Eis que se revela o ser, na transparência do invólucro perfeito (ANDRADE, 2002. p. 17).
Ao considerarmos o “corpo como expressão de arquétipos” (REIS, 2002), falamos de uma energia transcendente que se materializa nele, numa relação sincronística psique-soma. Integram essa relação a saúde e a doença, o adoecer e o curar. Observamos no cenário médico atual que a interligação dos padrões físicos e psicológicos não vem sendo bem compreendida. Infelizmente, o extraordinário avanço tecnológico, ao contrário do esperado, não tem contribuído para o entendimento da questão saúde-doença. Segundo muitos médicos, a relação psique-soma é tema pouco discutido nas faculdades de medicina, carência essa constatável no acompanhamento dos nossos pacientes e familiares. Os médicos perderam o contato com os pacientes, não os ouvem como deveriam. Os aspectos técnicos da medicina parecem mais fáceis; o difícil é lidar com a personalidade do paciente, pois requer tempo e características pessoais a serem desenvolvidas nos próprios médicos. Siegel (2002, p. 21), médico-cirurgião e professor da Universidade de Yale, lamenta: “Não recebi uma única aula sobre cura e carinho, como falar aos pacientes ou por que ser médico. Não me curaram durante o curso, mas esperavam que eu curasse os outros”. Os cursos de medicina os treinam mais para lidar com doenças do que com pessoas e, assim, o avanço tecnológico pode acabar transformando os hospitais em lojas de máquinas, tamanho o fascínio diante da potência que elas detêm.
Pesquisando sobre a cura, podemos perceber que houve, ao longo da história, um esforço significativo para o desenvolvimento da abordagem unificada psique-soma. Apesar disso, inúmeras situações nos levam a concordar com Capra (1982, p. 116), quando diz que, três séculos depois de Descartes, a medicina ainda se baseia, como escreveu George Angel, “nas noções do corpo como uma máquina, da doença como consequência de uma avaria na máquina, e da tarefa do médico como conserto dessa máquina”. Em relação à saúde, temos uma ideia, uma sensação subjetiva de bem-estar, porém os conceitos de saúde e doença não se referem a algo bem definido, mas são parte de modelos que se referem a relações distintas dos fenômenos da vida e influenciados pelo contexto cultural. Nossa cultura, nos últimos séculos – separando mente e corpo –, considerou a doença como um mau funcionamento de mecanismos biológicos, sendo a saúde definida como “ausência de doença”. A medicina moderna reduz a saúde a um funcionamento mecânico, ao concentrar-se em partes cada vez menores do corpo – as superespecializações.
O fenômeno da cura e da saúde tem significados diferentes nas diversas abordagens teóricas e de uma cultura para outra. Um conceito que inclui dimensões individuais, sociais e ecológicas exige uma visão sistêmica dos organismos vivos e, correspondentemente, uma visão sistêmica de saúde. A perspectiva holística, que se tornou conhecida como sistêmica, requer uma visão da totalidade. Os fenômenos não são analisados isoladamente, mas inseridos num contexto, sendo o universo um sistema vivo, e não uma máquina. O organismo vivo é visto como auto-organizador, em que a estrutura e a função não são estabelecidas pelo meio ambiente, mas pelo próprio sistema.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”, e não, meramente, ausência de doenças ou enfermidades. Revela, portanto, a natureza holística da saúde, que terá de ser apreendida, se quisermos entender o fenômeno da cura. O termo “curar” é sempre empregado de forma reducionista: a cura de feridas, doenças, sendo esquecida a interação dos aspectos físicos, psicológicos e sociais.
Práticas e rituais curativos
Através dos tempos, práticas e rituais curativos foram desenvolvidos para lidar com a doença, tendo as culturas oscilado entre o reducionismo e o holismo em suas práticas médicas. Um panorama dos estudos transculturais pode ampliar a compreensão sobre a questão acerca da saúde e da cura. Em algumas culturas, a origem da doença e o processo de cura são vistos como originários do mundo dos espíritos. A cura tem sido praticada por curandeiros populares, que concebem a doença como transtorno que envolve não só o físico, mas também a mente, o ambiente físico e social, assim como a relação com o cosmo e as divindades. Ainda hoje, em todo o mundo, eles se utilizam de rituais para aliviar as tensões, ajudando a estimular os poderes curativos que todos os organismos vivos possuem. Essas cerimônias de cura envolvem uma relação intensa entre curandeiro e paciente, compreendidas sempre em termos de forças sobrenaturais canalizadas através do curandeiro. O fenômeno do xamanismo, existente desde os primórdios da história, continua tendo força em muitas culturas. O xamã é a pessoa, homem ou mulher, capaz de fazer contato com o mundo dos espíritos. É usualmente o líder religioso ou político, uma figura carismática e poderosa cuja função nessas comunidades é a de presidir os rituais. Comunica-se com os espíritos para diagnosticar as doenças e curá-las. A concepção xamanística baseia-se na crença de que os seres humanos são parte integrante de um sistema ordenado, sendo a doença uma desarmonia da ordem cósmica. Em algumas tradições, enfatiza-se que os órgãos, as funções corporais e os sintomas de um indivíduo estão inseparavelmente ligados a relações sociais, plantas e outros fenômenos do meio ambiente. As funções dos rituais visam ampliar a consciência dos conflitos e das defesas sempre em busca de solução.
A cura na Grécia antiga
Durante toda a Antiguidade grega, o processo de cura era considerado, essencialmente, um fenômeno espiritual e estava associado a muitas deidades. Hygieia é a deusa da saúde, filha de Asclépio e irmã de Panakeia. Essas duas deusas, associadas a Asclépio, representam dois aspectos da arte curativa, tão válida atualmente quanto na Grécia antiga. Hygieia (saúde) cuidava da manutenção da saúde e Panakeia (panaceia), do conhecimento dos remédios derivados das plantas ou da terra, buscando a cura para todos os males. Meier (1989) mostra-nos como, para o mundo antigo, mente e corpo constituíam unidades inseparáveis – mens sana in corpore sano. Na Antiguidade, o “sintoma” era expressão da sympatheia; o consensus, a cognatio ou coniunctio naturae, o ponto de correspondência entre o exterior e o interior. Corresponde à noção de sincronicidade em Jung. A doença era um efeito da ação divina, a qual só poderia ser curada por um deus ou por outra ação divina – similia similibus curantur, uma forma de homeopatia. “Quando se reveste a doença de tal dignidade”, diz Meier (1989, p. 15), “tem-se a inestimável vantagem de poder dotá-la de poder curativo”. Assim como o médico divino era a doença e o remédio, a atitude correta deu-se pelo culto, que consistia em deixar a arte da cura para o médico divino. Aplica-se aí o oráculo de Apolo: “Aquele que fere também cura”. Télefo, quando ferido na coxa por Aquiles, é obrigado a buscar abrigo junto a seus ex-inimigos, com os quais encontra a cura. Psicologicamente, representa a “realização da sombra” – em que, através dos sonhos, ou na relação com os outros, aspectos da nossa personalidade são reconhecidos. O mito do pharmakon, ou droga ambivalente, veneno e antídoto ao mesmo tempo, encontra-se também no inconsciente do homem moderno.
Na Grécia antiga, Epidauro era o centro do culto ao deus Asclépio, filho de Apolo, que, ao saber da traição de Corônis, a mata, resgata Asclépio por uma cesariana e o entrega a Quirão, o centauro, para ser educado por ele. Com relação ao resgate, alguns dizem: “Aquele que mandou à morte deu vida”, lembrando o motivo “Aquele que feriu também cura”. Asclépio aprendeu a arte da cura com Quirão, que fora ferido pelas flechas envenenadas de Hércules, tomando-se, então, um curador ferido.
O toque, para os gregos, tinha o poder de curar (MEIER, 1989). Os dedos de Réa foram presos na terra maternal do monte Ida, tornando-se dátilos, detentores de poder generativo. Na pintura da criação de Adão (afrescos de Miguel Ângelo na capela Sistina) aparece o gesto da mão estendida. Zeus o curou de sua loucura estendendo sua mão sobre ela, que deu à luz Epafo, apesar de ser virgem. Zeus derivou o epíteto de Zeus Epafo, “aquele que toca”. Apolo recebe o epíteto de Apolo hyperdexios (estendendo a mão sobre) e também usa o gesto de estender a mão sobre o doente. Quirão também curava com o toque de mãos; Quirão, como cheirourgos (trabalhando com as mãos – Chirurg = cirurgião, em alemão), degenerou para quiroprático, em nossos dias. A ideia de que o dedo possui poder generativo aparece na expressão alemã “tirar algo dos dedos”, que significa “inventar” ou “produzir algo”. O desempenho dos dedos em encantamentos curativos é bem conhecido.
O banho era uma das preliminares nos rituais de incubação; pensava-se que tinha efeito de purificação tanto da alma quanto do corpo. Banhar-se relacionava-se à ideia do hieros gamos (sagradas núpcias), como mysterium coniunction. O banho nupcial tem o sentido de condição preliminar para o casamento, que era considerado no mundo antigo como iniciação ou mistério. Depois dos sacrifícios preliminares, o doente dormia no ábaton ou ádyton (santuário mais interior). Ábaton ou ádyton significa lugar onde não se pode entrar sem ser convidado. A palavra incubare é traduzida como “dormir no recinto sagrado”. O incubante seria curado se Asclépio aparecesse no sonho e tocasse a ferida. Nos casos em que a sensação interior da doença fora personificada e expressa através de símbolos, podia ocorrer uma cura. Todos tinham que relatar seus sonhos. No culto de Asclépio, a água exercia um papel importante, assim como a música, o teatro, as serpentes e os cães sagrados. O processo de cura nos santuários de Asclépio era considerado synousia (coito) com o deus. A cura acontecia no ábaton durante a noite, quer o paciente estivesse dormindo, quer acordado; senão por sonho, por visão. A incubação assume caráter de mistério. O convite ao postulante aos mistérios se dava através de sonhos. O incubante renascia, curava-se após visitar o mundo inferior e, ao emergir, convertia-se em um religioso, um cultor deae, o que corresponde ao termo grego therapeutes. Mistérios pressupõem epoptai (espectadores) que contemplam o dromenon (a ação). No caso da incubação, o incubante seria o epoptes, e o dromenon que testemunhava seria o sonho, sendo a própria cura o mistério. No sentido restrito, os mistérios são pessoais, e Meier (1989, p. 124) cita Reitzenstein: “O iniciado nos mistérios não só testemunha o que o deus experiencia, mas o experimenta ele mesmo, tornando-se assim o deus”. Seja lá como for, diz Meier, “ele estava sozinho com o deus. Havia uma situação dialética, e um mistério pessoal dessa espécie levava à gnosis Theou” (conhecimento do deus). Na literatura antiga, fica clara a consciência de que todos os sonhos eram mensagens dos deuses. A variedade de sentidos atribuídos aos sonhos não se deu só em função da época vivida pelo sonhador; foi também pela sua posição social, educação e filosofia. Se tentarmos buscar uma constante, muito provavelmente consistirá na atitude do sonhador para com o irracional.
Corpo, mente e meio ambiente
Recentemente, uma mulher, de 50 anos, relatou-me o seguinte sonho: “Sonhei que estava num local cheio de pessoas desconhecidas. Encontrei uma moça que procurava uma criança e não conseguia encontrá-la. Depois me disse ser uma criança que adotara. Tentei ajudá-la na procura e de repente lhe disse: “Vamos nós duas fechar os olhos e pedir ajuda para encontrá-la”. Assim fizemos. Ao abrirmos os olhos olhei para um local e vi uma criança (com cerca de 5 meses) no colo de alguém. Abraçamo-nos por termos conseguido.”
Como a situação permitia, sugeri-lhe vivenciar o sonho. Ajudei-a relaxar e ir ao encontro dessa criança, num exercício de imaginação. Emocionada e com profunda ternura, pôde sentir a proximidade e relembrar encontros do passado com a mesma qualidade afetiva. O sonho nos diz que a integração é psicofísica. Desde a Antiguidade, com o vidente cego Tirésias, vem a ideia de que, para o inconsciente falar, o consciente deve silenciar. Como junguianos, conectados com a modernidade, usamos técnicas (a imaginação ativa, relaxamentos e outras) como forma de reinterpretação do ritual asclepiano de incubação – em busca, sempre, da conexão com o Self, os deuses ou deusas que consteIam o nosso imaginário. Considero, portanto, que as observações dos gregos sobre os sonhos ainda se sustentam.
Volumosos escritos conhecidos como Corpus hippocraticun, atribuídos a Hipócrates, famoso médico que viveu na Grécia por volta de 400 a.C., representam um compêndio do conhecimento médico. Reconhecem as forças curativas inerentes aos organismos vivos, que Hipócrates chamou “poder curativo da natureza”. O papel do médico consistia em ajudar essas forças naturais, criando condições para o processo de cura – esse, o significado original da palavra “terapia”, que deriva do grego therapeuim (“dar assistência”, “cuidar ele”), o papel do terapeuta como o de um assistente para o processo natural. Os escritos hipocráticos contêm um rigoroso código de ética médica, conhecido como o “Juramento hipocrático”, que permanece até os dias atuais como ideal da profissão médica.
A concepção holística e ecológica considera o universo como um organismo vivo, ressaltando a inter-relação e interdependência de todos os fenômenos. E entende a natureza não só em termos de estruturas fundamentais, mas também em função de processos dinâmicos subjacentes. O conceito sistêmico de saúde é de processo contínuo; subentende atividade e mudanças que refletem a criatividade do organismo aos desafios ambientais. Não pode haver um nível absoluto de saúde independente do meio ambiente. Saúde, portanto, envolve aspectos físicos, psicológicos e sociais, todos interdependentes. A sensação de “estar saudável” vai ocorrer quando essas dimensões estão equilibradas. “Ao mesmo tempo, a nova estrutura leva em consideração, naturalmente, as dimensões espirituais da saúde; está, pois, em harmonia com as concepções de muitas tradições espirituais” (CAPRA, 1982, p. 315). Para ser saudável, o sistema precisa ser flexível; é essencial, para a saúde do organismo, se adaptar às mudanças ambientais. Perda de flexibilidade significa perda de saúde, muito embora, inúmeras vezes, em nossa cultura extrovertida, confundam rigidez com equilíbrio. Saúde é um equilíbrio dinâmico. Tal como os modelos tradicionais, o “equilíbrio dinâmico” (CAPRA, 1982) reconhece as forças curativas inerentes a todos os organismos vivos, a tendência inata do organismo para voltar ao estado de equilíbrio, ao ser perturbado. Algumas enfermidades simples da vida cotidiana curam-se por si mesmas. Em algumas fases da vida, o organismo passa por processos de autotransformação que envolvem estágios de crises, resultando num novo equilíbrio. Uma doença grave pode induzir a reflexões sobre a própria identidade e propiciar mudanças no estilo de vida; então, equilíbrio dinâmico significa passar por fases de doenças que podem levar ao crescimento e à transcendência. Portanto, a concepção sistêmica de saúde é ecológica e sintonizada com a tradição hipocrática em que se baseia a medicina ocidental.
Para a medicina chinesa, o organismo humano é um microcosmo do universo, sendo atribuídas às suas partes qualidades yin e yang. A doença não é considerada um agente intruso, mas o resultado da desarmonia no indivíduo ou no social. A ideia do corpo sempre foi funcional, preocupando-se mais com as interrelações de suas partes. Por exemplo, pensar nos pulmões inclui não só os próprios pulmões, mas todo o aparelho respiratório, o nariz, a pele e as secreções associadas a esse órgão. Na concepção chinesa, o indivíduo é o principal responsável pela manutenção da sua própria saúde, e a ênfase é dada nas medidas preventivas, tendo o médico o papel de evitar o desequilíbrio dos seus pacientes. O médico ideal lá é considerado um sábio quando entende que todos os modelos do universo funcionam em conjunto. O papel do médico é bem diferente do que observamos no Ocidente, onde sua reputação aumenta quanto maior for sua especialização.
Em suas pesquisas, Jung buscou descobrir empiricamente um ponto de contato com os antigos cultos de cura. Para ele, a psique humana tem uma função espiritual e, na segunda metade de sua vida, nenhum paciente foi curado sem encontrar uma maneira de achegar-se a essa função espiritual. Uma jovem de 23 anos, referindo-se à sua prática aeróbica, me disse: “Não consigo fazer caminhadas porque eu penso muito, então eu corro, corro e me sinto melhor”. Pensamento, introversão e devaneio trazem sempre o risco da reflexão (do latim reflectere, “virar para trás”). Aos 23 anos, podemos correr e escapar de nós mesmos, enrijecer a musculatura, e, como num sistema, alguns músculos compensam a rigidez de outros. Assim, as curvaturas vão se formando; “lordoses”, “hiperlordoses” e tantas “artroses e artrites” apontando para o desequilíbrio, pois, se alongada só de um lado, a musculatura se contrai do outro. Até quando, porém, dá para correr sem ouvir os sinais corporais que clamam pela reflexão? Chega um momento em que o sistema de compensação enfraquece e as dores surgem insuportáveis. Parecem recém-chegadas; no entanto, lá estavam há meses ou anos, mas nesse momento torna-se impossível correr. Parece que ninguém chega ao meio da vida impunemente; de alguma forma, a consciência é avisada. Pena que seja sempre a última a saber... À medida que o corpo diminui as tensões musculares, as pressões na cabeça e no coração se reavivam. É a homeostase sendo mexida, angústias e faltas sendo percebidas, caracterizando, assim, fases de desequilíbrio. Muitos não suportam e voltam a correr, justificando, sem saber para quem, que relaxamento, meditação, yoga, antiginástica são para velhos: “O negócio é malhar”.
O pressuposto nos santuários de Asclépio era sobre o que faltasse ao paciente seria integrado, e a cura seria alcançada através de alguma epifania do deus, tanto em estado de vigília quanto em sonho. Na língua alemã, aparece essa ideia quando perguntam a respeito da natureza de uma doença: Was fehlt ihnen? (“O que falta a você”?). LeShan (1992), em O câncer como ponto de mutação, diz que sua meta como médico é ajudar os pacientes a descobrir onde perderam seus sonhos. E, assim como Jung, ressalta que, numa cura bem-sucedida, o indivíduo deve passar por uma transformação de sentido durante o processo da doença e do tratamento. A definição de Jung do que seja cura não se refere a sintomas. Ele tem em mente a finalidade de guiar o paciente para entender o significado da sua vida, de seu sofrimento, de ser o que ele é. Em Psicologia e alquimia, disse:
Minha tarefa como médico é ajudar o paciente a tornar-se apto para a vida [...] a vivência suprema e decisiva, isto é, o estar a sós com o Si-mesmo, com a objetividade da alma ou como quer que a chamemos. O paciente deve estar a sós para descobrir o que o sustenta, quando ele próprio já não se sustenta. Somente essa experiência dar-lhe-á um alicerce indestrutível (JUNG, 1991, par. 32).
Essa vivência peculiar é tão solitária que o encontro com o Self resultará, nas palavras de Meier (1989, p.150), “numa atitude espiritual bem-estabelecida, e o resultado seria não uma mera remitência, mas a cura real que também poderá chamar de transformação”. Nesse sentido, o risco da recaída só pode ser evitado quando pudermos incorporar nossas mazelas num exercício criativo ou numa dança flexível com a sombra ao som da natureza.
Kreinheder, em Conversando com a doença - um diálogo de corpo e alma; apresenta a sua experiência de proximidade com a morte, onde mostra que a essência humana é algo de inefável e imediato, espiritual e profano que deve ao mesmo tempo ser suportado e celebrado.
A doença quando chega traz consigo a idéia da inevitabilidade da morte e a fantasia do próprio corpo sem vida. [...] nos damos conta de que, em todo lugar, ao nosso redor e dentro de nós, acontece o surpreendente milagre da vida. [...] a doença e os pensamentos de morte que a acompanham podem expandir nosso estado de consciência em direção a um universo maior e minimizar as preocupações com o cotidiano. Ao nos despertar para a realidade da dimensão sagrada, a doença promove a salvação e a cura da alma (KREINHEDER, 1991, p. 26).
O processo de cura só acontece quando ocorre esse encontro consciente. Lembra Fausto, a quem os espíritos disseram: “Estávamos sempre aqui, mas você não nos via”. E Jesus, que se lamentou: “Estive no meio de vocês, mas não me reconheceram”. Segundo Platão, sempre que alguém depara com a experiência da beleza original (arquetípica), as “penas da alma” ficam eriçadas. Acreditava-se que a alma tinha penas e que o arrepio da pele seria o brotar das penas da alma. Tantos arrepios que sentimos, calores, calafrios, ao depararmos com aspectos do sagrado, como penas que se eriçam. Os alquimistas usaram a palavra “arrepio” ao se referirem ao encontro de duas substâncias. A união entre o sagrado e o profano, provocada pelas energias arquetípicas, é uma experiência ao mesmo tempo física e psíquica. Ego e arquétipo encontram-se provocando o arrepio. E só podemos nos referir a arquétipos quando imagem e emoção se apresentam simultaneamente, e “não há intervenção de efeito tão dramático quanto aquela que pode ocorrer quando mente e corpo, ego e arquétipo se encontram para criar a alma” (KREINHEDER, 1991, p. 27).
O invólucro é sempre expressivo
É difícil considerarmos que a morte não é boa nem má, mas da nossa natureza. Muitas vezes, as vivências de morte são fundamentais para nossa reorientação na vida. A doença pode nos ensinar sobre a vida. A exacerbação de um sintoma pode ser o caminho da cura, constelando o “arquétipo do inválido”, que nos remete às nossas limitações, feridas ou malformações, nossos defeitos ou acidentes no percurso da vida, não esquecendo da degeneração natural das nossas capacidades físicas e mentais. A consciência corporal implica percepção da potência e da impotência, prazer e dor, saúde e doença.
O princípio da homeopatia é a cura através de pequenas doses de determinados venenos causadores de sintomas semelhantes: “O semelhante deve ser tratado com o semelhante”, o simillium. A ideia alquímica é a de que a matéria-prima contém sua própria cura; assim, um processo acontece até que se transforme por si mesmo, até que produza a panaceia. Na modernidade, encontramos essa ideia de amplificação na técnica do biofeedback, que estimula tanto a reação quanto o controle. Mindell (1984), fundador do trabalho processual, utiliza a amplificação dos sintomas pedindo ao paciente que focalize o sintoma até que algo de novo surja, que pode ser uma voz, um movimento, um som ou uma imagem.
Para Jung, a cura acontece na relação. A análise baseia-se na dimensão relacional, pois é no diálogo que nos tornamos conscientes. Mas nem sempre a relação terapêutica acontece com tranquilidade; algumas vezes não há encontro de intenções naquela relação, ou por inconsciência da sombra pelo terapeuta, ou pelo fato de o doente não querer auxílio, mas apenas ser acompanhado pelo médico, alguém que o autorize a “ser doente”. O que podemos observar é que, ao iniciarmos um processo criativo – o encontro com o mistério –, imagens arquetípicas e emoções a elas relacionadas são desenterradas, nos impedindo de desprezar nossos sintomas, mas, ao contrário, sermos gratos a eles. O corpo, quando se recusa a se submeter às exigências do ego, forma sintomas, gritando para que o esquecido e o banido das nossas vidas sejam ouvidos. Quando Jung disse: “Os deuses se tornaram doenças”, referia-se às vivências arcaicas abandonadas e à racionalidade exaltada. Talvez eduquemos mal nossos filhos se não rompermos a herança de que o “fazer” é mais importante do que o “ser”. É preciso correr os riscos de sermos autênticos expressando os sentimentos, pois os “bailes da vida” pedem a dança com a sombra. É só através da relação com a sombra que podemos valorizar as delícias de um almoço em família, do telefonema de um amigo que deseja saber como estamos ou do relaxamento que nos leva a atividades criativas.
A psicologia analítica nos remete todo o tempo às polaridades: sim-não, conscienteinconsciente, luz-sombra etc. O processo de individuação depende dessa equação que busca anular as diferenças e equacionar as polaridades – função transcendente. Equacionar as polaridades sempre se refletirá no corpo. O invólucro é sempre expressivo e assim falou Jung:
A individualidade assim chamada espiritual é também uma expressão da corporalidade do indivíduo. Se por um lado o corpo é algo que torna os indivíduos semelhantes em alto grau, por outro, o corpo individual distingue um indivíduo de todos os demais. Da mesma forma a individualidade espiritual ou moral diferencia uns dos outros, por um lado, mas se caracteriza também pelo fato de torná-los semelhantes (1981, p. 287).
Como nos mostrou Jung, mente e corpo são dois aspectos de uma mesma realidade, em que o corpo é a manifestação externa do Si-mesmo e a alma, a vida do corpo. E, se não representarmos o Si-mesmo em sua natureza ímpar, na vida, ele se rebela manifestando-se em sintomas somáticos. Nesse sentido, compreendemos então que o problema não é o sintoma, mas a maneira de o indivíduo relacionar-se consigo mesmo e com os outros. “Se a totalidade implica saúde mais doença, a presença desta última é inevitável e faz parte do processo de individuação nos depararmos com ela” (RAMOS, 1994, p. 118). Considerando a correspondência psique-soma, o que acontece em um é espelhado no outro; o corpo aparece como uma das vias de expressão de fantasias e sonhos. O sintoma aponta para conteúdos inconscientes que precisam ser integrados à consciência. Assim, na prática clínica, chegamos à conclusão de que, para atenuar a especificidade dos sintomas, é necessário escutar mais as vivências corporais.
Todo sintoma invasor traz consigo um conteúdo simbólico e é tarefa da alma se expandir para que possa agregar os símbolos e as imagens invasoras. Isso pode ser uma batalha, mas, em última análise, não é uma luta e sim um processo de libertação e expansão, à medida que ultrapassamos nossos limites anteriores. [...] os sintomas são o pranto do corpo, alertando-o de que já basta. Os sintomas vão quebrá-lo exatamente nos lugares em que você mais se conteve (KREINHEDER, 1991, p. 40).
Estresse de cada dia
O conceito de estresse, muito corriqueiro atualmente e compatível com a visão sistêmica, compreende a interação mente e corpo. É um desequilíbrio do organismo buscando responder às influências ambientais e podendo implicar a perda de flexibilidade. Fases transitórias de estresse fazem parte da vida, pois são também épocas de contato com a sombra e do reconhecimento do que nos pertence, podendo ter um resultado criativo. Quando se torna prolongado ou crônico, redunda na incapacidade de se perceber ou se cuidar e, assim, chegando ao seu limite extremo de rigidez, desequilibra o sistema e a pessoa torna-se vulnerável às doenças.
As doenças crônicas e degenerativas, segundo numerosos estudos, parecem estar relacionadas com o estresse excessivo. Tem-se verificado o fato de que o estresse prolongado anula o sistema imunológico do corpo e suas defesas naturais contra infecções e outras doenças.
As origens das situações estressantes são múltiplas. Podem resultar tanto de eventos negativos como de positivos, desde que exijam do organismo mudanças rápidas e profundas. O alto índice de violência no país obriga-nos a mudanças bruscas no estilo de vida ou a conviver com numerosos riscos à integridade física. Infelizmente, não somos criativos o suficiente para inventar, e o pior: ensinar a nossos filhos como lidar com o crescente volume de estresse com que nos deparamos. Quando abusamos da nossa capacidade, a doença pode surgir como solução de problemas. Se não encontramos saída consciente para situações difíceis ou somos impedidos de expressar a emoção associada àquela situação, adoecemos. A doença aparece como “via de fuga”, ou seja, um jeito de se defender, mas pode também, como nos mostra Byington, estar o corpo desempenhando a função de símbolo estruturante do desenvolvimento psíquico. Isso significa o corpo podendo se expressar simbolicamente, sem acarretar patologia. “Se alguém é agredido e reclama, ninguém vai achar que está doente. Por que, então, não reconhecemos as reclamações simbólicas viscerais e buscamos os fatores existenciais que estão expressando?” (BYINGTON, 1983. p. 34). Segundo ele, os símbolos expressos pelo corpo não devem ter uma conotação de via errônea, e a via ideacional-emocional não é a única válida. Os símbolos, como nos mostrou Jung, representam tentativas naturais de reconciliação dos elementos antagônicos da psique. O desequilíbrio surge quando, numa pessoa, a energia se manifesta em excesso em um dos opostos. Por exemplo: alguém muito fixado na forma, excessivo cuidado com a aparência, poderá desenvolver um quadro de transtorno alimentar. Assim como o polo oposto, o espiritual favorecerá, se excessivo, permanecer no mundo da fantasia. O “instinto de individuação” está sempre nos indicando o esforço de nos tornarmos inteiros. A psicologia analítica preconiza que o processo de individuação se apoia na consciência da própria sombra, da escuridão, do que não pode ou não quer se adaptar às convenções religiosas ou civis. Assim, parece fundamental considerarmos o processo de individuação como sendo o caminho da cura e do retorno a “casa” e ao sentimento de liberdade interior.
É interessante observar que, embora a medicina ocidental tenha um marco na revolução cartesiana, em que a filosofia de Descartes leva os médicos a considerar a máquina corporal e a ignorar os aspectos psicológicos e sociais da doença, o próprio Descartes admitia a união de corpo e alma. Segundo nos relata Capra (1982, p. 120), o tema principal da correspondência de Descarte com a princesa Elizabeth, da Boêmia, era a união de corpo e alma. Além de seu médico, ele era professor e amigo e, quando Elizabeth não estava bem de saúde, ele diagnosticava seu mal como causa da tensão emocional, receitando-lhe relaxamento e meditação, além dos tratamentos físicos. Mostrava-se, assim, menos “cartesiano” do que a maioria dos médicos atuais.
Compreendemos, então, que o sintoma é a manifestação, o indicador de que o sistema está em desequilíbrio. Assim, a doença deve fornecer um sentido, mas o reconhecimento de sentido é uma tarefa complicada – filosoficamente. a causa finalis, um telos. A palavra “sentido” equivale à “função”, a função de trazer à consciência conteúdos coletivo-inconscientes, ou seja, nas palavras de Mircea Eliade; “sagrado é a função de dar sentido”. Parece-nos difícil traçar uma linha divisória entre saúde e doença. O trajeto da vida não é uma reta e, no caminho da individuação a libido flutua entre equilíbrio e desequilíbrio ao longo de todo o ciclo vital. Nesse sentido, podemos afirmar que ser saudável é estar comprometido com a integridade da personalidade, aberto às manifestações simbólicas que mudam tanto o inconsciente como o consciente, surgindo um terceiro elemento: a função transcendente. “Os fenômenos espirituais e cura são praticamente idênticos e subjetivamente se sentem como transcendentes” (MEIER, 1989, p. 157). Pensamos nesse terceiro elemento como sendo aqueles momentos de consciência ou de luz, de plenitude, em que nos sentimos como tocados por uma centelha divina, talvez o toque do deus Asclépio, o nosso curador-ferido.
Finalizaremos o texto com a sabedoria do I Ching – o livro das mutações:
Após uma época de decadência, vem o ponto de transição. A luz poderosa que havia sido banida retorna. Porém, este movimento não é provocado pela força [...] o movimento é natural e surge espontaneamente. Por isso, a transformação do antigo torna-se fácil. O velho é descartado e o novo, introduzido [...] A idéia do retorno baseia-se no curso da natureza. O movimento é cíclico e o caminho se completa em si mesmo. [...] Esse princípio básico, de fazer com que a energia nascente se fortifique através do repouso, aplica-se a todas as situações similares. A saúde que retorna após uma doença, o entendimento que ressurge após uma discórdia, enfim, tudo o que está começando deve ser tratado com suavidade e cuidado, para que o retorno leve ao florescimento (WILHEM, 1993, p. 92).