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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.31 n.57 Belo Horizonte jun. 2009

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

A linguagem para ‘além’ da dimensão semântica

 

The language for ‘addition’ of the semantic dimension

 

 

Cláudia Braga de Andrade

Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A linguagem é um tema central na psicanálise e está inserida no projeto freudiano através de duas vertentes relacionadas entre si: na fundamentação do método terapêutico, realizado através do discurso, e na formulação do aparelho psíquico. Este artigo discute como as diferentes perspectivas e possibilidades de abordagens da linguagem no discurso freudiano, ao privilegiar o campo das representações ou a dinâmica pulsional, interferem diretamente no encaminhamento do tratamento clínico, e sinalizam posições distintas em relação à lógica metafísica das representações. Partimos do pressuposto que admitir o poder de afetação da linguagem não significa, contudo, considerar o afeto como parte integrante da linguagem.

Palavras-chave:Psicanálise, Linguagem, Representação, Intensidade.


Abstract

Language is a central issue in psychoanalysis and – as far as the Freudian project is concerned – it can be considered in two ways which are related to each other: as evidence of the therapeutic method, accomplished through speech, and in the formulation of the psychic apparatus. This article is about different perspectives and possibilities concerning the approach to language present in the Freudian discourse– which  grants special consideration to both representation and dynamic pulsation. Language interferes directly when it comes to making one’s way to a clinical treatment and also signalizes distinct positions concerning the metaphysical logic of representation. We have assumed that the acknowledgment of the power of language concerning affection does not necessarily mean that affect is a constituent part of language.

Keywords:Psychoanalysis, Language, Representation, Intensity.


 

 

A linguagem e a vida são uma coisa só.
Guimarães Rosa

 

Linguagem e clínica

É inquestionável a centralidade da questão da linguagem na psicanálise. Através da linguagem Freud fundamenta seu método terapêutico propondo, efetivamente, a clínica da psicanálise e a formalização da estrutura do psiquismo. A teoria psicanalítica inaugura uma nova discursividade sobre o exercício clínico, trazendo um novo significado para a função da linguagem. O tratamento psíquico será sustentado no uso da linguagem tendo como eixo principal a atividade de verbalização. No entanto, Freud não se restringe a um modelo linguístico baseado em uma dimensão semântica significante que exclui o registro intensivo da linguagem. O ponto fundamental a ser discutido é em que medida a psicanálise consegue incluir a questão da intensidade na linguagem do inconsciente.

A problemática sobre a concepção de linguagem é a principal questão em jogo quando tratamos das controvérsias entre os fundamentos de uma análise calcada sobre o discurso, agindo pelos efeitos de significantes, e de uma análise sobre a dinâmica pulsional. Na psicanálise encontramos leituras que privilegiam o campo da representação e outras que vão privilegiar o campo da intensidade pulsional. Entendemos que o eixo fundamental na sustentação da prática analítica está na diferença entre uma linguagem capaz de provocar afetos e uma linguagem, ela mesma afetada.

 

Linguagem: um diálogo metafísico entre corpo e psiquismo

Freud trata de forma original a questão da linguagem quando propõe considerar sua implicação corporal e afetiva. É através da palavra que se inaugura, na clínica da histeria, o tratamento psíquico para os ‘afetos retidos’. A linguagem permite o trânsito entre psíquico e somático, funcionando como um prolongamento de um registro a outro. Mas, a tentativa de articular corpo, afeto e linguagem é de grande complexidade. O texto freudiano é marcado por diversos planos conceituais e oferece uma abertura a diferentes leituras sobre o universo da linguagem.

A clínica da histeria coloca Freud diante do primeiro enfrentamento com a questão da metafísica corpo-psiquismo, uma vez que o mecanismo de conversão é designado como a expressão de uma representação inconciliável através de uma transformação corporal. O ‘dano’ corporal se torna, portanto, a expressão da economia da representação incompatível e traduz o destacamento de uma energia oriunda da tensão representativa. Neste sentido, poderíamos concluir que o que se converte é o afeto (a soma de excitação), transferindo-se do campo psíquico (representações) para a inervação somática. A conversão assinala difíceis problemas teóricos na psicanálise, pois trata-se de um mecanismo que pressupõe uma transferência do afeto por domínios heterogêneos do campo psíquico para a inervação somática1.

As consequências clínicas da hipótese da linguagem como uma forma de acesso ao psiquismo, bem como a sua relação com o corpo-psiquismo, é amplamente discutida no artigo “Tratamento psíquico”. O eixo inicial da discussão se refere à desestabilização que a histeria promove à lógica do saber médico. A variedade de sintomas não permite uma classificação e nem uma definição com base na lesão orgânica. Freud examina que no desenrolar desta investigação verificou-se que, em muitos casos, “os sinais da doença se originam simplesmente de uma alteração na ação psíquica sobre seus corpos e a causa imediata desse distúrbio deveria ser buscada em suas mentes" (FREUD, 1905a: 300).

A empreitada freudiana foi retomar o lado esquecido dessa relação mútua entre mente e corpo e, finalmente, considerar a influência do psíquico sobre o somático. Com essa perspectiva foi possível perceber que a copiosidade e variedade dos sintomas neuróticos, seu aparecimento, deslocamento ou desaparecimento eram influenciados pela excitação, emoção, preocupação – entre outros fatores. Um destaque especial é concedido à importância da influência do psíquico sobre o somático e o papel da fala do paciente. A ênfase dada à linguagem permite uma nova articulação entre os registros somático e psíquico em um outro nível de intervenção. Ao invés de considerá-los polaridades absolutas e excludentes, eles passam a ser vistos como uma relação de implicação. Freud procura criticar a polaridade entre corpo e psiquismo, afirmando que o registro do psiquismo é antes de mais nada linguagem e que esta tem efeitos sobre o corpo. Freud realça a incidência da linguagem sobre o corpo e sobre as representações distanciando-se da tradição do dualismo cartesiano. Com isto, desloca o registro do psíquico do campo da consciência e o inscreve no registro da linguagem (Birman, 1993).

 

A vinculação entre linguagem e a lógica da representação

Uma reflexão importante é como Freud se apropria da linguagem na psicanálise e que concepção de linguagem está sendo considerada. Contemplar que o impacto afetivo pode propiciar o trabalho ideativo através da linguagem não equivale a reconhecer que o próprio afeto é parte integrante da linguagem. Ou seja, admitir o poder de afetação da linguagem não significa, contudo, considerar a linguagem como intensidade. De fato, as primeiras aproximações da experiência clínica da histeria exigem uma consideração do plano das intensidades. Apesar da suposta simplicidade da descoberta inicial freudiana há uma grande complexidade na concepção da trama representacional e afetiva.

Um fato marcante nos primeiros escritos de Freud é a oposição entre representação e a noção de afeto, o que torna inevitável uma apresentação dualista dos fenômenos. O problema do afeto aparece muito cedo na obra freudiana. Nas investigações sobre a clínica da histeria é revelada uma lógica singular do afeto. Foi ‘escutando’ o corpo que a psicanálise teve seu início. Um corpo que se expressava psiquicamente através dos excessos das excitações corpóreas. Trata-se de uma perspectiva que insere o psiquismo no corpo e implica, portanto, em considerar a presença de intensidades no psiquismo. A dimensão econômica se torna essencial na compreensão freudiana sobre a histeria, bem como no método utilizado para o seu tratamento. Podemos notar que o destino das intensidades ocupa um lugar central tanto na eclosão como no desaparecimento da neurose. É incontestável o relevo dado ao aspecto intensivo do psiquismo sob a consideração do afeto. Por outro lado, é questionável se a proeminência da intensidade energética pode ser interpretada como uma positivação do afeto no âmbito da clínica. Sob determinados aspectos, o afeto acaba submetido à racionalidade do dinamismo da representação.

Se analisarmos a relação, proposta por Freud, entre o adoecer histérico e o trauma, podemos notar que seu modelo explicativo do mecanismo da neurose encontra fundamento nos movimentos de ‘ação’ e ‘reação’ à intensidade. O valor conferido ao fator intensivo é expresso, por exemplo, na hipótese de uma proporcionalidade entre a intensidade dos traumas e a intensidade dos sintomas por eles produzidos. Parte-se do pressuposto de que é necessário que a reação a uma emoção ocorra em um ‘grau suficiente’. O impedimento da expressão do afeto decorre da recusa de uma ideia em se tornar consciente, fazendo com que o afeto seja separado da representação. É interessante notar que o afeto aparece sob diferentes aspectos nos primeiros escritos de Freud. De um lado, o excesso de afeto se apresenta como causa de um efeito traumático de caráter patogênico; de outro, a expressão do afeto pode constituir-se como uma ab-reação reparadora. Portanto, o afeto aparece igualmente como o mal e como o remédio para curar o mal (Schneider, 1994; Assoun, 1995).

A hipótese central da etiologia das neuroses se define como a produção de um trauma resultante de um afeto retido. E, neste momento inicial, a direção do tratamento consiste em fazer com que esse afeto seja ab-reagido. São consideradas as hipóteses de que esse afeto pode ser liberado tanto por uma ação corporal como também através da expressão verbal, ou seja, da evocação das representações. Isto permite considerar que a linguagem pode funcionar como um substituto dessa ação corporal, e que com a sua ajuda uma emoção pode ser ab-reagida quase com a mesma eficácia. Freud não deixa de sinalizar que, muitas vezes, as palavras são as únicas ‘substitutas das façanhas humanas’ e que através da observação do quotidiano é possível exemplificar como a linguagem pode ‘substituir uma ação’ (Freud, 1893-5). Na ab-reação há um esgotamento do excedente de afeto e a linguagem, neste caso, equivale a um ato que permite que o afeto seja ab-reagido. Ainda há a possibilidade de que a lembrança traumática que, porventura, não tenha sido ab-reagida participe do complexo de associações e, desta forma, fique sujeita a retificação por outras idéias. No momento em que a ab-reação não ocorra de modo imediato, uma outra forma de terapêutica da linguagem é buscada pela via da associação.

Esta distinção entre a linguagem equivalente ao ato ou vinculada à associação não modifica a perspectiva do tratamento clínico, voltado, nos dois casos, para a atividade representativa e verbal que permite a liquidação do excedente de afeto. Enquanto a evocação representativa se apresenta como o único processo desalienante, o afeto aparece sob a forma de um hóspede indesejável que se deseja expulsar (Schneider, 1994).

 

O sentido de tornar consciente o inconsciente

Um dos problemas da concepção freudiana do mecanismo histérico aparece quando a atividade de tornar-se consciente é compreendida apenas ao plano intelectual. Este enfoque sustenta a formulação de uma clínica voltada, essencialmente, para a produção de sentido. Assim, o trabalho analítico consistiria em promover o domínio das representações e torná-las conscientes, através da técnica da interpretação.

Em “A Interpretação de Sonhos”, a eficácia da psicanálise é atribuída ao ‘poder das palavras’, no qual o dispositivo de cura encontra seu fundamento na hipótese: “a psicoterapia não pode seguir outro caminho senão colocar o inconsciente sob domínio do pré-consciente" (FREUD, 1900:616). A descoberta das leis próprias de funcionamento do inconsciente possibilitou o trabalho de decifração, que visava alcançar o domínio do consciente sobre o inconsciente. Segundo Kristeva (2000), este enfoque freudiano corresponde a um modelo otimista da linguagem, no qual se parte da suposição do inconsciente articulado como língua possível de decifração. Na medida em que o conteúdo inconsciente tem um sentido, ele pode ser interpretado. Nesta concepção teórica, o inconsciente se identifica como a 'terra prometida' do processo de análise.

O ponto-chave desta argumentação sustenta-se na compreensão de que o processo de tornar consciente está associado à verbalização. A linguagem é concebida como uma atividade representativa e verbal, profundamente comprometida, por sua vez, com a lógica metafísica das representações. O plano das intensidades, apesar de considerado, não é determinante no processo ‘principal’ de produzir sentido a partir do fluxo das representações. Neste caso, a linguagem se define como o ‘meio’ através do qual se produz a significação do afeto. Nesta perspectiva de associar o processo de tornar consciente à verbalização, o corpo e afeto tornam-se, praticamente, elementos passivos no processo. Colocar em cena a problemática da linguagem insistindo no enfoque da dicotomia representação/afeto – procurando assegurar a legitimidade do afeto ou da representação – não avança a discussão sobre a problemática abordada. O caminho mais enriquecedor seria sinalizar os impasses clínicos e as impossibilidades de escuta quando se restringe o psiquismo ao campo da racionalização e da simbolização.

É inegável que apesar da proposta de decifrar o sonho, a própria hipótese de tradução do inconsciente é questionada por Freud, na medida em que a linguagem do inconsciente não se mostra como representantes à espera de decifração. A questão do sentido é, em parte, deslocada quando se considera que a interpretação é construída pelo contexto, em comparação com os demais elementos, de forma que o sentido é construído e não 'revelado'. Assim, a lógica do inconsciente promove alguns 'desajustes' em relação à lógica determinista das representações. A pergunta que se impõe é como estes deslocamentos são contemplados no âmbito da clínica.

 

A sensorialidade das palavras

Se por um lado podemos observar que Freud expõe seu método de tratamento valorizando nitidamente a exploração da concepção de linguagem numa dimensão semântica, por outro lado, em diferentes perspectivas e momentos da construção teórica da psicanálise é evidente a preocupação freudiana em contemplar igualmente o aspecto afetivo e intensivo da linguagem.

A dimensão semântica e significante da linguagem é questionada por Freud de diversas maneiras. A própria abordagem de linguagem incorpora a original formulação da noção de representação: a linguagem é caracterizada pela heterogeneidade dos dois registros de representação (palavra e coisa) e o efeito de significação é produzido através de um complexo de associações, formado por vários elementos. Embora, na metapsicologia, Freud proponha um modelo de linguagem associada ao processo secundário – o acesso à consciência é decorrente de uma ligação com a representação de palavra –, a lógica dos sonhos e dos psicóticos revela que a ‘palavra’ também pode ser tratada como ‘coisa’, abalando a aparente ‘garantia’ da associação entre linguagem, verbalização e consciência.

Ao longo de toda a obra freudiana, mantém-se a teoria de que a tomada de consciência dos processos de pensamento depende da sua associação com restos verbais. Somente algo que já foi uma percepção consciente pode voltar a se tornar consciente, e isto é alcançado através da ligação com os restos mnêmicos. Os restos mnêmicos podem ser representações de palavras que outrora foram percepções e podem, como todos os restos mnésicos, voltar a ser conscientes (Freud, 1923; 1938). As representações verbais ocupam um lugar estratégico em que, através de sua interposição, os processos internos de pensamento são transformados em percepções. Na reestruturação do aparelho psíquico, em 1923, é revisto o papel das representações de palavra como mediação dos processos conscientes de pensamento.

Freud retoma a oposição representação palavra e representação coisa (apresentada na monografia sobre as afasias e no ensaio sobre o inconsciente) para recolocar a questão sobre a diferenciação entre consciente e inconsciente. Em relação à linguagem, mantém a tese de que as representações inconscientes são distintas das representações verbais. Por intermédio da linguagem, as representações, quando associadas aos representes verbais, alcançam a consciência.

A princípio, o fato de o inconsciente não se ‘comunicar’ – senão através da ligação com os representantes verbais – pode conferir uma predominância à relação entre pensamento verbal e o tornar-se consciente. No entanto, também está presente nesta hipótese a ideia de que não são propriamente as representações de coisa, este material anônimo e incognoscível, que se tornam conscientes. A consciência é atingida através da articulação entre as palavras e os traços que são irredutivelmente inconscientes.

A questão da representabilidade está ligada aos órgãos do sentido. A exposição do tema nas afasias e no ensaio sobre o inconsciente já menciona a predominância do aspecto auditivo nas representações de palavra. Em 1923, Freud define que os resíduos verbais derivam principalmente das percepções auditivas de maneira que o sistema Pcs possui uma fonte sensória especial. Em essência, “uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico da palavra que foi ouvida" (FREUD, 1923:34). Esta afirmativa expõe duas formulações. Em primeiro lugar, somente o sistema pré-consciente pode se apresentar sob a forma de verbal. Em segundo lugar, para uma representação se tornar consciente, as representações pré-conscientes vão procurar os restos mnésicos das palavras que um dia foram escutadas. Kristeva sublinha a relação pulsional na formulação dos resíduos verbais: "É porque houve percepções nas palavras que essas palavras-percepções podem se ligar ao mesmo tempo à pulsão e, portanto, ao investimento corporal. Palavras na encruzilhada entre os traços mnêmicos e a consciência" (KRISTEVA, 2000:87).

A ênfase à dimensão acústica da representação da palavra já havia sido pronunciada no estudo das afasias. O modelo freudiano concebe que as representações de palavras são essencialmente acústicas enquanto as representações de objetos são visuais. Compreender a palavra essencialmente como resto mnêmico de uma percepção indica, sobretudo, sua valorização como uma forma de expressão mais que seu próprio sentido. A situação em que a sonoridade da palavra tem prioridade sobre a significação da palavra é uma perspectiva que também está presente nas investigações sobre os chistes. Na investigação sobre a relação dos chistes com o inconsciente, Freud demonstra claramente seu interesse na dimensão da expressão. “Num certo grupo destes chistes, a técnica consistiria em dirigir nossa atitude psíquica para a sonoridade da palavra, em lugar do sentido da palavra, e a fazer aceder a representação (acústica) da própria palavra à significação em lugar das representações de coisa" (FREUD, 1905b:141).

A sensorialidade das palavras não está ausente na escuta das narrativas clínicas. Birman (1996) observa que a dimensão evocativa da palavra na qual lidamos na clínica psicanalítica remete necessariamente ao registro da corporeidade e do desejo. A partir deste registro é possível depreender as relações da linguagem com o corpo, pela mediação da sensorialidade das palavras. A voz e o registro da escuta constituem-se como canais sensoriais privilegiados para a produção e a circulação do sentido, o que os aproxima da experiência musical, de forma que é possível estabelecer uma relação entre escrita, fala e corporeidade.

 

A lógica dos contrários

A associação entre processo secundário, verbalização e consciência também se torna alvo de debate na psicanálise no percurso das investigações freudianas sobre os estudos sobre a linguagem. Embora haja controvérsias sobre a validade teórica desta leitura, não há como desconsiderar a riqueza desta interlocução. O interesse da psicanálise pela linguagem e a promissora troca entre os dois campos de estudos foram abertamente declarados por Freud. Não se pode negar, por exemplo, a influência das teorias da linguagem na construção do conceito de inconsciente. Destacaremos, a seguir, como a linguagem, na sua possibilidade de utilização dos contrários, é discutida em diferentes momentos na obra freudiana.

Em 1910, Freud dedica um artigo sobre a problemática das palavras que portam significados contrários presente tanto na elaboração onírica como na composição das línguas arcaicas. É evidente seu interesse em demonstrar que, por detrás da aparente imprecisão e non-sense dos contrários, encontra-se uma ‘racionalidade’, o que legitima o trabalho de interpretação dos sonhos e a teoria do inconsciente.

Na investigação sobre a elaboração onírica, Freud se depara com uma característica muito peculiar: no funcionamento inconsciente, os contrários são tratados da mesma forma que as semelhanças. Este singular comportamento de ignorar os contrários e contradições também é encontrado nas teorias do desenvolvimento da linguagem. Algumas línguas arcaicas assim como a linguagem do sonho admitem um mesmo meio de representação para expressar contrários; uma palavra, por exemplo, pode expressar duas ideias opostas. Daí a pertinência de se propor uma analogia entre a linguagem do inconsciente, verificada nos sonhos, e os estágios anteriores na história da linguagem.

Nas línguas mais antigas, algumas palavras são compostas por seus contrários: ‘forte-fraco’, ‘claro-escuro’, ‘grande-pequeno’. Originalmente, as palavras primitivas foram expressas pelas mesmas raízes verbais, até que sofreram transformações que passaram a indicar os dois significados. Freud dedica o artigo “A significação antitética das palavras primitivas” para discutir o tema, e propõe uma comparação entre a elaboração onírica e as teses de Karl Abel. Conforme analisa o filólogo, a língua egípcia, desenvolvida antes das primeiras inscrições, continha um grande número de palavras com duas significações, sendo que uma era o oposto exato da outra.

Na “Conferência XV”, em uma longa discussão sobre o tema da linguagem, Freud procura demonstrar e justificar a ‘vaguidade’ presente nos sonhos e nos antigos sistemas de expressão. A variedade das formas de expressão encontradas tanto nos sonhos como em escritas primitivas não seria tolerada em nossa escrita atual. Os exemplos citados no texto ilustram a semelhança do processo de produção onírica com as formas de expressão de antigas escritas. Nas escritas semíticas somente estão indicadas as consoantes das palavras e o leitor deve inserir as vogais omitidas, segundo seus conhecimentos e o contexto. Na escrita sagrada dos egípcios compete à decisão arbitrária do escriba dispor as figuras da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. A fim de proceder a sua leitura, deve-se seguir a regra de ler em direção aos rostos das figuras, pássaros, e assim por diante. Na escrita hieroglífica, que não apresenta separação entre as palavras, as figuras são dispostas na página separadas por distâncias iguais; em geral, é impossível dizer se um sinal ainda faz parte da palavra precedente ou se forma o começo de uma nova palavra. O idioma chinês serve como um exemplo-chave para demonstrar a imensa imprecisão presente também nas línguas. “No idioma chinês, a solução do sentido, em todos os casos, cabe ao entendimento de quem ouve, e nisto a pessoa se guia pelo contexto" (FREUD, 1915-6: 276).

Freud destaca que a imprecisão presente no idioma chinês não faz dele um veículo menos eficiente de expressão do pensamento. A diferença em relação aos sonhos é que o sistema de escrita se presta à comunicação. “Um sonho não pretende dizer nada a ninguém. Não é um veículo de comunicação; pelo contrário, destina-se a permanecer não-compreendido" (FREUD, 1915-6: 277). A intenção freudiana de propor uma analogia com os sistemas de escrita se fundamenta na tentativa de demonstrar que a 'incerteza' e 'vaguidade' dos sonhos presentes nas escritas não desqualificam a legitimidade das interpretações.

A interlocução entre a psicanálise e o estudo das línguas arcaicas está inserida no projeto freudiano de encontrar apoio, em outros campos de saber, para fundamentar teoricamente o conceito de inconsciente como um sistema. É notório o destaque que Freud concede a esta interlocução: “nós psiquiatras não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem" (FREUD, 1910:146). Nesta perspectiva, valoriza-se a hipótese das teorias linguísticas sobre a significação antitética das palavras se conservarem não somente nas evoluções dos idiomas mais primitivos como também nos idiomas mais novos e até mesmo em algumas línguas ainda vivas.

Poucos anos mais tarde, nos artigos “O Estranho” (1919) e “A Negativa” (1925), o tema dos ‘contrários’ é revisitado sob um outro prisma. Freud descobre que a negação serve como uma marca do recalque. O ‘não’ se presta a uma negação, mas também permite afirmar algo através da negação. Nesses dois textos posteriores, destaca-se, sobretudo, uma leitura da questão sob o enfoque da pulsão de morte. Uma interessante correlação entre a função intelectual e a função afetiva no processo de pensamento é proposta por Freud ao analisar o mecanismo de negação. Trata-se de uma hipótese que considera o processo de pensamento vinculado aos impulsos pulsionais primários.

O recurso do estudo das línguas também é evocado na reflexão sobre a complexidade da significação da palavra alemã unheimlich (estranho). No artigo “O Estranho”, Freud discute sobre a íntima relação entre o fenômeno de compulsão à repetição e o caráter de estranheza. O estranho é definido como algo assustador que remete ao que já é conhecido há muito tempo e há muito familiar. Freud procura ultrapassar a equação estranho = não familiar e tornar evidente que o familiar pode se tornar estranho e assustador. Depois de observar uma série de casos individuais, declara que conseguira confirmar sua teoria em um exame do uso linguístico (FREUD, 1919:277).

A palavra alemã ‘unheimlich' se opõe a 'heimlich' ['doméstica']. Em um primeiro momento é possível relacionar o estranho a algo assustador porque não é conhecido e familiar. Mas nem tudo o que é novo e não familiar é assustador. O novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho, porém, algo precisa ser acrescentado ao que é novo e não familiar para torná-lo estranho. Freud encontra na linguística um apoio para pensar sobre a palavra alemã unheimlich. Por exemplo, a palavra heimlich porta um significado ambivalente (familiar e agradável; escondido e assustador) que coincide com a palavra oposta unheimlich. Neste caso, o un se torna símbolo do recalque, demonstrando, desta forma, o papel concedido à negação como marca do recalque.

As incursões freudianas pelo campo da linguagem se destinam a encontrar uma confirmação da teoria sobre o inconsciente. A não contradição descreve um modo de funcionamento do inconsciente e a abordagem freudiana sobre este fenômeno revela uma forma singular do funcionamento do psiquismo, no qual a ‘lógica’ da contradição indica uma ‘rachadura’ entre a apreensão intelectual e afetiva. No artigo sobre o estranho, Freud argumenta que o caráter de estranheza pouco se relaciona à incerteza intelectual. Uma melhor compreensão dos fatos não significa uma superação da estranheza que está atrelada ao retorno do recalcado. A questão da ‘cisão’ entre afeto e consciência também é discutida no artigo “A Negativa”. Freud analisa o ato que enuncia um pensamento ao mesmo tempo em que o nega. Destacamos o exemplo utilizado logo no início do texto: “agora você pensará que quero dizer algo ofensivo, mas realmente não tenho esse propósito” ou “você pergunta quem pode ser a pessoa do sonho. Não é minha mãe" (FREUD, 1925: 295-7). Esta é uma forma de expressão de um desejo recalcado e, ao mesmo tempo, uma defesa através da negação do seu pensamento. O ato de negar é um substituto do recalque, e a partir do símbolo da negativa, o pensar se liberta das restrições do recalque. Como assinala Freud, o 'não' se torna a marca distintiva do recalque, um 'certificado de origem', um made in.

A dualidade entre o intelectual e o afetivo está presente em toda a obra freudiana. Isto não a isenta de uma série de ambiguidades. No texto “A Negativa”, esta dualidade comparece ao reeditar a hipótese do mecanismo do recalque em um contexto clínico. Por um lado, no trabalho de análise, é possível vencer a negativa e ocasionar a plena aceitação intelectual do recalcado, mas nem por isso o processo do recalcamento é removido, já que o ‘essencial’ do recalque permanece. A negativa permite que o conteúdo de uma ideia recalcada abra caminho até a consciência. Neste sentido, ela seria uma forma de tomar conhecimento do que está reprimido, sem, contudo, aceitá-lo. A conclusão freudiana é que “podemos ver como, aqui, a função intelectual está separada do processo afetivo" (FREUD, 1925:296).

Acreditamos que, nesta formulação, Freud aponta para uma questão central: o descompasso entre a função intelectual e afetiva se refere à impossibilidade de assimilar as atividades intelectuais exclusivamente ao processo secundário. Este é um ponto de conexão entre estes textos freudianos. Nos três artigos citados – ‘A Negativa’, ‘O Estranho’ e ‘A significação antitética das palavras primitivas’ – podemos inferir que as atividades intelectuais são formuladas em termos de processos primários. No texto sobre a negativa, esta ideia está explícita na descrição das duas espécies de decisões atribuídas à função de julgamento: ela deve afirmar ou negar a posse de um atributo particular e deve asseverar ou discutir a existência de uma representação. A principal contribuição do estudo do julgamento, descreve Freud, é “talvez pela primeira vez, uma compreensão interna da origem de uma função intelectual a partir da ação recíproca dos impulsos pulsionais primários. Julgar é uma continuação, por toda a extensão das linhas da conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o principio do prazer" (FREUD, 1925:299). Considerar que a atividade do pensamento também é formado pelo processo primário implica na conexão entre o registro do pensamento e o registro energético. David-Ménard (2000) realça o fato de Freud tratar pensamento e satisfação sexual com os mesmos termos, apontando uma diferença unicamente a nível energético. Isto significa admitir que haja descarga em todas as atividades representativas. Neste sentido, a noção do ato de julgar se torna 'quase' como um 'tateamento motor'. Essa correspondência sugerida desde o 'Projeto' avança nos textos da 'segunda tópica', que exige uma concepção de pensamento vinculado ao polo pulsional do psiquismo.

 

Substrato pulsional da linguagem

Um plano fundamental na articulação linguagem-clínica é verificado na reformulação teórica das pulsões, realizada em 1920. A proposta de conceber uma modalidade pulsional como força – pura intensidade sem representação – reflete alguns impasses clínicos. A mudança significativa, nesta retomada teórica, é sua ruptura com a suposição de um plano organizado, exclusivamente, pelo campo das representações. A pulsão de morte insiste em intensidade sem possibilidade de simbolização, o que exige considerar um trabalho anterior ao circuito ordenado do campo das representações: as ‘primeiras ligações’ antes da instauração do princípio do prazer. Fato que implica em um questionamento sobre os caminhos do circuito pulsional. Por um lado, encontramos no pensamento de Freud a definição de que o trabalho da pulsão é o de simbolização e o ato analítico é o de constituir caminhos possíveis de satisfação para as forças pulsionais. No entanto, é preciso também ressaltar que a inscrição da pulsão, no registro da simbolização, pode ou não se realizar. A força pulsional não é totalmente absorvida pelo universo da representação, o que nos leva a considerar que o trabalho pulsional implica em diversos processos de subjetivação, entre eles, o de simbolização. A novidade nesta perspectiva é que somos levados a admitir a presença de registros psíquicos não pertencentes ao circuito das representações inconscientes, o que implica em considerar que os processos subjetivos podem se constituir independentemente do recalque. Neste sentido, a clínica se confronta com aspectos sensíveis que não são regidos pela lógica dos representantes. Desta forma, somos levados a considerar a importância da linguagem em sua dimensão intensiva na clínica psicanalítica.

 

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Endereço para correspondência:
Largo do Rosário, 17 – Rosário
35400-000 – OURO PRETO/MG
Tel.: (31)3551-6022
E-mail: cb.andrade@terra.com.br

RECEBIDO EM: 15/04/2009
APROVADO EM: 27/04/2009

 

 

Sobre a Autora

Cláudia Braga de Andrade
Psicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos.

1 A designação do sintoma histérico como uma expressão psíquica no corpo coloca em cena o difícil diálogo metafísico entre corpo e psiquismo. Este problema-chave na psicanálise ganha uma maior atenção e conceitualização na reflexão metapsicológica da pulsão. Mas, com efeito, a definição da pulsão como um conceito limite entre força e representação não conclui a questão. Uma das grandes dificuldades deve-se ao caráter fronteiriço deste tema, situado entre a psicanálise e a filosofia.

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