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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.36 no.2 São Paulo jul./dez. 2018
A pele que somos e a pele que sentimos Pele - símbolo - consciência
La piel que somos y la piel que sentimos. Piel - símbolo - conciencia
Iara Galiás YoshinagaI; Iraci GaliásII
IMédica, dermatologista pela FMSCSP (São Paulo, SP Brasil), Professora Doutora em Dermatologia. pela FMUSP (São Paulo, SP Brasil) e Harvard Medical School (Boston, MA USA). E-mail: <iarayoshinaga@icloud.com>
IIMédica, psiquiatra pela UNIFESP, Analista Junguiana, membro fundador da SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e membro da IAAP (International Association fos Analytical Psychology). E-mail: <iraci.galias@icloud.com>
RESUMO
O sistema somatosensorial humano funciona de forma dinâmica. Nossos órgãos recebem e produzem estímulos que são convertidos em informação biológica, necessária para a formação, maturação e funcionamento global do nosso corpo, mente e espírito. O "sentir-se bem, sentir-se com saúde" é uma consequência de vários fenômenos biológicos que envolvem o sistema nervoso central. Neste contexto, serão abordados os papéis da pele, do tato e do toque no desenvolvimento e estruturação da consciência e do que se chama "pele simbólica" ou "pele psíquica".
Palavras-chave: pele simbólica, toque, psicologia analítica, psicodermatologia, fibras tipo C.
RESUMEN
El sistema somatosensorial humano funciona de forma dinámica. Nuestros órganos reciben y producen estímulos que se convierten en información biológica, necesaria para la formación, maduración y funcionamiento global de nuestro cuerpo, mente y espíritu. El "sentirse bien, sentirse con salud" es una consecuencia de varios fenómenos biológicos que involucran el sistema nervioso central. En este contexto, se abordarán el papel de la piel, del tacto y del toque en el desarrollo y estructuración de la conciencia y de lo que se llama "piel simbólica" o "piel psíquica".
Palavras-chave: symbolic skin, touch, analytical psychology psychodermatology, type C fibers.
1. Introduction
Os cinco sentidos clássicos descritos por Aristóteles são decorrentes de uma evolução da nossa espécie, garantem a nossa sobrevivência, desenvolvimento e aprendizado. O tato, um de nossos sentidos mais complexos, vem sendo investigado em pesquisas da psiconeurobiologia realizadas nos últimos 35 anos. No entanto, os relatos clínicos advindos da psicologia reconhecem há muito tempo (ANZIEU, 1988) que o tato e o toque são fundamentais à estruturação e ao desenvolvimento da nossa psique. O tato é o primeiro sentido a se desenvolver no ser humano, ainda na vida intrauterina.
Todos os nossos sentidos são igualmente importantes e integrados. O nosso corpo funciona de uma forma dinâmica, os nossos órgãos sensoriais tanto recebem quanto produzem os estímulos que vão se transformar em informações biológicas necessárias para a nossa formação, amadurecimento e funcionamento global: para o corpo, mente e espírito.
O "sentir-se bem, sentir-se com saúde" é uma consequência de vários fenômenos biológicos que envolvem o sistema nervoso central. Neste contexto, serão abordados o papel da pele, do tato e do toque no desenvolvimento e estruturação da consciência e do que se chama "pele psíquica".
Será realizado um breve resumo das investigações relevantes advindas das neurociências que forneceram substratos neurobiológicos para a compreensão do funcionamento psicocutâneo no contexto da Dermatologia Integrativa. Uma especial atenção será dada às fibras C, às terminações nervosas livres e aos queratinócitos (células presentes nas camadas mais superficiais da pele), cujas conexões podem mediar sensações de toque agradável, o "toque emocional", vital para a sobrevivência e a manutenção da nossa espécie.
2. O órgão pele na dermatologia integrativa
2.1 O que a pele e a psique têm em comum?
Em 1923, Freud postulou que o Ego surge a partir de sensações corporais vividas desde o nascimento, em especial pelo que ocorre na superfície do corpo, ou seja, aquilo que é vivido na pele serve para a construção de um Eu psíquico, "o Ego é antes de tudo um Ego corporal" (FREUD, 1980). Seja no desenvolvimento psíquico inicial do "Bebê de Melanie Klein" (KLEIN, 1991), nos "Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" escritos por Freud (1977) ou no "Estágio do Espelho" de Lacan (1998), é através da observação do nosso funcionamento corpóreo que se apoiam as teorias para a compreensão de como somos "construídos" enquanto sujeitos.
A pele manifesta quem somos e como nos sentimos. Pele e psique são fronteiras entre o "EU" psíquico/corporal e o "outro". A pele estabelece uma fronteira entre o nosso corpo e o meio ambiente, assim como a psique estabelece e diferencia o "EU psíquico" (nosso "mundo interior") do mundo externo. Tanto a pele como a psique nos lembram de que somos seres únicos e indivíduo. Um bom exemplo são as nossas impressões digitais, que nos identificam através da pele. Outro exemplo é a nossa memória, que é absolutamente individual. A nossa memória é construída desde a vida intrauterina, tanto memórias corporais como emocionais. Os nossos registros são continuamente construídos ao longo da vida, atualizados e processados de forma dinâmica, como arquivos em várias linguagens, tais como imagens e sensações.
A nossa pele é um órgão vital de comunicação. Conceitos advindos da psiconeuroimunologia permitiram uma compreensão mais abrangente de como a pele e as nossas emoções se comunicam. As principais evidências anatômicas e funcionais que fundamentaram esses conceitos foram:
1. a presença de fibras nervosas em contato com células da superfície cutânea (queratinócitos) e com células imunológicas presentes na pele;
2. a descoberta de substâncias que traduzem as mensagens do sistema nervoso central para o funcionamento da pele e vice-versa (neuropeptídeos);
3. a existência de uma rede de comunicação dinâmica denominada NICE - rede neuro-imuno-cutâneoendócrina - que está constantemente em contato com as nossas emoções.
A possibilidade de sinergia entre as ciências básicas e a clínica é um importante fator para a compreensão de como a pele e as nossas sensações, vivências e emoções funcionam de forma integrada. Na prática, tornou-se necessário o desenvolvimento de uma linguagem que permitisse o entendimento entre as várias disciplinas médicas e de outras áreas da saúde para a viabilização do atendimento interdisciplinar, uma abordagem integrativa.
Este é o conceito da Medicina Integrativa, e a Dermatologia Integrativa é uma especialização nesta área. Outras terminologias também empregadas com o mesmo sentido incluem Psicodermatologia e Medicina Psicocutânea (KOO; LEE, 2003). Neste artigo utilizamos a terminologia Dermatologia Integrativa (YOSHINAGA, 2011).
O avanço nas neurociências gerou a ruptura de paradigmas, de conceitos cartesianos que "separavam" o funcionamento da psique e do corpo. Neste contexto a pele ganhou um novo status; um órgão do sistema Psico-NICE (SLOMINSKI et al, 2012), uma das principais vias de comunicação e integração mente-corpo-espírito.
A Dermatologia Integrativa aborda o indivíduo através desta "pele psíquica", em que pele é psique assim como psique é pele. Em vez de ser apenas um "envelope" do corpo humano, a pele passou a ser analisada como uma "interface de comunicação", em especial no que diz respeito aos mecanismos neurológicos que envolvem o tato, o toque e as "emoções corporais".
3. Pele - símbolo - consciência
3.1 Prurido: sintoma e símbolo
A sensação de prurido, ou coceira, é uma das queixas mais frequentes em dermatologia, independentemente da sua etiologia. Como representado na Figura 1 (IKOMA et al, 2011), o prurido é uma sensação que envolve: estímulos (endógenos e ou exógenos), vias aferentes e eferentes neuroimunomodulatórias, moléculas (tais como o neuropeptídeo P) e a comunicação do sistema nervoso com a pele. Estudos acerca dos mecanismos neurofisiológicos da sensação do prurido indicam haver múltiplas vias neuronais periféricas, algumas podem ser seletivas (específicas) para o prurido, enquanto outras não (Figura 1). O prurido nos serve de modelo para ilustrar como uma sensação ou sintoma pode ser interpretado simbolicamente no referencial da psicologia analítica. Neste contexto, propomos um modelo que denominamos: "Modelo de Funcionamento Psicocutâneo Integrado" (Figura 2), usando o referencial da psicologia analítica, como descrito por C. G. Jung (2008) e neojunguianos (GALIÁS, 2002). Ao contemplarmos a estrutura da personalidade e o processo de individuação com seus respectivos dinamismos, a pele simbólica concreta e abstrata é imprescindível ao nosso funcionamento e desenvolvimento.
Teorias psicodinâmicas levam em conta a existência do inconsciente. Pressupõem uma consciência estruturada a partir desse inconsciente. Jung concebeu os arquétipos como matrizes de comportamento herdadas enquanto espécie. Descreve o que denominou Processo de Individuação como o processo pelo qual esses arquétipos conduzem o nosso desenvolvimento na segunda metade da vida. Neojunguianos, como Carlos Byington (2002), estenderam o conceito da estruturação da consciência pelos arquétipos desde a nossa concepção.
Assim, temos um Self, inconsciente, que contém os arquétipos, que estruturam nossa consciência através de símbolos. Estes são os mediadores entre a nossa consciência e o nosso inconsciente, nosso Self. Esse é nosso eixo Ego-Self. Byington ainda concebe o que denomina as quatro dimensões estruturantes desse eixo, percorridas pelos símbolos. Uma delas é o corpo, e cada órgão do sentido opera de inúmeras formas como símbolo e função estruturante (BYINGTON, 2002). Assim, todo o nosso corpo é altamente simbólico, ou seja, ele é uma via natural de acesso de nossos símbolos à nossa consciência.
Jung fala da sombra, instância psíquica para onde vão os símbolos que, por alguma razão, sobrecarregam o eixo, fragilidade egoica para a força de determinado símbolo ou por defesas que não foram para a consciência. Esses símbolos contidos na sombra, ao tentarem entrar no campo da consciência, geram os sintomas pela presença das defesas. Assim, todo sintoma é também simbólico. Daí Jung ter afirmado que o sintoma também aponta um caminho a ser percorrido para a sua compreensão simbólica. Somos animais com funcionamento simbólico, dentro das caraterísticas gregárias de nossa espécie. A nossa intersubjetividade, característica fundamental do nosso funcionamento, nos torna interdependentes durante toda a existência. Para essa vinculação eu-outro, contamos com um repertório variado, para o qual diferentes autores designam diferentes nomes.
Ninguém nasce, em nossa espécie, com uma autoimagem já constituída. Essa autoimagem vai se formar mediante o espelhamento e troca com os nossos cuidadores primários. Assim, para essas primeiras experiências, tão fundamentais para a formação de uma base, de um alicerce emocional saudável e seguro, o tipo de interação mãe(cuidador/a)-bebê ocupa um lugar de destaque. Essa mãe é um arquétipo, uma matriz relacional, presente em todos os cuidadores primários. Freud vai chamar a atenção para o que ocorre descrevendo a formação do narcisismo primário. Bowlby (1969) descreve a formação do tipo de vínculo constituído, com a "Teoria do Apego". Neumann (1973) fala da importância da relação primal entre o bebê e a mãe. Para a nossa compreensão, essa é a vinculação eu-outro regida pelo arquétipo da grande mãe, como denominou Jung. Desse vínculo eu-outro, na matriz vincular do arquétipo da grande mãe, vai depender a estruturação do nosso narcisismo primário saudável de Freud, ou a formação de um apego seguro de Bowlby, ou uma boa relação primal de Neumann. É na dependência de uma bem-sucedida experiência nessa fase de vida que se forma uma boa autoimagem, colorida de valores positivos, matriz de uma autoconfiança segura. Nessa fase da vida o corpo é a via régia dos símbolos para a estruturação da nossa consciência. A pele será o órgão de máxima importância para essa troca entre bebê e cuidador primário, através do toque. A comunicação entre bebê e cuidador é bastante corporal, sendo o olhar e o tato as principais vias para esse contato. Toda a estruturação da consciência nessa fase, regida pelo arquétipo da Grande Mãe, é preponderantemente corporal, requerendo proximidade física, carinho, proteção para ser bem-sucedida. Esse contato corporal se dará muito através da pele, do olhar e da tonalidade afetiva da fala do cuidador. Assim, atividades como banho, massagens, dar colo, enfim, proximidade física, são fundamentais. É através desse espelhamento positivo e nutrição afetiva que o bebê pode construir uma autoimagem positiva, que possibilitará a sua autoconfiança saudável.
Na estruturação da consciência do arquétipo do pai, a simbólica ativada é a do mundo dos limites, da separação dos opostos (BYINGTON, 1987). Associa-se ao que Freud chamou de fase edípica. O corpo passa a reconhecer limites, passa a reconhecer o que é a pele de um e a pele do outro. Há um papel importante da pele nessa estruturação, uma vez que é a pele o órgão que delimita o corpo. Ou seja, é a pele que vai separar o interno e o externo, o eu e o outro. Discrimina as polaridades quente e frio, áspero e macio, pontudo e redondo etc.
Na estruturação de alteridade, pelos arquétipos do animus e da anima, o eu e o outro buscam o encontro simétrico e dialético. É na alteridade que se busca a identidade profunda, a própria criatividade. É quando se buscam os parecidos e os diferentes, tentando encontrar um novo grupo, desta vez por escolha própria, é quando se busca o que denominamos a família psicológica. E novamente a pele carrega forte simbólica. É quando podemos "trocar de pele" com o outro, ou seja, se colocar na pele do outro, empatizar com o outro. É quando, ao nos sentirmos atraídos pelo outro, pelo parceiro, usamos a expressão " é uma questão de pele" para se falar desse tipo de atração.
Na velhice, quando a consciência é estruturada pelo arquétipo da sabedoria, novamente a pele espelha seus símbolos. As rugas, a diminuição do tônus, a pele sensível, traz cicatrizes apontando para a etapa final de nossa existência, nos preparando para a morte, importante e negada etapa da vida.
Assim, na dimensão estruturante do corpo, a pele é um dos órgãos de grande importância simbólica. Se os símbolos que ela carrega, servindo de comunicação entre o ego e o Self estiverem na sombra, ao eles tentarem entrar no campo da consciência, teremos o sintoma. Como este é simbólico, ele pode ser o caminho para a sua compreensão pelo campo da consciência.
Desta maneira, qualquer sintoma na pele, como por exemplo o prurido, pode apontar para uma simbólica da grande mãe, ansiando por proximidade, contato, aconchego, carinho, afeto. Um sintoma na pele pode apontar para a simbólica do arquétipo do pai, buscando limite, discriminação. Um sintoma na pele pode apontar para a simbólica do animus ou anima, requerendo alteridade, contato simétrico e dialético, buscando a criatividade, a identidade profunda. Um sintoma na pele pode apontar, finalmente, para a simbólica da sabedoria, para a vinculação com o todo, para o grande sentido da vida.
A Figura 2 representa de forma esquemática como um sintoma na pele, tal como a sensação de prurido, é um símbolo que chega à consciência através do eixo Ego-Self. O Self, inconsciente, contém os arquétipos que estruturam nossa consciência através de símbolos.
O prurido, sensação de coceira, pode estar presente em condições fisiológicas, como quando somos picados por um inseto, sinalizando uma lesão. Também está presente nas alergias, nas peles sensíveis e nos eczemas, bastante frequentes em crianças portadoras de dermatite atópica. A dermatite atópica altera o funcionamento imunológico da criança com o aparecimento de lesões cutâneas (eczema atópico) e quadros respiratórios (asma e bronquite). Essas crianças apresentam menor limiar ao prurido, ou seja, ele é facilmente deflagrado, intenso e ocorre também à noite. Com o ato de coçar, as lesões pioram ainda mais, gerando muita angústia aos cuidadores, que se sentem impotentes diante do sofrimento e da fragilidade da criança. É comum se dizer que "trair e coçar é só começar". De fato, o ato de se coçar piora as lesões existentes e gera novas lesões pruriginosas; assim se perpetua o ciclo itching-scratch-itching (coçar-arranhar/machucar-coçar), gerando mais prurido, em um ciclo vicioso que se retroalimenta e é extremamente estressante.
A gravidade e evolução do eczema atópico na criança têm estreita ligação com a forma que os pais, cuidadores, são capazes de cuidar da criança. Por vezes, o excesso de preocupação leva a uma angústia nos cuidadores que os incapacita para ajudar a criança a se acalmar. Mesmo com medicamentos, anti-inflamatórios potentes como corticoides, o quadro crônico e intermitente traz limitações para o convívio e desenvolvimento da criança com outras crianças e na escola.
Por outro lado, famílias bem orientadas, capazes de lidar com essa angústia, conseguem acalmar as crianças. Estas passam a ser mais seguras se tocadas, massageadas com óleos hidratantes de uma forma que as acalme, hidrate a pele, fortaleça o sistema imunitário, minimize o prurido e assim diminua o número e intensidade das crises. Pode possibilitar uma vida mais adaptada ao cotidiano junto a outras crianças e não em uma "redoma" de isolamento e superproteção.
Feldman (2001) psicólogo norte-americano, analista junguiano, estudou crianças atópicas e seus familiares em diferentes contextos culturais. Comparou a evolução clínica de crianças portadoras de atopia em países da América do Norte e da América Latina. Nos países da América Latina, as pessoas se tocam com mais frequência, há um contato físico mais "livre" entre crianças e adultos nas famílias, quando comparado aos hábitos das pessoas da América do Norte. Nos Estados Unidos as pessoas se tocam menos, abraçam-se menos, as famílias "comunicam o afeto" mais por palavras do que por carícias, mantém entre si uma maior distância, com menos pelo contato físico. Esses estudos revelam que nos países latinos, apesar das piores condições financeiras e dos escassos recursos para saúde e educação, as crianças atópicas apresentam quadros menos graves e de melhor evolução após a infância. Um outro exemplo de "toque nutritivo" está na Índia, um país de extrema pobreza: massagens como a Shantala, praticada nos bebês, parece ser de grande valor na nutrição advinda do contato com a intenção de acariciar, acalmar e relaxar.
Um outro estudo comparou o ganho de peso de bebês prematuros internados em unidade de tratamento intensivo (UTI) (FIELD, 2010). Os pesquisadores separaram os prematuros em dois grupos: um grupo de bebês que eram manipulados para os cuidados "técnicos de rotina" (trocar fraldas, limpeza, banho e alimentação) e um segundo grupo, que além de receber os mesmos cuidados do primeiro, também receberam massagem, carícias e atenção "extra". Apesar de terem a mesma nutrição alimentar e de estarem na mesma UTI, o ganho de peso dos bebês acariciados foi superior e mais rápido do que os que não recebiam os cuidados "extras".
4. Pele, tato e toque
4.1 Biologia celular do toque
O Caenorhabditis elegans e a Drosophila melanogaster são seres vivos que possuem um sistema nervoso relativamente simples. Dada a possibilidade de se manipular algumas de suas características genéticas correlacionadas ao seu comportamento, a neurobiologia os utiliza frequentemente como modelo de pesquisa in vivo. (MAGUIRE, 2011; TINBERGEN, 1963; CROLL, 1975). Nesses organismos foram identificadas moléculas necessárias para que haja a sensação do toque e mecanismos pelos quais essas moléculas controlam a sensibilidade a estímulos mecânicos, convertendo força em sinalização celular (mecanotransdução) (LUMPKIN, 2010). Esse sistema envolve mecanoceptores, neurônios sensíveis a forças que bombardeiam constantemente a superfície do corpo e uma sinalização necessária para a movimentação, sobrevivência e procriação desses seres, portanto para a manutenção da espécie.
Estudos acerca dos mecanismos envolvendo o tato e o toque em mamíferos demonstraram que os queratinócitos, principais células na superfície da epiderme, produzem neurotransmissores que têm o potencial para sintonizar a sensibilidade do toque por vias aferentes. Embora os queratinócitos e fibras sensoriais aferentes não formem sinapses, sua proximidade pode permitir uma rápida sinalização parácrina (capacidade de comunicação com as células vizinhas através da secreção de compostos bioativos). Se pensarmos que o C. elegans, um dos menores e mais simples organismos que possuem sistema nervoso, possui um genoma de apenas 100 milhões de bases, enquanto o genoma humano é constituído por 3 bilhões de bases, ou seja, 3 milhões de vezes maior, fica fácil imaginar a importância e a extrema complexidade que envolve o funcionamento sensorial da pele, do toque e do sistema nervoso nos seres humanos.
Toque e Fibras C: detectando o sentimento
O toque é definido como o contato direto entre dois corpos físicos. Em neurociências, "toque" descreve uma sensação especial pela qual o contato com o corpo de um organismo é percebido pela mente consciente.
Alguns toques envolvem um componente motor ativo - acariciar, tocar ou pressionar -pelo qual uma parte do corpo é movida sobre outra superfície. Os componentes sensoriais e motores do toque são conectados e integrados no cérebro e são funcionalmente importantes para deflagrar ou direcionar um comportamento, como, por exemplo, um deslocamento. Seja um deslocamento para se afastar de algum estímulo potencialmente nocivo (por exemplo, um predador), ou para se aproximar em busca de alimento, ou para se aproximar de outro ser vivo a fim de se reproduzir. Ou seja, o tato/toque e as sensações advindas desse sentido são extremamente importantes para a manutenção da vida e preservação da espécie.
As modalidades sensoriais do tato são classicamente divididas em quatro: táctil, térmica, pruriginosa e dolorosa. A presença de terminações nervosas livres na superfície da pele (DELMAS et al, 2011) e a transmissão de estímulos por vias específicas sugeriram a existência de uma quinta modalidade, o toque afetivo. O toque que gera a sensação agradável, também chamada de sensação "afetiva positiva" é transmitido através de um tipo específico de fibra C.
As fibras C se dividem em dois tipos: C1, as que funcionam como mecanoceptores de baixo limiar (LTM, Low Threshold Mechanoreceptors) e as C2 que, em contrapartida, possuem alto limiar (HT High Threshold) para deflagração do estímulo (despolarização via canais iônicos) e que se correlacionam com estímulos de dor ou "nocivos" (nociceptores). Esse segundo grupo também está relacionado ao prurido e à sensação prazerosa do toque, ao aspecto afetivo de uma carícia, como o aconchego que um bebê tem ao ser acolhido e sentir a pele da mãe. Logo ao nascer, é esta sensação que geralmente o acalma, o faz parar de chorar diante do "susto" ao sair do útero e ter tido o primeiro contato com o ambiente. Ambiente este muito diferente daquele intrauterino, repleto de líquido amniótico. Ainda que distintos no tocante ao limiar, ambos os sistemas de vias aferentes do tipo C, tanto o de alto como o de baixo limiar, são igualmente importantes para a nossa sobrevivência e preservação da espécie. A necessidade do outro para a sobrevivência caracteriza a necessidade de agregação do ser humano. Somos um dos animais mais frágeis e susceptíveis à morte na ausência de cuidados após o nascimento. Esses cuidados não estão apenas relacionados à alimentação, como a amamentação para a sobrevivência. O contato físico da nossa pele, o ato de ser tocado, massageado e acolhido constituem estímulos importantes para a formação do "EU PELE", que estabelece fronteiras, dando contorno para o meu EU e viabilizando trocas através do contato com outros seres (BOWLBY, 1969).
Os diversos subtipos de fibras C fornecem o substrato para reinterpretarmos a nossa visão de como se dá o processamento somatosensorial humano. A família de fibras C participa de vias neuronais cujas sensações incluem: a dor, a temperatura, o prurido e o toque afetivo (DELMAS et al, 2011).
5. Conclusão e perspectivas
5.1 Além da pele
A dissecção do tato, um dos nossos sentidos, nos leva a refletir sobre a importância da pele na evolução da nossa espécie, como seres humanos cuja característica marcante é a agregação. A nossa pele está além da pele táctil, integra nosso EU somato/emocional, onde "pele é psique e psique é pele".
Jung, em sua primeira conferência, "Fundamentos da Psicologia", faz as seguintes observações: "A consciência é, sobretudo o produto da percepção e orientação no mundo externo, que provavelmente se localiza no cérebro e sua origem seria ectodérmica"; "No tempo de nossos ancestrais essa mesma consciência derivaria de um relacionamento sensorial da pele com o mundo exterior. É bem possível que a consciência derivada dessa localização cerebral retenha tais qualidades de sensação e orientação" (JUNG, 2008).
Fica evidente o fato de a pele ocupar um papel importante na formação da consciência. Cabe ressaltar a embriologia, a origem ectodérmica da pele assim como a do sistema nervoso.
Craig (2003) realizou estudos com dados convergentes que indicam que os primatas apresentam uma área cortical distinta, o córtex interoceptivo, cuja atividade aferente reflete todos os aspectos homeostáticos do estado fisiológico de todos os tecidos do corpo.
Como ilustrado na Figura 3 (McGLONE et al, 2014), essa via de interocepção (aspecto afetivo/social do estímulo cutâneo) inclui :
-
Fibras C Tácteis Aferentes (CT receptors);
-
Lâmina I;
-
Trato Espinotalâmico / Núcleos Talâmicos;
-
Ínsula e áreas específicas do córtex cerebral.
O núcleo talâmico VMpo (posterior ventral medial nucleus) projeta-se topograficamente para o córtex interoceptivo localizado na região marginal dorsal da ínsula (uma "ilha" localizada no sulco lateral e que estabelece íntimas conexões com o córtex cingulado anterior, a amígdala, o hipotálamo e o córtex orbitofrontal) (CRAIG, 1995). Este sistema interoceptivo está associado ao controle motor autonômico que se distingue do sistema exteroceptivo, que orienta a atividade motora somática (mecanocepção exteroceptiva cutânea e propriocepção). A representação cortical interoceptiva gera sensações corporais extremamente distintas que incluem: dor, temperatura, prurido (sintoma/símbolo), toque sensual, sensações musculares e viscerais, atividade vasomotora, fome, sede e "falta de ar". Em seres humanos, uma metarrepresentação da atividade interoceptiva produzida na ínsula anterior direita parece constituir a base para a imagem subjetiva do EU CORPORAL, "corpo material/emocional", como um "ser". Esses achados inseridos no contexto do que Jung postulou sobre a "localização da consciência" nos oferece uma outra perspectiva para a leitura da pele. A pele que nos conscientiza de que "somos", a pele que traduz o que "sentimos". A consciência das sensações geradas pelos diversos estímulos captados pela pele, extero- e interoceptivos, advindos de todas as células do nosso organismo, dá origem a como nos sentimos. Os nossos mais profundos sentimentos estão enraizados na vasta superfície do corpo que nos confere identidade. ■
Referências
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Recebido em: 30/08/2018
Revisão em: 12/12/2018