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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Einfuhlung: A ética do "sentir com"

 

 

Auterives Maciel Jr.*

 

 


RESUMO

O artigo trabalha a faculdade de sentir com desenvolvida por Sandor Ferenczi, procurando compreender os pressupostos clínicos do manejo de uma nova técnica a partir de uma perspectiva estética. Com este objetivo apresentamos a tese estética de Worringer e, com ela, desenvolvemos as condições de uma ética que pode ser depreendida da clínica Ferencziana. Nossa tese principal consiste na demonstração de uma ética do analista interpretada no texto sobre a elasticidade da técnica escrito em 1928.

Palavras-chave: Einfuhlung; Psicanálise; Técnica; Estética e Ética.


ABSTRACT

The article works the faculty of feel with that was developed by Sandor Ferenczi, trying to understand the clinical conjuncture of the use of a new technique from an aesthetic analysis. With this purpose we introduce the aesthetic thesis of Worringer, and with it we develop the conditions of an ethic that can be established from a Ferencziana clinic. Our main thesis consists in demonstrate an ethic from an analist proposed on the text about the elasticity of the technique writen in 1928.

Keywords: Einfuhlung; Psycoanalisis; Technique; Esthetic and Ethic.


 

 

A Conferência sobre a elasticidade da técnica - escrita por Sandor Ferenczi em 1928 (FERENCZI, 1928) - contém considerações clínicas de grande importância para o progresso do tratamento psicanalítico. Movido pela convicção de que a equação pessoal existente na prática da psicanálise atesta um índice de incerteza naqueles que se submetem a um tratamento psicanalítico, Ferenczi - creditando a Freud o mérito de ter desenvolvido um método que leva em conta aspectos tópicos, dinâmicos e econômicos no tratamento de processos mentais inconscientes - problematiza a experiência clínica, propondo uma elasticidade da técnica com três critérios preliminares:

Em primeiro lugar; propõe que concebamos a clínica como um processo evolutivo, relativizando, assim, a tendência que o analista possui de conceber a análise como um trabalho de alguém que procura realizar um plano pré-concebido. A análise, encarada como um processo, inclui um aumento de indeterminação na elasticidade da técnica, que viabiliza manejos clínicos menos assertivos durante a sessão.

Disto inferimos, em segundo lugar, a imprudência na qual caem analistas quando remetem a priori as dificuldades que obstruem o tratamento à impaciência do doente. A ausência de franqueza, a impossibilidade de afirmar a hesitação que habita os impasses clínicos como algo positivo, sendo alguma coisa que requer tempo indispensável para a sua decifração ; faz com que o analista cometa consigo mesmo aquilo que Ferenczi costuma nomear como hipocrisia profissional.

Enfim, a renúncia da confiança antecipada pelas considerações de possíveis precipitações cometidas pelo analista ao longo do processo clinico viabilizam, no parecer de Ferenczi, uma atenuação das indisposições que resultam da falta de confiança que se instaura em análise quando a assertividade do saber se sobrepõe a experiência sentimental.

Com tais critérios percebemos que a elasticidade da técnica se fundamenta em uma dimensão estética imanente à experiência clínica, cuja análise pode ser explicitada ao longo do tratamento. E que esta estética resultará na construção de uma ética cujas características deveremos analisar. Mas quando falamos de uma dimensão estética a que exatamente nos referimos quando abordamos a conferência de Ferenczi? E por que interpretamos a estética, para dela inferirmos uma ética, quando tratamos de uma elasticidade da técnica?

Sabemos perfeitamente que as questões que mobilizam Ferenczi são situadas em um problema geral que inquieta a psicanálise : qual o estatuto da experiência clínica que nos permite singularizá-la em relação a práticas de linguagem com caráter moral ou pedagógico ? Se é fato que a experiência analítica ocorre através da linguagem, é igualmente inconteste que o seu estatuto supõe uma apreensão pulsional em pressuposição recíproca com a interpretação da língua utilizada no setting. A inexistência de uma adequação plena ocorrida por usos díspares de línguas, usos que muitas vezes resultam em precipitações interpretativas que atropelam os impasses revividos no dispositivo transferencial ; consolida, aos poucos, a convicção de que inovações técnicas são indispensáveis para a exploração das zonas intermediarias existentes no espaço aberto entre o analista e o analisando. Assim, a especificidade do dispositivo é garantida pela singularidade de cada análise, onde o analista deve estar aberto a multiplicidade de questões que são flagradas no processo clínico, analisando a forma como ele é afetado por tais questões.

Ou seja, foi para evitar que a psicanálise resultasse em uma pedagogia moral - com a hierarquia professor e aluno retomada de forma ostensiva por um método utilizado como regra normativa -, que Ferenczi experimentou inovações técnicas. É claro que tais inovações já estavam preditas por Freud: com efeito, havia neste autor a convicção de que a experiência analítica comportava todo um meio de experimentação que impossibilitava ao analista prever o processo. Tudo se passa como se Freud se movesse com a idéia de que em análise nós só podíamos saber apenas do seu começo e do seu término, sem que nada nos autorizasse sobre a utilização de um conhecimento a priori do processo (FREUD, 1914, 1992).

Entretanto - mesmo com o aval concedido a experiência freudiana - é em Ferenczi que o problema da técnica vai ser levantado com o propósito de especificar a experiência analítica, retirando-a do âmbito de uma moral pedagógica reificada pela rigidez da técnica, para situá-la na esfera de uma ética/estética como condição preliminar de uma política imanente ao dispositivo clínico, isto é, uma política de línguas.

Convém lembrar, que a elasticidade posta em análise no nosso texto é conseqüência da superação de uma outra tentativa técnica assumida por Ferenczi em outro momento da sua obra: "a técnica ativa"1.

Ao perceber que existiam interrupções na experiência analítica, depois de um período considerado produtivo, Ferenczi - em um texto intitulado "Dificuldades técnicas de uma análise de histeria (FERENCZI, 1921) - externou sua inquietação sobre o problema da estagnação na análise, buscando uma técnica que retirasse o paciente do seu torpor. Assim, empenhado na tentativa de inventar meios de ultrapassagem dos impasses, Ferenczi, em um ensaio intitulado "Prolongamentos da técnica ativa" em psicanálise (FERENCZI, 1921) propôs que o principio de abstinência fosse levado a um grau extremado em uma análise. Ou seja, exortava o paciente a adotar certos comportamentos - como enfrentar, por exemplo, uma fobia através de uma aproximação do objeto fóbico - e proibi-lo de executar outros. O objetivo da técnica era impedir que o paciente utilizasse suas inibições como meio de descarga pulsional. Mas isto, produziu, como efeito imediato, uma total submissão e dependência dos analisados ao tratamento.

Ora, é revendo o fracasso da imposição moral da técnica ativa - estando sempre atento as conseqüências dos impasses engendrados pela experimentação clinica - que Ferenczi aborda o problema do tato que agora analisamos com um propósito, a princípio, estético.

 

Einfuhlung: A Faculdade de "sentir com"

Na conferencia que comentamos, Ferenczi analisa os remanescentes não resolvidos da equação pessoal, isto é, das diferenças singulares existentes em todo processo clinico, fazendo apelo a segunda regra fundamental da psicanálise: diz que "quem quiser analisar os outros deve, em primeiro lugar, ser ele próprio analisado" (FERENCZI, 1928, p.31). As considerações da nota pessoal do analista, as implicações da inter-pessoalidade na análise e a conseqüente convicção de que a resistência deve ser situada no encontro analítico, levam Ferenczi a uma formulação de um juízo de conjunto acerca das diferenças e dos erros cometidos ao longo de um processo clínico. O que o leva à convicção de que se trata, antes de tudo,

"de uma questão de tato psicológico, de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso apresentada,; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras associações; e em que momento o silencio é uma tortura inútil para o paciente, etc. Como se vê, com a palavra "tato" somente consegui exprimir a indeterminação em uma forma simples e agradável. Mas o que é o tato? O Tato é a faculdade de "sentir com" (Einfuhlung) (FERENCZI, p. 31)

Ora, saber quando e como se comunica ao analisando alguma coisa, tratando da consideração do momento oportuno (Kairós)2 para que a comunicação tenha algum efeito, é, para nós, uma experiência exercida por escolhas engendradas no encontro analítico. Tais procedimentos, na experiência relacional, precedem os códigos das normas vigentes do método da interpretação. Supondo que este - com as técnicas de associação livre e a respectiva atenção flutuante - possui um valor predominante quando é construído segundo as normas das formações do inconsciente, um campo de decisões - fundamentado pela experiência do tato - estabelece ponderações que coloca em avaliação o tempo real da análise, ampliando as condições das elucubrações lógicas e das formações significantes que comparecem no setting.

Assim, a escolha da hora, do momento de decisão, da forma da comunicação, da demora, da hesitação e do conteúdo do que deve ser informado e quando isto deve acontecer, supõe a existência de uma zona de indeterminação3, isto é, de um meio pleno de potenciais afetivos e emocionais inseparáveis de um tempo que favorece as formações do inconsciente pela via do intervalo que precede a decisão. Ora, a indeterminação expressa pelo autor na citação acima incluída é, no nosso entendimento, algo de extremado valor para a compreensão da elasticidade da técnica. Ferenczi, parte da pressuposição de que há, na abertura intra-temporal instaurada pelo setting, toda uma potencialidade de fatos mal definidos, afetos insinuados, emoções concomitantes à partilha de situações ainda não totalmente elaboradas.

Além disso, a indeterminação é, na realidade, dupla; pois inclui o analista e o analisante, vertendo-os em uma zona de incerteza. A exploração desta zona - com a devida precaução das possíveis precipitações que surgem no encontro clinico - fornece, para Ferenczi, estratégias de elucidação de resistências imanentes ao dispositivo.

Por isso, a elasticidade aqui aludida não destitui o método freudiano. Nem tampouco se insurge contra as técnicas concebidas por Freud. O que Ferenczi busca é flexibilizar o processo analítico por considerações que confiram prioridade aos aspectos singulares de uma análise, permitindo que toda uma zona de potencialidade imanente ao um manejo estético do processo analítico possa ser explorado em uma perspectiva dinâmica e econômica que cria tensão na reflexão lógica. É assim que o problema do tato clínico é abordado no artigo: trata-se de flexibilizar o instrumento da interpretação, colocando o analista implicado no potencial da situação inaugurada pelo encontro.

É bem verdade que a noção de tato aparece na obra de Freud em um escrito preparatório sobre a técnica intitulado "Psicanálise Silvestre" (FREUD, 1910). Nele, Freud coloca em evidência o procedimento como um dom especial intransmissível, dizendo que todo manejo veiculado sem tato é abusivo e violento. Entretanto, por ser relacional - estando a sua transmissão condicionada a contingência do encontro analítico - Freud aborda o problema, direcionando-o mais para o âmbito de uma política de institucionalização da psicanálise, do que de uma elasticidade técnica que pudesse ser incluída no manejo clínico da formação psicanalítica. Já em Ferenczi, o tato psicológico é abordado como a condição estética de uma nova técnica clinica, onde sentir com, ganha o estatuto de uma nova inflexão na abordagem clínica.

A tradução literal de Einfuhlung é sentir dentro, mas em português traduzimos a palavra por empatia. Ora, o perigo da tradução existe quando o significado escolhido passa a determinar o procedimento. Talvez, para corrigirmos este deslize, seja mais profícuo analisarmos a noção pelo contexto no qual ela é evocada.

Em Ferenczi, a empatia - como procedimento de estar em sintonia com o paciente - deve rigorosamente ser compreendida dentro de uma perspectiva experimental que valoriza o acontecimento na clinica, situando-o na contingência do encontro que ocorre em análise.

Se pensarmos, por exemplo, que a Einfuhlung é - desde os trabalhos de Lipps, retomados vigorosamente por Worringer (WORRINGER, 1908) - a condição estética de um procedimento artístico, podemos dizer que nela reina, com freqüência, a projeção sentimental que é condição do regime das belas artes. Ou seja, ao contrário da arte abstrata, que recusa o procedimento figurativo, a empatia condiciona a harmonia indispensável da "projeção sentimental". Worringer chega até mesmo a dizer que a Einfuhlung é uma espécie de "auto-gozo objetivado, podendo se apresentar como instância positiva ou negativa" (WORRINGER 1908[1983] p. 19). No âmbito da projeção sentimental há, indubitavelmente, todo um campo de afetos partilhados e distribuídos segundo a emoção que predomina na experiência representacional. Neste sentido, Deleuze e Guattari tem razão quando dizem que Worringer pensa rigorosamente as condições da representação orgânica imanente ao belo artístico (DELEUZE & GUATTARI, 1980 [1997] p. 203).

Mas podemos afirmar - pelo que é dito acima - que as preocupações de Ferenczi consistem exatamente em uma modulação artística dos processos clínicos? Que a diapasão evocada na experiência clínica vem a ser concomitante à tomada de consciência da projeção sentimental do analista? Que as resistências que emergem do encontro viabilizam uma analogia com os processos que condicionam a criação do estilo orgânico na pintura? Sim, mas convém não esquecer que o problema apresentado por Ferenzci é fundamentalmente clínico e que a analogia com os processos artísticos não deve favorecer a transposição abrupta. A singularidade de Ferenczi consiste na utilização do tato como meio de acesso a experiências inconscientes que antecedem a compreensão verbal.

Por isso, valorizamos no texto "Ferenczi e a Experiência da Eifuhlung, de Nelson Coelho Júnior (NELSON COELHO JUNIOR, 2004), a sua sensata colaboração ao situar a abordagem da einfuhlung no âmbito de uma estética que viabiliza a flexibilização da técnica analítica. Além disso, valorizamos também o aspecto ético extraído da análise da noção de Tato - feito no desdobramento da sua análise da einfuhlung -, por acreditarmos nos destinos éticos da estética do sentir com. É bem verdade que o autor procede enfatizando a inter-subjetividade na clínica; ao destacar a idéia do conhecimento do outro como motor de invenção de uma nova técnica psicanalítica. Entretanto, a inter-subjetividade e a problemática do conhecimento são, para nós, condições manifestas de aspectos estéticos nem sempre explicitáveis e que a sua explicitação pode ensejar o desafio de remontar a questão para o âmbito de um paradigma diferente da perspectiva puramente cientificista. Ou seja, na nossa inflexão, insistimos na distinção sutil entre a estética do sentir com e a moral rígida de uma lógica assertiva, valorizando o espaço intermediário como uma zona de indeterminação instaurada no setting.

Pois, se é verdade que os processos estéticos favorecem uma amplitude no âmbito do tratamento, é igualmente verdadeiro que tais procedimentos só ganham a sua devida validade na medida em que eles implementam na técnica uma outra lógica, isto é, uma outra possibilidade de atenção ao manejo clínico. Aqui, a expressão elasticidade da técnica ganha um estatuto singular: cabe ao analista observar o potencial da situação no encontro clínico, percebendo o investimento libidinal dele na projeção que incide sobre o analisante. Ao retirar a libido investida pelo encontro sobre o analisante, perceber pelo manejo do tato o que ocorre ao longo do tratamento, acolher em uma atitude demorada todos os dados que precedem as formações do inconsciente, o analista faz valer procedimentos técnicos que tornam possíveis outras formas de tratamento, fundando uma ética a partir do sentir com que flexibiliza o limite rígido da interpretação ostensiva.

E aqui chegamos a hipótese principal do nosso texto: a elasticidade da técnica é uma ética do sentir com, estando esta condicionada por processos estéticos que ocorrem durante o tratamento. Neste caso, cabe perguntar: como criar uma ponte entre esta ética e uma estética da existência? Há subsídios na abordagem Ferencziana que viabiliza esta nossa conexão?

Notamos, pelas considerações extraídas da citação do início do nosso texto, toda uma preocupação ética validada pela experiência de uma duração concreta - o tempo real do encontro na analise - que será interpelada no momento oportuno da intervenção do analista. Como este Kairós é precedido pela prudência exercida na hesitação, o campo ético evocado é todo ele preenchido por escolhas, riscos na tomada de decisão, confiança na comunicação dos erros, das falhas e das precipitações do próprio analista. Ou seja, por regras facultativas, regras que possibilitam escolhas,que relativizam os componentes normativos da interpretação, favorecendo a emergência de processos criativos ao longo da análise.

São tais regras que viabilizam uma avaliação ética na análise, já que em ética é a prudência e a franqueza do analista que servem de facilitadores do tratamento. Segundo Ferenczi,

"...é necessário ceder às tendências do paciente mas sem abandonar a tração na direção de suas próprias opiniões, enquanto a falta de consistência de uma ou outra dessas posições não estiver plenamente provada. Em nenhum caso se deve sentir vergonha de reconhecer, sem restrições, erros cometidos no passado. Nunca se esqueça que a análise não é um procedimento sugestivo, em que o prestigio do medico e sua infalibilidade tem que ser preservados acima de tudo. A única pretensão alimentada pela análise é a da confiança na franqueza e sinceridade do medico, não lhe fazendo mal algum o franco reconhecimento de um erro. A posição analítica não exige apenas do médico o rigoroso controle do seu próprio narcisismo, mas também a vigilância aguda das diversas reações afetivas... O saber permite-nos, com todo conhecimento de causa, considerar a pessoa mais desagradável do mundo como um paciente que precisa curar-se e, como tal, não se lhe pode recusar a nossa simpatia. (FERENCZI, 1928, p. 37)"

É bem verdade que a humildade do "João teimoso" - posição de extremada complexidade evocada pelo autor - é uma das tarefas mais árduas da prática psicanalítica. Assim, a sua plena realização supõe uma verdadeira posição de "sentir com", cujo desenvolvimento coloca em questão toda a pose fabricada pelo analista, viabilizando, por um lado, a progressão das associações livres do paciente, sem negligenciar o exame e a crítica de suas próprias tendências.

Existe aqui uma familiaridade dos preceitos evocados por Ferenczi com os conceitos de escolhas tais como elas são desenvolvidos por filósofos que priorizam o campo facultativo das decisões4. Nas propostas filosóficas que insistem na distinção entre o campo facultativo das escolhas e as regras normativas dos dispositivos imanentes ao contrato, a ética se instaura nos focos de resistência que surgem ao longo dos impasses impostos pelas normas coercitivas e pelas regras codificadas em um método plenamente elaborado. Nas tendências que operam tais distinções a ética é apreciada na contramão de uma moral rígida, favorecendo a emergência de um duplo cuidado que exige a implicação dos sujeitos que se engajam na situação.

Ora, tais características são, no nosso entendimento, assimiláveis aos procedimentos evocados por Ferenczi na elasticidade da técnica. Ao dizer da indeterminação que ela favorece fatos indispensáveis para a definição do tratamento, Ferenczi sub-entende tais momentos como preceitos éticos que modulam a análise, corroborando para a instrumentalização de decisões que resultam das condições contingentes do encontro. Assim, todo um campo facultativo passa a ser privilegiado, dando margem a um processo que valoriza o aspecto singular do paciente.

Em razão desta similitude evocamos a ética das próprias palavras de Ferenczi, interpretando-as na sua especificidade clinica. Procuramos, pela afinidade das propostas, valorizar, com a interpretação do campo facultativo depreendido como condição do tato analítico, aquilo que comumente se trata como uma mera decisão técnica de uma análise: enfáticos na palavra do analista, diremos, sem delongas, que as considerações técnicas são fundadas em uma ética que valoriza o cuidado que ambos podem desenvolver na reciprocidade do tratamento.

Ora, em Ferenczi o potencial de atenção desenvolvido pela experiência do tato, valoriza a intuição (FERENCZI, 1928) do tempo da indeterminação que coincide com o intervalo de movimento indispensável para que o inconsciente se forme. Esta intuição guarda, segundo a nossa interpretação, uma grande afinidade com um método desenvolvido por Bergson ao longo de sua obra5. Para este autor, a intuição consiste na apreensão temporal do intervalo de indeterminação que condiciona a experiência subjetiva existente entre a percepção do outro e a ação motora. Neste intervalo, se encontram situados os afetos e as representações que favorecem - no tempo que precede a ação - as formações das lembranças inconscientes. Ou seja, a intuição da dupla duração que se estabelece no encontro é a condição de fato para que o acontecimento traumático possa emergir na clinica no seu momento oportuno. Sendo assim, é na intuição do acontecimento - apreciado na técnica pela elasticidade do tempo da sessão (duração concreta) - que uma neocatarse se torna possível.

Claro está que no método bergsoniano tais formações supõem um tempo passado não localizado na matéria cerebral, o que nos conduzirá a uma concepção de inconsciente completamente diferente do inconsciente compreendido pelo viés das representações recalcadas.

Por isso, convém esclarecer que as semelhanças aqui evocadas possuem limites quanto a proposição que pretendemos analisar: não dizemos que a compreensão da subjetividade em Ferenczi seja idêntica àquela proposta por Bergson, mas sim que existe em análise uma valorização de todo um potencial presente nas subjetividades implicadas no encontro analítico que podem ser flagradas pela postura intuitiva do analista. Além disso, convém sublinhar que o tempo responsável pela emergência do acontecimento traumático é, em Ferenczi, um tempo paradoxal, constituído por rupturas e catástrofes.

Entretanto, é nesta zona de indeterminação - que supõe uma duração real - que encontraremos a ocasião indispensável para a emergência do acontecimento favorecido pela consideração dos obstáculos na clínica. Ou seja, o intervalo de indeterminação viabiliza a análise das resistências que surgem no encontro, ocasionadas por precipitações resultantes da antecipação da experiência fixada pelo tirania do saber. Como diz Ferenczi, " é preciso aguardar pacientemente que o doente tome a decisão" (FERENCZI, 1928, p 37), evitando assim a impaciência por parte do médico que acontece toda vez que ele assume uma atitude de "professor ou mesmo de medico autoritário (FERENCZI, 1928, p. 37). Na experiência do sentir com o analista se implica, se analisa no setting, aguarda o momento oportuno através de um procedimento minucioso

"de uma oscilação perpétua entre "sentir com", auto observação e atividade de julgamento. Esta última anuncia-se, de tempos em tempos, de um modo inteiramente espontâneo, sob a forma de sinal que, naturalmente, só se avalia primeiro como tal; é somente com base num material justificativo suplementar que se pode, enfim, decidir uma interpretação (FERENCZI, 1928, p.38)"

 

Consideração final: A Ética do "Sentir-Com"

A conseqüência ética da elasticidade da técnica se torna visível na modalidade de conhecimento que Ferenczi procura estabelecer: as condições sensíveis de um pensamento no qual é possível experimentar afetos, sensações, emoções que se originam no encontro com a alteridade - abolindo momentaneamente as fronteiras existentes entre sujeito e objeto -, fornecem no setting o tempo indispensável para uma adequada tomada de decisão. Nesta nova abordagem, o analista se dispõe a ultrapassar as resistências ocorridas no encontro, dando ênfase à duração como tempo imanente ao campo das experimentações afetivas. Com isso, consideramos o problema da resistência de uma outra maneira, saindo da prerrogativa projetiva de uma analista que se defende atribuindo o impasse ao analisando.

A abertura para um campo de afetações - com o seu duplo poder de afetar e ser afetado, com os afetos que sensibilizam o tato como experiência do sentir com - fez com que considerássemos - ao longo do nosso texto - a abordagem de Ferenczi das condições da experiência clínica pela exigência ética de uma análise para o analista. Com observações criteriosas sobre a conduta do analista, Ferenczi fez desta um instrumento para a promoção da motilidade libidinal indispensável para a atenção flutuante preconizada pela clínica. E foi isto que tornou possível a nossa hipótese de valorização de um tempo imanente para que a tomada de decisão em análise ganhasse um valor efetivo. Assim, fizemos ao longo do texto uma breve abordagem sobre o Kairós, reportando sua condição ao espaço aberto para uma duração duplamente vivida.

Ora, a análise do analista e a sua conseqüente repercussão no âmbito aberto pela experiência vivida no setting, viabilizou, no nosso entendimento, a emergência de um campo de regras facultativas que tornou possível uma neocatarse, onde o analista pôde suportar o impacto do encontro terapêutico, sem ceder à tendência de se fixar em uma posição imobilizadora.

Na ética - valorizada no nosso texto - o analista passou a condição de colaborador ativo do encontro, saindo da sua tradicional neutralidade. Com isso, a resistência entrevista por este campo de experimentação pôde ser retificada: ao ser alocada como resistência no encontro - gestando um estilo singular de tratamento, onde a barreira do isolamento traumático no qual se encontravam os pacientes pôde ser rompida - a analise da resistência viabilizou uma ambientação lúdica e criativa implicada na experiência compartilhada em análise.

Agora, podemos dizer que a elasticidade da técnica visa franquear os impasses de uma moral rígida da interpretação, amparada na postura supostamente "neutra" do analista. Ao se implicar na esfera da análise, saindo da posição de autoridade externa - posição esta que o analisante o coloca sempre quando faz deste o seu "novo pai", no lugar do antigo -, o analista recusa o lugar de acolhimento do superego do analisante, recusando, igualmente, a sua posição superegóica sustentada pelo dispositivo transferencial.

E aqui encontramos a tese central de Ferenczi que torna plausível a nossa hipótese de uma ética do sentir com: segundo ela "o paciente deve estar livre de todo vínculo emocional, na medida em que o vinculo transcende a razão e suas tendências libidinais próprias" (FERENCZI, 1928 P. 40). Para Ferenczi, os êxitos terapêuticos devem por de lado - pelo menos passageiramente - toda "espécie de superego, inclusive o do analista"(FERENCZI, Ibid). Ou seja, é

"somente essa espécie de desconstrução do superego que pode levar a uma cura radical; os resultados que consistirem apenas na substituição de um superego por outro devem ser ainda designados como transferenciais; não correspondem certamente a um objetivo final do tratamento: desembaraçar-se igualmente da transferência" (FERENCZI, 1928, p. 40).

A busca de um fim de tratamento - com a condição de cura imposta pelo esvaziamento do superego do analista - valem aqui como direções processuais que desativam as posições de poder que sustentam a transferência. Para nós, a neocatarse implicada neste movimento qualifica, sobretudo, uma ética do sentir com que valoriza o risco da experiência lúdica, apontando para uma direção processual de fim de análise.

A problemática do trauma, a neocatarse, a retomada lúdica do processo de alienação infantil, criaram delineamentos clínicos para a pesquisa de Ferenczi. Sua preocupação foi aos poucos configurando um caminho através de ensaios que fazem do texto sobre a elasticidade da técnica o seu ponto de virada. Assim, toda uma direção teórica foi se consolidando em textos tais como : "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (FERENCZI, 1929) e "princípios de relaxamento e neocatarse (FERENCZI, 1930).

O que se destacava rigorosamente aos seus olhos era o lugar que o analista ocupava para os destinos a serem oferecidos para a pulsão de morte no aparelho psíquico. Neste contexto, o acolhimento do analisante no setting, poderia favorecer a retomada em análise daquilo que não foi devidamente representado por ter sido desmentido, isto é, posto em descrédito pela figura materna.

No texto confusão de línguas (FERENCZI, 1933) - que trata exatamente da distinção entre a linguagem da ternura e a linguagem da paixão - Ferenczi retoma o tema da sedução, relembrando uma experiência originária real desmentida que favoreceu a identificação do infante com o agressor adulto. Reavendo aspectos da antiga teoria apresentada por Freud no início do seu trabalho, Ferenczi propôs que a experiência da sedução havia sido silenciada pela figura do bebê, que através de um mecanismo de identificação com o agressor, protegia as figuras parentais. Tudo se passa como se o silencio do infante houvesse sido ocasionado por um desmentido primordial, condicionando a experiência que estaria na base da confusão de línguas.

Assim, as questões que ensejaram Ferenczi na busca de uma elucidação ética do sentir com, são, evidentemente, manejos clínicos indissociáveis da pesquisa analítica. A busca de uma flexibilização técnica, de uma ética do sentir com, pautada na experiência estética que fomenta na clinica aspectos lúdicos, fizeram deste autor um grande experimentador da técnica. Alguém dotado do talento extraordinário de compreender a experiência traumática nas incertezas do procedimento analítico, fazendo da implicação do analista no encontro condição de invenções de alternativas lúdicas para o processo trágico da experiência sexual infantil. A politização da língua como advento de uma análise realizada, é a contrapartida dos impasses que só se resolvem nas criações que fornecem novas significações para adventos que, uma vez vislumbrados, atestam a passagem do tempo. O grande mistério consiste no retorno ao outrora que é, paradoxalmente, a condição do porvir. Sabendo, evidentemente, que é no acolhimento do trauma que a passagem do tempo pode ser experimentada.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/02/2016
Aprovado para publicação em: 10/03/2016

 

 

*Doutor em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro( UFRJ) ; é mestre em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, leciona no Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) e No programa de Pós-Graduação interdisciplinar em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA-RIO). Realiza também seminários na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), onde realiza a sua formação clinica. É autor dos livros: Os Pré-Socráticos, A invenção da razão, São Paulo, Odysseus; e Polifonias: Clínica, Política e Criação. Rio de Janeiro, Contra-capa.
1As considerações sobre a técnica ativa e as contra-indicações decorrentes dos efeitos nefastos desta experiência podem ser encontrados nos artigos de Ferenczi que precedem a elasticidade da técnica. Remetemos o leitor a dois momentos fundamentais: "Prolongamentos da técnica ativa em Psicanálise" (1920)e as "contra-indicações da técnica ativa" (1926). Sobre as considerações acerca dos impasses da técnica ativa consultamos também "Ousar Rir - Humor, Criação e Psicanálise de Daniel Kupermann cap.5.
2Kairós, momento oportuno ou momento de decisão. Trata-se de um tempo Grego abordado em vinculação com uma ética do acontecimento. Neste texto, propusemos uma livre abordagem da noção, partindo da premissa de que o momento oportuno se infere na clínica ferencziana em sintonia com a emergência do acontecimento traumático. Buscamos o estabelecimento da noção, trabalhando sua condição de possibilidade no campo entreaberto pelo tato analítico. A noção, por nós abordada,pode ser consultada no célebre texto de Negri que trata da explicitação deste conceito crucial: "Kairós, Alma Venus e Multitudo". Aqui, usamos a noção com o propósito de demarcar na experiência clinica a ocasião indispensável para a emergência do acontecimento traumático.
3Zona de indeterminação é um termo empregado por nós a partir da palavra indeterminação utilizada na explicitação dos procedimentos imanentes aos processos clínicos. Cotejamos, através desta nomeação, toda a formalização de expressão entrevista na análise do tato explicitada por Sandor Ferenczi. Aqui, a ênfase dada à palavra corrobora a hipótese de que a indeterminação é a condição efetiva de uma atenção flutuante, sendo igualmente a condição de eclosão de um acontecimento não previsto, casual, nascido na contrapartida das determinações assertivas de uma consciência reta. A palavra indeterminação consta na citação de Ferenczi estabelecida no nosso trabalho. Utilizamos livremente a noção buscando, também, uma inspiração no trabalho Matéria e Memória de Henri Bergson, que apresenta a noção como condição da subjetividade logo no primeiro capitulo do seu livro.
4Os filósofos aqui aludidos estão devidamente catalogados nos dois trabalhos realizados por Michel Foucault sobre ética ou prática de si. Sabemos que nos textos sobre a História da Sexualidade entre os Gregos Michel Foucault propôs uma rigorosa distinção entre as regras facultativas - que viabilizam escolhas condicionantes das práticas de liberdade - e as regras normativas derivadas de um campo moral constituído por praticas de saber/poder. Com esta distinção ele pôde estabelecer as condições reais de uma experiência ética Aqui, na nossa inflexão, a possibilidade de um discernimento das regras facultativas viabilizam, no âmbito da experiência clinica, a demarcação de uma ética do "sentir com". Sobre as considerações da ética pelas regras facultativas remetemos o leitor à leitura do livro " Historia da Sexualidade, vol 2 : O Uso dos Prazeres" de Michel Foucault. Encontraremos precisamente a demarcação do estatuto das regras facultativas na introdução deste capítulo, no item que trata da distinção entre "Moral e Prática de si".
5O textos onde Bergson trata sobre o método da intuição estão reunidos em um volume intitulado "O pensamento e o movente". Entretanto as considerações sobre a intuição e a sua peculiar importância na experiência filosófica podem ser apreciadas em dois outros livros capitais : "Matéria e Memória", onde Bergson expõe brilhantemente sua teoria da subjetividade; e as "Duas Fontes da Moral e da Religião" onde, ao longo do primeiro capitulo, Bergson expõe a sua teoria da emoção criadora como a condição da conversão da inteligência à intuição. Buscamos aqui também as considerações feitas por Gilles Deleuze em seu livro "O Bergsonismo", cap. 1. Nosso interesse por Bergson consistiu exatamente na elucidação de aspectos que a intuição pode favorecer no manejo da técnica.Sendo assim, a intuição requerida por Ferenczi no artigo sobre a elasticidade da técnica traz alguma proximidade com os métodos intuitivos que evocam a implicação do pensador na compreensão dos fatos condicionados pela experiência.

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