa realizar o espelhamento, que é o requisito inicial de toda a simbolização.

É somente a partir dessa consistência objetalizante, edificada pela qualidade de presença da mãe e de seu investimento na criança, que a sua contrapartida, a função desobjetalizante da pulsão, poderá entrar em operação, promovendo o contrário, o desinvestimento, a separação do objeto primordial, em prol do investimento em si mesmo, o narcisismo. O trabalho do negativo, que consiste nessa criação de espaços vazios que possam ser investidos no psiquismo, é o trabalho efetuado pela pulsão de morte, responsável pela função desobjetalizante, que promove o aspecto do desligamento na vida psíquica, instaurando os limites inter e intrassubjetivos. Por isso, as funções objetalizante e desobjetalizante estão sempre imbricadas, assim como as pulsões de vida e de morte. Não se pode ter uma ou outra em sua radicalidade, pois elas precisam estar operando juntas em favor do processo de subjetivação.

Assim, o conceito de negativo enquanto dimensão necessária à constituição do aparelho psíquico institui-se como originalidade do pensamento de Green – embora, como vimos, Winnicott já parecesse intuí-lo. Nessa perspectiva, a presença materna sempre contém uma ausência desde o início (o enigma sexual), que aponta para o lugar do pai como terceiridade, como função que se distingue da metáfora paterna ligada à castração, pois que é tomada em sua dimensão de processualidade, configurando um terceiro que, desde os primórdios, estabelece os limites entre mãe e bebê, impedindo a satisfação direta e o colamento entre os dois parceiros. O pai enquanto processualidade se insere nessa díade como negativo, como espaço potencial, imprescindível para o desencadear dos processos de simbolização primária. Portanto, “a questão principal não é a passagem do dois ao três, da díade à tríade, senão a transição do estado de terceiridade potencial (enquanto o terceiro está presente apenas na mente da mãe) à terceiridade efetiva, interiorizada, estruturante” (Urribarri, 2012a, p. 150).

Desse modo, o compartilhamento do prazer com a mãe comporta sempre a dimensão de um espelhamento necessariamente marcado por uma diferença, uma lacuna, um espaço que se introduz na resposta materna pela função do pai, possibilitando à criança investir o próprio processo de investimento – e não a mãe enquanto objeto, um estado de coisas mais complexo. Assim, a partir do solo constituído pela presença-continente da mãe, a criança torna-se capaz de tolerar, até certo ponto, sua ausência e a existência do outro do objeto, para onde se dirige também o desejo materno. O pai, presente na mãe, funda uma abertura na relação mãe-bebê, que se configura, desde sempre, como um não-todo. Então, embora o investimento do objeto primordial seja a via de acesso do sujeito aos processos de simbolização, esse investimento não pode ser absoluto, ele precisa ser refreado, modulado pela função do pai, para que possa haver lugar para os processos de simbolização na criança.

Quando a criança se depara, portanto, com o espaço instaurado entre ela e sua mãe, na medida em que experimenta a relativa diferença do duplo e é objeto de um desejo materno que não se satisfaz inteiramente ali, a mãe se torna um objeto que pode ser apagado ou esquecido. A partir da qualidade e da sensibilidade de sua presença, a mãe, marcada pelo terceiro, aceita a instauração do espaço entre si e sua criança e, assim, permite ser descatexizada pelo bebê. Esse enfraquecimento da representação interna do objeto é o que Green chama de representação interna do negativo e é esse processo, de alucinação negativa da mãe, o que possibilita a interiorização de um espaço vazio que poderá ser investido pelo próprio sujeito. Essa passagem da posição passiva para a posição ativa do autoinvestimento configura o narcisismo do Um, a constituição da unidade egoica. Nessa medida, poder dizer não ao objeto que se deixa apagar é poder dizer sim a si mesmo.

 

Considerações finais

A constituição do narcisismo fundador do eu, do desejo do Um, implica na renúncia à satisfação direta tributária do narcisismo primário absoluto, da ordem do mito fusional, em que não há o reconhecimento dos limites enquanto processo psíquico. A alucinação negativa da mãe, então, consiste justamente nessa tentativa de anulação do outro, a partir do desinvestimento da percepção existente do objeto, de forma que sua representação não opere mais no psiquismo. No entanto, a mãe existe, está lá, e é preciso que continue recobrindo o sujeito com seus cuidados. Dessa forma, a mãe torna-se objeto da excorporação da criança, ou seja, algo que foi expulso como que cuspido ou vomitado para longe – não para fora, pois ainda não se poderiam inferir aqui limites dentro-fora ou eu-outro, que se instauram justamente a partir das consequências dessa expulsão (Green, 2009).

A excorporação, que consiste no expulsar, é o mecanismo inaugural do trabalho do negativo. Através desse mecanismo de defesa muito primitivo, anterior à identificação projetiva, o sujeito diz não ao objeto e ao curto-circuito da satisfação direta para constituir um limite de si e ser capaz de agenciar investimentos. Apagar a representação da mãe é a ação psíquica requerida para separar-se dela e dar lugar à criação de uma mediação necessária para paliar os efeitos de sua ausência e para efetuar a sua integração ao aparelho psíquico. Essa mediação é a constituição no aparelho psíquico do quadro materno que funciona como estrutura enquadrante, originária do espaço intrapsíquico fundador do eu.

A estrutura enquadrante, como o termo sugere, consiste numa estrutura de contorno com um vazio no meio, tal como a moldura de um quadro em branco. É uma instância delimitadora de espaços que se estabelece no psiquismo da criança a partir da alucinação negativa da mãe. Ao se deixar apagar, o objeto primordial se torna, então, estrutura enquadrante, o solo psíquico para o nascimento do eu, fornecendo uma base ao psiquismo, sem que esta seja repleta de conteúdo. Esse enquadre, então, estrutura o narcisismo, na medida em que cria a diferenciação entre um dentro e um fora, instituindo-se como a matriz do processo representacional, pois o espaço branco gerado pelo desinvestimento, pela renúncia à satisfação direta ligada ao objeto, é o espaço potencial para a representação, um espaço livre da saturação do investimento.

O que é da maior importância é a construção introjetada de uma estrutura de enquadramento [structure encadrante], análoga aos braços da mãe no holding. Esta estrutura de enquadramento pode tolerar a ausência da representação porque dá sustentação ao espaço psíquico, como o continente de Bion. Enquanto a estrutura de enquadramento “dá suporte” à mente, a alucinação negativa pode ser substituída pela gratificação alucinatória ou pela fantasia (Green, 2003, p. 83).

A constituição do narcisismo do Um pode ser entendida, então, como o resultado combinado da alucinação negativa da mãe, constituinte da estrutura enquadrante do ego e da identificação primária com o pai. Não se trata aqui da identificação ao objeto ou a algum traço do objeto que possa ser introjetado, mas sim de algo muito mais primário, que repercute sobre o sujeito como negativo, ou seja, uma identificação ao próprio processo de negatividade, já que o pai, nos primórdios da vida psíquica, comporta esse valor de terceiro potencial, instaurador do espaço humanizador entre mãe e bebê. Nessa dialética intersubjetiva entre mãe, pai, enquanto figura de ausência, e o bebê, o espaço que se configura entre os três sujeitos é a potencialidade fundadora do espaço intrapsíquico na criança, essencial para a construção de seu acesso aos processos de simbolização e, assim, à subjetivação, à capacidade de aceder à função reflexiva e autorreflexiva, integrando seus conteúdos e apropriando-se de sua história.

Green ressalta que a instauração do recalcamento depende da resposta do objeto dentro de uma temporalidade que permita o acesso ao trabalho do negativo sem uma vivência de desespero pela excessiva ausência do objeto ou de uma idealização que esmague o desejo do próprio sujeito. Assim, “o recalque se efetua, portanto, sobre o modelo das aceitações e das recusas do objeto” (Green, 2009, p. 293). O objeto tem a função paradoxal de despertar a pulsionalidade do infante ao mesmo tempo que precisa conter o excesso e a ameaça de transbordamento pulsional.

Essa reflexão chama a atenção para a existência de forças afetivas e processos primários que, na clínica, não aparecem pela via da linguagem, mas que precisam ser apreendidos, na contratransferência, no nível da processualidade e dos processos de simbolização primária. Como indica Urribari (2012b), a subjetividade do analista é co-constitutiva do “campo analítico intersubjetivo”, apontando para a complexidade do trabalho psíquico do analista e para sua dimensão “poliglota”, que inclui a capacidade de escutar as diferentes línguas apresentadas na situação analítica, sejam estas verbais ou não.

Nessa perspectiva, a noção de terceiridade (Green, 2005) pressupõe uma estrutura com uma triangulação variável, na qual o terceiro termo se refere ao outro do objeto, não sendo necessariamente relacionado à estrutura edípica. Obviamente, o lugar do pai está relacionado ao trabalho do negativo por ser mediado pela representação, pela relação indireta com o infante, ao contrário da relação direta e corporal estabelecida com a mãe (Urribarri, 2012a), mas a função do terceiro é principalmente criar um espaço potencial que favoreça a reflexividade e a apropriação subjetiva.

Ogden (1996, p. 49) indica que “a experiência de eu-como sujeito” só se dá a partir da criação de um espaço reflexivo “entre os polos da dialética de ‘eu’ e de ‘mim’, no qual o sujeito auto-reflexivo que experiencia é simultaneamente constituído e descentrado de si mesmo”. Essa observação do autor possibilita pensar a terceiridade como matriz primordial da subjetivação, fundada no trabalho do negativo. Permite, ainda, ressaltar a tensão necessária entre a função objetalizante e desobjetalizante da pulsão na clínica, pois, se a escuta analítica precisa se abrir às confusões de línguas da contemporaneidade, precisa também sustentar a dimensão enigmática do irrepresentável.

É esse, a nosso ver, o diferencial da clínica contemporânea: o contínuo desenvolvimento da capacidade analítica de escutar e trabalhar a partir de uma lógica ampliada de representação, em sua dimensão de processualidade.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 15/06/2015
Aprovado para publicação em: 20/08/2015

 

 

*Doutoranda em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**Docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.