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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Trauma, subjetivação e governabilidade na pandemia do Coronavírus1

 

Trauma, subjectivation and governability in the Coronavirus pandemic

 

Traumatisme, subjectivation et gouvernabilité dans la pandémie de coronavirus

 

 

Joel Birman*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Universidade Paris VII - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A intenção deste ensaio é a de problematizar os efeitos sobre as singularidades da pandemia do Coronavírus no registro eminentemente psíquico, articulando a experiência traumática com formas de subjetivação e da governabilidade, respectivamente. Com isso, o trauma pode ser interpretado como uma produção singular e coletiva ao mesmo tempo.

Palavras-chave: Trauma, subjetivação, governabilidade.


ABSTRACT

Trauma, subjectivation and governability in the Coronavirus pandemic. The intention of this essay is to problematize the effects on the singularities of the Coronavirus pandemic in the eminently psychic register, articulating the traumatic experience with forms of subjectivation and governability, respectively. With this, trauma can be interpreted as a singular and collective production at the same time.

Keywords: Trauma, subjectivation, governability.


RÉSUMÉ

Traumatisme, subjectivation et gouvernabilité dans la pandémie de coronavirus. L'intention de cet essai est de problématiser les effets sur les singularités de la pandémie de coronavirus dans le registre éminemment psychique, en articulant l'expérience traumatique avec des formes de subjectivation et de gouvernabilité, respectivement. Avec cela, le traumatisme peut être interprété comme une production singulière et collective à la fois.

Mots-clés: Traumatisme, subjectivation, gouvernabilité.


 

 

I Preâmbulo

Este ensaio pretende articular os diferentes registros do trauma, da subjetivação e da governabilidade como linhas de força que modelaram e ainda modelam a atual pandemia do Coronavírus. No entanto, se o trauma será problematizado 2, 3 no singular, em contrapartida, a subjetivação e a governabilidade serão declinadas no plural, de forma que vamos problematizar propriamente as subjetivações e as governabilidades, como reguladores efetivos da experiência traumática no campo social da recente pandemia do Coronavírus.

Além disso, o trauma será concebido nas bordas entre os registros do corpo e da ordem coletiva, na medida em que a experiência traumática, para se configurar, pressupõe necessariamente a conjunção íntima entre os registros do interior e do exterior.

Não foi assim, certamente por acaso, com efeito, que Freud, ao problematizar pela primeira vez a neurose traumática como neurose de guerra, no ensaio de 1920 intitulado "Além do princípio do prazer"4, o cenário histórico e social da Primeira Guerra Mundial, com as suas violências e crueldades até então inéditas, o qual era inseparável da nova descrição clínica e da leitura metapsicológica conexa que o discurso freudiano enunciou ao mesmo tempo.

Portanto, as ordens individual e coletiva conjugam-se intimamente na constituição da experiência do trauma, por um lado, e a atual pandemia do Coronavírus é paradigmática como campo social e sanitário para a demonstração desta tese, pelo outro, na qual os registros da singularidade e da coletividade se conjugariam intimamente, na construção efetiva da experiência do trauma.

Destacando, assim, este viés de leitura do trauma, na dupla dimensão acima enunciada, é preciso formular devidamente que o trauma exige uma leitura propriamente interdisciplinar, sem a qual se impõe o risco inevitável do reducionismo teórico, seja este da ordem do psicologismo, seja este da ordem do sociologismo. Com efeito, se a psicanálise foi colocada em cena na leitura que propomos realizar da experiência do traumático no campo sanitário da pandemia do Coronavírus, essa leitura se inscreve previamente no registro interdisciplinar de pesquisa, como ainda veremos posteriormente, com maior rigor teórico e epistemológico.

Dito tudo isso como preâmbulo da interpretação que propomos realizar da atual pandemia do Coronavírus, colocando em destaque as linhas de força fundamentais que vou desenvolver neste ensaio, é preciso enunciar ainda neste preâmbulo que este ensaio será configurado em cinco tempos intimamente concatenados e efetivamente costurados.

Assim, se em um primeiro momento tecerei alguns comentários preliminares sobre a pandemia do Coronavírus, de ordem epistemológica, teórica, política e ética ao mesmo tempo, nos momentos subsequentes, em contrapartida, vou problematizar a categoria de trauma em psicanálise, para em seguida colocar em cena as formações sintomáticas produzidas pela referida experiência traumática, assim como as formas de subjetivação colocadas em cena por este acontecimento crucial e a sua regulação pelas diferentes formas de governabilidade.

Enfim, estas são, assim, as linhas de força que configuram a arquitetura deste ensaio, de forma condensada.

 

II Considerações epistemológicas, teóricas e metodológicas

A atual pandemia do Coronavírus é indubitavelmente a catástrofe humanitária mais importante do século XXI. Não somente em decorrência dos cinco milhões e quatrocentos mil mortos em todo o mundo promovido pela pandemia de forma direta, mas também em consequência dos que foram mortos de maneira indireta por outras modalidades de enfermidades, que encontraram neste contexto o terreno privilegiado para se desdobrar decididamente na sombra e nos rastros da experiência pandêmica, seja porque os hospitais se tornaram não frequentáveis para as populações pelo alto nível de contaminação que neles se condensava, seja pela ocupação dos leitos hospitalares pelos enfermos do Coronavírus que impossibilitou o acesso dos demais doentes à rede hospitalar.

Além disso, na caracterização desta catástrofe humanitária não pode ser esquecido o efeito crucial da pandemia em promover as desigualdades sociais de forma patente, pois os segmentos sociais pobres das populações não poderiam seguir os protocolos sanitários enunciados pelos discursos da ciência e da medicina que foram propaladas pela Organização Mundial da Saúde, para se protegerem da contaminação viral, como ocorreu com as classes médias e as elites. Com efeito, aqueles segmentos sociais pobres foram obrigados a ter que trabalhar em ambientes insalubres, além de terem que tomar meios de transporte coletivos superlotados, sem deixar de destacar ainda a precariedade espacial de suas casas, o que não aconteceu com as elites e as classes médias, que podem dispor de mais espaço em suas casas e puderam trabalhar ainda em home office.

É preciso destacar ainda que os Estados Unidos e o Brasil se avultaram no cenário internacional no que concerne ao número de mortos, naquele com mais de 800.000 mil mortos e neste com cerca de 620.000 mortos, respectivamente. Esta proporção mortífera nos Estados Unidos e no Brasil é muito maior do que ocorreu na União Européia e nos países asiáticos, assim como nos demais países da América Latina, que foram também muito afetados mortalmente pela pandemia. Enfim, o nível de mortalidade absurdo naqueles dois países está intimamente relacionado às suas formas de governabilidade, exercida por dirigentes políticos da extrema-direita, seja Trump nos Estados Unidos, seja Bolsonaro no Brasil.

Além disso, não se pode esquecer, ainda, que a pandemia do Coronavírus produziu outra epidemia paralela e conexa, a saber, a epidemia da fome, que se disseminou nos países pobres e emergentes, como foi o caso do Brasil.

Porém, além das mortes, é preciso destacar ainda como marca crucial desta catástrofe sanitária os efeitos em médio e longo prazos na saúde somática e na saúde psíquica dos sujeitos que sobreviveram. Com isso, destacamos assim a problemática das sequelas, que aumentarão quantitativamente no mundo todo nos próximos anos, com os custos humanos e econômicos que implicaram os ditos sequelados.

No entanto, é preciso colocar em devido destaque que a atual pandemia do Coronavírus é o ato inaugural do século XXI, na medida em que não se considera a emergência de um novo século pela marca restrita da cronologia, mas pela emergência de um acontecimento crucial, que provoca, assim, uma inflexão decisiva e uma descontinuidade fundamentais no curso da história e do discurso5, da mesma forma como a Primeira Guerra Mundial foi o ato inaugural do século XX, pela descontinuidade que promoveu entre o antes e o depois, pela emergência do conceito da guerra total que introduziu no Ocidente, que diferenciava a dita guerra de todas as demais guerras anteriores6.

Portanto, é preciso opor e diferenciar devidamente as categorias de evento e de acontecimento, na medida em que o evento mantém ainda as linhas de força da continuidade da experiência social e histórica, enquanto no acontecimento, em contrapartida, se promove a irrupção da descontinuidade na tessitura dos processos social e histórico.

Para caracterizar a pandemia do Coronavírus como ato inaugural do século XXI e como promotor de descontinuidade sócio-histórica, é preciso enfatizar que a dita pandemia provocou a suspensão quase completa da economia internacional, assim como de todas as nossas formas de vida, segundo um importante conceito filosófico enunciado por Wittgenstein na sua obra intitulada Investigações filosóficas7. Além disso, todos os nossos habitus corporais foram afetados pela incidência da pandemia em curso sobre as nossas práticas corporais, de acordo com o discurso sociológico enunciado por Bourdieu na obra intitulada Esboço de uma teoria na prática8, porque quase nós todos fomos confinados em nossas casas, o que suspendeu evidentemente o exercício de nossa mobilidade corporal e de nossos hábitos regulares centrados no corpo.

Além disso, é preciso enunciar ainda que, dos pontos de vista teórico, metodológico e epistemológico, a pandemia dever ser configurada como um fato social total, segundo o conceito enunciado pelo discurso antropológico de Marcel Mauss9. Portanto, enquanto pela tessitura de um fato social total, a pandemia do Coronavírus seria caracterizada ainda pela complexidade, de acordo com o discurso teórico enunciado por Morin10. Por isso mesmo, enfim, a pandemia coloca o imperativo teórico da interdisciplinaridade, por ser configurada como um fato social total e ser marcada, assim, pela complexidade.

O que se impõe então como imperativo epistemológico é a leitura da pandemia do Coronavírus como um tríptico conceitual, em que se devem ser colocados em pauta três diferentes objetos teóricos11, os quais tem de ser devidamente destacados. Com efeito, se o que se impõe inicialmente é a dimensão biológica do vírus a ser investigado pela virologia, a que se seguem os discursos econômico, social, político e ecológico que se articulam em um mosaico complexo e, finalmente, a dimensão das singularidades. Estas singularidades podem ser de ordem médica (clínica) e de ordem psíquica, na medida em que nós sabemos que cada singularidade é afetada e reage de forma singular, dos pontos de vista somático e psíquico, respectivamente.

Neste ensaio, colocaremos em destaque somente as singularidades psíquicas, que é o que nos interessa como psicanalistas, na leitura dos efeitos psíquicos da pandemia.

Vamos colocar assim em destaque, inicialmente, na leitura das singularidades, a dimensão fundamentalmente traumática promovida pela pandemia.

 

III Angústia sinal e angústia real

A pandemia do Coronavírus tem um efeito traumático sobre o sujeito, na medida em que o vírus em questão se apresenta de forma invisível para o sujeito e não pode ao mesmo tempo ser enunciado por este, pela mediação dos discursos da medicina e da virologia, principalmente no início da pandemia, mas também agora, quando o nosso conhecimento sobre o vírus e sobre a doença em pauta é ainda muito limitado.

Por que esses dois atributos são efetivamente fundamentais para o sujeito, do ponto de vista estritamente clínico?

Por que, segundo Freud, no ensaio de 1926 intitulado "Inibição, sintoma e angústia", o aparelho psíquico busca se defender dos eventos psíquicos pela transformação daquilo que é da ordem do invisível em algo que é da ordem do visível, ao mesmo tempo que de forma correlata procura tornar dizível o que é da ordem do indizível12.

Por essa dupla operação, com efeito, a angústia entra efetivamente em um processo de suspensão, sendo transformada, então, em medo. Além disso, com esse se coloca no registro da percepção, o sujeito pode assim se proteger do pior pela colocação em cena de procedimentos defensivos.

Segundo Freud, ainda, o aparelho psíquico ficaria permanentemente desta forma, buscando realizar, de forma regular, a antecipação do pior de maneira a poder acionar as suas defesas caso o perigo se delineie no horizonte do tangível. Portanto, pela imaginação e pela antecipação, o sujeito poderia provavelmente se proteger do pior, de maneira que esta imaginação antecipatória é um agenciamento psíquico de ordem principalmente simbólica13. Em consequência, o discurso freudiano denominou este procedimento antecipatório de sinal de angústia ou de angústia sinal, para destacar, assim, a dimensão simbólica desta experiência.

No entanto, quando o sujeito não pode realizar antecipadamente tal preparação para o pior, a experiência traumática ocorre de forma intempestiva e inevitável. Com efeito, o trauma seria a resultante de uma experiência que não pôde ser antecipada pelo sujeito, de forma inicial, conquanto não pode evitar o impacto do mal sobre si14.

Foi pela mediação dessa teorização sistemática, realizada em "Inibição, sintoma e angústia",15 que o discurso freudiano pôde sustentar teoricamente o que descreveria inicialmente como neurose de guerra no ensaio de 1920 sobre o "Além do princípio do prazer"16. Com efeito, na obra de 1920 o discurso freudiano problematizou o novo dualismo pulsional, centrado na oposição entre pulsão de vida (Eros) e pulsão de morte (Tanatos), no que a pulsão de vida opera pelo procedimento da ligação e a pulsão de morte pela operação da desligação, é possível depreender disso assim que a angústia sinal é uma experiência da ordem da ligação (antecipação) e a angústia traumática seria em contrapartida da ordem efetiva da desligação17.

Portanto, transformar o invisível em visível e o indizível em dizível seriam operações psíquicas e simbólicas inscritas no registro da pulsão de vida e da ligação, enquanto os registros do indizível e do invisível seriam tributáveis do campo da pulsão de morte.

Com a descrição clínica da neurose da angústia, delineada por Freud em 1893, foi enunciado o efeito traumático da angústia do real18 sendo, pois, a formação sintomática fundamental da pandemia do Coronavírus nos sujeitos. Todas as demais formações sintomáticas que se apresentam na experiência traumática da pandemia são efeitos e derivações da neurose de angústia primordial.

 

IV Formações sintomáticas

A neurose da angústia caracteriza-se no sujeito pelo temor e pela certeza da morte iminente. O sujeito é tomado pela taquicardia e pela dispneia, assim como por suores frios, tomado, assim, por vertigens; todos os signos seriam de que a morte pode acontecer a qualquer momento. Portanto, essa angústia é de caráter real e delineia a experiência traumática em estado puro, sendo o efeito direto do mal invisível e indivisível que acossa o sujeito19.

Como dissemos acima, todas as demais formações sintomáticas provocadas pela pandemia do Coronavírus são derivações desta formação originária.

A segunda formação sintomática é a hipocondria, na medida em que pela angústia persecutória promovida pelo Coronavírus (invisível e indizível) o sujeito passa a interpretar todos os seus signos corporais como manifestação inequívoca do Coronavírus.

A terceira formação sintomática são os atos compulsivos forjados em torno dos imperativos de limpeza, segundo as normas instituídas pelos discursos da ciência e da medicina. O sujeito passa a duvidar, com efeito, se os seus procedimentos de limpeza foram bem executados, de forma que os repete de forma compulsiva, durante o dia todo, aniquilando, assim, qualquer atividade produtiva possível.

A quarta formação sintomática é a depressão, resultante do esvaziamento vital e da relativa imobilidade do sujeito, restrito que este fica ao espaço doméstico.

A quinta formação sintomática é a melancolia, em que o sujeito perde o gosto e o prazer de estar vivo, pelo esvaziamento de sua existência, naquele que lhe é fundamental. Neste contexto, os idosos que não podem se encontrar com filhos e netos acabam por parar de se alimentar e realizar seus cuidados pessoais, como se banhar e trocar de roupa. Enfim, nessas condições de abandono de si e de não querer viver efetivamente muitos idosos se suicidaram.

A quinta formação sintomática é o suicídio, resultante da melancolia, como dito acima. Além dos idosos, adolescentes e jovens adultos inscrevem-se também em uma condição melancólica, com práticas suicidas conexas, pela suspensão de suas atividades escolares, universitárias e de lazer.

A sexta formação sintomática são as perturbações da pele, que se tornaram bastante frequentes durante a pandemia. Com efeito, colocados na borda entre o dentro e o fora do corpo, assim como na fronteira entre o interior e o exterior, a pele é uma superfície corpórea, mas porosa ao mesmo tempo, por onde circulam as angústias invisível e indizível, na medida em que invade o sujeito em todos os seus interstícios e suas dobras.

A sétima formação sintomática é o consumo vertiginoso de drogas lícitas (alcoolismo e tranquilizantes) e ilícitas, que o sujeito consome para apaziguar a angústia e a depressão que lhe perpassa para suspender as formações sintomáticas assim destacadas.

Além disso, o consumo da comida inscreve-se igualmente neste mesmo registro, de forma que o sujeito busca ingerir alimentos para preencher o vazio ulterior, provocado pela invisibilidade do mal que lhe acossa. Enfim, com a bulimia assim promovida, a obesidade se incrementou muito durante a pandemia, em escala internacional.

A oitava formação sintomática é o incremento da violência doméstica, realizado pelos homens contra suas companheiras e filhos, em que pelo exercício da força física o sujeito busca se iludir de que não está em uma condição existencial de desamparo. Em consequência, em todo o mundo houve aumento de divórcios entre casais, em decorrência de tais práticas de violência20.

 

V Desamparo e desalento

Contudo, é preciso inscrever agora tais formações sintomáticas em modalidades estruturais de subjetivação, de forma que essas modelam as diferentes formações sintomáticas. É preciso que o desamparo e o desalento, como formas estruturais de subjetivação, regulem todas essas produções sintomáticas.

Qual a diferença entre o desamparo e o desalento? Esta é a primeira questão a ser devidamente respondida.

De tal modo, na experiência do desemparo o sujeito acredita que o Outro o queria acolher e proteger. O exemplo paradigmático disso Freud enunciou na obra intitulada Projeto de uma psicologia científica, quando disse que o choro do bebê é a razão de todos os motivos morais21. Portanto, pelo desamparo Freud destaca a constituição de um sujeito de ordem alteritária cuja intepretação realizada pelo Outro é fundamental.

Em contrapartida, o desalento é uma experiência crucial na qual o sujeito não seria mais acolhido pelo Outro, de maneira que o Outro não vai lhe proteger e lhe acolher, de forma que o sujeito vai, de tal modo, ser vertiginosamente lançado perigosamente nas incertezas e contingência da existência.

Assim, se o desamparo remete o sujeito para a angústia sinal, o desalento, em contrapartida, remete aquele para a angústia (real) traumática. Além disso, se o desamparo remete para o registro clínico da neurose , o desalento remete para a ordem da melancolia. Enfim, se o desamparo condensa a experiência do sofrimento, no qual a simbolização possibilitada o Outro se realizar, o desalento remete para o deserto invisível da dor, no qual a melancolia se condensa de maneira eloquente22.

 

VI Governabilidades

É necessário agora realizar uma outra conjunção e articulação, inscrevendo as duas formas de subjetivação destacadas em diferentes formas de governabilidade. Essa, assim, na sua multiplicidade e diferenças conjuga as formas de subjetivação que foram destacadas.

Como falamos no início deste ensaio, de que a pandemia propriamente dita tem uma dimensão coletiva fundamental, colaboração que se manifesta dos registros político, social, econômico e ecológico, respectivamente, as diferentes formas de subjetivação se conjugam com as formas da governabilidade.

Dessa maneira, é bastante rico comparar o destino da pandemia nos países asiáticos ao dos países da União Européia e do continente americano, destacando aqui como as experiências brasileiras e norte-americana nos evidenciam, para assim delinear uma cartografia das formas da governabilidade, para articulá-la com as formas de subjetivação, num segundo momento.

Assim, o que caracterizava a pandemia nos países asiáticos foi como as populações destes países obedeceram ao imperativo do Estado, que seguem literalmente os pressupostos do discurso da medicina e da Organização Mundial de Saúde. Esta obediência não se dá porque tais países estão sob a tutela governamental do autoritarismo e do totalitarismo, mas porque, dos pontos de vista social e cultural, os países asiáticos são regulados pela ordem holística, em que a construção do indivíduo como sujeito se modela pela conjunção da ordem do indivíduo à ordem da totalidade.

Estou me baseando aqui pela oposição que foi estabelecida pela antropologia social, com Louis Dumont, no livro intitulado Ensaio sobre o individualismo moderno, no qual opôs as ordens social e cultural holística e individualista. O efeito disso é bastante tangível, dos pontos de vista sanitário e epidemiológico, pois os países orientais tiveram resultados positivos, no que concerne à contaminação e à mortalidade de suas populações, pelo imperativo holístico que os regula.

Na Europa, em contrapartida, estamos inscritos na ordem do individualismo, de forma que o indivíduo é o átomo constitutivo dessa outra ordem coletiva, constituindo aquilo que Dumont denominou de indivíduo-valor. Portanto, o Ocidente, diferentemente do Oriente, é individualista e não holístico23.

Porém, diante deste cenário social e cultural diferente, os díspares governos da União Européia tiveram que fazer um esforço de comunicação e persuasão sistemáticos para convencerem os seus cidadãos a seguirem o que existia de bem fundado e de legítimo dos discursos da ciência e da medicina. Com isso, tiveram êxito relativo, pois, se as taxas de contaminação e de mortalidade nos países não foram os mesmos do que ocorreu na Ásia, os resultados foram efetivamente positivos.

Contudo, nos Estados Unidos e no Brasil, que são igualmente países construídos pela tradição individualista, o resultado não foi o mesmo do que na União Europeia. Isso porque as políticas negacionistas de Trump e de Bolsonaro, face aos discursos da ciência e da medicina, conduziram ao genocídio da população brasileira e norte-americana, como evidencia o maior número de mortes e de contaminados ocorridos pela pandemia do Coronavírus em todo o mundo.

Entretanto, o dito negacionismo colocado face ao discurso da ciência e da medicina se funda no mecanismo psíquico da recusa, como Freud enunciou no seu ensaio sobre fetichismo24. Além disso, a recusa em pauta faz com que o discurso cientifico e da medicina, no Brasil e nos Estados Unidos, se aproximem ainda pela aliança e obra dos discursos da extrema direita e a religião neopentecostal que, como uma argamassa discursiva, é similar em ambos os países.

 

VII Finalmente

Pelo que destacamos acima, é fácil perceber como nos países no Oriente e no Ocidente, em países com governabilidade individualista como na União Europeia, protegeram-se seus cidadãos com os pressupostos dos discursos da ciência e da medicina, pois os cidadãos se sentiram resguardados pelo Estado e pelas diferentes governabilidades existentes, de forma que nestes contextos o desamparo se forjou efetivamente como forma primordial de subjetivação.

Em contrapartida, no Brasil e nos Estados Unidos, onde o Estado colocou os sujeitos à deriva e lhes destinou à sua própria sorte, foi perpetrado um genocídio populacional, de forma que os sujeitos foram lançados no limbo do desalento, em uma errância e em uma incerteza fundamentais.

Pode-se depreender, assim como no registro das singularidades, que a pandemia do Coronavírus promoveu uma experiência traumática nos sujeitos, para caracterizar devidamente o que promoveu a partir disso diversas formações sintomáticas, mas que seriam reguladas por formas (estruturais) de subjetivação, enunciadas como desamparo e desalento, que se distribuiu diferentemente segundo as diversas regras reguladores das formas de governabilidade.

Enfim, a categoria do trauma, para ser devidamente problematizada, deve articular na sua tessitura os registros da singularidade e da coletividade, em uma perspectiva eminentemente interdisciplinar, concebida como fato social total e regulada pela racionalidade complexa.

 

Artigo recebido em: 21/09/2021
Aprovado para publicação em: 10/10/2021

Endereço para correspondência
Joel Birman
E-mail: marchese.regina@uol.com.br

 

 

*Psicanalista, Membro efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do Espace Analytique (França); Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ; Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ; Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas, Universidade Paris VII; Pesquisador do CNPq.
1Este texto foi escrito a partir das notas que me orientaram na conferência realizada no Colóquio Internacional sobre a clínica na atualidade nos campos da Psicologia, da Psicanálise e da Psiquiatria, na Universidade Paris Diderot, em 5 e 6 de novembro de 2021, versões on-line e presencial.
2Foucault, M. Dits et écrits. Vol. IV. Paris, Gallimard, 1994.
3Deleuze, G., & Guattari, F. MillePlateaux, Capitalisme et schizophrenie 2. Paris, Minuit, 1980.
4Freud, S. (1920). Au-delà du principe de plaisir. In Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981.
5Foucault, M. Archeologie du savoir. Paris, Gallimard, 1969.
6Alliez, E., & Lazzaroto, M. Guerras e capital. Capítulo 10. São Paulo, UBU, 2021.
7Wittgenstein, L. Investigations philosophiques. Paris, Gallimard, 1961.
8Bourdieu, P. Esquisse d'une théorie de la pratique. Genève, Droz, 1972.
9Mauss, M. Sociologie et anthropologie. Paris, PUF, 1950.
10Morin, E. La complexité humaine. Paris, Flammarion, 1994.
11Canguilhem, G. L'objet de l'histoire des sciences. In Canguilhem, G. Études d'Histoire et de Philosophie des sciences. Paris, Vrin, 1968.
12Freud, S. (1926). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, PUF, 1973.
13Ibidem.
14Ibidem.
15Ibidem.
16Freud, S. (1920). Au-delà du principe du plaisir. In Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1999.
17Ibidem.
18Freud, S. Qu'il est justifié de séparer de la neurasthénie um certain complexe symptomatique sous le nom de 'névrose d'angoisse' (1893). In Freud, S. Névrose, psychose et perversion. Paris, PUF, 1973.
19Ibidem.
20Para uma leitura mais detalhada deste conjunto de formação sintomáticas, vide: Birman, J. O trauma na pandemia do Coronavírus. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2021, 3. Ed.
21Freud, S. (1895). Esquisse d'une psychologie scientifique. In La naissance de la psychanalyse. Paris, PUF, 1973.
22Birman, J. O sujeito na contemporaneidade. Op. cit.
23Dumont, L. Essais du individualisme moderne. Paris, Seuil, 1983.
24Freud, S. "Le fetichisme". In Freud, S. La vie sexuelle. Paris, PUF, 1973.

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