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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.41 no.2 São Paulo jul./dez. 2023  Epub 06-Dez-2024

https://doi.org/10.70435/junguiana.v41i2.41 

Artigo

Reflexões sobre agressão e violência: da biologia à cultura1

Reflexiones sobre agresión y violencia: de la biología a la cultura

Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-7956-5244

*Psicóloga. Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica–International Association for Analytical Psychology (SBPA–IAAP). Mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. ORCID: 0000-0002-7956-5244. e-mail: mpm_fto@uol.com.br


Resumo

É objetivo deste trabalho examinar a agressão e violência a partir de diferentes abordagens. Dentre as mais relevantes, destaca-se a contribuição de alguns etologistas que afirmam ser a agressão inata e relacionada à sobrevivência da espécie, sendo biologicamente determinada, bem como de alguns antropólogos que referem a cultura como determinante do comportamento agressivo. A relação entre violência e sociedade é discutida sob vários aspectos em sociedades primitivas, o banditismo social e a sociedade contemporânea. O conceito de arquétipo é apontado como possibilidade de trânsito entre essas diferentes visões, e as afirmações de Jung sobre a consciência como possibilidade de lidar com impulsos agressivos de maneira apropriada. Discute-se a influência da violência nos meios de comunicação e identificam-se formas criativas de lidar com a agressão.

Palavras-chave agressão; violência; etologia; antropologia; psicologia analítica

Resumen

El objetivo de este trabajo es examinar la agresión y la violencia desde diferentes enfoques. Entre los más relevantes, se destaca la contribución de algunos etologistas que afirman ser la agresión innata y relacionada a la supervivencia de la especie, siendo biológicamente determinada, así como de algunos antropólogos que refieren la cultura como determinante del comportamiento agresivo. La relación entre violencia y sociedad se discute bajo varios aspectos en sociedades primitivas, el bandidaje social y la sociedad contemporánea. El concepto de arquetipo se señala como posibilidad de tránsito entre estas diferentes visiones, y las afirmaciones de Jung sobre la conciencia como posibilidad de lidiar con impulsos agresivos de manera apropiada. Se discute la influencia de la violencia en los medios de comunicación y se identifican formas creativas de lidiar con la agresión.

Palabras clave agresión; violencia; etología; antropología; psicología analítica

Abstract

The present paper aims to discuss aggression and violence from different perspectives. The contributions of some ethologists who state that aggression is innate and related to species survival, being biologically determined are emphasized, as well as the contributions of some anthropologists that refer the culture as determinants of aggressive behaviors. The relationship between violence and society is discussed in different aspects, focusing primitive societies, social banditism and contemporary society. The concept of archetype is pointed out as a possible bridge between these different visions, and Jung’s view about conscience is analyzed as a way to deal with aggressive drives properly. The influence of violence in the media is discussed and creative ways of dealing with aggression are pointed out.

Keywords: aggression; violence; ethology; anthropology; analytical psychology

Agressão e violência são temas que intrigam o ser humano, pois, apesar de todo desenvolvimento alcançado pelo homem, manifestações de brutalidade ainda fazem parte do cotidiano em todos os continentes. Na literatura encontramos diferentes teorias que tentam explicar a agressão. Definida como um processo complexo de respostas do sistema endócrino e do sistema nervoso do animal, programado para ser desencadeado frente a estímulo de estresse (Wilson, 1987), a agressão pode ser influenciada tanto por fatores de motivação interna ou externa, quanto por fatores genéticos ou aprendidos (Johnson, 1979). Da biologia à cultura, não se esgotam as diferentes facetas da questão.

Observações sobre o comportamento animal mostram que a agressividade está presente nas mais diversas espécies, visando sobrevivência e adaptação. Disputa por território, alimentos e fêmeas têm sido argumento para explicar a agressão entre animais de várias espécies, inclusive o homem. Em estudo interessante sobre as raízes da agressividade humana, Goodall (1991) afirma que primatas defendem ferozmente seus territórios. Relata uma guerra que durou quatro anos, em que um grupo de chimpanzés se dividiu em dois subgrupos. A ala dissidente teve que ir para outro território, onde foram dizimados por membros do grupo inimigo ao longo do tempo. Goodall retrata o ódio despertado nos chimpanzés pela visão de um membro de outra comunidade. Fêmeas eram atacadas mais frequentemente, principalmente quando desacompanhadas. O contato pacífico podia acontecer apenas na adolescência, quando ocorrem encontros intercomunitários, que possibilitam que um jovem migre para outro grupo.

Semelhanças entre homens e chimpanzés foram relatadas por Wrangham e Peterson (1996), tais como coação sexual e dominação, em que o macho obriga a fêmea a viver num estado conjugal. Estupro também é observado nos macacos. Entre orangotangos, por exemplo, as fêmeas escolhem machos fortes e adultos fisicamente menos privilegiados, não têm muita chance de atrair uma fêmea, o que os faz usar a força para o acasalamento. Macacos, como os homens, vivem em grupos sociais em que há hierarquia e relações de poder. Chegam a lutar pela liderança, havendo descrição na literatura de disputas entre machos grandes pelo status, fertilização e controle das fêmeas, garantindo o sucesso reprodutivo. A agressão apresenta-se ainda de forma brutal quando um macho mata o bebê de outro, demonstrando força. Com isso garante a fidelidade da fêmea, que se sente protegida se acompanhada pelo pai de seu filho.

Examinando questões de gênero, Wrangham e Peterson (1996) afirmam que homens são mais guerreiros do que as mulheres. Relatam que a maioria das sociedades impedia que as mulheres participassem da guerra, pois seriam mais frágeis e menos eficazes. Consultando dados estatísticos, constataram que homens cometem mais crimes violentos que mulheres. Discutem a teoria do patriarcado concluindo que a teoria de Bahofen não tem sustentação sólida, uma vez que não foi encontrado qualquer registro antropológico que sustente a existência de matriarcado autêntico. Diferentes sociedades não estão livres da violência, que não é privilégio da cultural ocidental, uma vez que a oriental também a registra. Esses autores consideram o patriarcado como integrante da biologia humana e relacionam sua origem evolutiva no controle das mulheres e na necessidade de ser solidários com companheiros na competição com adversários de fora.

Um fato que merece atenção é que os primatas são das poucas espécies que matam o semelhante. A maioria das espécies desenvolveu sinais e rituais que sinalizam o conflito. Vence o mais forte, o outro, derrotado, afasta-se. Darwin (2000) descreve sinais e rituais que sinalizam divergência e poder que são suficientes para afugentar o intruso ou dissuadir o mais fraco a evitar o confronto. Nesse trabalho, Darwin descreve a postura do ser humano na agressão, apontando sinais característicos da espécie que revelam fúria, raiva ou indignação. Esses sinais são comuns ao redor do mundo, com algumas variações. Na fúria, por exemplo, o rosto fica vermelho ou roxo, a respiração é alterada e o corpo é mantido ereto, pronto para ação imediata. A boca geralmente fica firmemente fechada e os dentes rangem ou ficam cerrados. São comuns gestos de levantar a mão com punho fechado. Às vezes a reação é diferente. Há tremor e a voz fica presa na garganta. Os lábios retraídos expõem os dentes cerrados. Os estados de espírito de raiva e de indignação diferem apenas em grau da fúria e seus sinais são bastante semelhantes. Já no caso de ironia e provocação, Darwin observou a retração do lábio superior de tal maneira que o dente canino fica à mostra somente de um lado do rosto. Cita Maudsley, que observou muitos dessas reações em seus pacientes psiquiátricos e indagava se o fato de uma pessoa privada de razão, tornar-se brutal, não agia em conformidade com sua própria natureza.

Um estudioso de etologia, Lorenz (1979), ao examinar a agressividade entre os homens, levanta uma hipótese bastante interessante: a violência dos primatas surge em parte da própria elaboração de sua capacidade cognitiva. Acredita que as pulsões agressivas são inatas e que o homem não encontrou um canal apropriado para expressá-las na sociedade atual. Lorenz descreve inibições que controlam agressão em diferentes animais sociais e que os impedem de ferir ou matar seus irmãos de raça e afirma que há uma falha nessa inibição entre os humanos. O desequilíbrio provocado pela habilidade humana em desenvolver linguagem e pensamento abstrato seria fator decisivo nessa questão. A humanidade evoluiu mais rápido do que a barreira biológica contra agressão. O pensamento conceptual e a palavra influíram na evolução do homem porque produziram algo equivalente à hereditariedade de caracteres adquiridos. Mecanismos de comportamentos instintivos não estão à altura de se confrontar com novas condições criadas pelo homem, que, não tendo muita força física, criou instrumentos para viver. No entanto, segundo Lorenz, a mentalidade carnívora ainda prevalece. Ao desenvolver a inteligência e criar, por exemplo, armas de fogo e outras que permitem o ataque a distância, o ser humano foi mais rápido do que a evolução das espécies em geral, não dando tempo à natureza para criar mecanismos de defesas inibitórios, como as produzidas pela proximidade da vítima. Saint-Exupéry (1942), em Pilote de Guerre, exemplifica esse fato, ao relatar sua experiência em atirar bombas do avião por ele pilotado, atingindo pessoas indeterminadas, cujas faces não podia distinguir, na altura em que se encontrava. Sentia-se como atingindo formigas, cujo sofrimento não podia avaliar, sendo-lhes, pois, indiferente.

Wilson (1987), por sua vez, relaciona diferentes tipos de agressão e afirma que para cada espécie existe um nível ideal de agressividade, que é o mínimo necessário para garantir a vitória. Um agressor consagra à agressão um tempo que poderia investir em outras atividades essenciais, como acasalamento e cuidado com sua prole. Wilson indica causas internas para o fenômeno, como estresse e hormônios, e causas ambientais, como um intruso no território; disputa por alimento; superpopulação ou mudança de estação, principalmente a primavera, marcada pela reprodução sexual. Sugere que, para diminuir o comportamento agressivo e reduzir catecolaminas e corticosteroides a níveis apropriados, devem ser consideradas a densidade demográfica e sistemas sociais, de forma que a agressão apareça inapropriada e inadaptativa.

Os diversos fatores acima citados podem levar a pensar que de fato a agressão seja inata e relacionada à sobrevivência da espécie, sendo biologicamente determinada. Outros autores, no entanto, referem a cultura como determinante do comportamento agressivo. Mead (1976), por exemplo, descreve diferentes padrões de comportamento que variam de acordo com a cultura, afirmando que o meio induz os indivíduos a se atacarem. Educação, cultura, aprendizagem seriam elementos que tornariam um indivíduo mais ou menos agressivo. Retrata como culturas diferentes produzem indivíduos diferentes, exemplificando com comunidades onde os princípios são opostos. Cita os Arapesh, uma comunidade em que homens e mulheres unem-se em torno de uma tarefa comum, primordialmente maternal. As diferenças de gênero são respeitadas, preponderando a cooperação, sendo norma que indivíduos sejam gentis. Já a comunidade Mundugumor, uma tribo canibal não muito distante dos Arapesh, é caracterizada por ser mais hostil, competitiva e por um adestramento espartano na educação, produzindo jovens duros e agressivos.

Leakey (1982) também acredita que a influência cultural seja mais forte que a biológica. Afirma que o homem é um animal cooperativo e que, apesar dos instintos, a flexibilidade das respostas depende de forças ambientais. Animal é territorial para proteger seus recursos e a aprendizagem e a cultura têm papel fundamental para esse fim. Menciona um tipo de comportamento que pode ser interpretado de maneira oposta de acordo com o contexto, o canibalismo. No caso de endocanibalismo, trata-se de manifestação de amor e respeito, como tentativa de incorporar o outro e mantê-lo vivo. Já o exocanibalismo é belicoso, estando relacionado à agressividade, à destruição do inimigo. Leakey discute a importância das regras do casamento e a necessidade de alianças sociais e econômicas. Exogamia, troca, proibição do incesto, essa é a lei que fundamenta a cultura, que torna o homem diferente dos animais. A partir das relações de parentesco, estabelece-se a troca e os princípios que regem a vida em grupo, marcada pela cooperação. Assim, na sua concepção, antes de agressivo, o ser humano é cooperativo.

Pierre Clastres (1980), por sua vez, vê a guerra como inerente às civilizações “primitivas”. Afirma que as sociedades primitivas são violentas, o seu ser social volta-se para a guerra que tem características de universalidade. Clastres contesta o discurso naturalista que parte do princípio de que a agressão é um dado natural, uma vez que o homem é um caçador e a guerra seria um desdobramento da caça. Essa visão importaria a dissolução do sociológico no biológico. Também critica o discurso econômico que, equivocadamente, considera que a economia primitiva de subsistência seja de miséria, em que a raridade dos bens levaria ao conflito armado. Em sua opinião, as sociedades primitivas são sociedades de lazer em que não sobram excedentes. Clastres discute o discurso político, discordando de Levi Strauss, que considera que a guerra seria consequência de transações comerciais malsucedidas. Afirma que essas sociedades recusam o risco inerente ao comércio, pois não querem alienar sua autonomia e perder sua liberdade. A sociedade primitiva é espaço de troca e também de violência. A comunidade pertence ao grupo local, o território é unidade política, sendo espaço exclusivo de direitos comunitários. A relação com vizinhos é política, não há divisão de trabalho, nem produção de excedentes. A comunidade é totalidade e unidade ao mesmo tempo. O chefe é destituído do poder, fala em nome da sociedade baseado na lei ancestral. Os grupos vizinhos ocupam o lugar do Outro, como espelho. É uma sociedade que quer a dispersão. A guerra é condição de vida, pois afirma as diferenças. A troca seria a identificação, ameaça à autonomia da unidade. Assim, troca só com grupos próximos, as alianças dependem da guerra.

Outra forma de relação entre violência e sociedade é personificada por Robin Hood: o banditismo social. Nesse caso, atos violentos são considerados legítimos pela população, uma vez que o bandido é um herói que age em defesa dos pobres e oprimidos. A função do bandido é impor certos limites à opressão de uma sociedade tradicional ao preço da desordem, extorsão e do assassinato (Hobsbawm, 1970). O banditismo social deu lugar a movimentos politicamente organizados e embasados por ideologias, como o socialismo. Em uma reflexão sobre as relações entre violência e modernidade, Martuccelli (1999) assinala que a violência tinha um sentido positivo como expressão de luta de classe, de busca de justiça social. A violência manifesta um estado de conflito irreprimível em que os atores sociais, por não disporem de outros meios, recorrem à violência para se fazer ouvir. As revoluções exemplificam essa postura. No entanto, Martuccelli afirma que na modernidade prepondera a concepção negativa da violência, sinônimo de fracasso, de irrupção do “primitivo”. A sociedade atual é continuamente exposta ao risco e há um sentimento de insegurança que a sociedade é incapaz de controlar. Segundo esse autor, o risco provém não só das consequências das realizações técnicas da sociedade contemporânea, mas também da complexidade e implicações das ações. Uma decisão errada pode provocar risco ou condutas violentas. A política externa norte-americana e o terrorismo parecem exemplificar bem essa situação. Martuccelli aponta a profunda ambiguidade moderna, em que o indivíduo deveria ser capaz de se autogovernar a partir do seu interior, ao mesmo tempo em que vige o preceito de que o sujeito só domina a si mesmo na medida em que é controlado pelo exterior. Afirma que essa tensão oculta, já anotada por Durkheim, agora se torna evidente e explícita. A violência exprime assim o conflito entre essas duas realidades.

Procurando entender o fenômeno da agressividade com as ferramentas da psicanálise, em 1920 Freud cria a noção de pulsão de morte (FREUD, 1976a). Em Mal-estar na civilização, ao tratar dos instintos agressivos humanos, ele discute se o progresso da civilização poderia dominar as perturbações trazidas por essa pulsão (FREUD,1974). Em uma carta a Einstein intitulada Por que a guerra? (FREUD, 1976b), a violência aparece associada à satisfação de impulsos e desejos destrutivos do homem, mas aparece também como uma forma de resolver conflitos. Segundo Freud, a força muscular e a superioridade intelectual estão sempre ligadas ao poder e à violência seria superada por transferência de poder para uma unidade maior, conservada por elos emocionais entre seus membros. Para isso seria necessária a criação de uma autoridade suprema e aceitação de um poder necessário. No entanto, a tentativa de substituir a força real pela das ideias seria destinada ao fracasso. Freud acredita ser inútil tentar livrar-se dos impulsos agressivos do homem, sendo necessário desviá-los e estimular a pulsão de vida, Eros. Assim, entende que tudo o que estimula o crescimento dos elos emocionais entre os homens, como o amor e a identificação, deve operar contra a guerra, assim como tudo o que promove o desenvolvimento da cultura.

O conceito de arquétipo tal como desenvolvido por Jung é bastante interessante ao ser aplicado a essa questão, pois se trata de um conceito que permite sair do dilema cultura versus biologia, inato versus aprendido. O arquétipo é uma estrutura universal, que aparece em todas as culturas e se manifesta de maneira particular através de símbolos. Como padrão inato e universal, é quase um instinto, sendo plausível que talvez se identifiquem raízes biológicas da agressividade. No entanto, aparece de forma bastante particular, podendo se manifestar das mais diferentes formas de acordo com o contexto em que se apresente. Ai Mead talvez tenha razão. Em ambiente acolhedor como a comunidade Arapesh, as manifestações desse arquétipo podem ser integradas de forma apropriada e a agressividade tenderá a ser utilizada de maneira criativa. Em ambientes hostis, como a comunidade Mudugamur, o aspecto destruidor se evidenciará.

Jung trabalha com o conceito de polos opostos, afirmando que o mal é inerente à natureza humana, da mesma maneira em que não há luz sem sombra. O processo de individuação é caracterizado pela contínua conciliação dos contrários, representado pela união do claro e do sombrio. O desenvolvimento da consciência é a possibilidade de lidar com essas dimensões de maneira construtiva. Jung fala de uma ética inerente ao ser humano. O inconsciente é concebido como uma entidade autônoma, e a moralidade é uma propriedade universal da psique humana. A consciência impõe-se ao sujeito exigindo que o indivíduo obedeça a uma voz interior (Jung, 1993). Jung vai além, afirmando que ter consciência do que afeta o sujeito é a maneira de transformar em conhecimento a cegueira do afeto. O indivíduo deve saber como que está vivendo, compreender o que está fazendo e declarar-se responsável por seus atos. Indo de acordo com as colocações de Lorenz, Jung afirma que foi posto nas mãos do homem um poder divino (é capaz de construir e disparar uma bomba atômica, por exemplo) de maneira que não pode continuar cego e inconsciente (Jung, 1988). É através da consciência que pode desenvolver os mecanismos inibitórios, que pode lidar com o instinto agressivo e evitar a violência. Não adianta negar, dissociar ou projetar, mas sim reconhecer a natureza agressiva do homem e procurar e lidar com ela de maneira consciente. Essa é a única maneira de deixar de ser vítima de si mesmo e poder utilizar a agressividade como força adaptativa. Nesse sentido, Jurandir Freire Costa (1984), ao discorrer sobre o tema, faz uma distinção importante entre agressão e violência. A primeira pode ser pura expressão do instinto, não cabendo juízo de valor, ao passo que a segunda é um emprego desejado de agressividade. Assim, só existe violência no contexto humano, onde a agressividade é um instrumento de um desejo de destruição. Existe instinto agressivo que pode coexistir com a possibilidade de o homem desejar a paz e com a possibilidade de empregar a violência.

Finalmente, os meios de comunicação divulgam cenas violentas que invadem os domicílios. Paradoxo da sociedade moderna: violência mais próxima porque mais revelada, explícita e visível, porém, ao mesmo tempo, distante e virtual. A banalização da violência gera violência? Estudiosos garantem que o excesso de exposição leva à dessensibilização. Há estudos procurando esclarecer se há de fato relação de causa-efeito entre violência na TV e aumento de agressividade entre crianças e adolescentes (Queiroz et al., 2002). Gomide e Speranceta (2002) descrevem várias teorias da psicologia que têm sido usadas na tentativa de elucidar essa relação. Do ponto de vista da teoria etológica, uma estimulação violenta desencadeia raiva e esta emoção desencadeia comportamento agressivo. Zilmann afirma que o disparador universal da raiva é a sensação de estar em perigo, que pode ser sinalizada não apenas por uma ameaça física direta, mas também por ameaça simbólica à autoestima ou dignidade, provocando estímulo adrenal e cortical generalizado, que pode durar horas ou dias, mantendo o cérebro em prontidão para o estímulo e tornando-se a base sobre a qual reações posteriores se formam com rapidez (Gomide, Speranceta, 2002). Os estímulos presentes em filmes e jogos eletrônicos podem provocar essa reação fisiológica. O espectador identifica-se com os personagens, o agressor ou a vítima, ora encontrando canal para aliviar e seus impulsos agressivos, ora vivendo uma série de reações fisiológicas correspondentes ao medo, ficando em prontidão para reagir. O desafio é sofrer essa estimulação, se aperceber do que se passa consigo e poder agir conscientemente, e não apenas por reflexo, atuando a agressividade impulsivamente.

A sociedade contemporânea é caracterizada pela instantaneidade, pelo excesso de estímulos, pela velocidade das novas tecnologias que induzem ao mundo virtual. As crianças e os adolescentes do mundo moderno podem estar sendo privados de fonte importante de aprendizado de lidar com sua força e agressividade, através de experiências concretas, nas quais o objeto está fisicamente presente. Aprender a ganhar e a perder, a superar obstáculos, suportar frustração, persistir, ter força para não desistir, são comportamentos que têm como base a força da agressividade e são experimentados de maneiras muito diferente se há ou não um outro presente. Perder para o computador é diferente de perder de um amigo ou de um adversário real. Viver uma situação é diferente de vê-la em filmes. Essas experiências são importantes para o desenvolvimento e podem abrir espaço para a constelação do arquétipo do herói. O desafio é encontrar situações do cotidiano que favoreçam a interação, para que as pessoas enfrentem desafios no mundo concreto, além do abstrato, de maneira a lembrar que números podem representam coisas ou pessoas, que apertar botões pode provocar consequências concretas. Ao pensar em conviver com a agressividade e utilizá-la de maneira construtiva, temos que procurar locais onde possa ser experimentada e vivida de maneira saudável. A brincadeira é fundamental para o desenvolvimento. As brincadeiras turbulentas das crianças são também observadas entre outros mamíferos e fazem parte do treino para a vida adulta. Atacar, recuar, fugir, aprender a se defender. Se ferir o outro, aprender a se desculpar, a reparar o dano. Enfim, descobrir seus limites e os do outro, aprender a negociar e ter consciência sobre seus atos. Diferentemente do mundo virtual, indolor, mágico, onde quase tudo é possível, uma vez que o limite físico inexiste. Nesse sentido, praticar esportes é uma alternativa interessante. Um jogo não deixa de ser a guerra ritualizada: dois times em campo representam uma batalha, de forma criativa. O prazer de competir, da disputa é inerente ao ser humano, produz sensação física de bem-estar. O herói constelado favorece que a energia seja direcionada de forma apropriada. Caso contrário, a agressividade que não pode encontrar um canal adequado no mundo externo pode voltar-se conta o ego e patologias, como depressão, farmacodependência e outros transtornos do controle do impulso, tão comuns atualmente, prevalecem.

Referências

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Recebido: 05 de Junho de 2023; Aceito: 10 de Agosto de 2023

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Artigo originalmente publicado na Junguiana nº 23, 2005, p. 59-66.

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