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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.66 Belo Horizonte dez. 2013

 

ARTIGO

 

Indizível

 

Unspeakable

 

 

Rosana Scarponi Pinto

GREP - Ensino e Transmissão em Psicanálise
Centro Mineiro de Toxicomania
Academia de Polícia Militar

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa dar uma perspectiva do sintoma a partir de recortes das descobertas de Freud, até o último ensino de Lacan. Há um percurso, que não se realizou abruptamente, entre a abordagem do sintoma como metáfora ao sintoma como gozo, marcado pela primazia do real.

Palavras-chave: Inconsciente, Supereu, Repetição, Gozo.


ABSTRACT

This article aims to give an overview of the symptom from Freud's discoveries, up to the last teaching of Lacan. There is a route, which has not taken place abruptly, between the approach of the symptom as a metaphor to the symptom as enjoyment, marked by the primacy of the real.

Keywords: Unconscious, Superego, Repetition, Enjoyment.


 

 

 

A linguagem é meu esforço humano.
Por destino tenho que ir buscar
e por destino volto com as mãos vazias.
Mas volto com o indizível.
O indizível só me poderá ser dado
através do fracasso de minha linguagem.
Só quando falha a construção é que obtenho
o que ela não conseguiu.

LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H.

 

Freud e Lacan muito se esforçaram em buscar uma melhor compreensão do sujeito e, especificamente, da complexidade do inconsciente. E se Lacan soube estabelecer uma nova lógica para os processos psíquicos do inconsciente, é sempre importante lembrar que o fez a partir da releitura e da contribuição original de Freud, cada um deles respondendo a desafios diversos em épocas diferentes.

Desde os primórdios da psicanálise Freud percebeu a importância da palavra, que incidia tanto na verbalização das recordações recalcadas quanto na ab-reação dos afetos. Ao analista cabia descobrir o que o paciente deixava de recordar, bem como identificar as resistências e comunicá-las ao paciente.

Com o tratamento da histeria, especificamente Anna O., Freud foi percebendo que através da transferência conseguia que a paciente falasse com ele sobre assuntos que não queria falar e que após a fala, os sintomas desapareciam momentaneamente (FREUD, [1893-1895] 1987, p. 62, 64 e 66).

Outra referência citada por Freud, os atendimentos de Elizabeth Von R., constatam que a paciente colocava no corpo o afeto ligado à representação pulsional recalcada. A palavra que não podia ser dita iria para alguma parte do corpo, como um tipo de excitação, tomando o corpo como investimento (FREUD, [1893-1895] 1987, p. 155).

Com Dora, Freud deu prioridade para os sonhos, através dos quais foi deixando que a própria paciente determinasse o tema do trabalho cotidiano, introduzindo mudanças em sua técnica, por perceber que alguma coisa queria ser dita através da palavra e clamava por uma leitura. As histéricas preferiam falar a escutar o analista, a quem a fala era endereçada. As repetições se atualizavam na transferência e se relacionavam a eventos da história da paciente, a lembranças inassimiláveis, portanto traumáticas, em que a sexualidade seria a força propulsora para cada sintoma (FREUD, [1893-1895] 1987, p. 109). O trabalho do sonho seria tornar irreconhecível isso que remete a uma outra cena, na qual o sujeito tem implicação no sintoma. Freud reconhece a responsabilidade subjetiva do paciente no sintoma, que não é algo a ser expulso mas trabalhado.

Vários são os textos de Freud que apontam para uma forma particular de funcionamento do inconsciente, devido ao impossível de representar e de dizer. No capítulo VII da Interpretação dos sonhos Freud descreve como o trabalho do sonho distorce, através de uma lógica específica, as moções pulsionais ativas no psiquismo, todas lutando por encontrar expressão. Mas, referindo-se ao umbigo do sonho, diz que, mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é comum haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade devido à presença de um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar. Nesse ponto onde o sonho mergulha no desconhecido e evidencia uma trama particularmente fechada é onde brota o desejo do sonho em busca de sua realização (FREUD, [1900-1901] 1987, p. 482).

Em A psicopatologia da vida cotidiana ([1901] 1987) Freud relata fenômenos do discurso que, à maneira do sonho, indicam desejos do analisante dos quais ele não tinha notícia. Os lapsos, os esquecimentos e os atos falhos comprometem a fala linear do paciente pela revelação de um saber inesperado. Freud constatou que, mesmo aparentemente absurda, havia uma relação desses acontecimentos com a verdade do sujeito, que demandava uma interpretação.

Ao longo da elaboração de sua teoria, vai percebendo que o paciente podia barrar a evolução do tratamento resistindo à cura, negar a interpretação, ficar obstinado na culpa e nas reivindicações de castigo. Nessa trajetória descobre a tirania do supereu, o masoquismo primário para além do princípio do prazer, fundamentos que iriam trazer grandes efeitos para a psicanálise, com a descoberta fundamental da pulsão de morte.

Esse conceito se opôs de vez à ideia de um mecanismo psíquico que aspira a um apaziguamento e se vinculou com o de gozo como um além do princípio de prazer. O supereu marca o sujeito com um mandamento de gozo, com a troca do prazer por gozo.

Se o gozo tem a ver com a pulsão, é na medida em que a pulsão deixa um saldo de insatisfação que estimula a repetição. O gozo seria a dinâmica, a deriva do movimento pulsional ao redor do objeto ausente da satisfação. Para Freud o objeto da pulsão não tem a menor importância, é indiferente, porque se trata não da satisfação de uma necessidade, e sim do vazio da Coisa, do real. Posteriormente Lacan vai desenvolver o conceito de objeto a, contornado pela pulsão.

Braunstein, psicanalista e estudioso da teoria lacaniana dos gozos, remetendo-se à Carta 52, de Freud, diz que as impressões sem memória que estão no extremo do aparelho e que deverão ser recuperadas (ou não) pelas inscrições posteriores são a inequívoca manifestação de um real originário do sujeito e remetem ao conceito freudiano da Coisa.

Essas impressões do gozo são marcas escritas na carne que se tornará corpo por obra dessa cunhagem. Assim é como o gozo é cifrado. Nesse caos em que está cifrada a experiência vivida não opera a língua dos linguistas, mas alíngua, cuja significação não é a de sentido, mas pura escritura de gozo.

No inconsciente já existe um deciframento, uma tradução dessa escritura primária das marcas do gozo, mesmo que seja num discurso confuso e incoerente que, ao mesmo tempo em que manifesta a verdade, a dissimula, bordeja. Indica-se, assim, uma passagem do indizível para a articulação significante. A intervenção do Outro é que desaloja o sujeito desse real pleno, do paraíso do corpo para introduzi-lo na lei da cultura. Um corpo não fala por si mesmo, é preciso que esteja habitado, de alguma forma, pelo que escutamos como o desejo do Outro (BRAUSTEIN).

Se a teorização de Lacan foi marcada num primeiro momento pela prevalência do aporte linguístico, com a primazia do Outro e do inconsciente estruturado como uma linguagem, seu último ensino é marcado pelo aporte topológico para fazer um contraponto ao inconsciente transferencial, em que a linguagem sobressaía ao gozo. Face à decadência do significante, a topologia borromeana é usada como escrita nodal que prescinde do simbólico e enfatiza o real.

Lacan vai descobrindo que a linguagem existe para gozar, e o gozo precede a linguagem. No Seminário 20, em várias partes de sua obra e com diferentes argumentos, ele diz que o significante não trabalha para o saber inconsciente, e sim para a satisfação e que de início a linguagem não está lá, mas sim a alíngua, como saber, indo bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar. (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 190). Nessa perspectiva, o significante não opera em sua vertente de conexão com o significado, mas conectado à pulsão, ao gozo do corpo. "Falo com meu corpo, e isto sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei" (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 161).

Na perspectiva do último ensino de Lacan, a prática da psicanálise muda significativamente seu foco e ainda é alvo de grandes debates. Sensível ao tratamento que, mesmo fora da experiência analítica James Joyce deu ao sintoma, Lacan passará a considerá-lo, sobretudo, como uma espécie de amarração, com que cada sujeito, tenta cingir o que lhe afeta o corpo. A partir da experiência da análise o sujeito poderá apreender algo desse singular no modo com que lidou, pela via da palavra, com a incessante demanda de seu corpo, percebendo que se trata de seu gozo, seu sintoma.

É assim que podemos novamente retomar Clarisse Lispector, escritora que com seu monólogo interior,

[...] buscou ampliar a percepção da realidade experimentada, refletir sobre o universo feminino, buscando articular a linguagem e o silêncio, apontando para uma realidade que, por estar além das palavras, não é menos real, no entanto indizível (COSTA PINTO).

 

Referências

BARRETO, F. P. Apostilas do curso Introdução à topologia dos nós. 2012.         [ Links ]

BRAUNSTEIN, N. Gozo. São Paulo: Escuta, 2007.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Rua Viçosa, 43/401 – São Pedro
30330-160 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: rosanascarponi@gmail.com

Recebido em: 04/06/2013
Aprovado em: 09/06/2013

 

 

Sobre a Autora

Rosana Scarponi Pinto
Psicanalista. Membro do GREP - Ensino e Transmissão em Psicanálise. Especialista em Políticas de Atendimento aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e do Centro Mineiro de Toxicomania (CMT). Ex-coordenadora do Centro de Referência do Alcoolismo da PMMG, de 2002 a 2010. Professora de Psicologia na Academia de Polícia Militar desde 2011.