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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte set. 2006

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Visibilidade, transitoriedade e complexidade: a clínica psicanalítica no ambulatório hospitalar1

 

Visibility, transitority and complexity: psychoanalytic clinic at hospitals

 

 

Nadja Nara Barbosa PinheiroI

Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo focaliza a questão do desenvolvimento de atendimentos psicanalíticos nas dependências ambulatoriais de hospitais gerais. Pata tal, parte do princípio de que, nesses ambientes, a clínica se especifica e se diferencia da clínica privada, necessitando, portanto, de parâmetros clínicos próprios para sua concretização. Tais parâmetros são pensados a partir da perspectiva foucauldiana sobre as instituições disciplinares e a clínica paradoxal de Winnicott.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica, Ambulatório hospitalar, Winnicott.


ABSTRACT

The present study discusses the psychoanalytical practice that takes place in hospitals and out patient clinics. Understanding that, in these environments, practice is different from that of private offices, it is therefore necessary to consolidate distinct clinical patterns, appropriate to this type of practice. These parameters are considered in the light of Foucault‘s perspectives on disciplinary institutions and Winnicott's views on the clinical work with paradoxes.

Keywords: Psychoanalytical practice, Hospital, Winnicott.


 

 

1. Introdução

O convite efetuado para trabalhar no ambulatório de um hospital geral, desenvolvendo processos analíticos individuais, marcou o início de inúmeros questionamentos. Até então, todo o meu trabalho com a clínica psicanalítica havia se desenvolvido em consultórios particulares e a expectativa que eu tinha em relação ao trabalho no ambulatório era que encontraria algo bastante semelhante entre essas duas modalidades clínicas. Ledo engano. O trabalho no ambulatório foi me mostrando uma singularidade e uma especificidade tão inesperadas que me deparei com a necessidade de repensar os aportes teóricos e técnicos com os quais estava trabalhando dando início a um longo caminhar. É esse caminhar e seus avatares que trago aqui, hoje. Para tal iniciarei através de uma apresentação, sucinta, de como as questões sobre a prática clínica institucional vêm sendo abordadas nos últimos anos, objetivando situar o meu campo de estudo. Em seguida, trago a configuração do cenário no interior do qual os processos analíticos ganham sua possibilidade de desenvolvimento nos ambulatórios hospitalares, utilizando, para tal, de dois recursos: as contribuições foucaultianas a respeito dos meandros do saber/poder que circulam e constituem as instituições disciplinares; e a análise do discurso de cinco psicanalistas que desenvolvem seu trabalho no âmbito ambulatorial, na cidade do Rio de Janeiro. Por fim, apresento alguns conceitos da clínica winnicottiana, os quais, acredito, nos auxiliam na construção de uma possibilidade de manejo clínico bastante interessante.

 

2. Sobre a prática analítica nas instituições: algumas considerações

Historicamente sabemos que foi no interior de seu consultório que Freud pôde fundamentar suas hipóteses teóricas a partir das observações clínicas que aí aconteceram. Desde então, a psicanálise vem se desenvolvendo, se aprimorando, re-criando e reconstruindo seus aportes teóricos e técnicos, de forma a promover um redimensionamento em seu campo de aplicabilidade clínica. Em decorrência, nas últimas décadas, para além dos consultórios particulares, a psicanálise conquistou novos espaços de operacionalização: hospitais, universidades, postos comunitários, postos de saúde, clínicas privadas, etc.

Esse movimento expansionista trouxe, a meu ver, duas conseqüências diretas. Primeiro, permitiu que a clínica psicanalítica afrouxasse suas amarras burguesas, deixando de ser uma prática voltada exclusivamente para o atendimento de uma camada populacional pertencente às classes média e alta da sociedade para se abrir ao atendimento de pessoas pertencentes a diversos universos culturais, econômicos e simbólicos.

Em segundo lugar, trouxe a necessidade de abertura de espaços de reflexão crítica nos quais a prática clínica pudesse ser repensada a partir de uma visão não dogmática. Reflexões estas que se desdobraram em uma re-descrição do seu cenário clínico, a partir do momento em que a psicanálise abandonou o conforto dos consultórios particulares para se alocar em ambientes institucionais diversos e inóspitos nos quais toda uma gama de variáveis acaba interferindo no trabalho, impondo impasses clínicos e, em conseqüência, teóricos.

Não é à toa, portanto, que diversos estudiosos tenham se debruçado sobre as transformações decorrentes da passagem da clínica psicanalítica dos consultórios para os ambulatórios institucionais, procurando resolver as inúmeras dificuldades daí suscitadas. Importa observar que, inicialmente, tais impasses foram problematizados como quase intransponíveis, sendo compreendidos como verdadeiros indicadores de uma inadequação fundamental das teorias psicológicas, em geral, e da psicanálise, em particular, no atendimento da população de baixa renda, a qual, usualmente, recorre ao trabalho institucional em busca de um auxílio para o seu sofrimento psíquico (BERNSTEIN,1980; DUARTE & ROPA, 1985).

Há, no entanto, uma série de estudos que, demonstrando uma nítida preocupação com a aplicabilidade da psicanálise, procura especificar suas condições de possibilidades de forma a poder compreender e enfrentar as dificuldades que emergem na clínica institucional. Nessa perspectiva, podemos destacar dois posicionamentos distintos:

a) autores que abordam os obstáculos encontrados no atendimento psicanalítico ambulatorial circunscrevendo-os no rol das resistências comuns ao progresso do tratamento. Tais autores, seguindo uma tradição estruturalista da psicanálise, baseiam suas considerações sobre uma noção universalizante da linguagem, desvinculando tanto o processo de construção da subjetividade quanto o processo terapêutico de determinantes socioculturais e históricos. Assim, procurando afirmar a especificidade da clínica psicanalítica, afastam a questão ambulatorial da perspectiva social e a inscrevem em uma ética que supõe a psicanálise como uma clínica que condiciona o discurso dos pacientes aos movimentos transferenciais, os quais mantêm em aberto as vias para que novos sentidos se produzam. Tal perspectiva implica, em conseqüência, na impossibilidade de se pensar o campo clínico como sendo pautado pela intersubjetividade, assim como impede a compreensão do trabalho do analista em uma perspectiva política mais ampla, já que o desvincula dos mecanismos ideológicos implícitos nas práticas sociais (FIGUEIREDO, 1997; NOBRE,1998);

b) autores que abordam as questões referentes ao trabalho psicanalítico ambulatorial pautados na idéia de que possivelmente as dificuldades, aí encontradas, repousam sobre aspectos socioculturais. Tais autores propõem uma noção de linguagem relacionada a determinantes socioculturais e históricos, concebendo não só a construção da subjetividade, mas também os processos terapêuticos, como dependentes de aspectos políticos e ideológicos. Esses estudos apontam, sobretudo, para a necessidade de se questionar uma suposta universalidade dos conceitos psicanalíticos de forma a desnaturalizá-los para poder relativizá-los a determinantes socioculturais. Com isso visa-se minimizar o risco da produção de uma escuta etnocêntrica e hegemônica, ao mesmo tempo em que se busca encontrar alternativas clínicas concretas que permitam ao discurso do paciente poder ser expresso de forma a ser sustentado e valorizado em sua especificidade, singularidade e diferença. Para tal deve-se assegurar o caráter intersubjetivo da experiência analítica, assim como a decisão em inscrevê-la no cerne das práticas sociais. Isso equivale a dizer que contextos distintos (consultório, ambulatório, S.P.A. das universidades, clínicas privadas, etc) produzem configurações clínicas distintas que necessitam ser levadas em conta na compreensão dos processos psicoterapêuticos que transcorrem em seu interior (COSTA, 1987,1989; BEZERRA, 1983, 1987; VILHENA, 1988, 1995; SANTOS, 2000; VILHENA & SANTOS, 2000).

A partir dessas considerações, gostaria de indicar que a problematização sobre os atendimentos psicanalíticos praticados fora de seu lócus tradicional não deve se concentrar em determinar se os pacientes que procuram as instituições em busca de um atendimento psicológico se adequam ou não a essa modalidade clínica. Porém, utilizando a perspectiva aberta por Costa, Vilhena e Santos, podemos entender que, a partir das diversidades sociais, lingüísticas e culturais, devemos focalizar nossa atenção no campo clínico, objetivando levantar os elementos que, nesses ambientes, o estariam organizando. Ou seja, nessa perspectiva, o cenário analítico é concebido não mais em termos de setting mas de campo, no qual elementos múltiplos se inscrevem e produzem seus efeitos.

 

3. Hospital e visibilidade: a configuração de nosso cenário clínico

Tomando essa referência como base para a condução de meu estudo, parti do princípio que deveríamos especificar o cenário no qual nosso trabalho se desenvolve: um hospital geral. Modelo exemplar de uma instituição disciplinar, em suas dependências, os dispositivos de controle impõem sua característica fundamental: a visibilidade extrema. Nos hospitais, o paciente quase não encontra possibilidades de garantir alguma privacidade na exposição de sua intimidade uma vez que sobre ele pousam inúmeros olhares, como, por exemplo, dos médicos, enfermeiros, atendentes, companheiros com os quais compartilha a sala de espera. Nesse ambiente, o paciente é esquadrinhado, sua vida é esmiuçada, seu corpo físico examinado, sua conduta observada, sua psique analisada. Não há espaço para o refúgio, o isolamento, o descanso, a preservação da privacidade. Em contrapartida, pelo lado do analista, seu trabalho é questionado, avaliado pela equipe de saúde, pela coordenação do hospital, da seção de psicologia, além de ser regido por todo um aparato de regras institucionais às quais tem que se submeter e que penetram o campo clínico revelando, ao olhar alheio, a intimidade do paciente em análise.

Tal observação se apresentou como o ponto de partida através do qual lancei meu olhar em busca da compreensão da clínica psicanalítica nos ambulatórios hospitalares e em torno da qual procurei organizar minha questão: como um instrumental teórico-clínico especialmente constituído objetivando trabalhar com as categorias da intimidade (e para tal produzindo um ambiente artesanalmente preparado para preservá-la do olhar externo) estaria se organizando em um contexto que prima pela visibilidade? Em um cenário múltiplo, confuso, agitado, no qual pacientes vêm, começam o atendimento... somem. Retornam, algumas vezes, re-iniciam um processo terapêutico com profissionais distintos e não se preocupam com isso. Outros, nitidamente, procuram a instituição e com ela fazem o seu vínculo de confiança. Além disso, nos processos em desenvolvimento, as interpretações produzidas soam frágeis, diluem-se no ar, tornam-se rarefeitas, pueris. Percebe-se, assim, a fragilidade do vínculo transferencial que se mostra fugaz, pouco consistente, lábil.

Exatamente por isso, em meu ponto de vista, refletir sobre a especificidade da clínica ambulatorial se inicia pela decisão em se levar em conta a presença da instituição na produção de atravessamentos importantes na condução dos processos analíticos, já que tal presença se estabelece através de diversos matizes, aspectos e interferências, principalmente quando se trata de uma instituição hospitalar, posto que esta se caracteriza por ser, fundamentalmente, disciplinar, tal como nos informa Foucault (2002).

Nesse sentido, caracterizar o hospital como uma instituição disciplinar significa dizer que sua presença se faz no espaço clínico ambulatorial através da instrumentalização de inúmeras técnicas que visam ao controle e à submissão, a partir de um olhar hierárquico capaz de tudo observar, mensurar, avaliar, analisar. Técnicas de controle que, segundo Foucault (2002), nas instituições que seguem o modelo disciplinar, incidem sobre o espaço, o movimento e o tempo de forma a estabelecer uma especificidade própria à dinâmica hospitalar e, conseqüentemente, aos atendimentos psicanalíticos que transcorrem nesse contexto.

Nesse momento de meu estudo, foi possível compreender a dinâmica clínica do contexto no qual trabalhava. Porém, sair da exclusividade de meu campo para ouvir como, em outros hospitais gerais, a clínica analítica estaria se configurando, me pareceu necessário. A partir desse movimento, foi possível ir, gradativamente, ao encontro da configuração de um cenário clínico complexo, difícil, conturbado e paradoxal, contando para isso com a colaboração de cinco psicanalistas que, assim como eu, desenvolvem sua clínica em ambulatórios hospitalares na cidade do Rio de Janeiro. Ao promover a análise de seus discursos, das suas considerações, sensações, percepções, sentimentos, hesitações, dúvidas e afirmações, pude alcançar a paulatina visualização dos elementos relativos a essa modalidade clínica:
– a extrema visibilidade a que os atendimentos estão submetidos;
– a transitoriedade que introduz a rapidez e brevidade como marca dos atendimentos ambulatoriais;
– a complexidade do campo transferencial que se organiza com base em elementos subjetivos e institucionais a partir dos quais o par analista/analisando ganha possibilidades de movimentação.

Foi bastante interessante observar, a partir das entrevistas efetuadas, que a transferência da clínica psicanalítica para os ambulatórios foi interpretada, pelos analistas, como um movimento linear, justificando, assim, sua decisão em tomar a clínica privada como modelo para a condução dos atendimentos ambulatoriais. Dessa forma, os entrevistados utilizaram os parâmetros clínicos do consultório particular na tentativa de demarcar a identidade entre essas duas modalidades clínicas. Tal tentativa, no entanto, se mostrou improcedente e foi, ao longo das entrevistas, demarcando, não a identidade, mas as diferenças entre os trabalhos desenvolvidos no consultório e no ambulatório. Momento interessante no qual se tornou bastante claro que os elementos apontados por Freud (1913), como organizadores da clínica privada, assumem, nos ambientes hospitalares, novas configurações, tornando a clínica ambulatorial específica e organizada por elementos próprios: as entrevistas preliminares ganham uma nova função, o divã não existe, o dinheiro se transforma e o tempo assume uma brevidade inesperada. Transformações que se sucedem na medida em que, nos hospitais, encontramos um ambiente devassado, um atravessamento de atividades profissionais, uma gama enorme de intromissões, interferências, pluralidade de situações e, praticamente, nenhuma privacidade. Um contexto complexo, que impõe a construção de um campo transferencial multifacetado no interior do qual os atendimentos se realizam.

De qualquer forma, o fato de os entrevistados terem destacado os mesmos elementos apontados por Freud (1913) como organizadores do espaço clínico ambulatorial nos parece indicativo de algumas questões interessantes. Primeiramente, nota-se a nítida tentativa de se adaptar a clínica hospitalar ao modelo do consultório particular, através da utilização dos mesmos elementos organizadores do campo clínico privado, no ambulatório. Além disso, nota-se a intenção explícita de avaliar como esses elementos se apresentam na instituição. Terceiro, esse procedimento acaba por impor um obstáculo à percepção da clínica hospitalar em si mesma, para que a partir daí se pudesse promover uma reflexão sobre sua dinâmica, sem a necessidade de se propor uma adaptação. Adaptação esta que, no meu entender, traz enormes dificuldades para a condução dos atendimentos clínicos aí desenvolvidos.

Assim, ao trabalharmos nos hospitais, temos que perceber que, nesse espaço, o campo clínico se apresenta complexo, sendo a exposição e a visibilidade suas características principais. Inseridos em uma instituição disciplinar, submetidos aos dispositivos de controle, os atendimentos psicanalíticos se abrem às interferências externas e os analistas se vêem impelidos a darem explicações e justificativas sobre o progresso de seu trabalho. Preencher formulários, planilhas, participar das seções clínicas, fazer devoluções para os médicos sobre os progressos do atendimento impõe à análise uma visibilidade que incomoda e interfere. Interferência que se abate, também, sobre o número de sessões semanais, o tempo previsto para o término dos atendimentos, o número de pacientes atendidos, o controle do pagamento, a precariedade das instalações.

Além disso, esse campo de visibilidade, exposição e controle se alia à transitoriedade para marcar, de forma complexa, a constituição do campo transferencial. A esse respeito, pudemos observar que o trabalho institucional se apresenta atravessado pela lógica da produtividade, que impõe um tempo breve, dinâmico, no qual tudo tem que acontecer de forma rápida e eficiente. Diagnósticos devem ser feitos, pacientes devem ser tratados, curados, e devolvidos à sociedade o mais rápido possível. Essa é a lógica, essa é a organização. Assim, ao tomarem o ambulatório como lugar de passagem, no qual ficarão por um tempo breve e determinado, pacientes e analistas estabelecem seus vínculos afetivos com a instituição pelo viés da impessoalidade, da superficialidade, tornando o campo transferencial fugaz e lábil.

 

4. A clínica winnicottiana: uma proposta de trabalho

Nesse campo de situações complexas, ambíguas, contraditórias, gostaria de indicar uma proposta de trabalho. Para tal, acredito que a contribuição winnicottiana seja uma alternativa viável no encontro de um caminho possível para a condução do trabalho ambulatorial, posto que, em seu desenvolvimento teórico, encontramos o aporte necessário para a compreensão de um campo clínico tão conturbado.

Acredito que a noção winnicottiana de paradoxo se torna interessante para meu estudo, pois através dela podemos trabalhar as situações contraditórias e complexas, que dinamizam a clínica ambulatorial, sem a necessidade de resolvê-las por uma perspectiva excludente ou reducionista. Assim, torna-se possível conceber as ações terapêuticas que aí acontecem como transformadoras tanto da realidade subjetiva quanto da realidade institucional, em um campo transferencial que comporta vínculos simultâneos, estabelecidos entre paciente/analista/instituição, em um constante movimento.

"O que Winnicott pretende tematizar é o vazio que une ou separa o mundo da cultura e do sujeito, para descrever a atividade psíquica que ali se inaugura. Ilusão da experiência, paradoxo da razão, eis que Winnicott nos promete como fonte de vida psíquica, movimento de vaivém entre o repouso no indeterminado e as sínteses do diverso, sempre ambíguas, provisórias, sem princípio soberano de organização" (LUZ, 1998,p.66).

Sínteses provisórias, em constante movimento, que sustentam a possibilidade de um trabalho clínico que se estrutura sobre situações ambíguas que intermedeiam as relações estabelecidas pelo par analista/analisando e ambiente hospitalar. Nesse sentido torna-se importante a noção winnicottiana de espaço potencial para entendermos como essa mediação se torna possível sem que tenhamos que abrir mão de nenhum elemento constituinte do campo clínico ambulatorial.

Interessa observar que, com a noção de espaço potencial, Winnicott (1975) pode ultrapassar o debate entre realidade interna X realidade externa, posto que sobre esse ponto o autor introduz uma área intermediária da experiência humana para a qual contribui, em sua constituição, tanto a realidade interna quanto a externa, simultaneamente. É esse pensamento que fundamenta a perspectiva winnicottiana segundo a qual a realidade cotidiana é constituída a partir de um movimento criativo que se estabelece através da relação do sujeito com o ambiente. Movimento que encontra possibilidades de concretização a partir da criação de uma área de ilusão no interior da qual a criança vai construindo seu mundo interno e externo. A essa área intermediária Winnicott (1975) nomeou de espaço potencial, definindo-o como um espaço intermediário entre a mãe e o bebê, o objetivo e o subjetivo, o sujeito e o ambiente. Nele, o jogo e o contrajogo mãe/bebê permitem a atividade da criatividade, a qual constrói a realidade compartilhada.

"A fim de dar um lugar ao brincar, postulei a existência de um espaço potencial entre o bebê e a mãe. Esse espaço varia bastante segundo as experiências de vida do bebê em relação à mãe ou figura materna, e eu contrasto esse espaço potencial (a) com o mundo interno (relacionado à parceria psicossomática), e (b) com a realidade concreta ou externa (que possui suas próprias dimensões e pode ser estudada objetivamente, e que, por muito que possa parecer variar, segundo o estado do individuo que a está observando, na verdade permanece constante)" (WINNICOTT, 1975, p.63).

Pontuamos, então, que para Winnicott a experiência do viver não se encontra nem na fantasia nem na realidade objetiva, porém no interior dessa área intermediária criada entre as duas. Com isso os objetos nunca são totalmente externos, o que torna a percepção do mundo pelo sujeito fundada na subjetividade. Nessa perspectiva, segundo o autor, são três as áreas nas quais o sujeito vive e se relaciona com seus objetos:
– um espaço onde não há diferenciação entre o eu e o não-eu (lugar da onipotência e do desconhecimento da dependência e da alteridade);
– o mundo da realidade externa e das relações de objeto intermediadas pelo símbolo (reconhecimento da dependência e da alteridade);
– a área de ilusão, espaço do paradoxo, onde o sujeito procura manter as realidades interna e externa ligadas e separadas simultaneamente. Essa área, também nomeada de espaço potencial, é inerente à arte, à religião e à experiência cultural. Sendo, também, o lugar em que podemos inserir a clínica psicanalítica.

Em nossa perspectiva, torna-se importante observar que, na teorização winnicottiana, o conceito de espaço potencial e seus derivados – o de objeto transicional e fenômenos transicionais – acrescentam uma nova dimensão à transferência. Nesse sentido, torna-se objeto de análise tudo o que incide nessa zona intermediária, podendo ser tanto da ordem dos objetos quanto dos fenômenos transicionais. O que tal postulação assinala é que a própria transferência cria uma região intermediária, que reproduz a área de ilusão estabelecida em tempos primevos entre a mãe e o bebê, possuindo, em decorrência, o mesmo caráter ilusório. A esse respeito, Santos (2000) chama a atenção para a importância em se ressaltar que, nesse contexto, o par analista/analisando apresenta-se como uma unidade complexa em ação. Porém, por tratar-se de uma unidade que pressupõe o múltiplo, o campo analítico acaba se configurando como uma realidade inter e transsubjetiva.

Pensar o campo transferencial como um campo complexo, criado pelo par analista/analisando, nos permite incluir, aí, a presença da instituição e de seus elementos primordiais. Nesse sentido, propomos que a dicotomia transferência com o analista/transferência com a instituição seja desfeita em prol de tomarmos como fundamento a idéia de transferência como um campo intersubjetivo, constituído pelo par analista/analisando inserido no ambiente hospitalar. Nesse campo, ambos estão presentes como sujeitos participantes no jogo transferência/contratransferência, que se organiza contando também com elementos institucionais. Assim pretendemos escapar a uma noção corrente entre os teóricos da clínica institucional que tendem a excluir do campo clínico os elementos institucionais. Porém, acredito que pensar em transferência como sendo exclusivamente constituída entre paciente e analista se configura como um reducionismo que impede que as questões institucionais sejam trabalhadas analiticamente e, por conseqüência, permaneçam sem sentido, sem possibilidades de elaboração, impedindo, dessa forma, o progresso da análise. Com isso, ao deixar que alguns elementos fiquem sem inscrição e sem localização no campo transferencial e, portanto, sem possibilidades de manejo, os sujeitos implicados no processo analítico permanecem emudecidos, objetificados, assujeitados à lógica hospitalar. Com esse gesto, permite-se que os elementos institucionais se insiram, na clínica, como obstáculos instransponíveis.

Minha proposta de trabalho, no entanto, se faz em outro sentido. Parto do princípio de que esses elementos devem ser considerados como parte integrante do campo transferencial, incluindo os vínculos que pacientes e analistas estabelecem com a instituição. Isso porque, ao concebermos o campo transferencial como complexo, de forma a incluir os elementos institucionais, ganhamos a capacidade de trazer para o par analista/analisando a possibilidade de agir como sujeitos potenciais de suas ações transformadoras. Possibilidade que se sustenta em um movimento paradoxal promovido pela própria instituição.

Tivemos a oportunidade de pontuar, anteriormente, como o controle do tempo se faz presente no âmbito hospitalar, impondo a brevidade e a rapidez. Interessa observar, nesse sentido, que, contraditoriamente, a permanência da instituição para além das referências pessoais insere, na contramão da transitoriedade, a permanência e a estabilidade. De forma que a instituição, como lugar de referência que acolhe o paciente em todos os momentos em que ele necessita, promove o holding necessário para a instauração do campo transferencial e o desenvolvimento do trabalho analítico. Espaço da segurança e do conforto, o hospital se apresenta como lugar que propõe a confiança e a fidedignidade, uma vez que sua presença se projeta prospectivamente.

"Onde há confiança e fidedignidade há também um espaço potencial, espaço que pode tornar-se uma área infinita de separação em que o bebê, a criança, o adolescente, o adulto podem preenchê-la criativamente com o brincar, que com o tempo se transforma na fruição da herança cultural" (WINNICOTT, 1983, p. 150).

O hospital, ao se apresentar como um ambiente seguro e confiável, acolhe o paciente em seu processo de desenvolvimento emocional, posto que os unindo e os separando há um espaço no qual há a criação de um vínculo entre passado, presente e futuro, proporcionando a sensação de continuidade na existência.

"O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o individuo, porque é aí que este experimenta o viver criativo" (WINNICOTT, 1975, p. 142).

Nesse espaço se inscrevem os mecanismos mais primitivos do ser a partir da confiança estabelecida no ambiente que, nos ambulatórios, oscila entre o analista/ambiente e a instituição/ambiente. Dependendo do momento do atendimento, a presença de um ou de outro se torna mais forte e permite o progresso da análise, no sentido de tornar possível que o paciente se perceba como capaz de transformar e criar o mundo que o cerca. Com isso ele pode experienciar a sensação de viver no mundo e não a de estar submetido aos desígnios da exterioridade. Ou seja, o fato de a instituição fazer uma oferta permanente de ajuda possibilita a construção de uma sensação de segurança e confiabilidade, que sustenta a construção da área de trabalho analítico entre analista e analisando, a partir da qual a transformação subjetiva pode operar no sentido de devolver ao paciente a possibilidade de transformar tanto a realidade interna quanto a externa.

Concluindo, fazendo parte da dinâmica hospitalar, o espaço clínico se apresenta multifacetado, posto que, nele, trabalha-se com universos distintos que se mesclam e se permeiam. A continuidade de uma análise, nesse contexto, se sustenta nas possibilidades criadas pelo par analista/analisando em encontrar novas formas de lidar com a realidade hospitalar que opera no sentido da imposição da submissão às suas verdades. No cenário do ambulatório, espaço da visibilidade total onde o paciente se encontra submetido ao maior escrutínio e controle, importa devolver, ao paciente, a capacidade de criar, de agir criativamente sobre o mundo. Movimento proposto pelo analista ao utilizar as situações paradoxais que fundamentam a clínica ambulatorial, utilizando-as como pano de fundo, como base para as transformações e não como possibilidade de injetar interpretações e formulações que são suas. Um perigo constante, no hospital, na medida em que a visão médica, preponderante nesse ambiente, habitua as pessoas que nele trabalham a tomar a sua opinião como verdade a ser imposta aos pacientes, desconsiderando-os como sujeitos. Ao analista caberá, então, a tarefa de fundar a confiança sobre a qual o espaço potencial possa ser erguido, e barrar a intromissão, a submissão, a injeção das verdades postuladas pelos profissionais de saúde que podem se configurar como material persecutório ao invadirem o espaço clínico através do controle burocrático. Porém, concebendo-se a transferência como um campo constituído pelo par analista/analisando/ambiente em uma constante e dialética interação, concedem-se oportunidades ao paciente, para que ele possa se mover da dependência total para a autonomia, através de um agir criativo sobre o mundo. Um trabalho que ganha uma especificidade própria quando condições de possibilidades são criadas para que este aconteça, com toda beleza e riqueza que a experiência analítica nos permite desenvolver.

 

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Endereço para correspondência
Praça Santos Andrade, 50 - Centro
80060-240 - Curitiba/PR
Tel.: (41) 3310-2625
E-mail: nadjanbp@ufpr.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Doutora em Psicologia. Professora-adjunta da Universidade Federal do Paraná – UFPR
1 O presente trabalho refere-se à tese de doutorado (PINHEIRO, N. 2003) desenvolvida no Departamento de Psicologia da PUC-Rio, sob orientação da Prof. Junia de Vilhena.

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