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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

Viveremos em um mundo mais anímico após a pandemia?

 

¿Viviremos en un mundo más anímico después de la pandemia?

 

 

Claudia Morelli Gadotti

Psicóloga clínica, Mestre em Psicologia Profunda pela Pacifica Graduate Institute, CA, USA, membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e International Association for Analytical Psychology (IAAP). email: <clamgadotti@gmail.com>

 

 


RESUMO

Partindo da ideia hillmaniana de afinidade entre a alma e a morte, o presente trabalho faz um questionamento se a experiência vivida durante a pandemia de Covid-19 poderá ser uma oportunidade de um mundo mais anímico. Acreditando que a alma em uma sociedade competitiva se des-erotiza e fica refém do complexo de poder, a questão que se levanta é qual seria o caminho para esse resgate nesse momento de trauma coletivo. Para discorrer sobre isso, a autora amplifica o mito de Eros e Psique tentando, através de sua dinâmica, compreender como a narrativa nos orienta na busca de eros e, consequentemente, de resgate da alma. O Brasil é o cenário onde se desenvolve essa leitura e interpretação.

Palavras-chave: Eros, poder, alma, materialismo, Brasil.


RESUMEN

Partiendo de la idea hillmaniana de afinidad entre el alma y la muerte, el presente trabajo se pregunta si la experiencia vivida durante la pandemia de Covid-19 podría ser una oportunidad para un mundo más anímico. Creyendo que el alma en una sociedad competitiva está deserotizada y rehén del complejo de poder, la pregunta que surge es cuál sería el camino hacia este rescate en este momento de trauma colectivo. Para discutir esto, la autora amplía el mito de Eros y Psique, tratando a través de su dinámica de entender cómo la narrativa nos guía en la búsqueda del eros y, en consecuencia, del rescate del alma. Brasil es el escenario donde tiene lugar esta lectura e interpretación.

Palabras clave: Eros, poder, alma, materialismo, Brasil.


 

 

A poesia está guardada nas palavras -

é tudo que eu sei

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades

Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Sou fraco para elogios.

(Barros, 2013, p. 374)

O conceito de arquetípico como qualificador de uma experiência atemporal, universal e profunda permite-nos compreender a vivência coletiva mobilizada pela pandemia de coronavírus sob essa perspectiva. Assim como em outros períodos de crises mundiais, o que nos chega nesse momento de trauma social é um substrato humano com experiências bastante semelhantes. Sentir-se atemorizado, solitário e enlutado são algumas dessas qualificações arquetípicas. No entanto, apesar de semelhantes, não são iguais. A metáfora tão difundida pelas vias de comunicação de que estaríamos no mesmo barco, não é de fato verdadeira como tantos já atestaram, especialmente em um lugar com tantas desigualdades sociais como é o caso do Brasil. Além disso, a própria criatividade da psique faz com que busquemos soluções e significações próprias para problemas coletivos, sendo que nossa individualidade vem dessa interpretação única que cada um de nós faz de uma experiência arquetípica (HILLMAN, 1984). Refletir sobre a questão postulada no título desse trabalho será, portanto, a voz da minha individualidade.

Para desenvolver essa reflexão, tenho como base um dos principais postulados da Psicologia Arquetípica de James Hillman (1976), o de que a alma se aloja onde se encontram nossas maiores aflições. Trazemos conosco a todo o momento a consciência e o sentido da morte. Dentro desse raciocínio, estaríamos nesse momento de pandemia, vivendo um contexto propício para o que Hillman (1976) denominou de cultivo de alma, uma vez que a terrível vivência de dor e morte pela qual passamos, mostra-se como uma oportunidade de aprofundamento na experiência dando-lhe consequentemente um significado anímico. Submetidos ao triste espetáculo de tantas mortes diárias estaríamos mergulhados na mais rica fonte de alimentação anímica. Será?

Antes de começar esse raciocínio, é necessário situar o que entendo por alma, termo tão amplo como controverso. O conceito de alma dentro da psicologia analítica nos remete inicialmente ao conceito de anima desenvolvido por Carl G. Jung. Para Jung (1956) a anima é a contraparte feminina inconsciente na psicologia consciente do homem. De forma simples e resumida, o homem vive na consciência um tipo de atitude mais racional enquanto a mulher tem uma atitude consciente emotiva e acolhedora. O trabalho de desenvolvimento da consciência seria, portanto, o de integrar esses aspectos contrassexuais inconscientes. "Da mesma forma que a anima se transforma em um Eros da consciência mediante a integração, assim também o animus se transforma em um Logos" (JUNG, 2014, par. 33). Conceituação por si só datada, polêmica e facilmente refutável. A definição tradicional junguiana de anima elaborada no século passado, com forte influência da mentalidade sexista da época, mas também com claras notas da subjetividade de seu autor, coloca a mulher como depositária de um tipo de consciência diversa da do homem: homens pensam, mulheres sentem. Embora colocado de forma reducionista, foi essa dicotomia que prevaleceu na teoria junguiana dos últimos anos. Uma leitura mais minuciosa da obra de Jung indica, no entanto, que o conceito de anima já pode ser compreendido de forma mais ampla, mesmo em seus escritos. A anima não apenas é a contraparte feminina no inconsciente do homem, mas também é o "arquétipo da vida" (JUNG, 1956, par. 678). Ao afirmar que a anima "é a vida atrás da consciência que não pode ser completamente integrada a ela, mas da qual a consciência emerge" (JUNG, 2000, par. 57), Jung nos convida a uma leitura da anima como o próprio arquétipo da psique. No entendimento de alguns pós junguianos, como Suzan Rowland (2002) ou o próprio James Hillman (1985), pensar a anima sob perspectiva arquetípica não é compreendê-la apenas no seu aspecto contrassexual, mas sim entendê-la como universal e atemporal, como a própria definição de arquétipo enunciada por Jung (1986), não podendo ser atribuído apenas a um sexo. Nesse sentido, simpatizo com a ideia de anima trazida por Hillman (1976), conceito quase intercambiável com alma e psique. Anima como alma, instância que nos dá profundidade e significados às experiências da vida, nosso campo psicológico em si.

Mas diferente de Hillman (1985) e sintônica com Jung (2014) entendo também a anima vinculada a uma dinâmica matriarcal onde eros prevalece sobre o poder. Anima como inclusão, antídoto da competição selvagem e excludente. Anima como movimento de recolhimento e introversão, opondo-se ao chamado frenético do mundo externo rumo à realidade concreta. Anima como guia de imersão no mundo imagético desenvolvendo nossa linguagem simbólica e, portanto, psicológica. Assim sendo, será desse feminino arquetípico, que aqui passo a denominar de alma, que esse ensaio tratará.

O contexto gerado pela pandemia mobilizou reflexões das mais diversas entre as quais a consciência do quão reduzido é o espaço cultivado no cotidiano contemporâneo para a alma, trazendo até mesmo um certo frescor de esperança de que essa dimensão seria finalmente ampliada. Folha de São Paulo, um dos mais importantes jornais do Brasil, publicou uma pesquisa (SANT'ANNA, 2020) onde indagava a uma amostra de 2.056 brasileiros se eles acreditavam que se tornariam pessoas melhores depois da pandemia. Os 73% dos entrevistados responderam que sim. A resposta esperançosa deve-se provavelmente a diversos fatores, mas o que me parece ter sido um denominador comum aos sentimentos que emergiram foi a impressão, nos primeiros dias de quarentena, de que o materialismo pragmático do mundo contemporâneo iria finalmente à falência com a necessidade imperiosa do isolamento social. Mais do que recursos materiais, a lógica do afastamento demandou que se potencializassem recursos humanos para vencer o coronavírus. A pandemia estaria mobilizando a necessidade humana de se relacionar amorosamente, pois sem empatia e colaboração não sairíamos dessa situação emergente de saúde pública. O vazio das ruas deu lugar a uma "epidemia" de solidariedade entre vizinhos e a uma proliferação virtual de expressões artísticas com mensagens de esperança e fraternidade. Com o consumo de insumos tóxicos reduzido, as águas dos rios tornaram-se mais límpidas e o ar menos poluído. As redes sociais tornaram-se a mesa de confraternização de uma grande família que agora não mais se resumia aos familiares próximos de cada indivíduo, mas a todos os cidadãos ao redor do mundo que, assim como cada um, também estavam nas suas cavernas privativas protegendo-se do inimigo em comum. A sombra coletiva agora projetada no vírus tornara-se explícita e palpável. Num paradoxo típico da pós- modernidade, nunca estivemos tão próximos a nossos irmãos ao redor do mundo quanto nas primeiras semanas do isolamento. A tecnologia e a globalização tiveram um papel fundamental nessa irmandade e, consequentemente, nessa esperança de um mundo mais anímico, criada nesse primeiro período. Mas, o que realmente clamava por mudança, a ponto de transformarmos a agonia de milhares de mortes em esperança de um mundo melhor?

Uma das hipóteses para essa expectativa promissora no início do isolamento pode ser atribuída à sensação de que uma espécie de memória coletiva do período da história da humanidade foi reativada, época em que o consumo não guiava de forma onipresente os comportamentos humanos. A experiência dessa imagem inusitada originou a pergunta esperançosa se esse não seria o momento onde o capitalismo predatório teria finalmente se exaurido, encerrando uma dinâmica anacrônica da qual somos todos cúmplices. Um sistema de funcionamento onde o homem contemporâneo age com os mesmos comportamentos de nossos ancestrais que viviam em uma época de escassez, quando a competição entre humanos caçadores se justificava e a relação predatória se instalou. (RIBEIRO, 2019). A lei do mais forte era coerente com as condições precárias de sobrevivência do homem paleolítico. A masculinidade bélica de Ares, com toda sua agressividade combativa, se fazia de fato necessária. Mas, hoje se observa homens caçadores guerreando entre si num cenário de excesso e abundância de recursos. As defesas, antes criativas porque adaptativas, tornaram-se destrutivas e incoerentes.

No entanto, ao mesmo tempo em que a fartura e o excesso nos definem enquanto homens da pós-modernidade, também a má distribuição desse potencial é igualmente verificada. No cenário mundial, e fortemente no Brasil, os recursos apesar de fartos não se disponibilizam a todos. O acúmulo de riquezas e a má distribuição de rendas são os personagens principais dessa novela que diariamente assistimos no cenário capitalista. Somar e não dividir, excluir ao invés de incluir, discriminar para diferenciar-se e assim certificar-se cada um do seu valor. A soberania capitalista é onipresente, levando seus mandamentos, que imprimem medidas quantitativas e hierárquicas, para todas as esferas do convívio humano. Nas relações amorosas não podemos "estar por baixo", ou "ser menos". Com nossos filhos não podemos ceder, mas sim fazê-los obedecer, respeitando a ordem hierárquica de poder. Também nas redes sociais busca-se o lucro, no Facebook deseja-se receber um número maior de likes, e no Instagram não basta ser feliz, ostenta-se ser a mais feliz das pessoas. Até mesmo a felicidade subordina-se à grande primazia capitalista. Convive-se diariamente com a asfixia da alma gerada por esse mercantilismo onde as palavras de ordem são entre outras competir, vencer, acumular e excluir. Palavras que reduzem o universo da alma. Assim como na síndrome respiratória causada pelo coronavírus, também nos sentimos asfixiados com a falta de ar/alma (pneumo) que é o sopro da vida.

(...) A palavra grega psyche tem um parentesco muito próximo com esses termos, e está ligada a psycho, soprar (...) Estas conexões nos mostram claramente que os nomes dados à alma no latim, no grego e no árabe estão vinculados à ideia de ar em movimento, de 'sopro frio dos espíritos'. (JUNG, 1986, par. 664)

Competir, vencer, ter e ser mais. O poder se sobrepõe a Eros. A educação de crianças, os relacionamentos amorosos, as amizades e as múltiplas relações com o Outro se edificam sobre o poder, onde naturalmente haveria de reinar eros. Importante relembrar que para Jung (2013a) eros é entrelaçamento e relacionamento, diferente de Logos que é discriminação e desapego. A lógica materialista e perversa desse capitalismo predatório inverte a natureza das relações. Relacionamentos humanos de alteridade não dialogam com poder, mas se assim for, serão relações de submissão, dominação e medo. O poder como força arquetípica legítima deveria restringir-se a um determinado espaço nas relações humanas, mas extrapola sua abrangência derramando-se sobre todas as outras esferas de trocas entre as pessoas. "O poder é um demônio tão grande, antigo e primordial quanto Eros" (JUNG, 1983, par. 42).

Eros, subjugado pelo poder, desvia-se de seu caminho de aproximação criativa entre as pessoas, tornando-se ele mesmo um instrumento de submissão, por exemplo, através das relações de prostituição e violência doméstica. Eros, a força arquetípica que com suas flechas aproxima as pessoas e une-se a Psique (à alma) não se faz presente, fazendo com que estejamos em um mundo des-erotizado e consequentemente des-almado. No conto de Eros e Psique de Apuleio, Psique busca Eros e este se humaniza na união com Psique. A alma/psique sofre enquanto não encontra Eros. Dessa forma, em relação à indagação inicial, estar em um mundo des-erotizado, cuja dinâmica predominante é a competição e o poder, é estar em um mundo onde a alma de fato não encontra seu espaço. O progresso material é um vírus que na sua eficiência burocrática paralisa os pulmões da alma. Richard Tarnas (2007) assinala que diferente do mito do progresso, o mito da queda postula que o mundo ocidental moderno encena uma tragédia, pois vive um empobrecimento da vida humana, onde a alma agoniza por se encontrar em descompasso com o sagrado. O mundo desalmado e des-sacralizado é um projeto que foi à falência, pois é um mundo sem recursos anímicos para lidar com as urgências humanas, por exemplo, num cenário de pandemia.

Admitir a modernidade significa declarar-se voluntariamente falido. É fazer uma nova espécie de voto de pobreza e de castidade, e até mesmo renunciar - o que é ainda mais doloroso - à aureola de santidade que sempre exige a sanção da história. O pecado de Prometeu foi ficar sem história. Neste sentido o homem moderno é pecador. (JUNG, 2013b, par. 152)

A alma do mundo (anima mundi) precisa ser resgatada do seu sufocamento, de sua falta de ar, do enrijecimento de seus pulmões e, para isso, a troca erótica das psiques individuais é necessária. A alma trancafiada no materialismo do cotidiano precisa encontrar nas relações amorosas sua maior expressão. No mito de Apuleio, Psique precisa sair do desencantamento à qual é jogada com a fuga de Eros e deve ir em sua busca para finalmente pertencer ao mundo dos Deuses.

A reflexão que se segue será, portanto, o de pensar a experiência da pandemia através do mito e seguir os rastros que o mesmo nos fornece para que Psique (alma) encontre Eros. A partir desse aprendizado, e nesse momento de uma vivência coletiva traumática, poderemos refletir: qual o caminho que o mito nos ensina para que a alma, ao encontrar eros, possa "encantar" o mundo?

Resumidamente, o mito relata a estória de Psique, a filha mais bela de um rei que, orientado pelo oráculo, a entrega para viver em um castelo de riquezas ao lado de seu marido invisível, o deus do amor, Eros. Apesar das ordens do marido de nunca conhecer sua identidade, Psique, instigada pela inveja das irmãs mais velhas de sua riqueza e conforto, acaba iluminando o rosto do marido enquanto este dorme, despertando o belo Eros com um pingo de óleo quente. Ao perceber que foi traído, Eros foge do castelo encantado deixando Psique desolada. Em seu desespero ela recorre à sua sogra, ignorando que Afrodite era quem havia planejado seu rapto por inveja de sua beleza. Dando continuidade ao seu plano contra Psique, Afrodite lhe impõe algumas tarefas para que possa encontrar Eros novamente. Na primeira delas, Psique deve separar e classificar vários grãos que estavam todos misturados, e apesar de ser uma tarefa impossível, Psique consegue realizar, graças à ajuda de um exército de formigas. Na segunda tarefa, a de recolher flocos de lã de ouro do dorso de carneiros violentos, Psique é orientada pela ninfa Cana a colher as mechas de lã presas nos ramos das árvores assim que os animais adormecessem no frescor da tarde. Na terceira tarefa, Psique deve levar à Afrodite um frasco de água do lago Estige, onde havia dragões saindo pelas cavernas laterais. Com a ajuda de uma águia que a entrega um jarro da água, Psique é mais uma vez bem sucedida. Ao perceber que Psique venceria todos os obstáculos impostos, Afrodite lhe dá o golpe final, pedindo-lhe que traga uma caixa com um pouco da beleza de Persephone que se encontra junto a Hades, no mundo dos mortos. Psique, com as instruções recebidas da Torre, consegue chegar a Hades e obter a caixa, mas não suporta a tentação de ter um pouco da beleza para si e a abre. Ao abrir, o vapor que sai da caixa a faz desmaiar, mas Eros finalmente a resgata. Afrodite acaba aceitando-a no Olimpo e Eros e Psique se unem em um laço eterno.

O desenrolar do mito, que é a busca do amor (Eros) pela alma (Psique), tem a inveja como mola propulsora: sentimento humano que na sua polaridade criativa é um importante caminho de conhecimento dos seus próprios desejos projetados no outro, mas no seu aspecto negativo pode tornar-se bastante nocivo (BYINGTON, 2002). Na sua faceta destrutiva, a inveja tornou-se um instrumento moderno de potencializar o valor de cada um no mercado das redes sociais. Quanto mais desejo (inveja) provoco no outro, mais valor é agregado à minha imagem pessoal. A lógica do poder no cenário pós-moderno alimenta-se da inveja. No mito é a inveja de Afrodite que instiga o movimento de Psique, numa expressão positiva de como esse sentimento pode nos mobilizar rumo aos nossos desejos. Mas, também é sua inveja destrutiva e, posteriormente a das irmãs em relação às qualidades e bens materiais de Psique, que a afasta de Eros. Se por um lado a deusa da beleza indica uma valorização à estética e à sensualidade (BARCELLOS, 2019) por outro também indica um apego à superficialidade da aparência e à rivalidade. Barcellos ressalta a relação de Afrodite com seu amante Ares, o deus da guerra. Ambos são competitivos fazendo com que o par Afrodite e Ares, na sua polaridade negativa, reinem soberanos em uma sociedade onde pessoas são objetos a serviço do fundamento capitalista. Da mesma forma, a inveja das irmãs de Psique expressa mais uma vez uma hipervalorização da matéria em detrimento à alma. Diferentemente das irmãs, Psique apaixona-se não pelo que vê, isto é, a aparência, mas sim pelo que sente e imagina ao lado do marido. Ao render-se às intrigas das irmãs, acreditando que seu amante poderia ser de fato um monstro, Psique é vítima da lógica materialista em que as mesmas estão inseridas. Como já mencionado acima, a sociedade pós-moderna, assim como Afrodite e as irmãs invejosas, também se orienta por essa dialética do poder através do desejo voraz de seus indivíduos de se sobrepor ao outro. Esta devoção à matéria e o consequente empobrecimento do mundo imagético da alma na contemporaneidade é personificada nas imagens dessas mulheres apresentando-se como uma dinâmica extremamente nociva ao cultivo da alma.

Mas, quais os caminhos que o mito nos oferece para que nossas psiques se libertem desse sufocamento e encontrem Eros nesse momento de asfixia coletiva? Como faremos para "respirar" melhor depois da pandemia de coronavírus? A primeira orientação dada, o de separar os grãos, diz justamente da necessidade de discriminação e colaboração. Não sairemos dessa massa confusa de sentimentos e informações, que a crise do Covid-19 desperta, sem a necessária precisão de fatos e dados. A profusão de notícias falsas misturadas às informações fidedignas forma um emaranhado confuso de conhecimento. A tarefa diária e o compromisso ético, que cada indivíduo deve à sociedade são de, nesse momento, discriminar o joio do trigo. A ignorância pulverizada é prejudicial a toda coletividade.

A colaboração é a outra solução dada pelo mito para que se enfrentem as múltiplas variáveis que se apresentam em relação à doença. A experiência da pandemia explicita os limites da dinâmica competitiva e perversa e o quanto na sua essência é ineficaz. O individualismo e a briga pelo poder nada oferecem num momento de traumas coletivos. A pandemia do coronavírus mostrou que não há saúde para um indivíduo se não houver para toda a coletividade. Não conseguiremos administrar essa crise global se não sairmos da lógica da concorrência para uma de colaboração e empatia. Não haverá saída se o indivíduo não estiver em conexão com uma nova perspectiva, abrindo-se e trocando com o que está ao seu redor. Em todo o mundo observou-se atitudes coletivas de solidariedade e muitas vezes, como no caso do Brasil, a iniciativa privada teve um papel importante suprindo a falta de uma politica de saúde do governo, que ainda apegado a uma disputa de poder, não pode dar o suporte necessário para a crise que emergia. Nesse quesito, fizemos a lição de casa.

Na segunda tarefa é requisitado à Psique que leve à Afrodite uma mecha da preciosa lã de ouro do dorso de carneiros selvagens. Rafael Lopes-Pedraza (2010) nos lembra do simbolismo do carneiro ligado aos mitos solares. "Foi assimilado ao sol e simboliza o poder destrutivo da consciência... parece ser então que se refere a uma consciência solar masculina, incinerada e destrutiva" (LOPEZ-PEDRAZA, 2010, p. 85). Portanto, nesse segundo desafio, Psique é explicitamente impulsionada à polaridade agressiva e destrutiva da consciência solar através do contato direto com o brilho do ouro. Na alquimia o ouro é a meta da opus representando a supremacia e perfeição da matéria. O ouro é o leão, o rei. "Podemos imaginar o desejo pelo ouro como sentimentos já conhecidos: ser bom como ouro, nós mesmos e nossos cabelos dourados finalmente um só, estar permanentemente brilhando e sem manchas" (Hillman, 2011, p. 362). Aproximar-se do ouro é, portanto, estar em uma dinâmica narcisista tão característica na contemporaneidade como acima já mencionado. Não basta sermos bons, temos que ser bons como o ouro, sem manchas e sem sofrimento. Outro aspecto diretamente relacionado a esse narcisismo dourado é o próprio valor econômico acoplado ao ouro, originando há séculos a corrida da ganância pelo poder. Vale ressaltar que aqui não se pretende minimizar a importância do dinheiro, mas sim enfatizar a diferença entre a necessidade e a hybris causada pela numinosidade do ouro. Mas acima de tudo, como a própria máxima alqúimica diz aurum nostrum non est aurum vulgi (nosso ouro não é o ouro comum), aqui não me refiro ao dinheiro literal, mas sim ao dinheiro como o símbolo dessa prática capitalista que contamina todas as esferas dos relacionamentos com sua dinâmica perversa e competitiva. Ao ser lançada aos carneiros sob o brilho do sol, Psique é, portanto, impulsionada a ser devorada pelo aspecto negativo do complexo econômico e pela rivalidade que, como já colocado, afasta a alma de Eros. A lã de ouro é o que Psique necessita, mas também é o que representa o seu maior perigo. No decorrer da pandemia, a mesma encruzilhada se fez presente. Se por um lado o desenvolvimento econômico clamava por continuar, por outro o isolamento social e o consequente afastamento da rotina econômica eram as únicas chances de enfrentamento à maior crise de saúde pública já vivida. Logo, a solução apresentada para o segundo desafio é de suma importância para a alma/Psique e traz um importante ensinamento, o da espera. Psique é orientada a esperar o cair da tarde quando o sol já está em declínio. Assim como Psique, deveríamos esperar até que o frenesi do meio dia, com o calor da ignorância, desse lugar a um conhecimento mais sólido sobre a doença. Da mesma forma, outra ambivalência se faz em relação à rapidez com que as pesquisas científicas estão acontecendo, que se por um lado são uma benção, por outro são também uma maldição, pois comprometem o mecanismo de controle e a qualidade dos resultados.

No início o mundo entrou em um momento de espera. A corrida solar extrovertida deu lugar ao silêncio das ruas e à introversão de cada indivíduo para dentro das suas cavernas à espera de um conhecimento de combate para um mal que assombrou a população de forma geral. Era necessário esperar dentro dos nossos templos de cura, suportar o isolamento como um meio para a salvação. Infelizmente, para a grande maioria da população esse entardecer nunca foi realmente viável. Aqueles cujas condições de vida permitiram, fizeram de suas cavernas um entardecer onde o calor do meio dia já havia passado e pacientemente esperaram. Mas, lamentavelmente, o brilho e a sedução que o ouro exercem foram superiores à quietude da espera. O leão da situação econômica urrou alto, chamando todos para fora de suas cavernas, e a espera necessária pelo frescor da tarde foi esquecida. No Brasil, com estatísticas ainda mostrando um número em torno de 1.200 mortes por dia por Covid-19, (SANT'ANNA, 2020) os estabelecimentos comerciais abriram suas portas novamente. Nossas psiques voltaram imediatamente ao conhecido jogo que nos convida à ação com seu enorme espelho das vaidades, suprimindo mais uma vez a possibilidade de um trabalho intrapsíquico e, portanto, psicológico. O leão que urra também é o da extroversão maníaca.

Mas, como sabemos, Psique continua em seu desejo de encontrar Eros novamente. As tarefas que se seguem dizem respeito à necessidade de se enfrentar dois aspectos sombrios à psique: o ódio e o medo da morte.

Inicialmente, Psique é desafiada a levar a Afrodite um jarro de água do lago Estige de onde espreitavam perigosos dragões. Etimologicamente, a palavra Estige está associada a ódio (KERÉNYI, 2006): sentimento frequentemente reprimido na sombra e, por esse motivo, mantendo-se inconsciente sem a devida elaboração. O ódio é, normalmente, transferido a um objeto que representa um conteúdo que pertence ao indivíduo e que o mesmo precisa interiorizar, isto é, projeta-se a sombra em pessoas que personificam tudo aquilo que não queremos visitar em nós mesmos: o estranho e desconhecido da psique. Muitas vezes o ódio é projetado naquele que personifica a diferença de classes, seja em direção ao mais rico ou ao mais pobre, sendo o arquétipo do poder atualizado através dessa teia de projeções. Projeta-se o ódio naquele que por uma condição social torna-se diferente do que, narcisicamente, chamamos de padrão. Um ódio por uma parte de nós mesmos, reprimida e projetada no outro.

Mas é nas mídias sociais que esse sentimento se manifesta de forma mais explícita, através dos haters, aqueles cuja principal identificação é com o sentimento de ódio. No anonimato de suas casas essas pessoas permitem-se vomitar suas sombras na intimidade daquele que muitas vezes não é nada mais do que uma imagem a serviço das projeções alheias. Em mais um paradoxo da pós-modernidade, as redes sociais constroem pontes entre vizinhos distantes por onde passam não apenas os amigos, mas também os inimigos.

No mito para superar o ódio, Psique recebe a ajuda de uma águia. A águia é associada aos Deuses e graças à perspicácia do seu olhar, consegue fitar o Sol diretamente. Além de ser um símbolo de poder, força e coragem, a águia também representa um desenvolvimento espiritual capaz de conviver com o poder divino. Ao segurar a jarra, símbolo do acolhimento feminino, à águia configura uma espiritualidade que transita entre as duas polaridades: o masculino e o feminino. Essa dualidade da águia também é descrita por Hillman (2011) através de sua capacidade tóxica e curativa. Ele ressalta a característica de seu bico, que num primeiro momento lhe é útil para sua alimentação, mas que de tanto crescer, adquire uma curvatura que a impede de se alimentar. O que alimenta também é o que mata.

Psique consegue enfrentar o ódio com a ajuda de um princípio masculino, mas que se apoia em uma estrutura feminina. A águia representando um espírito dual mostra o quanto o diálogo entre polos opostos é necessário para o enfrentamento dos sentimentos destrutivos que afasta a psique de seu caminho.

Durante a pandemia, no Brasil e em outros países, as projeções de ódio e a disputa de poder político estiveram no palco o tempo todo e se sobressaíram à questão urgente de saúde pública. Uma cortina de fumaça provocada pelas gotículas de água do rio do ódio não permitiu a visibilidade necessária para que a população pudesse enfrentar a verdadeira situação emergente que se apresentava. Vivemos algo parecido com o que José Saramago (1995) descreve em seu livro "O ensaio sobre a cegueira". Diante da situação de emergência pública os dragões da violência dominaram a situação e a população, também infectada por uma cegueira branca causada pela cortina de fumaça de gotículas de ódio, sentiu-se impotente para lidar com tamanha destrutividade.

Assim como Psique paralisou diante do desafio, nós também nos silenciamos diante da guerra política que se fez baseada em ódio e ignorância. Não conseguimos driblar os dragões. E o equilíbrio da águia não se fez presente.

A quarta e última tarefa de Psique é a que todos fomos forçados a realizar durante a pandemia. O mergulho no mundo dos mortos. A pandemia do Covid-19 trouxe o triste desafio de convivermos diariamente com um enorme número de mortes. Assim como Psique, também fomos convocados a esse mergulho em Hades e, através desse contato, ir ao encontro da alma. Como enunciado no início, para a psicologia arquetípica a vivência da morte é uma das possibilidades de cultivo de alma: "ela carrega nossa morte; a nossa morte está alojada na alma" (Hillman, 1985, p. 23). Mas, à Psique, é também requisitado que traga a caixa de beleza que se encontra em Hades, uma vez que a reserva de Afrodite está no fim. Da mesma forma, nosso mergulho em Hades também tem a importância de se cultivar uma nova perspectiva de beleza, já que a noção de belo vinculado à dinâmica contemporânea narcisista, não atende às necessidades da alma. Nessa quarta tarefa, adquire-se o aprendizado de que será somente através da experiência da morte que conseguiremos resgatar uma outra qualidade do belo, não mais materialista e sim psicológico. O mito mostra que também existe beleza na finitude e nos estados depressivos e não apenas na vaidade da concretude que gera rivalidade entre as pessoas. A beleza em Hades resgata o antigo sentido de belo para os gregos, como sabedoria e dignidade. A experiência de impotência, morte e medo suscitado pela pandemia, nos impõe a necessidade de sairmos de uma identificação com a soberba que gera disputas e ir em direção a Psique e seus valores éticos. Acima de tudo, a morte resgata nossa humanidade.

No Brasil, no entanto, falar em aceitação da morte não é apenas simbólico, mas também literal. Um movimento negacionista, inclusive liderado pelo próprio presidente, disseminou-se pelo país trazendo desdobramentos graves para o enfrentamento da crise. Para muitos, a Covid-19 era apenas uma leve gripe e que somente algumas pessoas que já eram debilitadas por outras doenças morreriam como se isso já não fosse o suficiente para que o governo tomasse as devidas medidas de prevenção. Mais uma vez, o complexo de poder encontrou uma forma de se sobrepor a Eros.

Tendo o acima exposto e dentro de uma perspectiva mítica, não realizamos as tarefas necessárias para que a alma alcançasse sua meta. É fácil confirmar o que nossos olhos já vislumbram no cotidiano; provavelmente, não teremos um mundo mais almado após a pandemia. A ideia de que essa crise transformaria o estilo de vida das pessoas, tornando o mundo mais erotizado e, portanto, mais anímico, é mais uma das idealizações românticas às quais nos apegamos de tempos em tempos e na qual projetamos a imagem de um novo Messias. Sua vivência trouxe um sentimento de impotência e vulnerabilidade em proporções coletivas que podem ser consideradas como a mola propulsora para uma nova consciência menos narcisista, mas que por si só não são suficientes para dissipar uma dinâmica de poder já tão enraizada. Transformar incertezas da saúde pública em uma questão política vinculada a poder é um sintoma coletivo defensivo e ao mesmo tempo perverso. Fomos levados ao íngreme rochedo com a esperança de sermos raptados por Eros disfarçado de monstro, mas o que não esperávamos é que nossas psiques seriam levadas pela verdadeira criatura monstruosa, deixando-nos desolados em busca do amor.

 

Referências

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BARROS, M. Poesia completa. São Paulo, SP: LeYa, 2013.         [ Links ]

BYINGTON, C. A. B. Inveja criativa: o resgate de uma força transformadora da civilização. São Paulo, SP: Religare, 2002.         [ Links ]

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Recebido em 14/09/2020
Revisado em 18/11/2020

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