SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número53Mais que nunca, é preciso criarA musicalidade da fala: o objeto sonoro em Freud índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte set. 2006

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Macbeth, entre o ideal e a ambição

 

Macbeth, between ideal and ambition

 

 

Eliana Rodrigues Pereira MendesI

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud foi um leitor apaixonado de Shakespeare. Entre os vários personagens aos quais se dedicou com grande interesse está Macbeth, usado em seu artigo "Arruinados pelo Êxito". A autora apresenta a leitura freudiana da peça e os comentários de Harold Bloom, famoso crítico literário contemporâneo, sobre essa leitura. A seguir fala de seu próprio ponto de vista sobre Macbeth, colocando-o em tensão entre o ideal, que é transgeracional e está do lado do desejo e da pulsão da vida, e a ambição, ligada ao gozo e à pulsão de morte. Termina fazendo uma analogia com os novos arruinados pelo êxito, dentro da política brasileira deste momento.

Palavras-chave: Ideal, Desejo, Pulsão de vida, Ambição, Gozo, Pulsão de morte.


ABSTRACT

Freud has read Shakespeare with passion. Among the several characters-types that Freud considered with high interest is Mac-beth, worked through his article "Those Wrecked by Success".
The author presents how Freud read this play and also Harold Bloom's (famous contemporaneous critic of literature) comments on it. Following that, she states her own point of view about Macbeth, showing his tension between the ideal, that is transgenerational and is linked to desire and life pulsion and the ambition, that is at the side of enjoyment and death pulsion. She ends up with an analogy of the new wrecked by success, in the contemporary Brazilian politics.

Keywords: Ideal, Desire, Life pulsion, Ambition, Enjoyment, Death pulsion.


 

 

Sigmund Freud foi um apaixonado leitor de Shakespeare. Em vários artigos seus, as figuras shakespearianas foram estudadas, interpretadas e citadas até mesmo na correspondência particular que ele trocou com amigos e colegas.

Personagens emblemáticos como Hamlet, Otelo, Macbeth e Rei Lear, e peças como Henrique IV, Júlio César, O Mercador de Veneza, Sonhos de uma noite de verão, Ricardo III, A tempestade, Timão de Atenas mereceram estudos mais aprofundados ou pelo menos citações como exemplos de alguma tese que Freud queria comprovar.

O personagem que ora nos interessa, Macbeth, propiciou, além de várias citações em circunstâncias diversas (volumes 2; 4; 6; 9; 11; 13; 14; 15; 17), um estudo mais pormenorizado no volume 14, no artigo "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico" de 1916. Esse trabalho foi primeiramente publicado no último número de 1916 da Revista Imago. Ele se compõe de três partes: 1ª) As exceções, no qual Freud cita Ricardo III de Shakespeare; no texto o rei se reconhece privado de belas proporções e portador de deformidades físicas e por isso resolve agir como vilão, desculpando sua conduta pelo que não possui, já que não pode desempenhar o papel de amante.
2ª) Os arruinados pelo êxito, em que exemplifica o título com o casal Macbeth e ainda com uma personagem de Ibsen.
3ª) Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa, o mais curto de todos, mas que mesmo assim provocou tantas repercussões quanto qualquer dos escritos não médicos de Freud, pois lançou uma luz inteiramente nova sobre os problemas da psicologia do crime.

O capítulo Os arruinados pelo êxito fala o seguinte: como Freud estava familiarizado com a regra segundo a qual toda afecção neurótica era o resultado de uma frustração, ficou admirado de encontrar casos que pareciam evidenciar o contrário: o daquelas pessoas que se sentem bem e vivem felizes até o momento em que atingem um objetivo importante, pelo qual talvez tenham lutado a vida toda, e no exato momento em que o alcançam adoecem e sucumbem. A explicação é instigante. Aqui também a neurose é o resultado de uma frustração, mas, dessa vez, imposta pela consciência. A pessoa tem direito de sentir-se bem e eficiente enquanto persegue o objetivo que lhe é vedado por uma proibição interna, isto é, enquanto o que lhe é vedado tem uma qualidade de algo da fantasia; mas logo que alcança a realidade, entra em jogo a consciência como se dissesse: "Permito que você possa fantasiar com esse desejo, mas não que se veja satisfeito na realidade". É aí que Freud ilustra o tema com o exemplo de Macbeth e sua esposa.

Ernest Jones fala que Freud era bom conhecedor do Macbeth de Shakespeare, e segundo se pode perceber dessa época, Freud fala a Ferenczi que estava realizando um estudo especial sobre a obra. "Comecei a estudar Macbeth, cujo enigma me tem atormentado muito, sem que me fosse dado achar uma solução. É curioso ver como, depois de ter passado o tema há anos para Jones, me vejo aqui em uma situação de reclamá-lo novamente. Forças obscuras se agitam nessa obra".

Freud comenta, em seu texto e em outros trechos, que Macbeth é uma peça de ocasião, escrita para a coroação de James I, até então rei da Escócia, como rei também da Inglaterra e da Irlanda. O enredo foi feito de encomenda e já fora trabalhado por outros escritores contemporâneos do autor, de cuja obra Shakespeare provavelmente se utilizou, como costumava fazer. Apresentava notáveis analogias com a situação real. A "virginal" Elizabeth, que nunca tivera filhos e que certa vez se descrevera a si própria como um tronco estéril, numa angustiosa exclamação pelo nascimento de James, foi obrigada por essa mesma esterilidade a fazer do rei escocês seu sucessor. E ele era o filho de Mary Stuart, cuja execução ela, Elizabeth, ordenara, embora com relutância, pois eram do mesmo sangue e Mary podia ser chamada de hóspede de Elizabeth. A ascensão de James I foi como uma demonstração da maldição da esterilidade, por um lado, e das bênçãos da geração contínua, por outro. E a ação do Macbeth de Shakespeare se baseia nesse mesmo contraste. Para Freud, a chave da tragédia de Macbeth e Lady Macbeth devia estar na falta de filhos. Mas vamos, então, resumir a peça para que ela fique mais inteligível.

Macbeth e Banquo, valentes generais do exército do Rei Duncan, da Escócia, de quem são primos, conseguem vencer a revolta chefiada pelo Barão de Cawdor, que se aliava aos noruegueses. A fama dos atos gloriosos que praticaram chegou aos ouvidos do rei, antes que eles voltassem da expedição. Enquanto atravessam uma charneca, encontram-se com três feiticeiras que saúdam Macbeth como Barão de Cawdor, o nome do traidor, e como futuro rei. Quanto a Banquo elas declaram:

– "Menos importante que Macbeth e mais poderoso".

– "Menos feliz, e no entanto, mais feliz."

– "Filhos teus serão reis, embora tu não o sejas... assim sendo... Salve Macbeth, e salve Banquo!" (Ato I, cena 3).

As três desaparecem mas parte da profecia se confirma logo, quando dois nobres, vindos da parte do rei, saúdam Macbeth com o titulo de Barão de Caw-dor, o traidor condenado à morte. "O que ele perdeu, o nobre Macbeth ganhou", são as palavras do Rei (Ato I, cena 3).

O cumprimento dessa parte da profecia e o título de Príncipe de Cumberland concedido pelo rei a seu filho mais velho, acendem a cobiça de Macbeth pelo trono e passa-lhe na cabeça ocupar o lugar do rei. "Se a sorte de mim fizer Rei, então a sorte poderá coroar-me sem que em prol disso eu precise agir". Quanto à sua inveja do príncipe herdeiro invoca: "Estrelas, escondam o seu brilho; não permitam que a luz veja meus profundos e obscuros desejos. Que o olho se feche ao movimento da mão, e no entanto, que aconteça! Que aconteça aquilo que o olhar teme quando feito está o que está feito para ser visto." (Ato I, cena 3). Ao encontrar-se com Lady Macbeth, esta é muito mais resoluta do que ele e o incita à ação: "Queres ser grande e para isso não te falta ambição, mas careces da maldade que deve acompanhar essa ambição."(Ato I , cena 5).

Os fados parecem ir ao encontro das ambições do nobre general e da esposa quando o rei Duncan e os filhos chegam para hospedar-se no castelo de Macbeth.

Banquo, excitado pela profecia das feiticeiras de que seus filhos seriam reis, consegue vencer a tentação de apressar tal acontecimento, mas Macbeth, ao contrário, aproveita-se da visita do rei e com o auxílio da esposa planeja matá-lo em seu sono. Mas isso não é fácil para Macbeth. Primeiro, porque ele é parente e súdito do rei e depois porque como anfitrião devia protegê-lo e não empunhar ele mesmo a adaga. Além disso, "esse Duncan sempre vestiu seu manto real com tanta humildade, sempre foi tão honrado em suas decisões de governante que suas virtudes passarão a defendê-lo como anjos, com o alarido dos trompetes, contra a abissal danação de seu assassínio... Não tenho esporas com que ferir os flancos de minha intenção, e minha única montaria é essa ambição exagerada e desejosa de saltar por cima de si mesmo, só para tropeçar do outro lado." (Ato I, cena 7).

Chega a fraquejar e querer desistir do plano, mas Lady Macbeth o espicaça... "Estava bêbada aquela esperança de que te revestias? Caiu no sono a tal?... Tens medo de ser na própria ação e no valor o mesmo que és em teu desejo?... Deixas que o teu ‘Não me atrevo' fique adiando tua ação até que o teu ‘Eu quero' aconteça por milagre, como a gata, coitadinha, que queria comer o peixe mas não queria molhar a pata?" (Ato I, cena 7). Macbeth: "Imploro-te Paz! Atrevo-me a fazer tudo o que é próprio de um homem. Quem se atreve a mais, homem não é... e se fracassarmos?"

Lady Macbeth: "Nós, fracassarmos? Estica as cordas no alaúde de tua coragem e não falharemos". (Ato I, cena 7).

Lady Macbeth traça os planos e o rei é morto enquanto dorme. Descoberto de manhã o traiçoeiro assassinato, Macbeth finge grande dor e indignação. Para livrar-se de qualquer suspeita sobre si mesmo, mata os lacaios que acompanhavam o rei, sobre os quais joga a culpa pelo assassinato. Os dois, bêbados e com a consciência turva, foram presas fáceis para mais esse crime.

Temendo a mesma sorte do rei Duncan, seus filhos Malcom e Donalbain fogem do país. Macbeth, herdeiro imediato do trono é coroado rei.

Mas antes disso já sofre com terrores e alucinações, ouvindo vozes a gritar: "Dormir, nunca mais! Macbeth é o assassino do sono, do sono inocente... Macbeth não mais dormirá!" (Ato II, cena 2). E ações terríveis vão se desenrolando com incrível rapidez.

Sabendo que Banquo tem suspeitas de que seja ele o matador de Duncan, e invejando-o por causa das profecias das feiticeiras de que ele seria pai de reis, Macbeth o convida para um banquete solene, como se fosse homenageá-lo, mas na verdade manda que ele seja morto, junto com seu filho Fleance. Banquo é assassinado, mas seu filho consegue escapar. Durante o banquete, o rei usurpador elogia o ausente Banquo e o espectro do general assassinado entra. Somente visto por Macbeth, assenta-se no lugar do novo rei. Tal é o terror do monarca, que deixa escapar palavras comprometedoras perante os nobres, que começam a desconfiar de que ele poderia ser o criminoso, e que se tornara um tirano sanguinário. Lady Mac-beth, ainda lúcida, tenta salvar as aparências, mas não consegue, diante da crescente insanidade do rei.

Macbeth volta a visitar as bruxas na caverna onde moram e pede-lhes que lhe profetizem qual será a sua sorte. Elas respondem ao pedido do rei com um desfile de aparições. A primeira é uma cabeça armada, que o previne para ter cuidado com Macduff, outro nobre cavalheiro da Escócia, que, ao ver os desmandos do rei, foge para a Corte Inglesa.

Lá já está Malcom, o príncipe herdeiro do rei assassinado, onde fora buscar recursos para enfrentar Macbeth.

A segunda visão é uma criança ensangüentada que lhe promete que nenhum filho de mulher poderá causar-lhe dano e a terceira é uma criança coroada, tendo uma árvore na mão, que lhe promete segurança até que a floresta de Birnam, que circunda seu castelo, não se mova contra ele.

Essas visões o aliviam, mas surgem oito reis para os quais o sorridente espectro de Banquo aponta como seus descendentes. Ao deixar a caverna das feiticeiras, chegam-lhe notícias da fuga de Macduff para a Inglaterra e como vingança Macbeth manda matar a esposa e os filhos do nobre escocês. Na Inglaterra, Malcom, tendo primeiro experimentado a lealdade de Macduff, mostra-se esperançoso de seu auxílio, quando chega a notícia do assassinato de Lady Mac-duff e de seus filhos.

Macduff se indigna com a crueldade de Macbeth ao saber da morte dos seus e diz: "Ele não tem filhos. Todos os meus lindos rebentos? Disseste todos?... E a fêmea-mãe, todos com uma única e cruel arremetida?" (Ato II, cena 3).

Isso lhe dá mais força para tramar a derrocada de Macbeth. No castelo real Lady Macbeth, oprimida por seus inúmeros crimes, fraqueja, e sua sanidade se esvai. Revela ao médico e às aias os atos praticados por ela e pelo marido.

As forças Inglesas, sob o comando de Malcom, reúnem-se às forças Escocesas perto da floresta de Birnam. Para esconder quantos eram e também os movimentos da tropa, Malcom ordena que cada soldado leve consigo um galho de árvore. Cumpre-se assim a profecia: a floresta de Birnam caminha contra Macbeth. Ao saber disso o rei recebe também a notícia de que a rainha acabara de morrer. Diz ele: "Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Morta. Mais tarde haveria um tempo para ouvir-se essa palavra... Amanhã, e amanhã e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos... A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco; faz isso por uma hora e depois já não se ouve mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado" (Ato V, cena 5).

Desesperado, atira-se ao combate, disposto a morrer. É vencido por Mac-duff, de quem matara toda a família e lhe revela no duelo: "Desespera-te com teu feitiço e permite que te diga o próprio Anjo de quem és escravo: Do ventre de sua mãe Macduff foi arrancado à força, antes do tempo." (Ato V, cena 7). Macbeth luta até o fim: "Empunho, à frente do meu corpo, o meu escudo guerreiro. Ataca, Macduff, e maldito seja o primeiro a gritar: Basta! Eu me rendo!" (Ato V, cena 7).

Macbeth é vencido por Macduff que atira sua cabeça aos pés de Malcom, que se torna o novo rei da Escócia.

Colocada assim a trajetória de Macbeth, voltemos a Freud que via na esterilidade do casal a chave para o sentido da tragédia. Segundo Freud, Mac-beth se enfurece com os ditames do destino, de que seria rei, mas os filhos de Banquo é que herdariam a coroa. Não é suficiente satisfazer sua própria ambição. Desejava fundar uma dinastia e não ter cometido assassinato em benefício de estranhos. "Puseram sobre minha testa uma coroa estéril, colocaram-me nas mãos um cetro que outras mãos de estranha estirpe hão de arrancar-me, nenhum filho meu sucedendo-me. Se assim for, pelos herdeiros de Banquo aviltei-me! Em prol deles assassinei o nobre Duncan! (Ato III, cena 1).

Há apenas uma forma para que ele invalide a parte da profecia que lhe é desfavorável - se ele mesmo tiver filhos que possam sucedê-lo. E ele parece esperá-los de sua indômita esposa: "Não concebas nunca senão filhos varões; tua alma indomável o pede assim" (Ato I, cena 7). Aliás, Lady Macbeth é a personagem, por excelência, "dilacerada pelo sucesso" e pelo remorso posterior, porque mais do que o marido é ela que, no início da tragédia, se mostra ávida quanto à ação a ser cometida.

Ela pede aos espíritos sinistros que a dessexualizem para que fique mais cruel e incita Macbeth com essas palavras: "... Já amamentei e sei como é bom amar a criança que me suga o leite. E no entanto, eu teria lhe arrancado das gengivas desdentadas o meu mamilo, e estando aquela criancinha ainda a sorrir para mim, teria lhe rachado a cabeça tivesse eu jurado fazê-lo, como tu juraste fazer o que queres fazer" (Ato I, cena 7).

O personagem Macduff também grita do alto do seu desespero pelo assassinato da esposa e rebentos: "Ele não tem filhos!" (Ato IV, cena 3).

Freud aponta que ele quer dizer: "Somente porque ele próprio não tem filhos é que pode assassinar os meus."

O exame da peça nos fala insistentemente das várias referências à relação pai-filhos. O assassinato de Duncan não passa de parricídio; no caso de Banquo, Macbeth mata o pai enquanto o filho lhe escapa e no caso de Macduff, ele mata os filhos para vingar-se do pai.

E Freud acrescenta: "Seria um exemplo perfeito de justiça poética à maneira do Talião se a ausência de filhos de Macbeth e a infecundidade de sua Lady fossem o castigo pelos seus crimes contra a santidade da geração – se Macbeth não pudesse tornar-se pai porque roubara de um pai os filhos e dos filhos um pai e se Lady Macbeth sofresse o assexuamento que exigira dos espíritos do assassinato. "Creio que a doença de Lady Macbeth e a transformação de sua impiedade em penitência poderá ser explicada diretamente como uma reação à sua infecundidade, pela qual ela se convence da sua impotência contra os ditames da natureza, sendo ao mesmo tempo lembrada de que foi através de sua própria falta que seu crime foi roubado da melhor parte de seus frutos."

Como Freud explica a rápida transformação de Lady Macbeth e seu esposo?

"Quais, no entanto, possam ter sido os motivos que em tão curto espaço de tempo conseguiram transformar o homem hesitante, ambicioso, num desenfreado tirano, e sua instigadora, um coração de pedra, numa mulher doente, roída pelo remorso é, em minha opinião, impossível de adivinhar. Creio que devemos renunciar à esperança de penetrar na tripla obscuridade da má preservação do texto, da intenção desconhecida do dramaturgo e do objeto oculto da lenda. Mas eu não admitiria que essas pesquisas são ociosas, em vista do poderoso efeito que a tragédia tem sobre o espectador. O dramaturgo pode na verdade, durante a representação, esmagar-nos com sua arte e paralisar nossos poderes de reflexão; mas não pode impedir-nos de, posteriormente, tentar compreender o mecanismo psicológico desse efeito. E a afirmação que o dramaturgo tem de encurtar à vontade o tempo e a duração naturais dos fatos que nos apresenta, se com sacrifício de probabilidade comum pode realçar o efeito estético, me parece irrelevante nesse caso. Pois esse sacrifício só se justifica quando apenas ofende a probabilidade, e não quando rompe a relação casual; além disso, o efeito dramático dificilmente teria sofrido se o tempo fosse deixado na incerteza, ao invés de ser expressamente limitado a uns poucos dias."

Freud não desiste de enfrentar um problema como o de Macbeth por considerá-lo insolúvel e se aventura a apresentar então um novo ponto, uma nova saída para a dificuldade. Acredita ele, citando Ludwig Jekels, que "Shakespeare, muitas vezes, divide um tipo em dois personagens, os quais, tomados isoladamente, não são inteiramente compreensíveis e somente vêm a sê-lo quando reunidos mais uma vez numa unidade. Mac-beth e sua Lady poderiam estar nesse caso e seria destituído de fundamento considerar Lady Macbeth como um tipo independente e procurar os motivos de sua modificação sem considerar o Macbeth que a completa... "Assim o que ele temia em seus tormentos se realiza nela; ela se torna toda remorso e ele todo desafio. Juntos esgotam as possibilidades de reação ao crime, como duas partes desunidas de uma individualidade psíquica, sendo possível que ambos tenham sido copiados de um protótipo único."

Acho interessante acrescentar aqui as observações do crítico de literatura contemporâneo, o americano Harold Bloom, que numa provocação no mínimo instigante à figura de Freud e à própria psicanálise, faz apartes e restrições às quais, nós, psicanalistas, já devíamos estar habituados e, de alguma forma, até mesmo agradecidos, penso eu.

No seu livro O Cânone Ocidental, no capítulo 16 "Freud, uma leitura Shakespeariana", diz, entre outras coisas, que ele, Bloom, ensina que Freud é essencialmente Shakespeare prosificado e que a visão da psicologia humana de Freud deriva, não de todo inconscientemente, de sua leitura de Shakespeare. Num arroubo de paixão a Shakespeare diz que ele inventou a psicanálise e Freud a codificou. Na verdade, ele considera a psicanálise como uma literatura e Freud um escritor. Em sua opinião, Shakespeare obcecava Freud como obceca o resto de nós e diz que ele, mais do que a Bíblia, tornou-se a autoridade oculta de Freud, o pai que ele não queria reconhecer.

Quanto à leitura de Macbeth, que nos interessa diretamente aqui, Bloom comenta que, em Macbeth, a ambivalência é tão predominante que o próprio tempo se torna sua representação, como sente Freud. O que Freud chamava de Nachträglich (a posteriori), a sensação de estar sempre após o fato, como um mau ator que sempre perde as deixas, é a condição peculiar de Macbeth. Bloom acha que Freud foi sagaz ao questionar as motivações apenas visíveis de Macbeth e sua Lady, uma vez que o fruto da ambição deles é tão funesto que Shakespeare enigmaticamente evita definir a natureza precisa de seus desejos. Macbeth não tem o sentido da glória (como Ricardo III) que acompanha e justifica o doce gozo de uma coroa terrena. A essência da peça é a falta de filhos, a ambição vazia, a carnificina do paternal Duncan. Bloom até acha, pelas falas de Lady Macbeth, que ela amamentou de fato um filho seu e que este deve ter morrido. Macbeth também a exorta a ter só filhos másculos. Mas não se sabe por que esses outros filhos não vieram. Bloom congratula Freud por ele não poder dar, especificamente a esta peça, uma interpretação cabal (como deu a Hamlet, por exemplo). O crítico repudia sistematicamente os estudos redu-cionistas da obra de Shakespeare, o que, aliás, é criticável por todos os amantes da literatura em geral.

Acha Bloom que sejam quais forem as razões pelas quais o casal se tornou estéril, a vingança deles contra o tempo é a usurpação, o assassinato e a tentativa de cancelar o futuro: todos aqueles amanhãs e amanhãs e amanhãs cujo ritmo mesquinho tanto oprime Macbeth.

Diz também que Macbeth é o herói-vilão mais ansioso de Shakespeare e no complexo de Macbeth não se pode distinguir o pavor do desejo, e a imaginação se torna ao mesmo tempo vulnerável e maligna. Para Macbeth, fantasiar é ter saltado o fosso da vontade e estar do outro lado da realização do ato. O tempo só está livre quando Macbeth é assassinado, porque as premonições temporais sempre se realizam em seu reino, mesmo antes de ele usurpar o poder. O complexo de Macbeth mal esconde o desejo de autodestruição, que Freud chamou de pulsão de morte, em "Além do Princípio do Prazer", e Bloom prefere chamar de fome de condenação.

Bloom ainda diz que Freud jamais se identificou tão plenamente com Mac-beth quanto com Hamlet, mas citou algumas analogias surpreendentes, como quando profetizou os quase trinta anos de trabalho que lhe restavam, numa carta de 1910 a Oskar Pfister: "Que se vai fazer no dia em que os pensamentos deixarem de fluir e as palavras apropriadas não vierem? Não se pode deixar de tremer diante dessa possibilidade. É por isso que, apesar da aquiescência com o destino que convém a um homem correto, eu secretamente rezo: que não haja enfermidade, nenhuma paralisia dos próprios poderes por perturbação do corpo. Morreremos com as armaduras nas costas, como dizia o Rei Macbeth". Segundo Bloom, "O efeito aqui, com seu nobre humor, é um tanto diferente do apocalíptico desespero do usurpador Macbeth": "Começo a me sentir cansado deste sol, e a desejar que o estado do mundo fosse agora desfeito. Tocai o sino do alarme! Soprai vento, vinde devastação. Ao menos a morte nos encontrará envergando nossas armaduras" (Ato V, cena 5).

Freud, de fato, morreu de armadura completa, pensando e escrevendo até o fim. Que sua identificação com Mac-beth, por mais leve que tenha sido, teve seu aspecto positivo, é sugerido pelo "como dizia o Rei Macbeth". Mais de uma vez, Freud afirmou que a visão de suas obras publicadas o surpreendia, como Macbeth gritava diante da espectral linhagem dos descendentes reais Stuart de Banquo. "Como, irá essa linhagem estender-se até o juízo final?" Também aqui a identificação é leve mas orgulhosa, atestando o poder contagiante da imaginação de Macbeth. Freud poderia dizer que o tema de Macbeth era a ausência de filhos, mas num nível mais profundo ele associava sua própria força de imaginação à de Macbeth, encontrando no sanguinário tirano e em si mesmo uma persistência heróica e uma fecundidade geradora de imagens.

Para finalizar, quero acrescentar minha visão pessoal da peça e do personagem Macbeth.

"O belo é podre e o podre, belo sabe ser;

Ambos pairam na cerração e na imundicie do ar" (Ato I, cena 1).

Essa frase das bruxas inaugura a peça e já mostra toda a ambivalência do personagem principal. Assim como os outros três grandes personagens de Shakespeare: Hamlet, Otelo e Rei Lear, Macbeth é atormentado pela dúvida.

A mim parece que ele está principalmente massacrado pela indecisão entre o ideal, que estaria aqui no lugar do desejo, e a ambição, que estaria do lado do gozo e da pulsão de morte, por conseqüência.

O ideal designa o modelo de referência do eu simultaneamente herdeiro do narcisismo perdido da infância e produto das identificações com as figuras parentais e seus substitutos sociais. De alguma forma, o ideal do eu é transgeracional, pois é herdado dos pais e irá também se transmitir para as próximas gerações. Está ligado ao desejo e não à demanda e aqui o desejo não será disto ou daquilo, mas tem uma ênfase intransitiva, ligada diretamente à pulsão de vida.

Macbeth, por não ser filho de reis e não ter esse lugar já estabelecido para si, não considerava o trono como seu ideal e só pode pensar nele como um usurpador, assim como, sem filhos, não tem a quem deixá-lo. Lembro aqui o ideal transmitido de pais a filhos como uma forma de auto-realização. Dizem que o pai de Picasso, um modesto professor de desenho, ao ver a genialidade do filho parou de desenhar, pois se sentiu completo. O Rei Pelé responde ao desejo do pai, um jogador de futebol talentoso mas obscuro e se eleva à posição de atleta do século. Já seu filho, sem condições de superá-lo ou mesmo igualar-se a ele, acaba numa posição de presa do gozo, no mundo da droga. Sem julgamentos morais, são caminhos opostos.

Voltando a Macbeth, ele é assaltado por uma ambição desmedida, que atalha o caminho do desejo. Essa ambição é a cobiça, a cupidez, a usurpação, o desmedido do gozo, que não conhece limites e que o empurra para a destruição final. O amanhã não existe, o tempo tem de ser sorvido vorazmente, numa fruição maligna que tudo arrasta, numa vertigem sem barra. Todo desejo inclui algum gozo e toda satisfação é marcada pela falta, não é jamais absoluta.

Nesse pêndulo entre ideal e ambição, entre desejo e gozo, Macbeth não encontra uma via de contorno do gozo, que sempre insiste em se exceder além das fronteiras do prazer. Esse movimento é causa de sofrimento, mas esse sofrimento não erradica por completo a busca de mais gozo. Abandonando o desejo, vai ser levado a se consumir na submissão ao Outro (seria o Poder, esse Outro?) até chegar à morte.

Sinto-me aqui instigada a lembrar que Macbeth pode ser revivido em vá-rias situações, inclusive na nossa pobre política nacional.

Na década de 60, um presidente eleito com grande maioria de votos, faz uma gestão pífia de oito meses e acossado por forças ocultas, no seu dizer, renuncia ao cargo. Que visões espectrais lhe terão tirado o lugar? Nunca se soube ao certo.

Nos dias atuais, um presidente e seu partido mobilizam o espírito da nação e são eleitos com grande expectativa da população. Só que os novos "arruinados pelo êxito" resvalaram do "sem medo de ser feliz" para o "ir com muita sede ao pote" e da "esperança que venceu o medo" para "era bom demais para ser verdade".

 

Bibliografia

BLOOM, Harold. O cânone ocidental (Os livros e a Escola do Tempo). Cap. IV A Era do Caos, item 16: Freud, uma leitura shakespeariana. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p.357–378.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Os arruinados pelo êxito. In: Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v.XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 351-356.        [ Links ]

JONES, Ernest. Vida y obra de Sigmund Freud, v.II; Los años de madurez (1901-1919). Aplicaciones no medicas del psicoanálisis. Buenos Aires: Editorial Nova, 1960, p.390–392.        [ Links ]

ROUDINESCO, Elizabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

SHAKESPEARE, William. Macbeth, in Shakespeare: Tragédias: Romeu e Julieta, Macbeth e Otelo. Trad. Beatriz Viegas Farias. São Paulo: Nova Cultural, 1978.        [ Links ]

VALAS, Patrick. As dimensões do gozo. Do mito da pulsão à deriva do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Araguari, 1541/7º andar - Santo Agostinho
30190-111 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3337-1583
E-mail: tarcisiomendes@uol.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG

Creative Commons License