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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.27 n.52 Belo Horizonte set. 2005
AUTORES SELECIONADOS
Schreber e as psicoses na psiquiatria e na psicanálise: uma breve leitura
Alberto Henrique Soares de Azeredo CoutinhoI
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este trabalho procura confrontar, de forma concisa, as visões da Psiquiatria e da Psicanálise sobre as psicoses, no que toca à sua etiopatogenia e sua estratégia terapêutica, usando como exemplo emblemático o registro do caso de paranóia de Schreber, de Freud. Também a psicogênese deste caso é resumidamente discutida à luz das principais teorias psicanalíticas vigentes sobre as psicoses, buscando obter-se uma visão global sobre o tema.
Palavras-chave: Psicoses, Psiquiatria, Psicanálise, Schreber
ABSTRACT
The purpose of this article is to compare concisely the psychoanalytic and the psychiatric views about psychosis concerning both its ethiopathogeny and its treatment strategy, using as a standard example the Schreber’s paranoia case report, by Freud. Likewise, the psychogenesis of this case is briefly discussed according to the main psychoanalytic theories available, looking for a global vision about this subject.
Keywords: Psychosis, Psychiatry, Psychoanalysis, Schreber
Introdução
Qual é a origem da loucura? Dentre tantas outras questões ainda sem resposta no âmbito na Saúde Mental, responder a esta talvez ainda constitua o maior desafio para todo aquele profissional – psiquiatra ou psicanalista – que, utilizando-se de seu saber específico, dedica-se a tentar diagnosticar, acolher e tratar o indivíduo que perdeu sua razão. A loucura sempre foi envolta, ao longo da história da humanidade, em um manto de preconceitos e ignorância, que a considerou desde possessão demoníaca a castigo divino. É relativamente recente na história da Medicina o aparecimento da Psiquiatria moderna, que passou a encarar o “louco” como um doente e a buscar respostas para entendê-lo melhor e tratá-lo. A Psicanálise, historicamente nascida do interesse de Freud pelo enigma clínico da histeria, também muito cedo se viu desafiada a explicar, no contexto de sua própria metapsicologia, os mecanismos psíquicos envolvidos na gênese das psicoses.
A psicose na psiquiatria
Embora na atualidade sejam descritas sob nova terminologia na CID-10, classicamente as psicoses são divididas, no âmbito da Psiquiatria, em dois grandes grupos: 1. delirantes crônicas, que compreendem a esquizofrenia (com quatro subtipos: hebefrênica, paranóide, simples e catatônica), a paranóia e a parafrenia e 2) afetivas, cujo representante principal é o transtorno bipolar (antes chamado psicose maníaco-depressiva). O diagnóstico diferencial baseia-se na definição do sintoma clínico predominante, que não é nosso propósito discutir.
Há muito a Psiquiatria busca definir a origem das psicoses e, moder-namente, avanços têm sido obtidos graças a intensas pesquisas na área da Neuro-Endocrinologia (envolvendo neuro-transmissores, hormônios, enzimas, etc.) e ao desenvolvimento de novas técnicas de imaginologia cerebral (SPECT). Apesar disto, não existe ainda um “marcador biológico” que diferencie indivíduos normais daqueles que sofrem de esquizofrenia – o protótipo deste grupo de doenças – e várias teorias surgiram na tentativa de estabelecer uma base biológica para sua etiopatogenia. A mais difundida explicava a esquizofrenia como resultado de um desequilíbrio dos neurotransmissores dopaminérgicos cerebrais, hoje não mais aceita pelo fato de não existir correlação direta entre o efeito terapêutico dos neurolépticos na doença e o bloqueio de receptores dopaminérgicos, dependendo então esse efeito de algum outro mecanismo. A teoria mais recente aponta o desequilíbrio entre os sistemas dopaminérgico-mesolímico-cortical como o responsável pela instalação do quadro clínico da esquizofrenia.
É fato demonstrado que o desenvolvimento das vias sinápticas cerebrais se limita a um período definido da vida, havendo depois declínio natural com a idade, conforme o gráfico:
Uma vez formadas, essas vias sinápticas devem ser estimuladas para o desenvolvimento funcional adequado e sua progressiva ramificação, razão pela qual aprendizados complexos como tocar um instrumento ou aprender nova língua devem, idealmente, ser inicia-dos na infância. Por outro lado, vias sinápticas formadas mas não utilizadas ou pouco estimuladas tendem a se perder. Observação clínica relevante é de que as estimulações sensorial e afetiva ausentes ou precárias durante a infância parecem predispor à esquizofrenia, o que sugere a possibilidade de que perdas sinápticas por desuso estejam envolvidas na etiopatogenia da doença. O modelo hipotético da “mãe esquizofrenizante”, fria e ausente ou superprotetora e onipresente, surgiu a partir dessas observações e representa, talvez, o procurado ponto de intersecção entre as visões psiquiátrica e psicanalítica da gênese da doença. Neste contexto, parece plausível aventar-se a hipótese de que a psicose resultaria do desenvolvimento precário ou ausente do que se poderia chamar as “vias sinápticas da afetividade”, dentro do sistema dopaminérgico-mesolímico-cortical, conseqüente à falta de estímulos adequados durante a primeira infância devida a um “banho libidinal” pobre por parte da mãe ou de sua substituta. Se verdadeira, tal hipótese colocaria o fator ambiental como único ou principal na etiopatogenia das psicoses, reforçando o valor da teorização psicanalítica sobre ela.
Fato incontestável é que apenas metade dos gêmeos idênticos manifesta esquizofrenia, o que reforça firmemente a idéia de que há algo no ambiente que deflagra a doença. Como corolário, teoricamente seria possível “proteger” o indivíduo geneticamente predisposto da exteriorização clínica da esquizofrenia, objetivo das pesquisas mais recentes nesta área.
A psicose se inicia, respeitando a teorização freudiana sobre a doença, pela perda do referencial narcísico do indivíduo, embora os mecanismos hipotéticos pelos quais isto ocorre não sejam necessariamente objeto de consenso entre Psiquiatria e Psicanálise. Essa ruptura do equilíbrio psíquico é vivida pelo paciente com intensos sentimentos de angústia e ansiedade, constituindo a fase que antecede os delírios denominada “humor delirante”. O quadro clínico subseqüente, que varia conforme o tipo de psicose particular, pode incluir as manifestações relacionadas à consciência do Eu (fragmentação corporal), à sensopercepção (alucinações), ao pensamento (delírios) e à linguagem (neologismos).
É do confronto entre os conceitos de compreensão (causalidade interna, representação intuitiva, relações de sentido não-causais, com vistas ao psíquico) e de explicação (causalidade externa, apreensão objetiva, relações de sentido e leis causais, visa o corporal), no âmbito da Psicopatologia, que talvez provenha a raiz do conflito entre Psiquiatria e Psicanálise no que tange ao tratamento das psicoses. A compreensão do delírio através de sua escuta, independentemente de se poder explicá-lo, seria o fundamento da abordagem psicanalítica das psicoses, estratégia que não é aceita como terapêutica na visão psiquiátrica tradicional.
Para a Psiquiatria, os psicofármacos são parte indispensável do tratamento das psicoses desde a fase inicial de “humor delirante”, quando o uso exclusivo de ansiolíticos para sedar o paciente não é geralmente suficiente para aliviá-lo de seu intenso sofrimento psíquico. Os neurolépticos, embora por mecanismos ainda não bem definidos, atuam bem já nesta fase, mesmo que os delírios não estejam ainda presentes. Os “antipsicóticos de última geração” são eficazes no alívio sintomático do paciente, reduzindo os delírios, aumentando a atenção e melhorando o seu rendimento intelectual, com poucos dos efeitos colaterais comuns com o uso do haloperidol, o neuroléptico clássico. A alegação de que a abolição completa do delírio produziria um estado de “depressão vazia”, improdutivo para qualquer trabalho psicoterapêutico, não procede na opinião da maioria dos psiquiatras.
Apesar da a Psiquiatria fundamentar o tratamento das psicoses no uso de psicofármacos, a interdisciplinaridade com outras áreas de saber é reconhecida por ela como fator crucial na abordagem adequada do paciente e de sua família. Neste sentido, seria teoricamente aceita pelos psiquiatras menos ortodoxos a escuta psicanalítica na paranóia e, talvez, também na esquizofrenia paranóide, respeitando-se o conceito freudiano de ser o delírio uma tentativa de cura por parte do psicótico. Nos outros tipos de esquizofrenia, porém, a Psicanálise não teria definitivamente qualquer papel terapêutico, particularmente nas formas clínicas em que o delírio está ausente ou não é verbalizado, como ocorre no autismo e na catatonia. A possibilidade, defendida por Joel Birman, de que estes pacientes possam vir a produzir e relatar seus delírios graças ao investimento narcísico representado pelo espaço analítico e, assim, permitir um trabalho a partir de sua escuta, não é aceita pela maioria dos psiquiatras. Por tudo isto, é de extrema importância o diagnóstico diferencial correto entre paranóia e esquizofrenia no universo das psicoses, já que essas duas condições clínicas envolvem tratamento e prognóstico diversos.
A indicação de internação em hospital psiquiátrico deve limitar-se aos casos de crise psicótica com agressividade excessiva, visando proteger o paciente de automutilações e do suicídio e as pessoas que o cercam de suas atitudes violentas. É inaceitável que o hospital psiquiátrico continue a desempenhar, como fez até um passado recente, a função de isolar o psicótico da sociedade. A reforma psiquiátrica brasileira é bom exemplo dessa nova visão.
O prognóstico da paranóia, de um modo geral, é melhor do que o da esquizofrenia. Esta habitualmente evolui mal, apesar de qualquer terapêutica atualmente disponível, cursando com deterioração clínica progressiva ao longo dos anos. Esse prognóstico sombrio pode, entretanto, ser melhorado com a instituição precoce do tratamento farmacológico, evitando ou retardando a cronificação da doença (Kaplan, 1999). O próprio caso de paranóia de Schreber, na verdade um caso de esquizofrenia paranóide devido à presença de alucinações, provavelmente teria tido evolução muito melhor se fosse disponível à época a medicação antipsicótica, evitando que o paciente viesse a morrer num manicômio em estado delirante terminal, como ocorreu. Com base neste fato clínico sobre a esquizofrenia, a demora em iniciar-se a terapêutica medicamentosa, prolongando-se a escuta psicanalítica do delírio, tem motivado atualmente ações judiciais contra psicanalistas nos Estados Unidos.
A psicose na psicanálise
A razão pode se perder e levar o ser humano à loucura, constatação que, historicamente, “justifica” o aparecimento da Psiquiatria como ramo da Medicina. A partir do século XIX, surge o conceito de que a loucura pode ser curável através de seu “tratamento moral” e de que a alienação da razão pode ser reversível. Essa idéia é o que motiva Freud a desvendar o enigma clínico da conversão histérica, esforço que funda o nascimento da Psicanálise.
Se para a Medicina primitiva a busca do saber estava focada no universal, a Medicina moderna, pós-aristotélica, passa a fundamentar sua atuação clínica na singularidade. Mas essa valorização da individualidade na abordagem do paciente coexiste com o princípio da universalidade na procura da causa das doenças, criando o paradoxo da Medicina moderna. Neste contexto, a Psicanálise inaugura a estratégia de tentar compreender a doença mental, inclusive a psicose, na singularidade daquele que dela sofre através de sua escuta, criando para o sujeito psiquicamente enfermo um espaço privilegiado que é simultaneamente de pesquisa científica e de efeito terapêutico, revelado ao longo de toda a obra de Freud. Além disto, a Psicanálise respeita e destaca o conceito de que qualquer doença será vivida por cada sujeito de forma muito individual, extrapolando o conhecimento universal sobre ela.
Outra questão à qual a Medicina sempre se viu desafiada a responder, no âmbito das doenças mentais, refere-se à parcela desempenhada pelos componentes biológico e psíquico em sua gênese. O revolucionário conceito freudiano de pulsão, emitido em “As Pulsões e seus Destinos” (1915), vem preencher esta lacuna teórica, pois ele está situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar, em conseqüência de sua ligação com o corpo. Focalizar a pulsão no estudo do funcionamento mental normal ou patológico, como trabalha a Psicanálise, é reconhecer a intersecção entre os planos psíquico e somático que o possibilitam, reforçando o clássico preceito ético da Medicina de que mente e corpo devem ser simultaneamente considerados ao se abordar o paciente em seu sofrimento.
Diferença essencial entre a Medicina e a Psicanálise diz respeito ao conceito de corpo. O “corpo” em Psicanálise não equivale ao organismo biológico que é estudado pela Medicina. Na visão psicanalítica, “o corpo existe para gozar”, como diz Lacan. Ele se constitui após a criação do organismo biológico, através da relação com o Outro, de quem ele deve receber o necessário investimento libidinal e narcísico e por quem deseja e precisa ser reconhecido.
Existe uma grande limitação, dentro do conhecimento atual, em se obter uma integração biológico-espiritual na forma de se olhar o ser humano. Goethe talvez tenha nos indicado o caminho ao referir-se poeticamente ao cérebro como “a casa frágil da alma”. O psicótico é um “ser particular” no sentido de ter funcionamento mental diferente do nosso – “normais” ou neuróticos –, sendo por isso menos produtivo e menos eficaz, mas nem por isso menos humano. A tecnologia e o conhecimento científico produziram, segundo Joel Birman, uma “obsessionalização do saber”, que, com freqüência, serve apenas para proteger o médico do contato com a dor, a morte e o medo trazidos pela fala e pelo delírio do paciente. Este é, sob os aspectos epistemológico e ético, o espaço específico da Psicanálise.
Para a Psicanálise, o delírio e a alucinação psicóticas encerram uma significação para o sujeito, assim como a fala, os sonhos, chistes, sintomas e atos falhos para o neurótico. Também o comportamento do psicótico, expresso em maneirismos e estereotipias, seria passível de interpretação, na procura da origem psíquica, não-biológica, da loucura. Neste sentido, “o louco tem uma forma própria de razão” que, expressa em palavras ou atos, seria a chave para a compreensão da psicose e para seu tratamento. É com esse entendimento que Freud, na sua famosa análise do caso de paranóia de Schreber (1911), defende sua revolucionária tese de que o delírio seria uma tentativa de cura por parte do psicótico e que sua escuta analítica permitiria definir os mecanismos psíquicos da loucura e possibilitaria ao sujeito buscar saídas para seu intenso sofrimento e seu isolamento. Assumindo-se este princípio de forma plena, o investimento narcísico no psicótico proveniente de sua escuta analítica, que lhe garante a experiência de ser realmente “ouvido por alguém”, poderia, na opinião de Joel Birman, vir inclusive a estimular a produção e verbalização de delírios em catatônicos e autistas, gerando material psíquico passível de trabalho interpre-tativo, posição não compartilhada pela maioria dos psiquiatras.
Assim, o delírio não é a loucura propriamente dita, a qual se instala previamente quando ocorre a fragmentação do sujeito – egóica, narcísica e corpórea – e a conseqüente ruptura da estrutura psíquica. O delírio, tentativa de interpretação desse processo de fragmentação feita pelo psicótico e, portanto, possibilidade de reestruturação psíquica e de eventual cura, não deveria ser abolido completamente com medicamentos, sob a ótica da Psicanálise.
Os efeitos colaterais dos fármacos antipsicóticos, mesmo daqueles chamados “de última geração”, devem também ser considerados no contexto geral do tratamento do paciente. Essas drogas podem, embora isto seja negado pela maioria dos psiquiatras, interferir a curto ou longo prazo com a capacidade elaborativa do paciente e prejudicar sua abordagem analítica. Entre esses efeitos merece destaque o freqüente aumento de apetite, observado entre os psicóticos sob tratamento farmacológico, que, levando ao aumento de peso, traz como conseqüências indiretas negativas novas perdas narcísicas relacionadas à mudança corporal, representadas por piora da auto-estima e redução da capacidade de sedução.
Por outro lado, há que se considerar a intensa angústia vivida pelo psicótico conseqüente à sua percepção de isolamento e incompreensão por parte dos que o cercam. Se o neurótico busca suprir sua insatisfação desviando sua libido do mundo externo para as fantasias e os sintomas, para o psicótico não há fantasia disponível para redirecionar sua libido, há apenas um corpo auto-erótico fragmentado e despedaçado. A angústia neurótica é indispensável ao tratamento psicanalítico, pois é ela que gera a demanda de cura dos sintomas e, portanto, não deveria a princípio ser abolida farmacologicamente, privando o sujeito do estímulo a se tratar. A “angústia hipocondríaca”, característica da psicose, segundo Freud, entretanto, tem intensidade tal que a capacidade de elaboração fica bloqueada para o trabalho psicanalítico, motivo pelo qual reduzi-la com drogas a um ponto produtivo é desejável e necessário.
Assim, o objetivo do tratamento farmacológico nas psicoses, na visão psicanalítica, não deve ser o de abolir o delírio através de uma “camisa-de-força bioquímica”, o que poderia gerar um quadro de “depressão vazia” pobre de produção psíquica e inacessível à escuta e à interpretação. A medicação deveria limitar-se à redução da angústia, estratégia também aceitável nas neuroses quando ela é intensa e paralisante, evitando-se assim privar paciente e analista de sua via de trabalho nas psicoses – o delírio.
O delírio não é, entretanto, fonte de angústia apenas para o psicótico. Sua característica de irredutibilidade, ou seja, sua absoluta inacessibilidade a qualquer argumentação externa, é motivo de intensa angústia também para todos os que convivem com o paciente, sejam eles familiares ou profissionais de Saúde Mental. Neste sentido, diz Joel Birman, “o psicótico enlouquece o psicoterapeuta”, porque o que este diz não é ouvido pelo paciente. A vivência angustiante deste em relação ao mundo – não ser ouvido – é reproduzida no psicoterapeuta em sua relação com o psicótico. Por isso, o tratamento nas psicoses deve ser, idealmente, multidisciplinar e através de equipes integradas, para possibilitar absorver a angústia gerada em seus componentes pelo desgastante convívio com o paciente.
A singularidade, preceito ético da abordagem psicanalítica do doente mental, não deve se limitar, no que se refere às psicoses, ao tratamento do paciente. Ela deve ser estendida a todos os que o cercam, particularmente aos seus familiares, que sofrem diretamente com as várias conseqüências de sua doença nos planos emocional, econômico, social e espiritual. A estratégia ideal é a que envolve diferentes níveis de singularidade, visando atender a cada um dos elementos do grupo humano que cuida do psicótico de forma particularizada, pois cada um deles vivenciará a doença do paciente no contexto de seu específico universo psíquico. Corolário dessa idéia manifesta-se atualmente na formação de “grupos de singularidade” de familiares – sejam de psicóticos, alcoólatras, drogaditos, etc. –, visando acolhê-los e ajudá-los a suportar a intensa angústia de conviver com um de seus entes sofrendo dessas patologias.
Por tudo isto, o lugar do psicanalista no tratamento do psicótico é bastante diferente do que ele ocupa na abordagem do neurótico. Na psicose, o psicanalista atua muito mais sobre o paciente do que faz ao tratar a neurose, em conseqüência da transferência tipicamente maciça que ele recebe do doente. Além disso, a necessária interação com a família do psicótico, visando acolhê-la em seu sofrimento e clarear informações sobre a história do doente e orientações sobre o tratamento, cria uma nova realidade de abordagem terapêutica para o psicanalista que, em muitos aspectos, se assemelha à adotada na análise de crianças. Assim, a sua escuta está simultaneamente a serviço do psicótico e daqueles que o cercam e a sua fala e os seus atos são investidos de uma significação particular para o paciente e para sua família, posição desafiante e muitas vezes incômoda que, entretanto, não deve afastá-lo do compromisso ético da Psicanálise – o amor à verdade.
A psicogênese do caso Schreber de Freud
O objetivo deste tópico é, de forma concisa, apresentar os pontos teóricos fundamentais das principais visões existentes na literatura psicanalítica sobre a psicogênese da paranóia, a partir da interpretação do caso Schreber proposta por Freud em 1911. A teorização freudiana foi feita com base no livro autobiográfico Memórias de um doente dos nervos, publicado pelo paciente em 1903. A descrição resumida desse caso clínico antecederá a discussão teórica de sua psicogênese.
Daniel Paul Schreber, filho de um famoso médico alemão, teve brilhante carreira em Direito, chegando a ocupar por curto tempo destacada função no sistema jurídico da época. A primeira manifestação da doença, aos 42 anos, foi diagnosticada por eminente psiquiatra, Flechsig, de forma inespecífica, como neurastenia e hipocondria, sendo o paciente recomendado a gozar férias e a viajar. Após alguns anos de estabilidade, a psicose franca eclode e é tratada em regime hospitalar com sedativos disponíveis à época (particularmente barbitúricos), visando controlar as aterrorizantes alucinações e os permanentes delírios. A complexa sistematização delirante, detalhadamente descrita pelo paciente em seu livro autobiográfico, com fins científicos para as gerações futuras – intenção que sintetiza sua megalomania –, é o material usado por Freud para basear sua teorização sobre paranóia. Em conseqüência da doença, Schreber perde seu cargo de juiz e é interditado juridicamente de gerir seus próprios bens. Porém, defende a si próprio e demonstra judicialmente que, apesar de julgar-se um louco, não representa perigo para a sociedade. Ele vence o embate jurídico e resgata os seus direitos, fato extremamente significativo no sentido de desmistificar a “loucura” e reforçar o conceito freudiano de que nela “há uma forma própria de razão”. Apesar disto, a psicose progride e reconduz o doente a um hospital psiquiátrico, onde ele morre após sete anos em estado delirante terminal, aos 69 anos de idade.
S. Freud
Freud propôs, a partir da análise do relato autobiográfico de paranóia de Schreber, que a doença expressaria um mecanismo de defesa do sujeito contra sua libido homossexual. Ele também estabeleceu a projeção como mecanismo característico da paranóia e sustentou ser o delírio uma tentativa de cura da ruptura psíquica na psicose, feita pelo doente. Sua tese se fundamenta no seu próprio modelo teórico para as psiconeuroses, baseado nos conceitos de fixação, recalque e retorno do recalcado na forma de sintomas. A bissexualidade inata do ser humano, originalmente proposta por Fliess e defendida por Freud em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), é o ponto inicial de sua construção, que estabelece o homossexualismo como o resultado da impossibilidade da satisfação heterossexual normal. O seu antigo conceito de “divisão do ego” secundário aos mecanismos de defesa contra o recalque é aqui incorporado. Após recalcada, a libido homossexual retornaria com a falência das defesas e o ego defender-se-ia novamente com o desenvolvimento da paranóia, através de seu mecanismo de projeção, que é manifesta clinicamente pelos delírios de perseguição e de ciúme, por erotomania e por megalomania. Esta reflete a fixação da libido no próprio ego e revela dinamicamente a regressão da homossexualidade sublimada ao narcisismo.
Críticas a essa tese foram feitas, levando-se em conta a limitada experiência pessoal de Freud com as psicoses e por ela originar-se daquela antes por ele construída para as neuroses. Mesmo a sua essência – a paranóia como defesa contra a homossexualidade recalcada –, foi questionada por vários estudos posteriores (Gardner, 1931; Miller, 1941; Klein e Horowitz, 1949; MacAlpine e Hunter, 1953; Walters, 1955; Klaf e Davis, 1960; Planansky e Johnston, 1962; Busscher, 1963), que não confirmaram relação consistente entre paranóia e homossexualismo. Mas a principal acusação de que ela foi alvo foi a de não ter considerado ou ter muito sub-estimado o papel da agressividade na gênese da paranóia, especialmente a partir das valiosas pesquisas de Niederland (1951, 1959, 1960, 1963) sobre a família de Schreber, que revelaram o sadismo paterno, o masoquismo da mãe e o completo estado de subjugação psicológica e física que ele viveu na infância, resultado das técnicas ortopédicas de educação, quase que medievais, criadas e sistematicamente aplicadas pelo pai. Apesar de tudo isso, a inovadora tese freudiana na verdade nunca foi abandonada, marcando o início de uma nova perspectiva sobre a psicogênese e o tratamento das psicoses, até hoje valiosa.
M. Klein
Klein notabilizou-se por sua ampla experiência com psicanálise de crianças, da qual colheu observações que fundamentaram sua original teorização sobre as posições esquizo-paranóide e depressiva, que fariam parte do desenvolvimento emocional infantil normal. O seio materno, primeiro objeto, é vivenciado já pelo recém-nascido como bom-gratificador ou mau-frustrador, polaridade da qual advém a divisão amor-ódio que marca esta interação. O ego se defende da conseqüente ansiedade pelos mecanismos de introjecção, projeção, divisão, idealização, negação e identificação projetiva e introjetiva. Se eles falham, o ego é invadido pela ansiedade, predominantemente sentida como medo de perseguição e, como última medida defensiva, se divide e fragmenta-se, pré-condição para a sua agressividade ser tolerada e, com a posterior diminuição dos mecanismos projetivos, para a passagem da posição esquizoparanóide para a depressiva. A falha dessa defesa final e dessa passagem mantém o ego fragmentado, base da vivência psicótica, com pontos de fixação situados nos primeiros meses de vida.
Na análise do caso Schreber, Freud relaciona a “catástrofe mundial” descrita pelo paciente, metáfora da percepção de seu cataclismo interior, como resultado da sua completa retirada de libido do mundo exterior e seu retorno ao próprio ego. Porém, aventa também a possibilidade de que “perturbação secundária ou induzida dos processos libidinais seja o resultado de alterações anormais no ego” e que “processos dessa espécie constituam a característica que distingue as psicoses”. Este é o elo, na opinião de Klein (1946), entre sua hipótese e a interpretação freudiana da “catástrofe mundial”, já que esta resultaria “de excessivos processos de divisão no ego primitivo”, como ela afirmou. A redução das várias almas de Flechsig a apenas uma ou duas, descrita também por Schreber, é interpretada por Klein como tentativa de recuperação da psicose por reversão da divisão do ego, através da aniquilação de suas partes destacadas e preservação daquelas que deveriam trazer de volta ao paciente a inteligência e o poder. Estes dois pontos da análise da paranóia de Schreber permitem entender o cerne do pensamento kleiniano sobre a psicogênese da doença.
J. Lacan
A foraclusão do significante do Nome do Pai é, na concepção lacaniana, o mecanismo psíquico responsável pela instalação da psicose. A ausência da metáfora paterna e abolição da lei simbólica intermediada pelo Nome do Pai mantêm o sujeito à margem da castração e sem acesso ao significante fálico e, assim, incapaz de situar-se em relação ao próprio sexo. A não-inscrição desse significante primordial na cadeia de significantes impede a entrada do sujeito na linguagem, com seus distúrbios conseqüentes e alucinações, marcas das psicoses. Mas a doença só se ma-nifesta, a partir da pré-psicose mediada pela foraclusão do Nome do Pai, na presença de um pai real, que evidencia para o sujeito o buraco no registro simbólico. Até esse momento de ruptura, o sujeito supre essa falta do significante primordial funcionando no registro imaginário e tomando o outro como espelho e modelo de identificação imediata.
"De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1958) inaugura uma nova visão psicanalítica sobre a doença, fundamentada no conceito de foraclusão do Nome do Pai, usando como material de estudo a descrição da paranóia de Schreber. O encontro deste com Flechsig é visto como a entrada do pai real impostor na pré-psicose, que deflagra a doença manifesta do paciente. Ao se ver chamado a assumir a paternidade ou a sustentar uma função similar à paterna, como era a presidência da Suprema Corte para Schreber, este se confronta com o buraco no registro simbólico pela falta do Nome do Pai e cai doente. No quarto capítulo deste texto, Lacan propõe como método de tratamento nas psicoses “entrar” na subjetividade do delírio, procurando definir as referências usadas pelo sujeito na construção de sua nova realidade que, para Schreber, se resumiu em transformar-se na mulher de Deus. Assim, além de propor uma nova teoria para a psicogênese das psicoses, Lacan também defende nessa obra que acolher a transferência do psicótico, catalizando a libido que restou de sua fixação no próprio corpo, deve ser a posição do analista no tratamento da doença.
W. Meissner
A ênfase freudiana sobre o papel central do sistema projetivo na paranóia de Schreber é desviada por Meissner (1976) para o significado dinâmico fundamental dos introjectos, dos quais aquele sistema é visto como mero derivativo. Os introjectos envolvidos no processo paranóide provêm de relações objetais importantes, em especial com os objetos primários. Se no desenvolvimento emocional normal os introjectos são pouco ou nada ambivalentes para a criança, permitindo-lhe criar identificações e oferecendo-lhe uma matriz para suas futuras relações objetais, no processo paranóide a intensa ambivalência dos introjectos não fornece essas condições básicas para o surgimento do sentimento de pertinência que provê integridade ao eu infantil em formação. A pseudo-pertinência do eu, resultante do processo paranóide, similar ao que Winnicott (1965) denominou de “falso self”, é defensivamente enfrentada pelo ego através do mecanismo de identificação com a vítima.
No caso de Schreber, os introjectos representam uma fusão da imagem do pai sádico e rígido com a da mãe masoquista e vitimizada. Ambas as figuras parentais projetam sobre a criança suas próprias patologias, que são por ela introjectadas como parte de seu próprio eu. As necessidades simultâneas de vitimização e de investimento narcísico e reconhecimento são atendidas de forma megalomaníaca no delírio de Schreber por sua relação privilegiada com o pai-Deus, que culmina em sua transformação na mulher deste e o coloca na posição ímpar de permitir a geração de uma nova “raça de homens”.
Conclusão
O caso Schreber revela as dificuldades em obter-se o esclarecimento da psicogênese da paranóia, já que nele estão simultaneamente presentes argumentos clínicos para duas das principais teorias psicanalíticas aventadas – defesa contra a libido homossexual e resposta à sádica agressividade persecutória do pai –, o que não permite decidir qual deles ou se ambos são condições necessárias para a gênese da doença. Discernir a importância relativa desses dois fatores não parece ser possível.
O caso Schreber pode ser visto como um paradigma da inter-relação entre a Psicanálise e as Neuro-Ciências. É desejável integrar, no tratamento do psicótico, os avanços destas na área da Psicofarmacologia e o espaço privilegiado para a fala do paciente oferecido por aquela. No entanto, tem ocorrido nas últimas décadas um “autismo” dessas duas tendências científicas, que se fecham nos próprios discursos e dificultam a multidisciplinaridade, tão necessária no tratamento do sujeito psicótico e no acolhimento daqueles que o cercam. O abandono de crenças e ideologias isolacionistas é condição para a interação harmoniosa das diferentes visões sobre as psicoses, com o intuito de oferecer o melhor para seu tratamento.
A hipótese aqui aventada de ser a psicose o resultado da não formação ou da involução por desuso das presumidas “vias sinápticas da afetividade” no sistema dopaminérgico-mesolímico-cortical, conseqüente a um investimento narcísico precário na infância por parte da mãe ou sua substituta, talvez possa representar o ponto de intersecção entre as visões da Psiquiatria e da Psicanálise sobre a etiopatogenia da doença, reforçando o valor da teorização psicanalítica.
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Recebido em junho de 2005
Aceito em agosto de 2005
I Médico. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais-CPMG