Falar sobre gênero e transexualidade exige um esforço muito grande no sentido de situar conceitos relativamente novos e polêmicos da teoria psicanalítica, que ainda estão em elaboração. Quanto à clínica, os desafios também são enormes. Demandam coragem e trabalho dos psicanalistas.
Gênero
Segundo Elizabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), em seu Dicionário de psicanálise, a palavra “gênero” é derivada do latim genus e utilizada para designar qualquer categoria, classe, grupo ou família que apresente os mesmos sinais em comum. Foi empregada pela primeira vez por Robert Stoller em 1964, para distinguir o sexo (no sentido anatômico) da identidade (no sentido social e psíquico). Nessa acepção, gênero designa o sentimento (social e psíquico) da identidade sexual, enquanto sexo define a organização anatômica da diferença entre o macho e a fêmea. Utilizado a partir de 1975, nos Estados Unidos, serviu para os trabalhos universitários de língua inglesa que estudavam as formas de diferenciação que o estatuto e a existência da diferença sexual induzem numa dada sociedade. Tomado por esse ângulo, o gênero é uma entidade moral, política e cultural, formando uma construção ideológica, enquanto o sexo se mantém como uma especificidade anatômica. Robert Stoller pesquisou dentro da perspectiva kleiniana e do ponto de vista da psicologia do self, para considerar os fenômenos da transexualidade e das perversões sexuais, dando essa nova definição para a palavra “gênero”.
Depois disso, os trabalhos universitários norte-americanos, sobretudo os das feministas, que reviram as obras de Klein e Lacan, chegam a afirmar que o sexo é sempre uma construção cultural (um gênero), sem nenhuma relação com a diferença biológica. Daí surge a ideia de que qualquer pessoa pode mudar de sexo, de acordo com o gênero ou papel que se atribui, inclusive para escapar da sujeição que lhe é imposta pela sociedade (Roudinesco; Plon, 1998, p. 291-292).
Judith Butler, nos anos 1990, contribuiu com seus escritos para a cultura identitária do eu, em detrimento de qualquer sujeito universal. Roudinesco e Plon (1998) destacam que os trabalhos mais importantes sobre o estudo de gênero são feitos não por adeptos de uma concepção radical da diferença sexual, mas por historiadores e filósofos mais moderados, que estudaram ora a obra de Freud, ora um período, ora um texto literário, ora um acontecimento a que o gênero pudesse ser aplicado.
Entre esses está Thomas Laqueur (1992), com seu livro Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud. Esse autor, um professor americano de história, propõe que um modelo de sexo único predominou nas sociedades ocidentais da Antiguidade até o final da Renascença e falava da existência de um só sexo, o masculino, do qual a mulher seria uma versão imperfeita. A passagem para o modelo dos dois sexos - que aparece no século XVIII e trata homens e mulheres como radicalmente diferentes e complementares - não se deu em função da ciência, mas em resposta às necessidades políticas fundamentais para a construção da sociedade liberal moderna. Para ele, as diferentes formas de interpretar o corpo e as diferenças entre os sexos resultam não de um conhecimento específico, e sim de produções discursivas explicáveis principalmente dentro de um contexto de lutas e conflitos em que gênero e poder estão em jogo. Indo mais longe ainda, Laqueur (1992) sugere que as teorias sobre a diferença sexual tiveram uma influência significativa no curso do progresso científico e na interpretação de resultados experimentais específicos. É um livro obrigatório para quem se interessa pelo estudo da relação entre corpo, gênero e sexo nas sociedades contemporâneas, em que a ciência e as novas tecnologias reprodutivas recolocam a necessidade de uma profunda reflexão sobre o tema.
Segundo Ceccarelli (2009), para Freud, a sexualidade é fálica, e o sexo “natural” é o masculino. Para Stoller, a libido é feminina e é um estado, enquanto a masculinidade deve ser construída. Por essa razão, há mais pessoas do sexo masculino querendo mudar para o feminino porque o menino tem que se desidentificar com a mãe. O processo da atribuição do sexo ao recém-nascido dá início a uma “identidade de gênero”, que é o resultado do desenvolvimento do masculino e do feminino em cada um dos seres humanos. Há vários percalços nesse caminho. Lacan, por exemplo, acredita que o essencial para a construção da identidade sexual é que seja simbolicamente reconhecida pela palavra do Outro, encarnada por quem acolhe a criança no mundo. Esse reconhecimento inscreverá o recém-nascido na função fálica e o transformará, segundo a anatomia, num ser falante, homem ou mulher (Ceccarelli, 2009).
Ambra (2018, p. 43), ao falar de gênero e identificação, vai propor que “o processo de identificação sexuada pode ser repensado como uma resposta performada ao desejo do Outro”.
Transexualidade
Conforme Ceccarelli (2009, p. 14), o transexual é aquele sujeito cujo sentimento de identidade sexual não concorda com a realidade anatômica, e manifesta uma exigência compulsiva, imperativa e inflexível de “adequação do sexo”, expressão utilizada pelos próprios transexuais. Face à incompatibilidade entre o que são anatomicamente e o que sentem ser, os transexuais relatam a sensação de possuir um corpo disforme, doente, monstruoso; de habitar um corpo que não lhes é próprio. São “inquilinos no próprio corpo”, como os nomeia esse autor. Muitas vezes tomam atitudes auto destrutivas em relação aos próprios órgãos sexuais ou mesmo chegam a atentar contra a vida. Essa “adequação do sexo” leva a um pedido de retificação do nome e igualmente da correção do sexo no registro civil. Os próprios transexuais se diagnosticam e quando procuram o médico, o psicólogo, o psicanalista é no sentido de pedir-lhes a constatação do que eles mesmos querem: um julgamento de que, de fato, ela/ele é um homem/uma mulher. Não demonstram apenas um desejo de pertencer ao outro sexo nem apresentam um delírio sobre isso. Mas têm a certeza de que são do outro sexo. Um detalhe particular da reivindicação desses sujeitos é que a correção sexual solicitada é feita em nome do estatuto social de sua identidade e não como em outros destinos pulsionais em nome do exercício legítimo da sexualidade.
Segundo o autor, há um “momento de hesitação” no investimento libidinal da anatomia da criança “imaginada” em detrimento da anatomia do bebê. Sendo assim, foram bloqueadas todas as possibilidades de despertar a “sensação de prazer nos genitais”. O sentimento de estranheza daí advindo impede que o sujeito tenha relações sexuais satisfatórias, pois a imagem que tem de seu corpo não corresponde ao corpo que é tocado.
Conforme Piera Aulagnier (1991), estudiosa desse tema e citada por Ceccarelli (2009), o transexual realiza na realidade do seu corpo o que fizeram imaginariamente com ele.
Lopes (2017) vai dizer que não há uma relação fixa entre o gênero de alguém e seu sexo biológico no inconsciente. O que tomamos por relacionamentos depende do mito de uma relação ‘natural’ entre os sexos. Mas, no inconsciente, no reino da fantasia, nós nos identificamos não com o gênero, mas com o olhar que primeiro estrutura alguém como sujeito do desejo, procurando reencontrar como um gozo perdido. Daí surgem os procedimentos como os tratamentos hormonais e as cirurgias redesignadoras como solução para a mudança de sexo.
Trago aqui dois casos de transexuais conhecidos pela mídia, que me chamam a atenção. O primeiro é Tammy Miranda, o transexual que, de mulher bonita e sensual, passa a ser homem, filha(o) de Gretchen, cantora brasileira. E o segundo é Chast, que também teve seu corpo mudado para homem, filha(o) de Cher, cantora americana. Sua mãe lhe deu o singular nome de Chastity [Castidade], que depois, como homem, ele passou para Chast [castigo]. Para quem seria esse castigo: para a mãe ou para ela/ele, ou para ambas(os)? As duas mães, que pertencem ao show business, já se submeteram a inúmeras cirurgias plásticas e são o tipo de mulher ultrassedutora. Chast foi uma adolescente e jovem muito obesa, diferente de sua mãe, que mantém um corpo de sílfide. Qual terá sido o olhar dessas mães para suas filhas meninas? Tammy conserva a vagina e diz não ter problema com isso. Quanto a Chast, não consegui maiores dados.
A importância da cultura, da história das mentalidades e o papel da mídia
Lopes (2017) afirma que a mudança em relação a essas novas redesignações não teve origem na área médica ou psicanalítica, mas veio impulsionada pelos grandes movimentos políticos e sociais como o feminismo, as rebeliões de 1968, o enfrentamento da polícia em Stone Wall, entre outros. Essa também é a ideia de Laquer e de Roudinesco, que valorizaram os trabalhos feitos por filósofos e historiadores nessa promoção de uma mudança das mentalidades. Os movimentos de liberação sexual promoveram significativas modificações jurídicas e políticas nas estruturas familiares.
A mídia tem um importante papel na configuração do transexual, porque é muitas vezes através dela que esse sujeito identifica e designa seu desejo de mudança radical do sexo e anseia por uma redesignação sexual. Em todos esses movimentos, a imprensa livre foi essencial na difusão dos novos modos de pensar e proceder. Ao lado da mídia, temos a influência das obras literárias, dramatúrgicas e cinematográficas nessas questões, dentro de uma dada cultura, na elucidação do lugar não só dos que se sentem sem espaço nas classificações de sua identidade, como também na informação para o grande público leigo. Menciono aqui a personagem de Guimarães Rosa, Diadorim, travestida em Reinaldo, desde menina, para pertencer ao grupo de jagunços do pai Joca Ramiro. Temos ainda o personagem de Timóteo, travestido com roupas e joias da mãe, no grande e infelizmente pouco conhecido romance Crônica da casa assassinada, do também mineiro Lúcio Cardoso, ele mesmo homossexual assumido nos conservadores anos 1940.
Como uma curiosidade e para ilustrar a importância da palavra escrita, trago aqui dois fragmentos da mídia. O jornal Estado de Minas, de Belo Horizonte, apresentou uma série de seis reportagens em seu primeiro caderno, durante o mês de agosto de 2022, intituladas genericamente de Vidas em transição (De Emília a David), que abordam a questão da transexualidade. Trouxe também gravado num QR code a história de uma suposta mudança de sexo nos anos 1920 sob o subtítulo Casos pioneiros de cirurgias de redesignação sexual marcaram o mundo assim como a primeira operação de deambiguação de sexo surpreendeu a BH do início do século 20.
No dia 13 de agosto de 2022 o artigo começa assim:
Quem assistiu ao filme A garota dinamarquesa, produção de 2015 baseada em fatos reais, acompanhou a trajetória de Einar Wegener, um homem casado que, ao ser retratado pela esposa Gerda, passa por uma transformação até se tornar uma mulher, com o nome de Lili Elbe. O cenário era Copenhague de 1926, mas a cirurgia foi feita em Berlim, Alemanha. O caso é considerado um dos primeiros do mundo, de mudança de sexo.
O jornalista Gustavo Wernek, que escreveu o artigo, comenta que o novo nome para essa cirurgia é “redesignação de sexo”, intervenção pela qual as características sexuais/genitais de nascença de uma pessoa são mudadas para aquelas socialmente associadas ao gênero em que ela se reconhece.
O texto continua:
No entanto, do outro lado do Oceano Atlântico, a milhares de quilômetros de Berlim e Copenhague, e com nove anos de antecedência, a população de Belo Horizonte já falava sobre a mudançade sexo ao se referir erroneamente à história da jovem Emília Soares (1898-1951, apelidada de Miloca), de 19 anos, diagnosticada com hipospádia (malformação genital que acomete pessoas do sexo masculino). Após uma cirurgia a cargo do médico David Corrêa Rabello (18851-939), Emília se tornou David Soares (David em homenagem ao médico que a operou). Depois disso veio a ser funcionário público e se casou com antiga colega da Escola Normal.
Nas reportagens há relatos de colegas que conviveram com ela enquanto mulher, na Escola Normal e fotos de sua elevada estatura e gola alta para esconder o pomo de Adão que a caracterizava. Vale dizer que o mineiro Dr. David Rabello fez seu curso de especialização em cirurgia em hospitais de Berlim, Alemanha e na França, entre 1912 e 1914.
Seguindo nessa linha da história da luta dessas pessoas por sua redesignação sexual, a reportagem mostra outros casos ocorridos mundo afora, guardadas logicamente as devidas proporções de tempo, espaço, avanços científicos e situações. Na Alemanha nazista, houve uma época em que a intolerância cravou suas garras para tentar apagar da história documentos e a vida de um ser humano. Sob o subtítulo Diferente dos outros, continua o jornal: o alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico e sexólogo, fundou o comitê Científico Humanitário e era considerado pioneiro na defesa dos homossexuais, grupo hoje definido pela sigla LGBTQIAP+. Com o diretor de cinema Richard Oswald, Hirschfeld escreveu o roteiro e realizou o filme Diferente dos outros, que estreou em Berlim em 1919 e é considerado a primeira obra sobre homossexualidade da história do cinema. Não na ficção, mas na realidade, duas vidas se encontraram no Instituto de Pesquisa Sexual em Berlim, onde um grupo de cientistas estudava pessoas trans. No local trabalhava em serviços gerais Dora Richter. Nascida em 1891, ela se chamava na verdade Richard, embora nunca tenha se sentido um homem, havendo relatos de que aos 6 anos tentara arrancar o pênis. Após conhecer o médico Magnus Hirschfeld, Dora foi convidada a fazer parte de uma pesquisa e em 1922 foi submetida a uma orquiectomia (cirurgia para a retirada dos testículos). Sempre sob os cuidados do cientista, Dora teve o pênis removido em uma penectomia. Meses depois recebeu uma vagina artificial. Durante os estudos no Instituto, outras pessoas passaram pelos mesmos processos de Dora, como ocorreu com Lili Elbe. No entanto, Dora foi de fato reconhecida como a primeira pessoa a ser submetida à cirurgia de transição de gênero na história. O destino de Dora permanece uma incógnita. Alguns acham que ela tenha se tornado vítima de estudantes nazistas que atacaram o Instituto, em 1933. Na época, autoridades queimaram documentos, inclusive os registros que falavam sobre a mulher trans.
Seja na Alemanha nazista, seja na conservadora Belo Horizonte de 1912, quando Emília se tornou David, o fato é que em qualquer situação ou tempo, ainda há grande desrespeito pelas pessoas diferentes, quando
[...] o mais importante é que todos tenham direito de viver da maneira mais prazerosa, saudável e confortável como acham que devem, conforme defende o escritor, pesquisador e professor Luiz Morando, autor do trabalho Miloca que virou David - Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939).
Como era de esperar, esse caso ocupou as rodas de conversa na cidade nascente, então com quase 20 anos de existência e foi acompanhado com grande curiosidade através da imprensa da época, tratado com deboche por uns e com muito preconceito e horror por outros.
O mesmo jornal publica, no dia 25 de agosto de 2022 (mais de 100 anos depois da história de Emília/David) a reportagem sobre um programa do streaming (plataforma de filmes, séries e músicas em tempo real de conteúdos) com a chamada “Queer Eye Brasil” estreia prometendo emoção. Netflix traz a versão brasileira do reality show que apresenta cinco homens homossexuais, especialistas em diversas áreas, ajudando pessoas com problemas.
No corpo da reportagem explica-se que esse reality show é um rebbot [reinício] de Queer Eye for the Straight Guy [Um olhar gay para um cara heterossexual], lançado pela Netflix entre 2003 e 2007 ao longo de 5 temporadas. A ideia central do original era trazer cinco homens homossexuais, os fab five [cinco fabulosos], parodiando os fab four (Beatles), para usar suas diferentes especializações - vestuário, culinária e vinhos, arte e cultura, design de interiores, higiene pessoal e cabelo - para ajudar um homem hétero a organizar sua vida. O formato foi revivido, atualizado e expandido em 2018 pela Netflix. Os novos fab five conviveriam por uma semana com uma pessoa passando por alguma dificuldade particular (não mais necessariamente um homem hétero) e a ajudariam a recuperar a autoestima e a reformar seu estilo de vida [...] O projeto brasileiro promete trazer muitas emoções para as famílias brasileiras [...] Os dois casos previstos para a ajuda são de um homem que perdeu a esposa de câncer e uma mulher que não mais se cuida depois do divórcio. Entre os fab ive está um trans que assim se define: Luca Scarpelli. O belo-horizontino está na parte da “cultura”. É publicitário, youtuber, influenciador, surfista, skatista, migrante, imigrante e ator. Viveu na capital mineira até os 16 anos, quando se mudou para São Paulo e de lá, para Portugal. Luca, que começou sua transição de gênero em 2016, adianta:
Ser trans é uma parada que me atravessa diariamente, 24 horas por dia. Eu respiro trans. Mas em nenhum momento eu quero ser o guardião da causa. Isso seria resumir vivências que são muito complexas e plurais em uma pessoa só. Eu quero que as pessoas conheçam o Luca e, by the way, o Luca é trans. Essa é a ordem dos fatores.
A diferença entre as duas épocas é flagrante. O estranhamento e o deboche parecem afastados nessa situação. Essa série visa a tentativa de acabar com os preconceitos sobre os sexualmente diferentes, mostrando pessoas que são destaque na sua área de atuação, capazes de lidar bem com outras pessoas em dificuldade. Mas me pergunto se ainda não há um certo voyeurismo em relação a um grupo determinado. Assim como muitas vezes o racismo é minimizado por uma referência ao exótico, a série pode ter essa interpretação. Mas não deixa de ser válida para enfrentar o prejulgamento dos considerados diferentes.
O que dizer da anatomia?
Stoller (1984) diz que a anatomia não é, de fato, o destino. O destino vem do que os homens fazem da anatomia.
Freud trouxe à luz a sexualidade desnaturalizada e sempre infantil, chamando-a de “a peste” ou maldição do sexo. É pela linguagem que nos inserimos na partilha dos sexos como homem ou mulher e não pela anatomia. A determinação inconsciente da sexualidade, oriunda da inserção da estrutura da linguagem no organismo do ser vivente, deixa aberta a pergunta sobre a maneira como cada sujeito lida com o amor, o desejo e o gozo. Há uma falha central que é de estrutura e para a qual existem respostas coletivas que variam no decorrer da história da humanidade. E há respostas sintomáticas que são singulares a cada sujeito. O fenômeno da transexualidade é bem antigo e paradoxalmente bem atual, pois está na base das concepções atuais de gênero e sexo.
Segundo Miranda (2015, p. 53):
O desejo de mudar de sexo existiu muito antes de surgir o termo ‘transexualidade’. É famoso o caso do Abade de Choisy (1644-1734), que se foi transformando aos poucos numa grande dama, usando adereços femininos como vestidos, colares, até se transformar numa condessa. Não há registro de que ele tenha querido mudar seu corpo e nem sua escolha objetal - as meninas.
No caso de Schreber visto por Freud também não aparece o desejo de mudar de sexo. Foi apenas no advento da medicina genética (1956), quando foi identificada a fórmula cromossômica do homem (XY) e da mulher (XX), que foi possível determinar o “sexo genético” e, assim, se estabeleceram distinções claras entre hermafroditismo, travestismo, as anomalias genéticas e a verdadeira transexualidade.
Diante de tudo isso, temos que nos perguntar: antes de todos esses avanços da medicina e da técnica cirúrgica, e dos estudos da endocrinologia, onde estavam os transexuais? Conseguiam chegar ao orgasmo com a genitália com que nasceram? O ódio do pênis e ao mesmo tempo sua existência impediam que esses sujeitos se sentissem mulher? A presença dos seios impedia que as mulheres se sentissem homem? O que é ser uma mulher e o que é ser um homem? Até que ponto o discurso capitalista, contaminando a ciência, promete um corpo que se adeque à posição sexuada do sujeito, se é que tal adequação é possível? O que se vê é que a posição sexuada de um sujeito não está na forma física. Esse fenômeno sempre existiu, mas o que é novo é a possibilidade de “mudar de sexo”, garantida pelos avanços tecnológicos de nossa época.
A oferta cria a demanda, e a expansão da ciência faz surgir sempre mais recursos para os desejos das pessoas, chegando até o impossível como promessa vã aos que esperam por uma transformação radical.
No Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante, Lacan ([1970-1971] 2009, p. 30) citado por Souto, Silva Jr., Oliveira, Nogueira e Gouveia (2016, p. 199) afirma:
Para ter acesso ao outro sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal, e ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro comum. Sua paixão, a do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. O transexual não quer mais ser significado como falo pelo discurso sexual, o qual, como anúncio, é impossível. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela a cirurgia o discurso sexual, que, na medida em que é impossível, é a passagem do real.
Miranda (2015, p. 57) comenta:
Um exemplo interessante é a entrevista de Lea T., modelo e transexual (filha do jogador de futebol Toninho Cerezzo, craque da Seleção Brasileira, lembro eu) feita por Marília Gabriela. Ao lhe ser perguntado se ela sabia que, após sua cirurgia de ablação do pênis perderia a sensibilidade por problemas mecânicos, responde que sim, mas não lhe importa o orgasmo sexual e acrescenta: “vou gozar de ser mulher”. Para ela não importa experimentar o gozo outro que pode acontecer a qualquer um, independente da anatomia, que se coloque no lugar do significante da falta do outro, mas sim gozar de “não ter mais o atributo masculino para esconder e aí sim, ser uma mulher por inteiro”.
Uma palavra sobre a faixa etária
Os casos de transexualidade aparecem nas várias idades do ser humano, desde precocemente na infância até mais tardiamente. Um dos pontos mais delicados que os profissionais da saúde mental hoje enfrentam é exatamente a questão de quando permitir que pessoas muito jovens façam redesignação sexual através dos tratamentos hormonais e das cirurgias de troca de sexo. É uma solução que precisa ser muito bem pensada e acompanhada também pelos responsáveis pelos menores.
O que dizer dos tratamentos hormonais e das cirurgias redesignadoras de sexo
Com a importância que a subjetividade é vivida hoje, quando cada um almeja ser o que é, de alguma forma propiciada pela própria psicanálise, e com o grande avanço tecnológico da ciência, já é possível pensar em apagar a estranheza que o corpo provoca em certos sujeitos, passando da ordem de ter um corpo à ordem de ser um corpo (Rinaldi, 2012), onde se evidencia a prevalência do imaginário. Mas isso não resolve a questão, porque as mudanças da anatomia não são suficientes para atender a demanda do transexual, que se desdobra em outra, que é a mudança jurídica do prenome nos documentos de identidade, num apelo a uma nomeação simbólica, socialmente legitimada. Segundo Teixeira (2006, p. 71), “as cirurgias não erradicam o sofrimento do gozo, mas promovem o aparecimento de um corpo protético, que no final, não é de homem, nem de mulher”.
Esses questionamentos não pretendem vetar a possibilidade das cirurgias para o transexual, e sim avisar que o sujeito não pode ter garantia de que o sexo determine seu pertencimento a este ou aquele outro sexo, se é que se pode afirmar tal coisa. Na cirurgia pode haver o erro de confundir o órgão (pênis), com o significante (falo). Além disso, não são incomuns os casos de arrependimento, o que é mais complicado ainda.
Quanto às estruturas
Para Stoller, que despatologiza a transexualidade, além de colocar o biológico no segundo plano, há ameaças ao núcleo de identidade de gênero, que se constituem em ameaças ao self e causam defesas conhecidas como perversões. Mas as transexualidades em si mesmas não seriam neurose, psicose nem perversão. Apenas seres humanos que desenvolveram sua identidade de gênero a partir de um núcleo diferente daquele do seu sexo biológico. Mas podem aparecer nas diversas estruturas. Já para Lacan, elas se caracterizam como psicoses associadas a termos ou conceitos, tais como o empuxo à mulher e à não inscrição do Nome-do-Pai. Autores como Marco Antônio Coutinho Jorge e Natália Travassos (2017) propõem que o fenômeno da transexualidade seja hoje considerado como uma epidemia histérica, tendo por base uma dificuldade de ter um corpo que não coincide com a identidade sexual com a qual se reconhecem.
O que pode a psicanálise nesses casos?
A psicanálise tem que dar conta de algo que ela mesma ajudou a construir: a possibilidade da assunção do próprio desejo de cada ser humano, tomado na sua subjetividade.
De acordo com Ayouch (2017, p. 31),
[...] ela pode garantir sua aposta de que há um sujeito que precisa ser escutado exatamente na sua singularidade, acolhido nos seus sofrimentos e angústias e ter elaboradas as suas demandas subjetivas, como possibilidade de simbolização de suas experiências. Tem de ajudá-lo a se subjetivar, se desalienar e se situar no próprio desejo. Tem de acompanhar o sujeito para que ele faça seu percurso individual além dos determinismos das repetições subjetivas e das prescrições sociais’.
Essas mudanças implicam:
se dessolidarizar das avaliações psiquiátricas da transexualidade e denunciar maus-tratos institucionais teóricos e clínicos das pessoas trans;
analisar a contratransferência clínica, teórica e a melancolia de gênero no centro dela;
repensar a diferença de sexos além do binarismo e a partir da multiplicidade;
renunciar a todo modelo etiológico que pretenda ser generalizável.
O autor, que considerei muito pertinente, afirma que
[...] uma ruptura epistemológica surge quando o sistema que servia para abordar o mundo aparece adaptado apenas a uma parte desse mundo. As transidentidades introduzem uma verdadeira ruptura epistemológica: elas revelam que as identificações de gênero definidas em função do aparelho genital designado são um caso particular dentro de uma multiplicidade possível de identificações. Do mesmo modo, a psicanálise da pós-transexualidade deve perpetuar essa ruptura epistemológica em que a binaridade sexual é revelada como um caso particular dentro da multiplicidade das sexuações. Seria assim uma psicanálise em movimento, desvinculada da identidade consigo mesma, desejosa de se renovar com as transformações clínicas’. [...] Enfim, ele propõe que sejamos livres quando se trata de pensar e de acompanhar clinicamente’ (Ayouch, 2017, p. 31).
Acho que essa é uma proposta desafiadora, que nos põe a trabalho e da qual não podemos nos omitir. j