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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.30 n.55 Belo Horizonte jun. 2008
PSICANÁLISE E LITERATURA
A mulher ausente e o feminino sobrepujante em Sarapalha
The absent woman and the overwhelming femininity in Sarapalha
Carlos Antônio Andrade Mello*
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Da coletânea de contos Sagarana, de Guimarães Rosa, Sarapalha é construída em torno da prosa de dois homens solitários, acometidos pela malária e pelo abandono de uma mesma mulher, cuja ausência contrasta com inúmeras representações do feminino que os rodeiam. Ausência e paixão como desencadeantes de feminização dos personagens.
Palavras-chave:Psicanálise, Literatura, Abandono, Solidão, Acometimento do corpo, Gozo, Feminino, Feminização.
ABSTRACT
Sarapalha is a short story taken from a collection written by Guimarães Rosa, called Sagarana. This story is built around the conversation held between to lonely men who both are suffering from bodies seized by malaria and from being abandoned by the same woman. Her absence contrasts with the many feminine representations that surround them. Absence and passion trigger off the feminization of the characters.
Keywords:Psychoanalysis, Literature, Abandonment, Loneliness, Body seizure, Enjoyment (juissance), Feminine, Feminization.
Parece que aprenderíamos algo acerca da arte
se intuíssemos o que a palavra solidão pretende designar.1
Sarapalha é uma construção laboriosa em torno da solidão. Faz brotar reminiscências de abandono, de vidas que já se foram, de amores roubados, de saúde que já não há e da própria vida prestes a extinguir-se.
Primo Ribeiro e Primo Argemiro.
A beleza, o vigor e a vitalidade pertencem ao passado na memória dos dois homens que proseiam ao calor do sol, “dois velhos que não são velhos”...2 “sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbrilhados e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados a bambeza do corpo”3. Por trás, e no início de tudo, a malária, a maleita, a maledicta, a mal-dita, que devastou aquela gente, do povoado, do sertão, matando muitos e afugentando outros tantos.
Poucos restaram. Aos dois primos, de quando em vez visitados pela sezão, enquanto aguardam sua hora, só resta falar do passado como para distraírem-se deste presente cruel. É prosa sem prazer, é tempo de espera da crise que está por vir, a cada um em sua hora e a de Primo Ribeiro se antecipa e desencadeia o desfecho da história.
Sezão: vem de accessione4, de acesso, aquilo que acomete, que toma conta, mas, também, fala de momento oportuno, de ensejo. Nesta história, é a instalação da crise o que permite a chegada às revelações ocultas entre os personagens, ao desvelamento da intimidade. Não há como encobrir o que mais dói no corpo e no coração.
A doença lhes faz atentar, cada vez e mais intensamente, aos corpos que padecem, que estremecem, que queimam em febre, prenunciando um fim que, por certo, virá. Oportuno é lembrar Georges Bataille quando afirma que “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”5.
Medem e comparam sua desgraça pela deterioração dos corpos, o crescimento do baço. “É da passarinha. No vão esquerdo, abaixo das costelas, os baços jamais cessam de aumentar. E todos os dias eles verificam qual foi o que passou à frente”6.
Passarinha – curiosa denominação e incrível suposição de que é aí, no baço, a sede das emoções, o que leva alguém, indiferente a uma perda, a uma desfeita, dizer: - Nem me bate a passarinha. No entanto, nos primos, é o que cresce, se exacerba, denunciando o mal e a mágoa que os devastam.
O ar que os envolve é impregnado pelo miasma da malária, presente na monótona perseveração de sua conversa e na recorrência dos acessos febris interditando, neste momento, qualquer sinal de um desejo que os anime, seja da ordem do amor ou da vida, restando, àquele que treme, apenas os agrados do cachorro morrinhento que vem lamber-lhe a cara. Recorro a Paul Laurent Assoun “O que respira o sujeito: os miasmas da Coisa ou o perfume do seu desejo?”7.
O abandono da mulher, Prima Luísa, luz que se foi, tão linda, amada às claras por Primo Ribeiro, seu marido, e paixão oculta de Primo Argemiro, o dos Anjos. Paixão à distância, guardado o respeito, só atrevendo-se a olhar “meio de-quina... para a boquinha vermelha, como flor de suínã...”8 De ambos se foi, levada pelo boiadeiro no trem-de-ferro, deixando-os ao léu, um pelo outro, mais amigos do que nunca.
Desta mulher faltosa restaram múltiplas representações, na malignidade da fêmea alada que inocula a desgraça, na passarinha que não cessa de crescer, na sezão que toma conta do corpo e das idéias, na presença fugidia da negra Ceição que passa ao largo da cena e nem acode aos chamados quando mais se precisa dela. Esta dicotomia entre o ausente e o sobrepujante, quando se trata do feminino, remete aos atributos invocados por Lúcia Castello Branco para um possível feminino da escrita “... lugar atópico do elíptico e do prolixo, da lacuna e do excesso...”9
É como a natureza que os cerca, intocada, esplêndida, indiferente à sua decadência. Em torno deles, “a erva mãe-boa derrama cachos floridos, no meio das folhas em corações. Muitas flores. Azuis...”10 Nem o feminino materno se enternece com o sofrimento dos dois homens, agora desvalidos, privados de seu objeto de amor, dito faltoso enquanto mulher e cuja ausência os entrega, mais e mais, à doença que consome seus corpos e à solidão que os mantém unidos.
“Mas, quem sabe...? Mulher é mulher”11. Quedaram os dois neste desconhecimento. Primo Argemiro tem de admitir que haviam sido bem tolos e conclui: “...só o homem de fora era quem sabia lidar com mulher!”12 Mera suposição, misto de mágoa e aposta no poder fálico do Outro.
“Assim, na psicanálise (porque também no inconsciente), o homem nada sabe da mulher, nem a mulher do homem. No falo se resume o ponto de mito em que o sexual se torna paixão do significante”13.
Os corpos debilitados valem-se da parceria surgida do desamparo, tão sólida mas, ao mesmo tempo, tão frágil no instante em que o amor secreto de Primo Argemiro pela Prima Luísa é revelado ao outro, que se insurge; até parece forte, não admite, ofende-se e renega o primo, outrora quase um irmão. Sentimento é traição, é infidelidade, consumada ou não. Cai por terra aquela cumplicidade nascida da dor e do abandono que os mantinha unidos por amor ou morbidade, não importa. Degustavam a solidão que, em vez de intragável, tornava-se possível, compartilhada à porta do rancho, cada vez mais unidos, sentados juntinhos na quentura do sol da manhã, desfrutando de longos silêncios, de falas divididas e de crises intermitentes.
Mas uma resultante da ausência da mulher e da chegada da doença parece ter aberto fendas na rudeza desses homens do mato, como invasão do feminino, fazendo surgir daí uma ternura inusitada, quase uma confissão de falta, evidenciada na procura de um pelo outro, como condição de sobrevivência diante das perdas da saúde e do amor.
Quando aborda a questão do feminino, Barthes ressalta que, ao longo da história, é a mulher quem sustenta o discurso da ausência; quem lhe dá forma, enquanto tece, enquanto canta e espera. “De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro, feminino se declara: esse homem que espera e sofre está milagrosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado”14.
Agora, banido, de nada adiantam as juras de respeito e fidelidade de Primo Argemiro que, ao afastar-se, é, por sua vez, tomado pela sezão. Vem o primeiro arrepio. “O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para tremer. E para pensar. Também”15.
E, entregue à natureza e à doença, deitado na verdura, é tomado pela crise, qual forma de gozo, que começa de mansinho, parece até prazerosa, depois, toma o corpo todo, o dentro e o fora se confundem e arrastam o sujeito à voragem de uma entrega, sem condições, àquilo que, segundo Miller, “extravasa o princípio do prazer e viola a regra”16 e assim, diríamos, é como o gozo domina e submete, desde o corpo. Como Lacan já havia muito bem marcado, “começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina”17.
O corpo, como condição de gozo, não tem como escapar a este algoz que “Vem soturno e sombrio. Enquanto as fêmeas sugam, todos os machos montam guarda, psalmodiando tremido, numa nota única, em tom de dó. E, uma a uma, aquelas já fartas de sangue abrem recitativo, esvoaçantes, uma oitava mais baixo, em meiga voz de descante, na orgia crepuscular”18.
Bibliografia
ASSOUN, P.L. C’est donc la Chose, toujours. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.29, Paris, 1984, p.49. [ Links ]
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p.53. [ Links ]
BATAILLE, G. O erotismo. São Paulo: ARX, 2004, p.20. [ Links ]
BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p.11. [ Links ]
CASTELLO BRANCO, L.; SILVIANO BRANDÃO, R. A mulher escrita: notas sobre uma memória feminina (L.C.B.) Rio de Janeiro: Lamparina, 1989, p.146. [ Links ]
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. [ Links ]
LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969/70). Rio de Janeiro: J.Zahar, 1992, p.68. [ Links ]
LACAN, J. Radiofonia (1970). Outros escritos. Rio de Janeiro: J.Zahar, 2003, p.410. [ Links ]
MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: J.Zahar, 2005, p.160. [ Links ]
ROSA, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 283/1502 – São Lucas
30140-000 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3241-4647
E-mail: andrademello@terra.com.br
Recebido em 02/05/2008
Aprovado em 07/05/2008
*Médico. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
1Blanchot, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p.11.
2Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.136.
3Idem, p.137
4Houaiss, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
5Bataille, G. O erotismo. São Paulo: ARX, 2004, p.20.
6Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.137.
7Assoun, P.L. “C’est donc la Chose, toujours”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.29, Paris, 1984, p.49.
8Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.145.
9Castello Branco, L.; Silviano Brandão, R. A mulher escrita: notas sobre uma memória feminina (L.C.B.). Rio de Janeiro: Lamparina, 1989, p.146.
10Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.153.
11Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.145.
12Idem, p.146.
13Lacan, J. Radiofonia (1970). Outros escritos. Rio de Janeiro: J.Zahar, 2003, p.410.
14Barthes, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janero: Francisco Alves, 2000, p.53.
15Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.153.
16Miller, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.160.
17Lacan, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969/70). Rio de Janeiro: J.Zahar, 1992, p.68.
18Rosa, J. G. Sagarana, Rio de Janeiro: Record, 1984, p.135.