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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020
A katábasis de C. G. Jung: dos mitos antigos às experiências visionárias modernas
La catábasis de C. G. Jung: de los mitos antiguos a las experiencias visionarias modernas
Pedro Henrique Costa de ResendeI; Mateus Donia MartinezII
IDoutorando em psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mestre em psicologia pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), graduado em psicologia e filosofia pela UFSJ. Membro do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES) da UFJF. e-mail: <pedrohenriresende@icloud.com>
IIDoutorando e mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e graduado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Laboratório de Estudos Psicossociais: crença, subjetividade, cultura & saúde (INTERPSI) da USP e do Grupo de Pesquisa em Experiência Religiosas e Estados Alterados de Consciência (GEALTER) da PUC-SP. e-mail: <mdmartinez@usp.br>
RESUMO
Este artigo buscou revisitar as experiências de katábasis de C.G. Jung, ou, em outras palavras, as experiências de descida ao submundo, ou mundo dos mortos, seguidas pelo retorno ao mundo dos vivos, a anábasis. Em termos psicológicos, essas experiências significam o confronto com o inconsciente e a subsequente ampliação da consciência. Para revisitar as experiências de katábasis de C.G. Jung, resgatou-se, historicamente, a katábasis (1) na antiguidade clássica através da mitologia grega, (2) no período medieval e moderno, por meio das obras de Dante Alighieri, Emmanuel Swedenborg e William Blake, e (3) finalmente, na própria vida de Jung, com ênfase na constituição de O Livro Vermelho. As experiências de katábasis foram de vital importância para Jung e culminaram na gênese da psicologia analítica. ■
Palavras-chave: Katábasis, C.G. Jung, O Livro Vermelho, história da psicologia, vida e obra.
RESUMEN
Este artículo buscó volver a examinar las experiencias de catábasis de C.G. Jung, o, en otras palabras, las experiencias de descender al inframundo, el mundo de los muertos, seguido por el retorno al mundo de los vivos, la anábasis. En términos psicológicos, estas experiencias suponen la confrontación con el inconsciente y la posterior expansión de la conciencia. Para volver a examinar las experiencias de catábasis de C.G. Jung, fue rescatada, históricamente, la catábasis (1) en la antigüedad clásica a través de la mitología griega, (2) en el período medieval y moderno, a través de las obras de Dante Alighieri, Emmanuel Swedenborg y William Blake, y (3) finalmente, en la propia vida de Jung, con énfasis en la constitución del Libro Rojo. Las experiencias de catábasis fueron de vital importancia para Jung y culminaron en la génesis de la psicología analítica. ■
Palabras clave: Catábasis, C. G. Jung, El Libro Rojo, historia de la psicología, vida y obra.
1. Introdução
O termo katábasis foi comumente utilizado na literatura antiga para designar uma descida ao submundo ou a morada dos mortos (DANTAS, CORNELLI, 2019). Diversos heróis efetuaram suas descidas em busca de diferentes elementos. Por exemplo, Héracles desceu ao Hades para cumprir uma de suas 12 tarefas. Teseu e Perítoo efetuaram um percurso pelo submundo para conquistar Perséfone e Orfeu desceu ao Hades na tentativa de resgatar Eurídice, inaugurando a proposta da katábasis nos ritos inciáticos órfico-pitagóricos. Na Odisséia essa trajetória efetuada por Odisseu se associou ao nekyia, ou seja, o rito no qual os espíritos dos falecidos são chamados para revelar o futuro (BRANDÃO, 1987a). Mais tarde, no período medieval e renascentista, a descida foi associada ao inferno cristão, com clássicos como A Divina Comédia, de Dante Alighieri, descrevendo diversos planos do inferno e também do paraíso (ALIGHIERI, 2006). Da mesma forma, a anábasis, ou o retorno da mansão dos mortos, se associou à ressureição na tradição judaico-cristã.
Visionários modernos como Emanuel Swedenborg e William Blake também efetuaram suas descidas ao inferno através de visões e sonhos, escrevendo seus relatos em obras como O Céu e o Inferno (SWEDENBORG, 1987) e O Matrimônio do Céu e do inferno (BLAKE, 2004). Shamdasani (2014) sugere que as experiências visionárias de C. G. Jung ocorridas a partir de 1913 e sua produção de O Livro Vermelho representam uma continuidade dessa tradição. Jung também teria realizado sua katábasis, iniciada em um período de crise pessoal. Nesse sentido, ao refletir sobre esse período de sua vida, de 1913 a 1915, "Jung descreveu esses anos nos quais perseguiu 'as imagens interiores' como a época mais importante de sua vida" (BAIR, 2003, p. 330), pois, como ele mesmo afirma:
Tudo o que fiz posteriormente em minha vida está contido nessas fantasias preliminares [...]. Minhas buscas científicas foram o meio e a única possibilidade de arrancar-me a esse caos de imagens [...]. Procurei transformar cuidadosamente cada imagem, cada conteúdo, compreendendo-os racionalmente na medida do possível e, principalmente, procurei realiza-los na vida (JAFFÉ, 2016, p. 198).
Pode-se compreender, portanto, que, como forma de integrar e dar sentido a todo esse "material" e a sua própria existência, em uma espécie de anábasis, Jung elaborou um projeto científico e proposta terapêutica, a psicologia analítica.
2. A katábasis na antiguidade clássica
Independente da existência ontológica, a perspectiva simbólica junguiana é considerada a ponte epistemológica entre os mundos material e imaterial (PENNA, 2013, p. 140). Assim, o conceito de katábasis pode se associar, simbolicamente, à compreensão da existência de uma dupla natureza no homem, que envolveria por um lado uma dimensão material e, por outro, uma dimensão espiritual. Frente à decomposição da matéria do corpo humano e à possibilidade da morte, são genuínos os questionamentos sobre os limites e sentidos da existência humana. Nesse contexto, as religiões buscam oferecer respostas e rituais para lidar com essas questões sobre a realidade última. A passagem de uma realidade material para uma espiritual, consubstanciada pela morte, representaria então, uma experiência de katábasis e anábasis, ou vice-versa.
Desde a mais remota antiguidade o culto aos mortos vem sendo praticado, tanto por necessidades higiênicas como por respeito aos falecidos e, até mesmo, pela crença de que se os vivos reverenciarem os que já partiram, essa atenção e cuidado poderia aplacar suas más influências sobre o mundo físico. A experiência religiosa presente nesse possível contato com o outro mundo, também pode ser compreendida através do conceito de numinoso formulado por Rudolf Otto (2011), um conjunto de reações emocionais que geram, tanto arrebatamento como estranhamento. O estar próximo de um Nume, como descrito por Hesíodo (1995), em sua Teogonia, gera temor e fascínio, por um lado, assim como terror e medo, por outro. O numinoso é, portanto, "um evento um tanto singular, que por sua profundidade foge à interpretação inteligente" (OTTO, 2011, p. 97).
Da mesma forma, a reflexão sobre o paradeiro dos seres que nos precederam na passagem para a outra margem da vida, sejam os que apresentam bons sentimentos e comportamentos, como bondade, sabedoria, coragem etc. ou aqueles que foram ímpios e corruptos, alimentou a crença em lugares ou espaços específicos para abrigar os diferentes tipos humanos desencorporados. As boas almas seriam encaminhadas para jardins e espaços de bem-aventurança, por exemplo: na Suméria se acreditava na terra de Dilmún, espécie de éden mesopotâmico; na mitologia egípcia havia o Sekhet-Aaru, ou campos de junco, destinado àqueles que passaram pelo julgamento de Osíris; na Grécia Antiga os Campos Elíseos; e na Religião Cristã o paraíso é situado no céu. Em contraposição, os lugares sinistros e tenebrosos são destinados às almas dos homens maus, nas partes mais profundas da terra, dos quais os condenados não podem sair. É interessante notar como os antigos estavam convencidos de que justos e injustos não ocupariam o mesmo espaço depois da morte (SERRANO, 1999).
Também se encontra em muitas culturas a crença de que os falecidos que sofreram e lutaram possuíam conhecimentos adquiridos pela experiência e que poderiam levar esclarecimentos àqueles que se aventurassem a ir ao seu encontro, descendo ao submundo. No entanto, nem todos os povos concordavam sobre esse ponto. Por exemplo, entre os cultos órficos da Grécia Antiga, a alma do homem comum não era mais do que uma sombra, que se esqueceria de tudo ao renascer, pois beberia das águas do rio Lethê, ao passo que o iniciado nos ritos e nos conhecimentos de Orfeu poderia se mover com mais segurança no outro mundo e, tendo acesso à fonte da memória, poderia guardar esclarecimentos para serem utilizados em seu nascimento futuro (BRANDÃO, 1987a).
Alguns dos principais deuses e heróis da antiguidade também seguiram pela jornada de descer ao submundo e retornar ao mundo dos vivos em katábasis e anábasis que refletiam os ciclos da natureza. Foi o caso de Innana na Suméria, Marduk na Babilônia, Rá e Ossíris no Egito, o Megistos Kouros cretense, o Adônis sírio, o Átis frígio e deuses agrários Dioniso e Perséfone celebrados em Elêusis. Entre os heróis, relacionados ao período clássico, Héracles, Teseu, Perítoo, Orfeu e Odisseu realizaram a katábasis com diferentes objetivos. No cristianismo Lázaro e o próprio Cristo desceram à mansão dos mortos. No mundo renascentista, Dante foi conduzido por Virgílio às diferentes moradas das almas (SERRANO, 1999).
O acompanhar dos ciclos naturais, a mudança das estações em contínuo processo de morte e o renascimento associaram a katábasis a diversos cultos iniciáticos. Para Edmonds (2004, p. 113), "a interpretação iniciática é atraente, em primeiro lugar devido à equação comum da história da katábasis com um processo de morte e renascimento". Concordando com essa visão de Eliade que afirma que "a descida para o Hades significa passar por uma morte iniciática, a experiência desse tipo estabelece um novo modo de ser" (1972, p. 27). No processo de iniciação, o homem se integrava à natureza, participando de seus ciclos de renovação, ao mesmo tempo, do ponto de vista da reflexão, era oferecido a ele a oportunidade de transformar suas concepções de mundo e surgir como "homem novo" (BRANDÃO, 1987a).
De todos esses elementos procuramos nos deter na análise da história de alguns heróis da mitologia grega como forma de esclarecer os diversos aspectos presentes na experiência da katábasis. Mesmo antes dessa avaliação, buscamos descrever como os antigos concebiam a estruturação do espaço do mundo dos mortos, no caso o Hades.
Segundo Hesíodo (1995), em sua Teogonia, a transição entre o mundo físico e o submundo se dava pela barca de Caronte sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, apesar de o Hades também poder ser acessado por meio de fendas e cavernas em espaços geográficos específicos. Héracles, por exemplo, desceu pelo cabo Tênaro, na Lacônia, uma das entradas clássicas que dava acesso direto ao mundo dos mortos (BRANDÃO, 1987b).
A entrada do Hades era de uma caverna que funcionava como pórtico, na entrada já se encontrava Cérbero. Esse feroz guardião impedia a saída dos mortos e a entrada dos vivos. Ele era representado como um cão monstruoso com três cabeças e de seu dorso também saíam várias cabeças de serpentes, assim como sua cauda era uma serpente. Passada essa caverna, se encontrava a morada das crianças que morreram em tenra idade, em um espaço contíguo moravam as sombras dos inocentes, condenados e mortos por falsas acusações. Mais adiante vagavam as almas dos suicidas e daqueles que se tornaram desgostosos com a vida. A continuação desse espaço se estendia pelo chamado campo dos suspiros e das lágrimas, onde se concentravam todos os que foram consumidos por Eros e seguiam corroídos por suas penas. Em espaço mais profundo, passando por um bosque de mirtos, estava o lugar destinado aos guerreiros. A partir desse ponto um caminho se bifurcava, à direita conduzia ao palácio de Hades que se deveria passar para chegar aos Campos Elísios e o caminho da esquerda levava ao Tártaro, lugar onde receberiam terríveis suplícios as almas dos ímpios. Nessa bifurcação também se situava o tribunal do submundo, presidido por três juízes: Radamanto, Eaco e Minos. Como juízes severos, mas equitativos, faziam os mortos passarem pelo exame de seus atos, obrigando, inclusive, os criminosos a confessarem seus crimes (HESÍODO, 1995; SERRANO, 1999).
Os Campos Elísios à direita e a ilha dos afortunados eram concebidos como paraísos verdes, cheios de bosques e situados ao oeste do mundo, cercados pelo rio Oceano. Nesses locais se deleitavam as almas dos justos. Já à esquerda, se encontrava o Flegetonte, um rio de fogo em constante fluxo de chamas. Em um recinto espaçoso com colunas também se encontrava um espaço destinado aos assassinos que eram castigados por Tisífone, a vingadora do homicídio, uma das erínias, que açoitava os culpados até enlouquecerem. Imediatamente depois se encontrava o abismo do Tártaro, cuja profundidade é descrita como o dobro da que existe entre a terra e o céu, em seu fundo estavam os Titãs, presos por Zeus.
Na descida efetuada por alguns heróis ao Hades, Martínez (2000) faz uma interessante distinção entre as características e os objetivos envolvidos. Ele destaca três tipos de katábasis: a 1) Hybristiké katabasis, presente nos mitos de Héracles, Teseu e Pirítoo, 2) a katábasis romântica de Orfeu e a 3) chamada katábasis necromante de Odisseu.
O primeiro tipo de katábasis é definido pela hybris, expressão entendida pelos gregos como um contraponto a boa ordem, a atitude que desconhece os limites na sua relação com os outros. O termo acaba por ter diferentes facetas, enquanto Platão entende que há hybris sempre que é superada a medida do justo, Aristóteles a define como a ofensa gratuita pelo prazer de se sentir superior (ABBAGNANO, 2007). A katábasis de Héracles é encontrada em seu décimo primeiro trabalho, a busca do cão Cérbero por imposição do rei Euristeu. Diante do deus Hades, Héracles pediu-lhe permissão para levar o cão monstruoso para a superfície, ao que o deus concordou, desde que Héracles dominasse o animal sem nenhuma arma e sem feri-lo. Sobre esse mitologema Brandão destaca:
A respeito da katábasis de Héracles sabe-se que esta configura o supremo rito iniciático, a morte simbólica, é a condição indispensável para uma anábasis, uma subida, uma escalada definitiva na busca do autoconhecimento, da transformação, do que resta do homem velho no homem novo (1987b, p. 114).
No caso, o encontro com criaturas monstruosas, como Cérbero, dentro de uma perspectiva analítica, diz respeito ao reconhecimento dos resíduos psíquicos inibidores e a sua superação. O rompimento dos limites que, nesse caso, exige um esforço físico.
Na katábasis de Teseu e Pirítoo tambem há elementos de hybris. Os dois heróis haviam descido ao Hades para capturar Perséfone, para que ela desposasse Pirítoo. Teseu é apenas um acompanhante, que retribui um favor ao amigo, pois juntos eles haviam capturado Helena para Teseu. No Hades os dois heróis são convidados a um banquete e cometem dois erros: se sentam à mesa e comem os alimentos oferecidos. Os dois amigos acabam presos em suas cadeiras. Teseu é resgatado, posteriormente, por Héracles. Pirítoo, no entanto, permanece para sempre no submundo. Para Brandão (1987b) essa descida também tem características ritualísticas. Nas culturas antigas o elemento masculino deveria descer ao interior da terra para fecundá-la e assim trazer nova vida à superfície. Sob o ponto de vista da psicologia analítica, encontramos nesse mito a busca do elemento feminino nas profundezas do inconsciente, o resgate da anima do aspecto materno devorador.
No segundo tipo de katábasis, o elemento romântico, em seu sentido mais geral, se destaca como tema central. Temos essa imagem no mito de Orfeu, o poeta filho da musa Calíope e de Apolo. Eurídice, esposa de Orfeu, havia morrido após ter sido picada por uma serpente e o poeta, cujo próprio nome significa obscuro (orphnós), estava destinado a descer as trevas do submundo. A prova de amor de Orfeu comoveu Hades e Perséfone que permitiram o retorno de Eurídice, mas com uma condição: o poeta deveria ir à frente e sem olhar para trás e sua esposa seguiria seus passos. No caminho, Orfeu, vencido pela dúvida se realmente sua amada o seguia, olhou para trás e ela se esvaiu para sempre numa sombra. Segundo Brandão (1987a) após voltar do Hades, Orfeu instituiu um conjunto de mistérios ritualísticos, que eram vedados às mulheres. Em uma das versões do mito, por esta proibição, as Mênades teriam matado Orfeu e seus seguidores. O elemento simbólico dessa katábasis seria representado pela necessidade de desapego, o erro de Orfeu no Hades foi ter olhado para trás, ter voltado ao passado, apegando-se a matéria simbolizada por Eurídice. "Um órfico autêntico jamais retorna. Desapega-se por completo, do viscoso, do concreto e parte para não mais regressar" (BRANDÃO, 1987a, p. 144). Orfeu ainda não estaria pronto para sua junção harmônica e definitiva com sua anima, somente através de sua morte, o supremo sacrifício, ele alcança a liberação.
Para Martínez (2000), a katábasis mais completa se encontra no mito de Odisseu, chamado pelo autor de katábasis necromante, no episódio de Nekya que ocupa a parte central da Odisséia, sendo sua própria essência. Após a Guerra de Tróia, Odisseu afronta os deuses e por sua hybris inicia uma jornada penosa de retorno ao lar. Nesse processo ele será despojado de todos os seus bens e perderá a companhia de todos da sua tripulação, até os seus sentimentos de orgulho e poder serão sacrificados no final. A sua descida ao Hades representa a morte do homem velho e natural para o posterior nascimento do homem esclarecido que já não orienta sua vida pelas glórias do mundo.
Mesmo antes da descida ao Hades, o encontro com Calypso e Cyrce representa o contato com um outro mundo. Essas duas deusas habitavam locais paradisíacos semelhantes aos Campos Elíseos. Porém, tanto Calypso, quanto Cyrce representam uma vida de ilusão. O prazer sem conhecimento que inebria a razão na primeira e a dominação pelos sentidos que transforma o homem em irracional na segunda. No episódio de Nekyia, Martínez (2000) identifica uma necromância, Odisseu deveria oferecer o sangue de animais às almas dos mortos, assim o herói poderia acessar o Hades e obter esclarecimentos. O contato com os mortos, em especial o sábio Tirésias, traz a ampliação da consciência de Odisseu. Pelos conhecimentos adquiridos nesse encontro, o herói conecta toda sua jornada passada ao presente, e ainda tem a previsão de seu futuro.
Nesses três tipos de katábasis encontramos os elementos essenciais da descida ao submundo, ou da busca pelo contato com os espíritos e os Numes. No primeiro, o aspecto de terror, o enfrentamento e a superação dos limites estabelecidos pelo mundo físico. No segundo, o desapegar da matéria para um encontro com os seres que já partiram. E por fim, no terceiro, a integração da individualidade pelo esclarecimento trazido pelos Numes do outro mundo.
3. A katábasis no período medieval e moderno
No período medieval, o mesmo processo vinculado à katábasis dos antigos gregos é revivido na famosa obra de Dante Alighieri (1265-1321), A Divina Comédia. A obra escrita em diferentes momentos da vida do autor teria sido iniciada em 1306, com a escrita do conjunto de poemas sobre o Inferno, no castelo de Val di Magra, tendo sua conclusão em 1321 nos relatos do Paraíso, ano de morte de Alighieri. A obra apresenta uma complexa cosmovisão, revelando não somente uma análise histórica do homem medieval, mas também as vivências internas de Dante no período e as crenças acerca da vida no além.
Shamdasani (2014) destaca a obra como um marco da tradição visionária, a descida aos infernos tem sua introdução no destaque colocado sobre o pórtico da entrada do submundo, tendo a mesma, profundas relações com o Livro Vermelho de Jung. "Abandonai toda a esperança, ó vos que entrais!" (ALIGHIERI, 2006, p. 95). As palavras gravadas em um letreiro escuro desconcertaram o próprio Dante e este solicitou ao seu guia, o poeta Virgílio, que as esclarecesse "aqui toda suspeita é bom deixar, qualquer tibieza aqui não se comporta" (ALIGHIERI, 2006, p. 95), ou seja, era necessário se armar de fortaleza de ânimo e abandonar qualquer expectativa, pois eles iriam confrontar as facetas mais sombrias da experiência humana.
No apocalipse apócrifo de Pedro temos algumas descrições do inferno cristão. Nesta obra Cristo mostra a Pedro que depois da morte as almas são castigadas naquilo em que pecaram em vida, neste espaço do submundo, o apóstolo vê pessoas penduradas em suas línguas e outras com suas línguas em chamas, lagos de lama, nuvens de vermes e assim por diante. Albrecht Dieterich em 1893 argumentou que essas descrições apócrifas bebiam na fonte das tradições órfico-pitagóricas (SHAMDASANI, 2014). A fusão das tradições antigas acerca do submundo e as propostas cristãs atinge seu auge em A Divina Comédia. O próprio Alighieri em carta a Cangrande I della Scala, político de Verona, afirma que a obra poderia ser lida de duas formas. A primeira literal, ou seja, o indicativo dos diversos estratos ou locais para onde as almas podem se encaminhar depois da morte, a segunda alegórica, onde o foco é o homem em seu percurso interior. Podemos avaliar, seguindo a segunda proposta, que, diante do tribunal da própria consciência, o homem que age no bem estaria mais livre e mais confiante para o exercício de sua vontade, enquanto que, aquele que escolhesse o erro ou mal, se sentiria constrangido e perturbado. As diversas imagens apresentadas por Dante no Inferno seriam, nesse caso, representações metafóricas de um estado de espírito de fraqueza, sofrimento e miséria internos. Como uma obra hermética, A Divina Comédia teria diferentes camadas interpretativas (ALIGHERI, 2006; SHAMDASANI, 2014).
Duas figuras que viveram nos séculos XVIII e XIX também contribuíram para a expansão de ideias acerca do estado da alma no inferno e no paraíso: Emanuel Swedenborg (1688-1772) e William Blake (1757-1827). O inferno descrito por Swedenborg tem características semelhantes ao de Dante. Swedenborg foi um cientista e místico sueco, um dos fatos conhecidos de sua vida foi uma crise pessoal vivida por volta de 1740, que culminaram com uma experiência visionária em 1745. Em um dia do mencionado ano, Swedenborg estava sentado em uma taverna em Londres e escutou um estranho dizer para ele que não comesse tanto. Ele voltou para casa e sonhou com o mesmo indivíduo da taverna que se revelou como o próprio Cristo e disse que o levaria pelo céu e pelo inferno, que ele conversaria com os mortos, anjos e demônios e que deveria revelar as pessoas no seu retorno sobre a verdadeira fé. Foi-lhe indicado que anotasse tudo o que fosse visto e ouvido de forma a revelar o significado simbólico da Bíblia. No trabalho de Swedenborg, céu e inferno são estritamente dicotômicos. Os dois, basicamente, estariam em germe dentro de cada ser humano. E após a morte a abertura da porta de um desses locais seria determinada de acordo com as escolhas e ações neste mundo. O amor a Deus e ao próximo seriam a chave para o paraíso, enquanto todos os vícios e erros em relação a Deus e aos outros homens seriam a chave do inferno (SHAMDASANI, 2014; SWEDENBORG, 1987).
Em O Céu e Inferno, Swedenborg (1987) descreve o que experienciou em suas visões. Haveria diversos infernos que poderiam ser acessados por fendas nas rochas, buracos, covas e cavernas. Em alguns a aparência era como de cidades destroçadas por uma guerra, em outros, os aspectos eram de ruínas de monumentos históricos, outros, ainda, se apresentavam como desertos. A diversidade de infernos era proporcional à diversidade de vícios e falhas humanas. Nesses locais as almas se reuniriam de acordo com suas semelhanças, e da mesma forma aconteceria nos diferentes paraísos.
William Blake foi leitor das obras de Swedenborg e desde jovem afirmava ter experiências visionárias. Por certo tempo ele frequentou a igreja de Swedenborg em Londres, no entanto, posteriormente ele criticou a institucionalização das ideias de Swedenborg. Em 1790 ele publicou o livro O Matrimônio do céu e do inferno (BLAKE, 2004). Nesta obra Blake apresenta uma crítica à interpretação de Swedenborg do céu e do inferno, para ele os dois espaços não eram radicalmente inconciliáveis. O problema para Blake é que Swedenborg se fixou demais no céu e em suas conversas com anjos. Para uma visão compreensiva da totalidade seria necessário dar o mesmo peso ao inferno, dialogando com os seus habitantes. O diabo e os demônios deveriam ser entrevistados.
Em seus trabalhos Blake apresenta a tentativa de articular os opostos céu e inferno, como duas polaridades da vida humana também representados por forças como atração e repulsão, razão e energia, amor e ódio. Essas oposições seriam necessárias para que a experiência humana fosse completa. Blake também apresenta sua crítica à religião organizada. Ao final de sua vida, Blake passou a se interessar, cada vez mais, pela Divina Comédia de Dante Alighieri (2006), produzindo uma série de imagens que ilustravam diferentes momentos da passagem pelos infernos e pelos planos do paraíso (BLAKE, 2004; SHAMDASANI, 2014).
Assim como Eugene Taylor (1997) situou as experiências anômalas de Jung dentro da tradição visionária, Shamdasani (2014) buscou localizar O Livro Vermelho em correspondência direta à linhagem dos tratados de Dante, Swedenborg e Blake. A partir de uma crise pessoal iniciada em 1913, Jung também vivenciou sua katábasis, descida aos infernos, experimentando nesse processo uma série dos assim chamados eventos anômalos. O relato dessas experiências contidas em O Livro Vermelho pode ser interpretado da mesma forma que Dante avaliou sua obra, ou seja, de duas maneiras, uma objetiva, na qual se considera a possibilidade de vivências parapsicológicas e outra subjetiva, seu confronto com o inconsciente e a subsequente assimilação de suas imagens.
4. A katábasis de C. G. Jung
Entre 1913 e 1914, Jung realizou um período de autoexperimentação, induzindo fantasias em estado desperto, sua primeira descida ao inferno. Para Shamdasani (2014), a leitura cronológica dos eventos torna clara uma experiência religiosa de recuperação certos aspectos perdidos da vida de Jung. O ponto de contato com a psicanálise e seu subsequente desligamento de Freud tornam-se secundários nesse processo. O autor sugere que a fase de obscurantismo de Jung seria seu período psicanalítico, propriamente. Sua crise a partir de 1913 significaria a recuperação do que ele tinha de mais autêntico, e, por conseguinte, a estruturação de suas experiências em uma nova perspectiva científica, a psicologia analítica.
Nessa época uma fantasia se repetia constantemente para Jung, a ideia de que havia algo morto que continuava a viver. Por exemplo, surgiram experiências visionárias de cadáveres que eram colocados em crematórios, mas, em seguida, descobria-se que ainda estavam vivos. Essas fantasias culminaram em um sonho. Jung destaca:
Eu estava em uma região que me lembrava os Alyscamps, perto de Arles. Lá existe uma alameda de sarcófagos que remonta a época dos merovíngios. No sonho, eu vinha da cidade e via diante de mim uma alameda semelhante, orlada de uma fileira de túmulos. Havia pedestais encimados por lajes os quais os mortos repousavam. Jaziam em suas roupagens antigas, as mãos postas sobre o peito, à maneira dos cavaleiros das antigas capelas mortuárias em suas armaduras, com a única diferença de que em meu sonho os mortos não eram de pedra talhada, mas de modo singular, mumificados (JAFFÉ, 2016, p. 178-9).
No sonho descrito acima, Jung passa em frente ao primeiro túmulo de um falecido do período de 1830, observa suas roupas quando este começa a se movimentar retornando à vida. Jung afirma que isso teria acontecido porque ele o olhara. Com um sentimento de mal-estar, ele continua sua caminhada e se aproxima de outro morto pertencente ao século XVIII, acontecendo o mesmo que antes, o corpo começa a mover-se e o indivíduo volta à vida. Jung percorre uma fileira chegando à frente de um falecido do século XII, vestido com uma cota de malha e mãos postas no peito, era um cavaleiro cruzado, esse também retorna a vida após ser observado por ele (JAFFÉ, 2016).
Para Freud os conteúdos inconscientes eram interpretados como resíduos recalcados da atividade consciente (LAPLANCHE, 2010), ou como cadáveres de um passado esquecido, enquanto para Jung o inconsciente como reino dos mortos apresentava sua dinâmica própria e estava repleto de vitalidade. Esse sonho foi seguido por um desejo de Jung em resgatar algo de seu passado, assim suas brincadeiras de infância foram revividas no processo de construção de pequenas casas, castelos e igrejas nas margens do lago, próximo de sua casa em Zurique. "A construção representava apenas o início. Ela desencadeava toda uma sequência de fantasias que mais tarde anotei meticulosamente" (JAFFÉ, 2016, p. 181).
De acordo com Jaffé, Jung afirma que foi no ano de 1913 que ele se decidiu tentar algo mais extremo:
Sentado em meu escritório considerei cada vez mais os temores que sentia, depois me abandonei à queda. O solo pareceu ceder a meus pés e fui como que precipitado numa profundidade obscura, não pude evitar um sentimento de pânico. Mas de repente, sem que ainda tivesse atingido uma grande profundidade, encontrei-me com grande alívio de pé numa massa mole e viscosa. A escuridão era quase total, pouco a pouco meus olhos se habituaram a ela, que parecia um crepúsculo sombrio. Diante de mim estava uma caverna obscura" (JAFFÉ, 2016, p. 185).
Em outros sonhos do mesmo período Jung apresenta essa descida ao abismo de si mesmo de formas semelhantes: "surgiu em um primeiro lugar a imagem de uma cratera e senti como se estivesse no país dos mortos" (JAFFÉ, 2016, p. 185). A descida ao inferno nas experimentações de 1913 é uma busca por conteúdos perdidos, da mesma forma que fizeram os heróis antigos, Héracles, Teseu, Perítoo, Orfeu e Odisseu. Jung buscava resgatar aspectos significativos, somente acessadas nessa descida ao mais profundo de si mesmo, o que não descarta a possibilidade de eventos parapsíquicos envolvidos no processo. Nesse sentido o próprio Jung considera algumas de suas visões do período como precognitivas, por exemplo, sua visão de 1913, descritas em Memórias e em biografias do autor. Nessas visões uma onda gigantesca atingia toda a Europa, enquanto as montanhas da Suíça se elevavam para proteger o país, as águas então se transformaram em sangue e destroços das obras da civilização boiavam por toda parte (BAIR, 2003; JAFFÉ, 2016).
Para Shamdasani (2009), O Livro Vermelho apresenta dois momentos principais, o primeiro, a aceitação de Jung de seu caos interior e a estimulação de imagens que permitissem um diálogo mais próximo com o inconsciente e, um segundo momento, de acomodação de suas experiências visionárias na psicologia, elaborando e interpretando suas visões. Seguindo a linha histórica composta por Alighieri, Swedenborg e Blake, Jung estabeleceu a forma como a obra deveria ser lida. Por muito tempo ele havia perseguido a ciência, na forma como ela era desenvolvida em seu tempo, na qual muitos conteúdos da experiência humana eram relegados à margem da grande maioria dos estudos. No entanto, para Jung, era necessário um trabalho que abarcasse a totalidade das vivências humanas, o que ele nomeou como loucura ou irracional. Na verdade, algo mais próximo da loucura divina, como listado por Platão em Fedro (2000), ao mencionar os estados alterados das pitonisas em Delfos.
Nessas vivências Jung se encontra com os mortos. Por exemplo, em 12 de janeiro de 1914, ele se viu diante de um emaranhado de corpos humanos. Em 2 de fevereiro, em seus diálogos com sua alma, esta afirma que ele havia chegado ao inferno. No entanto, é em 14 a 16 de janeiro de 1914 que Jung relata uma sequência maior de experiências. Ele se viu em uma biblioteca, onde conversava com o bibliotecário sobre cristianismo, Nietzsche e Goethe, e procurava pelo livro Imitação de Cristo, de Tomás Kempis. Em seguida, ele se vê conversando com uma mulher que lhe pergunta se ele era um ser espiritual. Logo após, formas sombrias aparecem, eram homens que se afirmavam anabatistas, mortos há 300 anos. O líder deles afirma que se chamava Ezequiel e que ele e seu grupo estavam indo par Jerusalém visitar os locais sagrados. Jung pergunta se ele poderia ir com eles, mas seu pedido é negado. Ezequiel afirma que ele não poderia ir junto, porque ainda tinha um corpo.
Nessa época Jung afirma que, em meio as suas próprias trevas, nada mais era desejável do que ter um guia, um guru real dotado de saber para conduzi-lo por entre suas experiências visionárias. Ele afirma: "Foi esta tarefa que Filêmon assumiu e que sob este ponto de vista, nolens volens eu devia reconhecer como 'psicagogo' [psicopompo]. Ele me encaminhou para muitos esclarecimentos interiores" (JAFFÉ, 2016, p. 189-90). No retorno da multidão das sombras dos anabatistas, temos a escrita dos Septem Sermones ad Mortuos.
Boechat (2014) afirma que, dentre todas as aparições e interferências dos mortos do livro vermelho, a principal delas se encontra na terceira parte do livro, Aprofundamentos, quando Filêmon pronuncia os sete sermões aos mortos. A multidão de mortos que vieram de Jerusalém não encontrou o que buscava. Dessa forma, são como que doutrinados por Filêmon, sobre a natureza de Deus, do homem e do destino. Em O Livro Vermelho, fica claro que o autor de Septem Sermones é Filêmon. Diz Jung:
Filêmon aproximou-se de mim com veste branca de sacerdote e colocou a mão sobre meu ombro. Falei então à escuridão. Falai, vós mortos. E logo gritaram em uníssono. Nós voltamos de Jerusalém, onde não encontramos o que procurávamos. Pedimos entrada junto a ti. Tu ansiaste por nós. Não teu sangue, tua luz. É isto. Então Filêmon, levantou sua voz, deu-lhes uma lição e disse (e esta é a primeira instrução aos mortos) (2009, p. 447-8).
Para Boechat (2014), os mortos são uma chave fundamental para a compreensão de O Livro Vermelho. Há a sugestão de que eles precisam ser esclarecidos. "A multidão dos mortos não salvos tornou-se maior que o número dos cristãos vivos, por isso é tempo que nós intervenhamos a favor dos mortos" (JUNG, 2009, p. 297).
Boechat formula duas hipóteses psicológicas para a explicação do papel dos mortos nos diálogos do livro vermelho. Na primeira, ele especula que os mortos somos nós mesmos, que não encontramos respostas adequadas para nossas necessidades espirituais nas religiões oficiais, que de certa forma, se perderam na ritualística excessiva, esquecendo o papel essencial da experiência individual na busca pelo sagrado e sua significação. Para o autor, seria necessário que a religião, especialmente a cristã, resgatasse o seu aspecto gnóstico, ou seja, resgatasse o aspecto humano da relação com o divino. "Uma verdade que volte a fazer sentido para nossas almas e não tenha sofrido o desgaste do ritual automático" (BOECHAT, 2014, p. 1782). As verdades essenciais do cristianismo se encontravam crestadas pelo excesso de especulações filosóficas, o fundo essencial e benéfico havia se perdido por séculos de conflitos. A interpretação dessa primeira hipótese é que o homem, em geral, necessita de um caminho de volta a si mesmo, não o caminho da Jerusalém exterior, mas do sagrado que se encontra internamente. Os mortos seriam os conteúdos da sombra psicológica que voltam pedindo a integração da consciência. Seriam, portanto, partes desvitalizadas da psique, esquecidas do passado, desprezadas ou recalcadas, que pedem socorro.
A segunda hipótese é de aspecto histórico. Jung inicia a escrita do livro vermelho no período da primeira guerra mundial. Na crise europeia, milhares de jovens foram enviados para a morte nos campos de batalha. A morte é um tema cotidiano no inconsciente coletivo da Europa e, provavelmente, do mundo. "O inimaginável número de mortos em toda a Europa invade o imaginário coletivo" (BOECHAT, 2014, p. 1790). A questão da crueldade da guerra, na qual as grandes potências mundiais manipulavam as vidas das massas como se fossem peões em um jogo de xadrez, impactou a população.
Boechat, no entanto, também destaca que "todas essas abordagens são, de certa forma, convincentes. Mas serão elas suficientemente abrangentes?" (BOECHAT, 2014, p. 1793). Ao que ele mesmo responde: "Não podemos esquecer que os mortos, concretamente, interessam Jung desde sua mais tenra infância [...] é sabido que os ancestrais de Jung por parte materna sempre tiveram grande intimidade com as manifestações espiritualistas" (BOECHAT, 2014, p. 1800-1). Em nosso entendimento, é imprescindível considerar a perspectiva parapsicológica na abordagem dos eventos em questão.
Jung afirma que tanta imaginação necessitava de um terreno sólido e que ele deveria voltar a realidade humana. A sua anábasis, marcada pela compreensão científica, era, então, uma necessidade psicológica. Nesse sentido, ele sentiu a urgência de tirar conclusões concretas dos acontecimentos inconscientes e isso se transformou na tarefa e conteúdo de sua vida (JAFFÉ, 2016). Jung ainda completa: "Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos que inicialmente me inundava: era a matéria prima para a obra de uma vida inteira" (JAFFÉ, 2016, p. 204).
O processo de katábasis vivenciado por Jung o levou à compreensão do próprio processo psicoterapêutico. A exploração de imagens em O Livro Vermelho são uma tentativa de reconciliação entre a ciência de seu tempo e as transformações internas de seu confronto com o inconsciente. Um diálogo entre o espírito do tempo e o espírito das profundezas. A partir dessas vivências, Jung conduziria seus pacientes através dos passos que ele mesmo havia trilhado. Transformando a prática da psicoterapia em uma espécie de rito iniciático de descida ao submundo. Como indicado no Aion (JUNG, 1979), essa descida é parte do processo fundamental da individuação, representado na tradição cristã pela descida de Jesus a mansão dos mortos e sua subsequente subida aos céus no terceiro dia de sua ressurreição. Shamdasani (2014) aponta que no trabalho de Jung de 1934 apresentado em Eranos, Arquétipos do inconsciente coletivo, ele argumentou que o processo simbólico somente é possível quando o ego entra em relação estreita com a imagem, seja ela qual for, quando nenhum obstáculo é oferecido, o que seria o correspondente de uma renúncia temporária da individualidade consciente às forças inconscientes. Esse processo, no entanto, oferece riscos à consciência, principalmente, se essa sucumbe totalmente à pressão das forças inconscientes. Porém, quando bem-sucedido, se estabelece um estreito diálogo do ego com a imagem, há abertura para o desenvolvimento da personalidade, ou em outras palavras, para a individuação, a modificação da psique, de suas disposições e atitudes frente ao mundo (JUNG, 1975).
5. Conclusão
O termo katábasis foi utilizado na literatura clássica em referência à descida ao submundo que diversos heróis efetuaram. Neste artigo recorremos a alguns exemplos como forma de esclarecimento do sentido simbólico do termo. O conceito em suas diferentes formas, hybristiké, romântica e necromante, tem em comum com as pesquisas psíquicas o processo de ampliação da consciência. Nessa descida, ou entrada no outro mundo, encontramos diversas camadas possíveis de interpretação. Do ponto de vista da psicologia analítica, elas significam o enfrentamento dos impedimentos pessoais, a aquisição de conhecimento e a assimilação de emoções profundas, enfim, a reestruturação da individualidade. Jung destaca:
O nekyia não é uma queda titânica, sem sentido e puramente destrutiva, mas uma katabasis eis antron cheia de sentido, uma descida a caverna da iniciação e do conhecimento secreto. A jornada através da psique humana tem a finalidade de recompor o homem como um todo, despertando a memória em seu sangue (1971, par. 213).
Da mesma forma, resgatamos experiências de descida ao mundo dos mortos efetuada por literatos e visionários como Alighieri, Swedenborg e Blake. Todas essas experiências servem de parâmetro para as vivências de Jung do período de 1913-1930, também chamado de confronto com o inconsciente. Nessa época temos a produção de O Livro Vermelho, obra de inestimável valor para a psicologia profunda, que também deve ser compreendida como pertencente a uma tradição visionária.
O Livro Vermelho pode ser interpretado como a descrição de um processo iniciático. Como expressam Hillman e Shamdasani:
Descendo no interior de suas próprias profundezas, [Jung] encontrou imagens que, de alguma forma, o tinham precedido. [Foi] uma descida a ancestralidade humana. [...] Isso não é mera metáfora [...] Quando ele fala dos mortos, ele quer dizer os mortos. Eles estão presentes em imagens. Eles ainda continuam a viver (2015, p. 12).
Concluindo, Jung efetuou sua descida ao submundo e retornou, elaborando o material recolhido em uma teoria rica em esclarecimentos sobre a psique. A psicologia complexa estabelece a descida do indivíduo em busca de si mesmo. Mais do que uma linguagem figurada, a descida ao submundo representa o encontro com a ancestralidade, a morada dos mortos. ■
Referências
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Recebido em: 25/02/2020
Revisão 30/06/2020