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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

 

DOSSIÊ

 

Desafios do enlace teórico / técnico na clínica do abuso sexual infantojuvenil

 

Challenges of theoretical / technical link in the children and adolescents' sexual abuse clinic

 

Desafíos del enlace teórico / técnico en la clínica del abuso sexual infantojuvenil

 

 

Cassandra Pereira FrançaI*; Cynthia da Conceição TannureI**; Danielle Pereira Matos RabeloII***

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
IIFaculdade Arnaldo Jansen - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo descreve o trabalho desenvolvido em um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que atende crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Serão relatadas as conclusões de duas teses inspiradas na escuta dos pacientes acompanhados por esse Projeto, e por meio das quais é possível destacar alguns limites presentes na construção da clínica da violência sexual: a realidade dos cuidados negligentes e violentos, aliada à atualização de elementos arcaicos provenientes das primeiras relações objetais, que não tiveram chances de elaboração. Tal cenário é apresentado, inicialmente, no contexto das relações fraternas incestuosas, que denunciam obstáculos na introjeção de objetos reasseguradores e continentes das angústias provenientes das mudanças corporais impostas pela puberdade. Em seguida, apresentaremos alguns limites relacionados à precariedade dos vínculos de confiança que reverberam os moldes primitivos das relações das mães com seus filhos frente às histórias de abuso sexual intrafamiliar. Tais pesquisas, ao pensar a problemática do cuidado, apontam para a necessidade de que os estudos e as intervenções na área da violência sexual infantojuvenil contemplem o conjunto de fatores associados à produção do sofrimento humano, tais como os problemas de ordem social e econômica, articulados aos elementos intrapsíquicos. Vimos ressoar esses esforços na proposta da clínica ampliada, na medida em que foi preciso fortalecer a visão integrada e multidimensional do sujeito com o qual trabalhamos.

Palavras-chave: relações objetais arcaicas, clínica ampliada, incesto, abuso sexual.


ABSTRACT

The current paper describes the work developed in a research and science outreach project from the Federal University of Minas Gerais (UFMG), which treats children and adolescents who are victims of sexual abuse. Conclusions of two PhD dissertations which have been inspired by the hearing of patients followed by this project will be reported. By means of both dissertations, it is possible to highlight some challenges present in the construction of the sexual violence clinic: the reality of neglected and violent care, coupled with the updating of archaic elements, stemming from the first objectual relations which have had no chance of further working through. First, this scenario will be presented in the context of parent incestual relations, which denounced obstacles in the introjection of reassuring objects that envelop the angst and excitations stemming from body changes imposed by puberty. The next step is to show some limits related to the precarity of the trust bonds which echo the primitive frameworks of the relations between mothers and their children regarding the stories of intrafamilial sexual abuse stories. Such research, by thinking about the issue of care, lead to the need of further studies and interventions in children and adolescents' sexual violence area. Those studies and interventions must comprehend the connection between intrapsychic elements and a set of factors related to the production of human suffering, such as concrete order issues (economic and social matters, for instance). We have seen a reverberation of such efforts in the proposal of an enlarged clinic, with the need of strengthening an integrated, multidimensional vision of the subject with which we work.

Keywords: archaic object relations, enlarged clinic, incest, sexual abuse.


RESUMEN

El presente artículo describe el trabajo desarrollado en un Proyecto de investigación y extensión, de la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) , que ofrece trabajo psicoterapéutico a niños y adolescentes víctimas de abuso sexual. Se presentarán las conclusiones de dos tesis basadas en la escucha de pacientes acompañados por el Proyecto, a través de las cuales destacamos algunos desafíos presentes en la construcción de la clínica de la violencia sexual: la realidad de los cuidados negligentes y violentos, sumada a la actualización de elementos arcaicos en las primeras relaciones objetales que no encontraron posibilidades de elaboración. Este escenario será presentado primero en el contexto de las relaciones fraternas incestuosas, que denuncian obstáculos en la introyección de objetos reaseguradores y continentes de angustias y excitaciones procedentes de los cambios corporales exigidos en la pubertad. Enseguida, exhibiremos algunos límites relacionados a la precariedad de vínculos de confianza resonantes de moldes primitivos de relaciones de las madres con sus hijos frente a historias de abuso sexual intrafamiliar. Al pensar la problemática del cuidado, estas investigaciones apuntan la necesidad de estudios e intervenciones en el área de la violencia sexual infantojuvenil que examinen el conjunto de factores asociados a la producción del sufrimiento humano, como los problemas de orden concreto, social y económico, junto a elementos intrapsíquicos. Vimos resonar esos esfuerzos en la propuesta de la clínica ampliada, en la medida que se hace necesario fortalecer la visión integrada y multidimensional del sujeto que trabajamos.

Palabras clave: relaciones objetales arcaicas, clínica ampliada, incesto, abuso sexual.


 

 

Introdução

Pensar o sofrimento psíquico na atualidade exige o redimensionamento de sua compreensão, de modo a considerá-lo não apenas a partir de seus componentes intrapsíquicos, mas também em suas esferas interpsíquicas e sociais. Esse é o sentido que se propõe, a partir da clínica ampliada, tal como idealizada por Basaglia (1924-1980) e sua visão do adoecimento mental atenta aos aspectos intersetoriais, coletivos e institucionais. Com base nessas ideias, nas décadas de 1960 e 1970 esse autor funda na Itália o movimento da Reforma Psiquiátrica, que inspirará o surgimento de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos.

Diferenciando-se de uma visão centrada na doença e seus aspectos mentais, Basaglia introduziu a proposta da "clínica do sujeito" (Winograd, & Vilhena, 2014), fruto do reconhecimento da desumanização dos recursos disponibilizados pela medicina e psiquiatria no atendimento aos pacientes em saúde mental, que não correspondiam a uma visão democrática, mas, sim, excludente e hospitalocêntrica, que condenava os pacientes - ora vistos apenas a partir dos seus sintomas - ao isolamento e "miséria humana" (Winograd, & Vilhena, 2014). Segundo essas autoras, era urgente, naquele momento, a subversão da cultura de assistência vigente e a ampliação da visão de sujeito, assim como a construção de novos modelos de intervenção clínica, que deveriam reconhecer a noção de corpo vinculada, necessariamente, aos contextos sociais, muitas vezes também adoecidos.

Assim como ocorreu com o campo médico, a Psicologia, nos últimos anos, tende a pensar suas intervenções, nos vários contextos de atuação, na direção da clínica ampliada, o que tem fomentado uma série de projetos acadêmicos que valorizam uma perspectiva multidimensional dos fenômenos sintomatológicos da cultura, indo além de uma abordagem intrapsíquica. A exemplo disso, temos encontrado, nas discussões atuais acerca do abuso sexual infantojuvenil, a valorização de uma perspectiva multidimensional do fenômeno da violência, o que requer incluir os contextos sociais e culturais além dos fatores individuais na produção do sofrimento daqueles sujeitos que tiveram seus direitos violados. É nessa direção que descreveremos o trabalho desenvolvido no Projeto CAVAS/UFMG (Projeto de pesquisa e extensão com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual)1, criado e coordenado, desde o ano de 2005, pela Dra. Cassandra Pereira França, docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

O Projeto abre três frentes de trabalho em extensão: a primeira delas é a de oferta contínua de atendimento clínico à comunidade; a outra advém da constituição de um campo de estágio e de discussões teóricas visando à formação discente para o atendimento da clínica do traumatismo sexual; e uma terceira é composta pela interlocução e capacitação de profissionais da rede de enfrentamento à violência sexual infantojuvenil (França, 2014). As principais problemáticas que vêm sendo estudadas são: a identificação com o agressor, o traumatismo psíquico, os possíveis distúrbios na construção da identidade sexual, as consequências psíquicas da consumação do complexo de Édipo, os segredos patológicos, a adoção de crianças vítimas de abuso sexual, as relações fraternas incestuosas e as configurações das relações maternas no contexto do abuso intrafamiliar. Os estudos desenvolvidos pelo projeto junto a instituições e universidades estrangeiras que têm se dedicado à problemática do abuso sexual à luz da Psicanálise vêm inspirando inúmeras pesquisas de iniciação científica, dissertações de Mestrado e Doutorado em Estudos Psicanalíticos. Os resultados das investigações, enfim, têm sido apresentados em livros2 organizados pela Prof. Dra. Cassandra Pereira França, que procuram conscientizar a sociedade acerca do caráter nefasto do abuso sexual quando viola os corpos de sujeitos em processo de amadurecimento emocional.

Um dos maiores desafios do Projeto CAVAS/UFMG é ter que lidar com os efeitos da perversão dos adultos e o silenciamento de outras figuras de cuidado das crianças que, ao invés de as protegerem, deixam-nas vagando solitárias pelos labirintos da perversidade. O abuso intrafamiliar gera perplexidade em razão de sua frequência e pelo seu potencial de produzir uma significativa desorganização psíquica naquele que o experimenta, além de um grande sentimento de solidão. Segundo França (2010): "[...] o incesto afeta o núcleo mais pessoal e básico da identidade, o corpo, e provoca uma devastação psíquica maior ainda porque quebra os vínculos fundamentais para os processos de identificação [...] (França, 2010, p. 13).

Assim, em nosso cotidiano clínico, temos que lidar com um assunto embaraçoso, afinal "estamos enveredando por um labirinto sagrado, cheio de enigmas e silêncios que podem nos deixar inermes na escuridão" (França, 2014, p. 11). Dentro desse contexto, apresentaremos, como exemplos de desafios da clínica ampliada, duas pesquisas de doutoramento que tentam se aproximar da gênese do silenciamento do abuso sexual pelo viés das configurações maternas arcaicas que esclarecem inúmeros casos de negligência com a prole e, inclusive, o incesto fraterno.

 

Obstrução da função de cuidados no psiquismo materno3

Uma das questões que nos chamou atenção, ao longo do trabalho no Projeto CAVAS/UFMG, foi a precariedade dos vínculos maternos e suas possíveis implicações nos casos de crianças e adolescentes com histórias de abuso sexual. Passamos a refletir sobre as possíveis obstruções no campo dos cuidados ditos "maternos" no contexto da clínica do traumatismo sexual e, a partir de então, começamos a buscar ancoragem teórico-clínica, que pudesse dar conta das angústias trazidas para o setting, e que pareciam revelar que as marcas de violência trazidas na bagagem dessas crianças e adolescentes não se restringiam aos abusos sexuais.

Nossas leituras nos conduziram a Ferenczi (1933/1992), em seu clássico texto "Confusão de língua entre os adultos e a criança: a linguagem da ternura e a da paixão". Nesse texto, ele já anunciava que o traumatismo sexual se configurava tanto na experiência de abuso em si, assim como no fato de que a criança, ao relatar para a mãe os abusos, era desmentida por ela. Tal situação ocorria, segundo ele, em situações em que as relações da criança com a mãe - mesmo antes da experiência de abuso - não são "suficientemente íntimas para que a criança possa aí encontrar uma ajuda" (Ferenczi, 1933/1992, p. 352). A mãe, portanto, tenderia a tomar a fala da criança como uma tolice, recusando-se a acreditar no que viu ou ouviu (Ferenczi, 1933/1992). A falta de alguém que possa auxiliar a criança na metabolização da experiência de abuso, por sua vez, ocasionaria um colapso na sua psique, impedindo-a, enfim, do registro e da ligação da experiência no aparelho psíquico.

As considerações de Ferenczi (1933/1992) sobre o distanciamento das mães em relação a seus filhos foram fazendo sentido, à medida que se associavam às inúmeras queixas das crianças e adolescentes que atendíamos. Chegamos a suspeitar que os desencontros entre a mãe e o filho/a vividos frente à história de um suposto abuso reacendiam mágoas, ressentimentos, rivalidades muito precoces, vividos não somente em fantasia, mas possivelmente acentuadas pelos desencontros ou obstruções de cuidados ocorridos entre a mãe e a criança nos primeiros anos de vida do filho/a.

A partir daí, algumas questões foram sendo delimitadas em torno do que se passava com as mães que desprotegiam ou desmentiam seus filhos/as nessas situações de abuso sexual. Questionamos se essas mulheres jamais chegaram a exercer a função materna, ou se a experimentaram, mas foram dela arrancadas pela desorganização psíquica arrebatadora desencadeada pela percepção de um jogo de sedução incestuoso que ocorria no lar, debaixo de seus próprios olhos. Tal quadro de desconfiança entre mães e filhos se apresentava, por exemplo, na atitude de muitos filhos ou filhas que sequer comentavam com as respectivas mães a violência sexual sofrida. Outras crianças, um pouco mais ousadas, até se atreviam a contar, mas se deparavam com um novo desapontamento: o possível descrédito e a indiferença da mãe. Em alguns casos, ocorreu uma situação pior: a/o filha/o foi julgada/o como participante ativa/o no envolvimento sexual. Isso sem falar naqueles casos em que as crianças foram surpreendidas com histórias de abuso sexual, possivelmente criadas nas fantasias de suas próprias mães.

Enfim, a apatia, o jogo de rivalidade ou a intrusão de algumas mães era tão marcante que tornou fundamental a oferta da escuta dessas mulheres por parte dos técnicos do projeto. A partir dessa experiência, contudo, nos deparamos com mulheres que nos pareciam portadoras de prévias fragilidades emocionais, as quais estariam funcionando como fatores impeditivos, tanto do exercício de suas funções de proteção enquanto mulheres adultas, quanto do reconhecimento do sofrimento das crianças que estavam sob seus cuidados.

Diante disso, formulamos as seguintes questões: estaria implantado, nas configurações maternas arcaicas, um modo de relação objetal que impede a mãe de exercer a função materna ou, melhor dizendo, a ética de um adulto protetor? As obstruções das funções de cuidado - observadas nas mães das crianças com histórias de abuso sexual - estariam, em alguma medida, relacionadas às opilações na internalização dos cuidados maternos na tenra infância, e que serão colocadas à prova na maternagem, especialmente quando essa mulher se depara com uma história de abuso sexual do/a filho/a?

As nossas investigações teóricas, aliadas às nossas análises clínicas, nos conduziram à compilação e sistematização de pelo menos dois grandes eixos de estudo, que representam duas vias de obstrução do cuidado: a via desvitalizante, que se aproxima do que André Green teorizou como a "mãe morta"; e a via da inveja, que foi tratada extensamente por Melanie Klein.

A começar pela investigação da desvitalização das relações de cuidado nesse contexto, tomamos como principal referência o trabalho de André Green (1980/1988). Utilizando a imagem de uma "mãe morta" como metáfora, ele descreve uma cena em que, repentinamente, uma criança passou a ser cuidada por uma mãe psiquicamente morta, ou seja, embora a mãe estivesse viva, a sua presença ficou marcada por uma ausência. Nas palavras de Green (1980/1988, p. 239): "uma mãe que permanece viva, mas que está, por assim dizer, morta psiquicamente aos olhos da pequena criança de quem cuida".

Tal imagem moribunda marcaria a psique infantil, registrando uma mudança de qualidade dos cuidados maternos, ou seja, uma descontinuidade da devoção da mãe. Se antes a relação da criança com a mãe configurava-se como "rica e feliz" (Green, 1980/1988, p. 249), por estarem presentes o investimento libidinal e afetivo, garantindo a constituição da subjetividade do infante, de repente, por alguma razão, a mãe entrou em um quadro depressivo, deixando a criança desamparada. Assim, a depressão materna transformou "brutalmente o objeto vivo, fonte de vitalidade da criança, em figura distante, átona, quase inanimada" (Green, 1980/1988, p. 239), resultando numa cena que ele descreve como "um falso seio, carregado por um falso self, amamentando um falso bebê" (Green, 1980, p. 259). As conseqüências da perda do amor materno para a criança foram descritas pelo autor como uma catástrofe, e seus nefastos efeitos foram encontrados por ele na relação de transferência de seus pacientes, que se queixavam de fracassos, insatisfações e inseguranças na vida amorosa, decorrentes da incapacidade para amar. Tais quadros pareceram a Green (1980/1988) como uma repetição de uma depressão infantil que impregnou o psiquismo desses sujeitos, e que a "depressão de transferência"4 veio elucidar.

O cenário descrito por Green nos ajudou a refletir sobre o modo como algumas mães se envolviam com o processo psicoterápico de seus respectivos filhos/as com histórias de abuso sexual: nas entrevistas clínicas elas apresentavam um discurs o monocórdico, vazio de afeto, acompanhado de um olhar distante, desinvestido, deixando-nos, em muitos momentos, incomodados com o grau de negligência e distanciamento da situação da criança. Apesar de essas atitudes serem acompanhadas de declarações de que nada sabiam acerca dos abusos sofridos pela criança, desconfiávamos, em alguns momentos, que facilitavam a "entrega" da criança ao abusador, ou até mesmo, que o acobertavam.

Sabemos que a experiência da maternidade, acompanhada das tarefas da maternagem, pode se constituir como experiência árdua para uma mulher, especialmente quando ela teve a história de seu narcisismo marcada por perdas precoces que levaram ao apagamento súbito do objeto primário. Assim, como bem assinalou Suannes (2011), a eventual busca por uma "ressurreição narcísica", por meio da idealização da maternagem, conduziu algumas mulheres a uma experiência de perda de si, em seus precipícios internos, e acabou por fazê-las seguir em perambulação, carregando vazios deixados pelo luto de uma mãe morta que se instalou em seu processo de identificação e que insiste em fazer efeitos na sua experiência de maternidade.

Todavia, a escuta clínica, aliada às reflexões teóricas, foi nos apontando para outra via de obstrução: a "inveja", o jogo de rivalidade que se estabelecia entre a mãe e o/a filho/a ou entre a mãe e o parceiro. Tal elemento foi também se destacando como um grande vilão na relação de cuidado entre as mães e filhos/as, especialmente após a eclosão de uma história de abuso sexual intrafamiliar. Nesses casos, as disputas e rivalidades se sobrepunham a qualquer comunicação ou movimento de cuidado com a criança ou adolescente, que acabava sofrendo as incidências das ameaças persecutórias vividas por suas mães.

Trata-se de mulheres que, apesar de intensamente ativas - se comparadas às mães desvitalizadas - apresentaram-se similarmente alheias à subjetividade do filho/a e à consideração dele/a enquanto alteridade. Identificamos, dentro desse feixe, dois grupos prototípicos: o primeiro, no qual as mães, frente a uma história de abuso sexual, logo se posicionavam em defesa do parceiro, lutando contra o próprio filho/a, rivalizando com ele/a e acusando-o/a cruelmente por ter provocado o suposto abuso sexual (do qual ele/a teria sido vítima). Algumas chegavam a ponto de entregar o filho/a para outrem, inclusive a instituições de abrigamento, permanecendo ligadas ao suposto abusador (mesmo ele tendo sido condenado), ou mesmo elegendo outros homens igualmente violentos. O segundo grupo é o das mães "defensoras", que, frente a uma história de abuso sexual, logo partiam para proteger o/a filho/a, lutando contra o parceiro (suposto abusador) e, de modo ensandecido, disputando com ele o poder pátrio. Tais mulheres chegavam, até mesmo, a se valerem de atitudes demasiadamente vingativas em relação ao seu parceiro, sustentando a história de abuso sexual que, a princípio, ocorrera somente em seu próprio julgamento.

Nossos estudos teóricos clínicos foram apontando que o modo com que essas mães rivalizavam - seja com os/as filhos/as ou com o parceiro - tinha o colorido de angústias experimentadas em rivalizações primitivas. Compreendemos que essas mães, em alguma medida, estariam enredadas em fragilidades narcísicas e reféns da inveja arcaica e, consequentemente, suas funções éticas de maternagem ficaram atravancadas. Desse modo, passamos a entender que as obstruções das atitudes de proteção em relação aos filhos constituíam um grande indício de que se mãe não fizera as pazes com sua imago materna, ainda estaria emaranhada nas suas próprias ansiedades esquizoparanoides, tornando impossível a identificação e a construção de sentido para as angústias dos filhos, principalmente quando se tratava de angústias frente ao abuso sexual (França, & Matos, 2012).

Nesse sentido, essas mães, ao buscarem uma "nascente narcísica" na maternidade, se depararam com seus objetos-filhos/as usufruindo de riquezas que elas próprias almejaram. Diante disso, elas se perdem na tarefa da maternagem, passando a disputar com um lugar que, em fantasia, elas deveriam ter ocupado. Tal situação se complica ainda mais quando esse/a mesmo/a filho/a foi visto (ou fantasiado) em uma cena incestuosa, ao lado do parceiro amoroso dela. Nesse instante, todas as ansiedades arcaicas são reativadas, fazendo-as sentirem excluídas e despojadas de um bem precioso. Restou a essas mães, então, usar a força do seu sadismo para atacar essa parceria, rivalizando, seja com o parceiro ou com o filho/a, negando, assim, qualquer vínculo de dependência frente a uma dessas figuras - fazendo sobressair a indiferença e o seu aparente triunfo narcísico.

Finalmente, nossos estudos nos apontaram que as ansiedades não dissipadas da tenra infância podem, de fato, interferir nas relações de cuidado entre uma mãe e uma filha/o, uma vez que a dimensão da alteridade estaria comprometida na presença de angústias não mitigadas, vividas com a imago materna.

 

Incesto fraterno: uma consequência da obstrução da função de cuidados no psiquismo materno?

A outra tese de doutorado5 a que nos referimos anteriormente partiu da hipótese de que esses cuidados parentais precários, ao serem internalizados, foram determinantes para o modo como cada uma dessas crianças canalizou suas demandas pulsionais e seus desejos diante das exigências de sua realidade psíquica. Optou-se, assim, por investigar as raízes arcaicas da possível relação existente entre os investimentos primários que falharam em conter e apaziguar as excitações e a escolha do vínculo fraterno como destino das mesmas. Para tais fins, foi seguida a trilha da pesquisa psicanalítica, que envolve uma reflexão constante entre a teoria estabelecida e os desafios colocados pelas observações clínicas dos movimentos psíquicos, em determinado contexto cultural.

De acordo com o psiquiatra Furniss (1993), o envolvimento incestuoso entre irmãos com idades próximas consiste em um substituto dos cuidados emocionais dos quais foram privados em decorrência de abusos físicos ou sexuais perpetrados pelos pais, podendo ser compreendido como estratégia de sobrevivência e obtenção de alívio de tensão e cuidado. Denomina a relação incestuosa entre irmãos menores de idade "síndrome de João e Maria", buscando diferenciá-la daquela em que um irmão está no lugar de autoridade e poder, tal como os pais. A menção ao conto infantil reporta ao abandono e desamparo das crianças, que passam a contar uma com a outra para vencer os obstáculos. Nessas famílias, os pais parecem indisponíveis e instáveis, abandonando, maltratando ou negligenciando o cuidado com os filhos. Trata-se de uma situação favorável ao fortalecimento dos vínculos entre os irmãos, que passam a funcionar como uma espécie de substitutos parentais, ao buscarem satisfazer, nessa relação, necessidades emocionais negligenciadas (Caffaro, & Conn-Caffaro, 1998, citados por Tomaz, 2013).

No contexto dos nossos pacientes, detectamos a negligência pela falta de conexão psíquica dos adultos com as necessidades das crianças e adolescentes, com respostas demasiadamente agressivas às demandas destes últimos. Percebíamos também, em alguns casos, a negligência associada à violência ou a uma erotização da relação com a criança. Sobre esse último aspecto, identificávamos uma intimidade entre algumas crianças e as figuras parentais que parecia quase uma ausência de restrições entre seus corpos. A esse respeito, encontramos o que o psicanalista francês Racamier (1998, citado por Mandelbaum, 2012) designou incestual, isto é, um conjunto de trocas erotizadas que surgem na fronteira entre a fantasia do incesto e a sua realização: a "família incestual" é aquela

na qual as diferenças e limites são abolidos, a intimidade de cada um dos membros pode ser devassada e há um trânsito intenso entre os espaços íntimos que flui do mesmo modo que o trânsito das identidades e das posições no interior do grupo. Muitas vezes, como já assinalamos, não se encontram nessas famílias evidências de incesto consumado, mas há algo que corresponde a uma confusão erótica, com seduções, exposição contínua dos corpos, troca de afagos e presentes, borrando cotidianamente as diferenças sexuais e geracionais ( Mandelbaum, 2012, p. 58).

Thorstensen (2012) afirma que, na incestualidade, não há demarcação das diferenças sexuais ou geracionais, o que constitui um elemento dificultador para os investimentos circularem fora do campo familiar. Vale dizer ainda que a incestualidade tanto abarca um fenômeno constitutivo relacionado ao processo de libidinização dos sujeitos, quanto as trocas libidinais que os mantêm em um estado de ausência de limites corporais e psíquicos, sob a ilusão de uma completude, dificultando a progressão do desenvolvimento. Segundo a autora: "as palavras 'incestualidade' e 'incestual' também revelam uma dualidade, ou seja, o fio da navalha entre o vital e o aprisionador" (Thorstensen, 2012, p. 24). Essa mesma autora reconhece ser difícil demarcar a incestualidade em seu aspecto constitutivo em relação ao que seria considerado patológico. Sua sugestão é a de que a dimensão patológica da incestualidade pode ser reconhecida quando os investimentos objetais estiverem impedidos de se realizar para além da família.

Mostrava-se como tarefa necessária pensar sobre o que representou para essas crianças e adolescentes internalizarem uma carga de violência ou uma carga demasiadamente erótica em uma relação de pouca reciprocidade com o cuidador. Construiu-se a hipótese de que esses cuidados, do modo como aconteceram, impediram a internalização de experiências com os objetos primários, necessárias à constituição de uma fonte interna de contenção e apaziguamento das excitações, o que poderia fazer desse incesto um modo de encontrar os investimentos que as figuras parentais falharam em ofertar, remetendo-nos, assim, às raízes arcaicas do aparecimento dessa atividade incestuosa. Para elucidar essas questões, examinando-as à luz das particularidades das relações fraternas e da experiência desses sujeitos com as figuras parentais, valeu-se do percurso teórico e da casuística de Melanie Klein, uma vez que a s contribuições dessa teórica têm sido profícuas para as elaborações do Projeto CAVAS, pois permitem uma exploração do domínio das relações primitivas, cuja importância se faz notar na comunicação dos nossos pacientes.

Assim, ao longo da tese, foi trilhado um caminho teórico junto aos autores que desenvolveram essa temática e que se alinham à perspectiva de Melanie Klein, que compreende o funcionamento psíquico a partir da internalização das relações da criança com seus objetos primários, recobertas pelos seus impulsos de amor e ódio. Apesar de essa perspectiva psicanalítica ser acusada de dar maior ênfase à realidade psíquica, entende-se que, no pensamento mais tardio de Klein, as experiências externas também modulam as fantasias infantis acerca de seus objetos, levando as realidades externa e interna a se constituírem simultaneamente. A interação entre o externo e o interno apontada pela autora parece relevante para pensar as seguintes questões: o incesto fraterno corresponde às fantasias que uma criança negligenciada constrói sobre as fontes de gratificação que não encontrou disponíveis no objeto parental, e imagina que, talvez, outro irmão possa ter encontrado? Cuidados parentais que falharam em dar contenção e apaziguamento às excitações da criança poderiam criar um campo propício para que o irmão seja uma espécie de continente às excitações corporais do outro?

Sabemos, desde Freud, que os desejos incestuosos fazem parte dos processos constitutivos dos sujeitos, e que sua renúncia se dá em meio às elaborações da criança a respeito dos enigmas da sexualidade e das interdições que se operam a partir dos pais. Freud faz compreender a análise dos desejos incestuosos e sua renúncia no âmago da teorização dos complexos de Édipo e de castração. Conforme assinalado pelo autor, o complexo de Édipo será ampliado para um complexo de família, quando nascem os irmãos e irmãs e, deste modo, a trama edipiana passa a interagir com o que é experimentado no âmbito das relações fraternas. Rivalidade e desejo não serão mais destinados exclusivamente às figuras parentais, mas também aos irmãos e irmãs. Esses relacionamentos passam a exercer um estímulo ao desejo, à curiosidade, à hostilidade e à construção de laços identificatórios com um semelhante. Além disso, a presença de irmãs e irmãos propicia uma modificação na tonalidade afetiva da relação com as figuras parentais, podendo, dessa forma, levar a um afastamento em relação a estas (como no caso da menina em relação à sua mãe) e ao desligamento dos primeiros objetos. Entretanto, Freud também mostrará que a realização de atividades sexuais entre irmãos, como analisado na história do Homem dos Lobos, influencia nos conflitos que se instalam em relação ao prazer e ao desejo do sujeito, de modo duradouro.

Segundo Hélio Pellegrino (1987), em "Édipo e a paixão", a análise do incesto e sua renúncia deve partir da triangulação primitiva da criança na relação oral com a mãe, em suas vivências de frustração e gratificação. Ter vivido uma relação de rejeição e abandono em um nível ainda oral com a mãe tornaria mais árdua e complexa a resolução das tarefas elaborativas dos complexos de Édipo e castração. As crianças desamparadas pelo objeto materno tendem a ele se prender numa ilusão fusional, que representa uma defesa diante do desamparo. Segundo o autor: "[...] se a relação for boa e amorosa, mais facilidade terá a criança de aceitar o corte separador que, com a interdição do incesto, a afasta da mãe" (Pellegrino, 1987, p. 310). Dessa forma, a precariedade dos investimentos por parte do objeto nos anos iniciais da infância produz um obstáculo à sua renúncia, o que seria correlativo à impossibilidade de separar-se do mesmo em uma dimensão imaginária.

Essa mistura psíquica com a mãe levou-nos a seguir a trilha interpretativa de Klein, que nos mostra o peso da presença de mecanismos projetivos e introjetivos em operação na identificação projetiva6 e na identificação com o agressor7, onde podemos observar que os componentes mais destrutivos do psiquismo vinculados naquela relação primária também são projetados na figura do irmão/irmã como meio de alívio.

Mas, além de ressaltar os aspectos destrutivos ligados ao incesto fraterno, Klein reconheceu que essa experiência pode ganhar conotações positivas, se nela houver o predomínio dos elementos libidinais. A seu ver, a relação incestuosa com um irmão pode ser fonte de proteção, na ausência de boas imagos parentais, ajudando a desenvolver a capacidade de amar. Ademais, as relações sexuais entre as crianças também teriam um caráter reparatório, aplacando a angústia de castração e o sentimento de culpa pelas fantasias destrutivas dirigidas aos pais. O aspecto dado a essa relação, reparatório ou destrutivo, ajuda na elaboração das relações edipianas, afeta a vivência de prazer e as fantasias relacionadas à potência e à fertilidade que farão parte da vida sexual quando a adultez chegar.

Klein (1932/1992) abriu uma discussão a respeito da ineficácia das medidas proibitivas ou a imposição de vigilância sobre as crianças para coibir a atividade incestuosa, uma vez que, mesmo com a adoção de tais medidas, não seria possível evitar que essas relações acontecessem. Nesse ponto, estamos em pleno acordo, pois as relações fraternas incestuosas não surgem da falta de vigilância por parte dos adultos. Na verdade, os destinos dos desejos incestuosos vão sendo tecidos desde o vínculo inicial com a mãe, entrelaçando elementos amorosos aos destrutivos.

Essa ideia foi se tornando ainda mais clara no contato com o pensamento de Kaës (2011) e Jaitin (2010), autores que permitiram identificar nas especificidades do incesto fraterno fantasias de completude, fusão e indiferenciação com o irmão/irmã e que, em última instância, revelariam uma tentativa de evitar a separação da figura materna das diferenças sexuais e geracionais. Esses autores afirmam que a incestualidade seria um obstáculo a essa separação, pois esmaeceria as fronteiras entre a criança e o objeto primário. Jaitin (2010) afirmou que essa separação não se efetuaria em razão de a figura materna não ter dado espaço à representação de sua ausência, posicionamento do qual discordamos, principalmente quando pensamos o incesto sob a ótica da negligência e da violência. Acreditamos, segundo a escuta clínica, que o que predomina nesses vínculos incestuosos é justamente a representação da ausência do objeto materno e a prevalência de investimentos que possam apaziguar as excitações, dar contenção e segurança interna. Ou seja, não há a presença de um reservatório de prazer e gratificação constituído por bons objetos. O objeto materno representado como privador e frustrador (por sua negligência e violência) permanece no psiquismo sob a forma de ataques internos e da elevação dos níveis de pulsão de morte.

No contexto em que a negligência se associa à incestualidade, observamos o efeito desorganizador dos impulsos sexuais com a entrada na adolescência, revelando a frágil base narcísica daqueles sujeitos e a fraca internalização das experiências de prazer com o objeto primário, que não cumpriria a função de proporcionar limites corporais e contenção das excitações. Por meio das análises realizadas dos casos clínicos do Projeto compreendemos que o irmão escolhido como um objeto sexual pode ser fantasiado como aquele que internalizou o prazer e o investimento vividos com as figuras parentais e que, de modo indireto, será capaz de apaziguar as excitações sobre as quais se tem pouco controle.

Escutamos pelas histórias que nos chegaram o quanto aquelas crianças e adolescentes tinham que lidar com algo de difícil assimilação para o psiquismo, isto é, os excessos incontidos das figuras de cuidado, de suas trocas erotizadas, da sua negligência e violência. Acreditamos que a análise dessas crianças e adolescentes deve ater-se às suas bases internas frágeis e à necessária criação de reservas psíquicas que possam ajudar a conter e apaziguar os impulsos excitatórios, além de tratar simbolicamente aquilo que se operou na relação com os objetos parentais. Sabemos que nesse campo de pesquisa ainda há muito o que ser investigado, como, por exemplo, se a incestualidade, mesmo com seus excessos, teria criado maior predomínio dos elementos libidinais em relação aos destrutivos, apesar do contexto de negligência, preservando, desse modo, uma esperança de gratificar-se com um bom objeto.

Os estudos aliados à escuta clínica no Projeto CAVAS/UFMG possibilitou-nos compreender que o irmão escolhido como objeto de investimento sexual geralmente é aquele que recebeu investimento libidinal das figuras parentais. Tal constatação nos leva à conclusão de ser o incesto fraterno um recurso que a criança ou adolescente encontrou para atingir as fontes de gratificação que não estavam disponíveis no objeto parental. Nesse sentido, no incesto fraterno, como propôs Kaës (2011), há um prolongamento da relação com uma mãe que excita; assim, ser tocado pelo irmão pode equivaler, imaginariamente, ao contato com os objetos bons que podem dar contorno aos limites corporais e conter as excitações.

Constatamos ainda que a interferência dos cuidados parentais (incestuais e negligentes) sobre a constituição narcísica e libidinal das crianças pode se tornar ainda mais evidente com as tarefas psíquicas exigidas com a chegada da puberdade e da adolescência, períodos em que se atualizam as trocas vividas com as figuras parentais na primeira infância e a sua internalização (Jeammet, & Corcos, 2005). Nossos estudos apontaram que, nessa via, ocorreria um incremento do efeito desorganizador dos impulsos sexuais sob uma base interna frágil.

 

Considerações sobre o enquadre analítico

Ao longo do trabalho realizado com as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual pôde-se encontrar alguns desafios e limites nesse campo de intervenção, relacionados, especialmente, ao desamparo proveniente da negligência e da exposição à violência intrafamiliar. Esse cenário tanto favorece uma precária constituição do psiquismo infantil quanto dificulta a elaboração do traumatismo sexual, fazendo-se reverberar no setting analítico por meio da dificuldade na construção de vínculos de confiança; das atuações que substituem o tratamento simbólico da violência; da intensa projeção das angústias aniquilantes para o interior do psiquismo do analista, a fim de que possam ser contidas e nomeadas, tornando-se passíveis de metabolização.

Ferenczi (1933/1992) questionou a técnica psicanalítica clássica (a partir inclusive de casos de abuso sexual que chegaram a sua clínica), acusando a psicanálise de ser "hipócrita" ao fazer uso da neutralidade frente a situações de negligência e violência - atitude que só colaboraria para a retraumatização de pacientes que já sofreram as marcas da indiferença, do descrédito e do desmentido. Ao refletir sobre o fracasso da análise ou de resultados terapêuticos insuficientes de tais pacientes, ele chegou a levantar uma questão: "Será que a causa do fracasso é sempre do paciente? Não seria antes nosso próprio conforto que se recusa a adaptar-se às particularidades da pessoa no plano do método?" (Ferenczi, 1931/1982, p. 100).

Segundo Ferenczi (1932/1990), a psicanálise estava se tornando cada vez mais pedagógica e impessoal, com o analista "flutuando como uma divindade sobre o pobre paciente, relegado à condição de criança" (Ferenczi, 1932/1990, p. 149). Partindo do i nteresse genuíno por seus pacientes, o autor chegou a levantar críticas ao próprio pai da Psicanálise, afirmando que Freud "não ama ninguém, apenas a si mesmo e a seu trabalho" ( Ferenczi, 1932/1990, p. 526).

A partir desses questionamentos, Ferenczi propõe, entre os anos de 1927 e 1928, a "técnica ativa", na qual o analista deveria flexibilizar seu método e renunciar à neutralidade e abstinência, por serem iatrogênicas ao tratamento, substituindo-as pela hospitalidade e empatia, o que transforma o setting analítico em uma âncora para os desamparos e violências vivenciados por seus pacientes. Apesar de ter suas ideias demasiadamente rejeitadas por seus contemporâneos, que chegaram a acusá-lo de ter perdido a saúde mental8, Ferenczi influenciou sobremaneira o pensamento de grandes representantes do pós-freudismo, tais como Melanie Klein, Donald Winnicott, Michael Balint e Jean Laplanche.

No que diz respeito ao método de trabalho com pacientes marcados por uma precariedade dos vínculos primários, assim como abordados nas duas teses, destacamos a importância das contribuições de Winnicott, autor que apresentou ponderações similares às de Ferenczi sobre a insuficiência da técnica da psicanálise clássica. Segundo ele, a relação analista-paciente é análoga ao relacionamento mãe-bebê. Desse modo: "é o par mãe-criança que pode nos ensinar os princípios básicos sobre os quais deve fundar-se nosso trabalho terapêutico, quando estivermos tratando de crianças cuja primeira relação com a mãe não foi 'boa o suficiente', ou foi interrompida" (Winnicott, 1965/2011, p. 20).

A partir daí, Winnicott também rompeu com a neutralidade da psicanálise tradicional e alertou para a necessidade, em alguns casos, de tornar o espaço analítico um protótipo de um ambiente confiável, onde não haja o risco do uso abusivo das interpretações, uma vez que elas podem configurar-se como novas invasões e novas submissões no psiquismo desses pacientes. De modo especial, Winnicott, como um arauto da psicanálise, fez a seguinte ponderação: "Seria muito agradável se pudéssemos aceitar apenas pacientes cujas mães foram capazes de proporcionar-lhes condições suficientemente boas no início e nos primeiros meses. Mas esta era da psicanálise está inexoravelmente chegando ao fim" (Winnicott, 1954/2000, p. 388).

Winnicott, assim como pensava Ferenczi, apontava para a importância da qualidade da presença do analista e de sua atenção, na capacidade de identificar-se com seu paciente, de disponibilizar a ele uma compreensão profunda e uma vontade genuína de ajudar. Sendo assim, o analista poderia levar em conta a possível imaturidade do seu paciente e não o interpelar em algo para o que ele não estaria preparado9. Tem-se, pois, que:

Quando estamos face a face com um homem, uma mulher ou uma criança, descobrimos que estamos reduzidos a dois seres humanos do mesmo nível. Não faz diferença se sou médico, enfermeiro, assistente social, psicanalista ou padre. O que importa é a relação interpessoal, em seus ricos matizes humanos (Winnicott, 1970/2011, p. 108).

A partir desses pressupostos, Winnicott traça a grande tarefa analítica de exercer, pelo analisando, aquelas funções psíquicas malogradas, seja ofertando palavras àquelas experiências ou sensações indizíveis, ou elaborando, por meio da relação transferencial, as falhas primordiais dos cuidados maternos, a exemplo da função de "testemunho da existência"10, junto àqueles que não tiveram um espelho que os refletisse. Assim, a través de seu olhar, de sua fala expressiva, enfim, de sua presença corpórea, o analista deverá ofertar ao seu paciente um lugar no qual ele possa se reconhecer - experiência que só pode ocorrer na presença autêntica de um outro e não de um espelho morto e impessoal. A exclusão completa da pessoalidade (e vitalidade) do analista, a partir de uma suposta neutralidade ou assepsia, pode fazer do espelho analítico um espelho fixo e rígido. Conforme afirma Winnicott: "Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto" (Winnicott, 1967/1975, p. 161).

Qual seria então o caminho da análise diante desses contextos de violência e negligência, aliados à precariedade do funcionamento psíquico de crianças, adolescentes e seus cuidadores? Como construir redes simbólicas diante do trauma sexual vivenciado, sendo que os recursos psíquicos, tanto do paciente quanto da família, carecem de vitalidade, ou estariam marcados pelos desígnios das ansiedades arcaicas? Klein parece nos apontar uma direção:

Levando a análise até a infância mais remota, possibilitamos ao paciente reviver situações fundamentais - uma revivescência a que tenho freqüentemente me referido como "lembranças em sentimento". Ao longo dessa revivescência, torna-se possível ao paciente desenvolver uma atitude diferente para com suas frustrações arcaicas (Klein, 1957/1991, p. 267).

A citação acima se inscreve no texto "Inveja e gratidão", em que Klein (1957/1991) pondera que, somente quando a análise alcança as ansiedades arcaicas, as relações objetais poderão sofrer transformações, não no sentido de desfazer as más experiências iniciais, mas no de possibilitar o desenvolvimento de uma "atitude diferente", a partir da "introjeção do analista como objeto bom [...] lá onde ele estava faltando" (Klein, 1957/1991, p. 267). O analista, por sua vez, atuaria como um objeto externo, sobrevivendo à destrutividade de seu paciente, não de forma mágica ou onipotente, ou muito menos entrando no jogo de disputas ou rivalidades. Mas, conforme descrito por Souza:

[...] o paciente pode vivenciar o analista como alguém que suporta, compreende, contém e se mantém pensando, mesmo quando é induzido, na situação criada pelo paciente, a viver as emoções, os impulsos, os sentimentos que ela viveu em suas relações de objeto iniciais, estão criadas as condições para que seja possível a introjeção, não só do conteúdo que é interpretado pelo analista, mas também das próprias funções do analista como perceber, suportar e pensar (Souza, 2012, p. 286).

Para Klein (1957/1991), as interpretações das ansiedades arcaicas, aliadas à análise da transferência negativa e positiva, tendem a enfraquecer as projeções, os ressentimentos, as mágoas, tornando possível ao paciente reviver "lembranças em sentimento" e experimentar estados agradáveis, mesmo quando a situação inicial foi desfavorável. No trabalho de análise, gradativamente, o ego do paciente poderá ir se integrando, fortalecendo-se, tornando-se cada vez mais capaz de viver as angústias depressivas, ou seja, de suportar a culpa e a responsabilidade pelo objeto. A integração do ego, em análise, coincide com a síntese do objeto, antes cindido, "havendo, portanto, uma mitigação do ódio pelo amor, e a voracidade e a inveja, corolários dos impulsos destrutivos" (Klein, 1957/1991, p. 267). A direção da análise deve, na ótica kleiniana, traçar caminhos de superação da inveja e, ainda, da incapacidade de se vincular ao bom objeto e usufruir da gratidão que ele proporciona, externa e internamente. Nas palavras de Favili:

A mente do analista seria como uma corda vibrada ao toque das angústias emergentes projetadas. [...] Como parceiro ativo do drama inaugurado pela transferência, o analista é jogado para um duplo trabalho: sentir e pensar simultaneamente, para que seja possível, através do enfrentamento do sentimento vivido, abrigar dentro de si e devolver, mais articulada, toda a gama de emoções que o paciente não pode elaborar. É a capacidade de rêverie que entra em cena. Continente das dores arcaicas, ele deve poder descontaminar todo esse explosivo projetado (Favilli, 1998, p. 835).

Apesar do trabalho com o mundo intrapsíquico nos parecer essencial, a especificidade dessa clínica nos fez deparar, mais do que nunca, com os limites de um trabalho centrado no mundo interno da criança e do adolescente. Vemo-nos diante da necessidade de um novo enquadre analítico, uma vez que as crianças, os adolescentes e suas respectivas famílias encontram-se emaranhadas em conflitos de ordem não somente arcaica, mas também concreta, real. Diante disso, vamos buscando ampliar nossa visão clínica, para que possamos, na medida da necessidade, ir realizando intervenções e manejos em campos que extrapolam o setting de análise. Nesse sentido, para garantir a construção de um espaço potencial que assegure os processos de elaboração da análise, faz-se necessária, em alguns casos, a interlocução constante com pais e mães, educadores de abrigos, assistentes sociais, psicólogos jurídicos, profissionais da educação, entre outros, que possam colaborar para a não retraumatização desses pacientes. Afinal, essa clínica nos interpela a pensar na insuficiência de uma atuação clínica psicanalítica tradicional e na necessidade de se implicar, seja enquanto analistas, ou como profissionais das políticas públicas e até mesmo como cidadãs, na construção de uma "ética do cuidado", que envolve a integração de todas as faces que compõem um sujeito que vivencia uma violência sexual.

Dentro dessa linha de urgência na alteração da técnica para o atendimento psicanalítico em casos que envolvam violência e negligência, uma das contribuições levantadas por Green acerca dos casos de desamparo materno foi assim descrita: "a coisa mais importante é que o paciente tenha o sentimento de que o analista permanece vivo; o importante é que o paciente sinta que o analista reage ao que ele diz e permanece em contato com ele" (Green, 1990, p. 250; grifos do autor). É relevante destacar aqui que a mudança da técnica proposta por esse autor, tal como por Ferenczi, contraria diretamente a atitude clássica da psicanálise, que preza sobremaneira pela neutralidade benevolente do analista. Entretanto, segundo esse autor, o distanciamento e a opacidade do analista, assim como proposto por Freud em seus artigos sobre a técnica (1911 a 1913), podem fazer com que ele corra o risco de "repetir com o paciente sua experiência com uma mãe que não o ouve" (Green, 1990, p. 154).

A análise de tais pacientes, segundo Green, deveria, portanto, remontar às relações primárias entre mãe-bebê, na medida em que "a dupla analítica no setting é homóloga à dupla formada pela criança-infans e pelos pais falantes" (Green, 1990, p. 25). Contudo, nos casos em que "o eu está sob ameaça de desmembramento [...] é menos unificado, [...] a solução passa pela narcização do eu" (Green, 1990, p. 32). Essa operação de (re)ligação, por sua vez, estaria a cargo do analista, pois ele é "o objeto sempre vivo, interessado, acordado, sem sair da neutralidade" (Green, 1980/1988, p. 262).

Parafraseando Sigal (2002), concluímos que não há um só modo de psicanalisar, assim como de exercer um cuidado ético com nossos pacientes. Portanto, a visão de clínica ampliada, aliada às contribuições dos psicanalistas estudados, nos permite usar da criatividade em nossas condutas clínicas, afinal: "nos tornamos analistas a cada momento, a cada passo, frente a cada paciente, com nossa subjetividade sempre em andamento. O ser analista nunca está acabado. Este é um trabalho de abertura, no meio do caminho" (Sigal, 2002, p. 77).

 

 

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Artigo recebido em: 15/08/2018
Aprovado para publicação em: 29/09/2018

Endereço para correspondência
Cassandra Pereira França
E-mail: cassandrapfranca@gmail.com
Cynthia da Conceição Tannure
E-mail: cynthiatannure@gmail.com
Danielle Pereira Matos Rabelo
E-mail: danielle@palavraecia.com.br

 

 

*Doutora em Psicologia clínica pela PUC-SP, onde também realizou o Pós-doutoramento; Professora de graduação e Pós-graduação do curso de Psicologia da UFMG, Coordenadora do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica e do projeto de Pesquisa e extensão com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual (CAVAS/UFMG). Autora dos livros Ejaculação precoce e disfunção erétil: uma abordagem psicanalítica (Casa do Psicólogo, 2001), Disfunções sexuais (Coleção Clínica Psicanalítica, Casa do Psicólogo, 2005), Nem sapo nem princesa: terror e fascínio pelo feminino (Blucher, 2017) e organizadora dos livros Perversão: variações clínicas em torno de uma nota só (Casa do psicólogo, 2005), Estilos do xadrez psicanalítico: a técnica em questão (Imago, 2006), Perversão: as engrenagens da violência sexual infantojuvenil (2010), Tramas da perversão: a violência sexual intrafamiliar (Escuta, 2014) e Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual (Blucher, 2017).
**Graduada em Psicologia (UFMG). Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais , na área de concentração Estudos Psicanalíticos . Supervisora clínica do Projeto de Pesquisa e Extensão com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual (CAVAS), da UFMG. Professora e supervisora de estágio do curso de Psicologia da Faculdade Arnaldo Jansen.
***Graduada em Psicologia pela UFMG. Mestre e Doutora em Psicologia (UFMG) na área de concentração Estudos Psicanalíticos. Supervisora clínica do Projeto de Pesquisa e Extensão com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual (CAVAS), da UFMG. Professora e supervisora de estágio do curso de Psicologia da Faculdade Arnaldo Jansen.
1O perfil da população atendida pelo projeto tem histórico de outras violências e negligências no cuidado dos filhos, possui baixo poder aquisitivo e, com grande frequência, vem encaminhada pela Rede de Assistência Social do município de Belo Horizonte, composta por Centros de Referência, Conselhos Tutelares e Abrigos.
2Os títulos dos referidos livros publicados até o momento são: Perversão: variações clínicas em torno de uma nota só (2005); Perversão: as engrenagens da violência sexual infantojuvenil (2010); Tramas da perversão: a violência sexual intrafamiliar (2014); e Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual (2017).
3A pesquisa de doutorado intitulada "Ressonâncias dos cuidados maternos primários na clínica com crianças vítimas de violência sexual" (2018), da autoria de Danielle Matos Rabelo, sob a orientação de Cassandra Pereira França, pretendeu dar voz à escuta clínica da precariedade dos vínculos maternos vividos pelas crianças e adolescentes atendidos no projeto CAVAS/UFMG.
4Nome que Green deu aos quadros depressivos que surgem após um longo período de análise, e que ultrapassavam uma reação depressiva "normal", em referência ao termo freudiano "neurose de transferência" (Green, 1980/1988).
5"Incesto fraterno: raízes arcaicas de seu aparecimento na infância e adolescência" (2018), escrita por Cynthia da Conceição Tannure e orientada por Cassandra Pereira França, surgiu a partir da experiência clínica no Projeto CAVAS/UFMG, por meio da qual houve acesso a alguns intrigantes casos de incesto fraterno, inseridos em um contexto familiar de cuidados parentais negligentes, violentos e, algumas vezes, também incestuosos.
6Conceito descrito por Klein em 1946, no artigo "Notas sobre alguns mecanismos esquizoides". Trata-se de movimentos projetivos em direção ao objeto, que passará a conter as partes destacadas do self, levando a uma "[...] forma particular de identificação, que estabelece o protótipo de uma relação de objeto agressiva" (Klein, 1946, p. 27).
7Noção trabalhada Sandor Ferenczi, em 1933, em "Confusão de língua entre adultos e crianças", correspondente à repetição de uma violência sofrida, e um fenômeno identificado com frequência nos casos de incesto fraterno.
8A imagem distorcida de Ferenczi deveu-se, em grande parte, a Ernest Jones, que costumava chamá-lo de "louco de Freud", conforme assinalado por Dias, 2011, em seu livro Sobre a confiabilidade e outros estudos.
9Tal atitude implica, contudo, a capacidade do analista de deixar de lado seu furor curandis e permitir que o outro adoeça, ou enfraqueça, quando isso se fizer necessário, conforme discute Elsa de Oliveira Dias (2010), em seu artigo "O cuidado como cura e como ética".
10Judith Mézaros (2011) aponta para o papel do analista como "testemunha da existência" de experiências sofridas, especialmente como autenticadores das vivências traumáticas.

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