Mulher, senta aqui no chão conosco!
Caríssima leitora, possivelmente estudiosa ou curiosa sobre os cambaleios da alma humana: antes de iniciar as reflexões acadêmicas, gostaria que você buscasse na sua história de vida algum momento em que teve sua existência violada pelo simples fato de ter nascido em um corpo culturalmente classificado como feminino. Acredito que esse não seja um exercício muito difícil - talvez você se lembre de até mais de uma situação. Agora, vamos aprofundar mais um pouco, caso você seja uma mulher que não cabe nessa classificação cultural: busque um momento em sua história de vida no qual você teve a sua alma violada por ter nascido em um corpo que não comporta as amplitudes da sua alma. Imagino que para você essa memória de violência apareça ainda mais rapidamente e talvez até com maior intensidade1.
Mesmo estimando a singularidade da memória que você evocou, é preciso enfatizar que essa violência não é algo que perpassa apenas sua alma, mas diz respeito a todas nós enquanto coletivo de mulheres. Em vista disso, a psicologia pós-junguiana apresenta um conceito que parece preencher uma lacuna não apenas nas elaborações teóricas junguianas, como também na prática clínica - ou seja, na sua práxis. Este conceito é denominado complexo cultural, o qual consiste em agregados emocionalmente carregado de ideias que tendem a se agrupar em torno de um núcleo arquetípico em um coletivo identificado (KAPLINSKY, SINGER, 2010), em outras palavras, tendem a considerar sofrimentos psíquicos como decorrentes de sofrimentos coletivos que dizem respeito também a aspectos culturais, tais como o machismo, o racismo, o consumismo etc. Essa perspectiva diverge do que outrora fundamentava a prática clínica, que assumia um ponto de vista individualizante ou simplesmente ignorava os enredamentos culturais em trâmite. Em resumo, embarcaremos agora nas ondas agridoces da brisa de Salvador, para discutir este tema com uma “amiga” que vou lhes apresentar.
Uma mulher, um muro e um luto
O diálogo com as imagens, em nossa cultura cartesiana, pode parecer, à primeira vista, estranho, especialmente para aqueles que não estão familiarizados com a obra de Jung. No entanto, essa técnica é comum em tradições que não se estruturam pela predominância do modo de pensar racionalista. A técnica da imaginação ativa, desenvolvida por Jung, é uma forma importante de acessar conteúdos inconscientes, que podem ser uma fonte valiosa de autoconhecimento. Através do diálogo imaginário, podemos integrar aspectos desconhecidos da psique e encontrar novas perspectivas no que diz respeito tanto ao individual como ao coletivo. Segundo Jung (2015):
A imaginação ativa, como o termo diz, designa imagens dotadas de vida própria e os acontecimentos simbólicos se desenvolvem de acordo com uma lógica que lhes é peculiar - quer dizer, logicamente, se a imaginação consciente não interferir. Começa-se pela concentração num ponto de partida (p. 188).
Por meio da prática da imaginação ativa, Jung percebeu que a mente consciente é limitada em sua capacidade de produzir novos conteúdos e insights significativos. Ao confiar em nossa mente consciente, muitas vezes somos restringidos pelas estruturas e pelos padrões habituais de pensamento, que nos impedem de explorar plenamente a riqueza e a profundidade do inconsciente. No entanto, quando nos abrimos para a imaginação ativa, estamos permitindo que o fluxo de imagens e símbolos emergentes do inconsciente encontre um espaço de expressão na consciência. É como se estivéssemos abrindo uma porta para um vasto reino interior, onde as possibilidades são infinitas.
Em Salvador, em meio à maresia, à poluição dos carros e à violência urbana, surgem nos muros os mais diferentes tipos de imagens, sejam elas grafites ou pixos2, estabelecendo diálogos com a população. Assim, a arte urbana vem sendo configurada à vida nas grandes cidades, por vezes como um meio de denúncia, outras para fins comerciais, ou ainda pela necessidade estética e ética de quebrar o cinza predominante nas metrópoles.
Este artigo propõe uma análise em a partir do conceito de complexos culturais, ou seja, da inextricabilidade entre individual e coletivo, portanto, considero os muros como um espaço emblemático, pois, em nossa cultura, cumprem a função de separar (ou tentar) o privado do público.
Dentre os seres gráficos habitantes dos muros do centro de Salvador, destaco uma mulher que reside num local de intenso movimento de pedestres, de forte comércio e trânsito (Imagem 1). Ali, ela pode ser percebida por um transeunte mais atento ou em momentos em que o engarrafamento nos obriga a desacelerar. Foi num momento como esse que tive o primeiro contato com ela, no ano de 20173. Naquele instante, escutei seu grito, dizendo-me o seguinte: “LUTO, pois, independentemente de quem somos, estamos juntas”.
Essa frase ecoou em mim por alguns dias, o que me levou a retornar ao local a pé para conhecê-la melhor. Chegando lá, percebi o seu rosto coberto por um capuz preto e seu corpo feminino que segurava com as mãos uma forma semelhante a uma barra escura dobrada pela força de seus braços (Imagem 1). Depois de uma troca de olhares entre mim e a mulher que habita aquele muro, ela me falou seu nome: Alvena. Debaixo do capuz, ela ria ao perceber o quanto eu não a conhecia, apesar de atravessar por anos o seu caminho. Me dispus a ouvir o que ela dizia e reconheci que, assim como eu, ela também era uma mulher habitando Salvador. Assim, ouvi a repetição da frase que a escutei gritar inicialmente: “LUTO, pois, independentemente de quem somos, estamos juntas”. Nesse momento do nosso diálogo, recebemos a ilustre presença de Clarice Lispector que mencionou para nós um trecho do seu livro “A paixão segundo G. H.”:
[...] preciso segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto, teus olhos e tua boca. Mas, embora decepada esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais (2012, p. 14).
Nesse livro, Clarice Lispector nos convida a refletir sobre a nossa humanidade, pedindo que seguremos sua mão enquanto ela compartilha suas reflexões. Em troca, ela nos oferece a própria mão, para que possamos refletir sobre nós mesmos. A autora utiliza a metáfora da barata - um inseto que a repugna - para criar um jogo intrincado que revela a profundidade da nossa humanidade. À medida que G.H., a personagem principal, reflete sobre esse “Outro”, ela termina por ingeri-lo, enfrentando aquilo que a repugna. Isso simboliza uma jornada de autoconhecimento profunda e desafiadora.
Lispector nos alerta para o perigo de vivermos apenas para sobreviver, sem percebermos quem somos e onde estamos. Esse estado de “insossidade”, ou “afeto triste” (SAWAIA, 2009) nos impede de mobilizar a luta e o luto necessários para encontrar significado em nossas vidas.
Na presença de Clarice, vi Alvena tensionando a barra da existência. Seu grito me remeteu às palavras da autora ao solicitar ajuda de outrem para sustentar um afeto. No caso de Clarice, o vazio existencial de uma mulher de classe média; no caso de Alvena, as vulnerabilidades próprias de sua existência gráfica na urbe. Ao me dispor a conversar com Alvena, percebi uma possibilidade de aproximação às angústias de nossa existência coletiva. Seu grito que me convidava a “estarmos juntas” me instigou a pensar no cuidado mútuo entre mulheres, na contramão das disposições de um complexo cultural machista que nos encaminha a competirmos umas com as outras. Nessa direção, encaro o quanto é difícil encontrar aspectos da vida que não reflitam o impacto de alguma forma de trauma de grupo (KIMBLES, 2014).
Diante desses fatores, aproximo-me dos conceitos de inconsciente cultural e complexos culturais, que visam demonstrar como traços partilhados culturalmente constituem nossa construção identitária. O primeiro é definido como uma área de memória histórica situada entre o inconsciente coletivo e o padrão manifesto da cultura (HENDERSON, 1986). Ou seja, consiste em um aspecto do inconsciente que diz respeito a um período histórico menor do que o coletivo - que apresenta as possibilidades já vividas de história da humanidade - e maior do que a história individual, sendo assim caracterizado pelos atributos específicos de cada cultura na qual os sujeitos se desenvolvem. Já o segundo conceito consiste em uma amplificação do primeiro, a partir da perspectiva da teoria junguiana. Assim, complexos culturais são definidos como:
sistemas dinâmicos de relações que atendem à necessidade individual básica de pertencimento e de identidade individual e de grupo por meio da ligação de experiências pessoais e expectativas de grupo, já que são mediadas por processos de etnia, raça, religião, gênero e/ou identidade social (KIMBLES, 2014, p. 79).
Dessa forma, os complexos culturais expressam-se segundo a dinâmica da constelação definida por Jung (2000), nos levando a ter atitudes e comportamentos sem o controle da consciência, porém com conteúdos que dizem respeito a traumas culturais.
Dentre os complexos culturais, temos em nossa sociedade a construção identitária do que significa ser mulher e junto a ela o que pode ser classificado como o seu oposto, o complexo de ser homem. Dessa dinâmica emerge a crença machista de que o pertencimento à categoria “homem” confere ao indivíduo uma superioridade à condição de existência daquelas cuja identidade de gênero não cabe na mesma definição. Quando esse complexo é constelado junto do complexo do capitalismo, podemos analisar a tendência da percepção cultural das mulheres como mercadorias, a qual surge a partir da relação social que transforma o ser que é mulher em um ser que é oprimido por ser mulher (GAYLE, 2004). Se considerarmos como esses complexos são atrelados uns aos outros, podemos reconhecer a falácia argumentativa na ideia de “mulheres machistas”, uma vez que mulher alguma se beneficia do machismo. Quando uma mulher reproduz comportamentos machistas, ela está atrelada ao complexo cultural que a oprime; a nível pessoal, está ainda inapta a perceber o intrincamento cultural que a constitui.
A partir dessa elucidação, volto-me ao diálogo com Alvena. Uma vez que me identifico com o complexo cultural de ser mulher em nossa sociedade, Alvena me transmite a sensação de suporte. Sua força ao tensionar a barra da existência e seu grito de “LUTO” me remetem a um apoio mútuo entre mulheres em nossas lutas diárias, afinal só uma mulher sabe o que significa andar à noite em uma rua escura, perceber alguém se aproximando e o posterior alívio ao quando esse alguém é uma mulher, visto que somos sustentadas e também sustentamos nossas congêneres ao recebermos os pesos do complexo cultural machista. Assim, ao ver Alvena de rosto coberto e corpo à mostra, ouço um grito de apoio e ao mesmo tempo um pedido de acolhimento para nossos corpos.
O grito de Alvena vai além do luto de morte e do luto de combate. Ao colocar a frase na primeira pessoa, ela pode demonstrar que está lutando, mas quando pronuncio e penso na palavra na primeira pessoa, engajo-me também nessa luta. Ou seja, não lutamos, pois neste sentido há alguém mais lutando por mim. Eu luto. Este eu, coberto por um capuz (uma máscara?), representa todas nós num eu coletivo.
A psicóloga e analista junguiana canadense Marion Woodman (1999) dedicou parte da sua vida à pesquisa sobre o que tem ocorrido com o feminino a partir dos problemas da modernidade. O pouco contato com o inconsciente, marcado pela racionalização do nosso mundo simbólico, parece ser um dos mais poderosos agentes de erosão da nossa psique.
Nesse sentido, a capacidade de ter ideias sem a muleta da razão se mostra imprescindível, pois valoriza a entrega ao mistério, a confiança no movimento do corpo e sua capacidade de receber o que a vida oferece. Valoriza-se, portanto, a consciência de que não podemos controlar a vida. Essa postura possibilita, inclusive, modos diversos de confecção escrita e embasamento crítico às prescrições androcêntricas nos saberes científicos (JAGGAR, 1997).
Cabe ressaltar que os aspectos femininos consistem em um conjunto de características afetivas e comportamentais presentes em homens, mulheres e pessoas não binárias, construídos no decorrer da história e gravado em nossa psique coletiva. A cabeça desconectada do corpo, em homens e mulheres, em todas as pessoas, seria uma compensação coletiva pelos anos de estancamento do feminino? (Foucault, 2011). Seria agora necessário mostrar apenas nossas cabeças? Em caso afirmativo, quando recuperaremos nossos corpos? Onde eles estão?
Todos esses aspectos podem nos levar a enxergar esse conjunto de conteúdos que permeiam o ser mulher estando intrinsecamente ligado ao complexo cultural do machismo. Dessa forma, navegando através e além dos muros soteropolitanos mergulharemos nas transformações ocorridas em Alvena, impulsionadas pelas mudanças no nosso panorama político, em paralelo com a nossa ferida coletiva.
Um complexo cultural, uma mulher e um governo misógino
Conheci Alvena em 2017, mas me detenho agora ao ano de 2019, marcado pela posse de um governo de ultradireita no Brasil. Àquela época, o presidente da república Jair Bolsonaro proferia que homens estrangeiros poderiam “ficar à vontade” se quisessem vir ao país “fazer sexo com uma mulher” (MARIZ, 2019). Bolsonaro se contrapunha àquilo que denominou como “turismo gay”. Escutar essa frase verbalizada pelo presidente de um país onde, para além dos alarmantes casos de violência homofóbica, 1.326 mulheres foram vítimas de feminicídio naquele ano4, pode aprofundar feridas rasgadas pelo complexo cultural do machismo. Em face dessa conjuntura política, seres como os da série “O Luto” emergiram nas ruas das cidades e, a partir dessa observação, podemos mensurar certa urgência em colocar o tema da violência contra as mulheres sob escrutínio público, levantando possibilidades de discussão e reflexão.
Desde o início do mandato de Bolsonaro, nossas mãos - que já precisavam estar unidas - tiveram que se apoiar ainda mais fortalecidas. Durante a transição entre um temeroso governo golpista para um governo abertamente genocida, um slogan/imagem de suporte coletivo criado pela artista e tatuadora Thereza Nardelli viralizou nas redes sociais com os dizeres “Ninguém solta a mão de ninguém” (Imagem 2).

Fonte: Thereza Nardelli. Disponível em: <https://www.behance.net/thereza_nardelli/> Acesso em: jan. 2023.
Imagem 2 Ninguém solta a mão de ninguém.
A ascensão do conservadorismo brasileiro foi sentida pelas mais diversas populações que constituem o país. Os seres gráficos não ficam ilesos às transformações coletivas, principalmente aqueles concebidos e dispostos nas ruas das grandes cidades. Ao cruzar novamente o caminho de Alvena no centro de Salvador, deparei-me com transformações em suas formas (Imagem 3), ela passou a segurar algo ainda mais nítido do que uma barra vergada em suas mãos: agora, ela exibia uma vulva. Pareceu-me um duplo movimento de mostrar sem pudores uma existência corpórea e, ao mesmo tempo, de proteger o próprio corpo. Essa foi a primeira coisa que a escutei dizer ao a reencontrar após esse golpe coletivo.

Fonte: Talitha Andrade. Disponível em: https://www.instagram.com/tali.boy/>.
Imagem 3 Alvena (Salvador, 2019).
De forma semelhante à nossa conversa anterior, aproximei-me dela pedindo licença e perguntei do seu interesse em bater um papo. Como sempre muito solícita, ela me acolheu e me convidou a sentar entre seus pés na calçada. Para não atrapalhar a intensa movimentação de transeuntes, a obedeci. Assim, enquanto ela me observava de cima para baixo, nossa troca de olhares nos levou a refletir sobre a luta dos nossos corpos pela existência digna - uma teia que tecemos através de pequenas imagens do movimento feminista, o qual ao longo de mais de um século continua se mostrando tão necessário.
O Movimento Feminista pode ser visto em três principais ondas: as sufragistas, a revolução cultural e a revolução institucional (SCOTT, 1995). Na primeira onda, tivemos um movimento liderado por mulheres brancas de classe média que reivindicavam o direito ao voto e a possibilidade de trabalhar fora do âmbito doméstico. Já na segunda, buscava-se não apenas o direito de utilizarmos os espaços e instituições de forma ativa, mas também pertencermos a esses espaços desafiando prescrições de gênero - foi a luta que ampliou o campo de ação da justiça para incluir assuntos anteriormente compreendidos como privados, como sexualidade, serviço doméstico, reprodução e violência contra mulheres (ARRUZZA et al., 2019). Assim, consolidou-se a máxima “o pessoal é político”, entremeando as bases econômicas e materiais da sociedade aos condicionamentos culturais em vigência, de modo a questionar a separação dicotômica entre assuntos públicos e privados. Já a terceira onda chamou atenção para o quanto as diferenças existentes entre as mulheres tornam a luta múltipla, visto que as demandas são interseccionadas por questões de raça, classe, sexualidade e outras categorias. Um viés desconstrucionista marcou a tensão entre as categorias até então mobilizadas.
À deriva desses movimentos, as lutas feministas permanecem em contínua transformação. Ainda que as pautas e os problemas confrontados sejam rearticulados, os direitos das pessoas historicamente subalternizadas sempre estão sob ameaça. Assim, mesmo que as reivindicações das sufragistas da primeira onda pareçam algo distante e consumado, é preciso nos mantermos atentas às nuances de interdição de nossos direitos políticos mais fundamentais.
Cara leitora, palavras também podem ser vistas como imagens. Ao passo em que o conservadorismo brasileiro ascendia nos últimos anos, veiculou-se notoriamente o seguinte slogan/ imagem: a mulher bela, recatada e do lar5. Como dito anteriormente, a primeira batalha enfrentada pelas lutas feministas foi o direito de sair de casa e participar ativamente da polis, assim, podemos ver nesse trançado histórico imagético (DIDI-HUBERMAN, 2011), uma tentativa de retroceder à luta inicial e mais básica que acreditávamos já termos vencido: o direito de pertencer ao espaço público. Essa tessitura pode nos levar a associar uma imagem ainda em voga da mulher como mercadoria - ou seja, como um objeto pertencente aos homens. Objetificadas, nosso local não pode ser de livre circulação, mas confinadas no subestimado âmbito do privado, junto de outras mercadorias de posse desses homens. A partir dessa lógica, os demais direitos são eclipsados e negligenciados, principalmente se considerarmos articulações complexas de interseccionalidade e diferenças interiores à categoria “mulheres”.
Durante meu reencontro com Alvena, ela me sugeriu que convidasse outra mulher para conversar conosco, mas dessa vez ela não queria que fosse Clarice Lispector. Alvena explicou que, embora antes fosse agradável ter conversas leves que a faziam flertar com Woodman, no atual contexto político de ascensão do conservadorismo, isso se tornou impossível. Ela me confidenciou que precisávamos de alguém sensível e politicamente engajada, e sussurrou o nome de Sueli Rolnik em meu ouvido. Eu não tinha tanta intimidade tanto com Sueli quanto com Clarice e não poderia chamá-la naquele momento. Decidi sair em busca dela e prometi a Alvena que retornaria em breve. Depois de um tempo, encontrei algo interessante para compartilhar com Alvena e me sentei no asfalto sob seus pés novamente, convidando Sueli para se juntar a nós. Ela acomodou-se ao nosso lado e ajeitando de forma charmosa os seus cabelos, nos apresentou as suas ideias de cartografias:
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (ROLNIK, 1989).
Quebrando o silêncio que se estabeleceu após a fala de Sueli, Alvena nos contou que aquela barra da existência se tornou obsoleta frente a nosso atual contexto social; nossos afetos contemporâneos enquanto coletivo de mulheres não são mais os mesmos dos denunciados no início de 2012. Nosso “desmanche” se deu agora não no caminho do cuidado, mas na exposição da ferida infligida. Mais do que clamar luto/luta na afirmação de estarmos juntas independentemente de quem somos, era hora de exibirmos despudoradamente - eu, Alvena, você, cara leitora - esse aumento da ferida cultural que marca nossos corpos e almas, afetando de forma direta as nossas existências.
Nosso sentimento de pertencimento ao grupo específico de identidade que denominamos ser mulher traz em seu núcleo arquetípico essa ferida rasgada em nossa cultura por aqueles que odeiam nossa identidade de gênero; uma ferida que afeta as que se identificam e as que foram compulsoriamente identificadas com essa identidade. Segundo Kimbles (2014. p. 92): “as fantasias estimuladas pelos complexos culturais, mesmo quando os estereótipos podem fornecer uma energia positiva para a autorrealização e aprimoramento, trazem dimensões compensatórias ou ausentes para o desenvolvimento pessoal”.
Ou seja, olhando esse aspecto por meio do complexo cultural que nos permite a identificação como mulheres, podemos perceber potências, mas também limitações, as quais se multiplicam quando pensamos na possibilidade de complexos culturais constelarem de forma concomitante, ou seja, quando passam a existir pontes entre as feridas culturais de diferentes âmbitos. Através desse raciocínio, vamos caminhar brevemente por dois exemplos: as mulheres pretas e as mulheres transgênero.
No primeiro caso, além de vivenciar as feridas do complexo cultural da misoginia, podemos no mínimo agregar mais algumas feridas: as mulheres pretas vivenciam a ponte entre este e o complexo do racismo, sendo que nesses casos a energia entre eles pode ser vista como acumulativa e consequentemente maior que dois. De forma semelhante, em nível de força da energia psíquica, as mulheres trans vivenciam o acúmulo dos complexos e ponte entre o complexo do machismo e da transfobia, o que traz como uma das consequências talvez mais nítida o fato de que a expectativa de vida dessas mulheres no Brasil seja de apenas 35 anos6 ainda podendo estar também incluso o complexo do machismo (ANTUNES, 2013 apud BENEVIDES, NOGUEIRA, 2020, p. 42), metade da média nacional. Se considerarmos ainda outras categorias informadas por complexos culturais, encontraremos o acúmulo/ ponte desses complexos, como, por exemplo, o machismo, o racismo, a homofobia, a gordofobia, o capacitismo, a xenofobia etc. Crenshaw, autora que estudou profundamente o tema, destaca a urgência de encarar os estudos feministas sob essa perspectiva, reconhecendo que esses sistemas de opressão frequentemente se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais múltiplos eixos se entrecruzam:
Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As mulheres racializadas frequ entemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nas intersecções em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o tráfego que flui através dos cruzamentos (CRENSHAW 2002, p. 177).
Crenshaw chama a atenção para as mulheres racializadas que muitas vezes estão posicionadas em um espaço onde o racismo, a classe e o gênero se encontram, o que as tornam particularmente vulneráveis a múltiplas formas de opressão. Para essas mulheres e outros grupos marcados por múltiplas opressões, a interseccionalidade torna-se fundamental para negociar o fluxo intenso de tráfego através dos cruzamentos entre esses sistemas opressores.
A partir dessa compreensão, podemos analisar o conceito de complexo cultural na psicologia analítica, passando a encará-los também por meio de um acúmulo da energia psíquica gerada pela ponte e concomitância entre complexos culturais distintos, mas que constelam juntos. Isso significa que as interações entre diferentes complexos culturais podem gerar um acúmulo de energia psíquica que pode se manifestar de forma intensa e complexa na psique dos indivíduos, levando a uma maior dificuldade de lidar com essas formas de opressão. A interseccionalidade, como conceito, propõe que não podemos analisar a opressão ou a discriminação de forma isolada, mas sim considerando a interação e sobreposição de diferentes eixos de poder, como gênero, raça, sexualidade, classe social, entre outros. A partir desse entendimento, torna-se possível perceber como os diferentes complexos culturais se entrecruzam e criam novas formas de opressão e marginalização, afetando de forma desproporcional pessoas que pertencem a múltiplas minorias.
No diálogo com a minha amiga Alvena, identificamos a ponte entre três complexos culturais que se entrecruzam e afetam diretamente a vida de muitas pessoas: o machismo, a heteronormatividade e a cisnormatividade. O machismo, por sua vez, é um complexo cultural que se baseia na ideia de que a masculinidade é superior à feminilidade e que os homens devem ter poder e controle sobre as mulheres. Esse complexo cultural se manifesta de diversas formas, como a violência doméstica, a discriminação no mercado de trabalho, a objetificação sexual e a falta de representatividade feminina em posições de poder.
A heteronormatividade e a cisnormatividade (PESSOA, 2021), por sua vez, são complexos culturais que pressupõem que todas as pessoas devem se identificar com um gênero binário (masculino ou feminino) e que a heterossexualidade é a orientação sexual “normal” e desejável. Esses complexos culturais excluem e discriminam pessoas que não se enquadram nessas definições, como pessoas trans e não binárias, além de perpetuarem a violência e a discriminação contra a comunidade LGBTQIA+.
Apesar de neste encontro conversarmos apenas sobre o complexo cultural do machismo na esteira da ascensão do conservadorismo, vimos o aumento da ferida de todos esses complexos citados e ainda outros, como o ambiental e o colonizatório, temas sobre os quais a psicologia analítica na contemporaneidade tem se debruçado, mas de uma maneira ainda tímida quando comparada a outras áreas de estudo.
Assim, por essa perspectiva de uma transformação imagética decorrente de acirramento de energias, podemos olhar do ponto de vista do que Jung (2002) nos apresenta sobre energia psíquica. Ao buscar os conceitos da física sobre conservação e transformação de energia, Jung argumenta sua compreensão sobre a dinâmica psíquica:
De acordo com proposta de Busse, o princípio da equivalência e o princípio da Constância. O princípio da equivalência postula que “para cada energia gasta, empregada para gerar uma condição em algum lugar, surge em outro lugar, uma quantidade igual da mesma, ou de outra forma de energia” ao passo que o princípio da constância diz que “a energia total [...] se mantém sempre a mesma, não sendo portanto, capaz nem de aumentar, nem de diminuir” (JUNG, 2002, p.14, par. 34).
Seu conceito de dinâmica psíquica é ampliado com a ideia de entropia:
Após fortes oscilações iniciais, os opostos vão se equilibrando, e pouco a pouco surge uma nova atitude, cuja estabilidade resultante é tanto maior quanto maiores eram as diferenças iniciais. Quanto maior a tensão dos opostos, tanto maior é a energia produzida; e quanto maior a energia, tanto mais forte é a força de atração constelada [... ] Por esse motivo, uma atitude produzida por amplas compensações é particularmente estável (JUNG, 2002, p. 14 par. 49).
Em vista disso, podemos inferir do ponto de vista da psique coletiva que o aumento da energia conservadora no Brasil - que vinha há alguns anos sendo trabalhada e potencializada em grupos fechados (como, por exemplo, o olavismo7) -, ao ser exposta e efetuada para todo o coletivo, fez surgir nesta dinâmica dos complexos culturais uma resposta dos grupos que são violados por esse complexo. No caso aqui relatado, podemos verificar essa dinâmica energética do complexo através de uma mudança imagética específica - Alvena -, ainda que não se reduza apenas a ela. Essa sombra coletiva tornou o jogo político muito mais complexo do que esquerdas e direitas, a fim de sustentar aquilo que é insustentável: a violação de direitos daqueles que desde o nascimento do Brasil foram espelhos projetivos de conteúdos sombrios não encarados.
Psique no asfalto
Chegando ao ápice da nossa conversa, convido você, cara leitora curiosa das aflições contemporâneas da alma humana - e que talvez esteja agora sentada confortavelmente em uma poltrona de analista, assim como eu também faço -, para que sentemos juntas na rua no nosso asfalto “sujo”. Se tiver dificuldade de se levantar depois, não se preocupe: lembre-se de que podemos estar de mãos dadas e dessa forma nos ajudarmos a voltar à superfície. Assim, sente-se, acomode-se comigo e com Alvena, e vamos tentar enxergar a cidade como nossa analisanda (HILLMAN, 1995), ou seja, trazer a pólis para nossos consultórios.
A partir dessa cena, reflitamos juntas o quanto aparece de forma nítida, materialmente visível, não apenas em nossos consultórios, mas na pele da cidade a transformação de algumas das nossas imagens coletivas como consequência da mobilização de um complexo cultural. A psique não habita apenas o consultório, ela habita a cidade. Precisamos olhar para a psique que carrega todo um emaranhado de personagens que chegam até nós - na maioria das vezes em forma de um único Deus, pois nem sempre a Medusa que se apresenta como nossa analisanda tem o Poseidon habitando apenas dentro dela; na maioria das vezes o Poseidon estuprador tem nome, corpo e endereço próximo ao dela, quando não o mesmo, e ele não existe de forma individual, mas se retroalimenta em um coletivo que depositou mais de 50 milhões de votos, em um homem que entre muitos outros exemplos, disse que não estupraria a Deputada Federal Maria do Rosário, pois ela não merecia por ser muito feia8.
Vislumbrei Alvena no trânsito de Salvador em 2017 e, instigada por seu grito, fui a pé procurar conhecê-la. Dois anos mais tarde, cruzei novamente seu caminho e encontrei outros traços em sua apresentação e presença no mundo. Pergunto-me sobre as transformações de Alvena ao longo dos quatro anos de bolsonarismo em operação. Um fragmento de olhar sobre 2022 nos revela tantas atrocidades que é difícil acompanhá-las. Por meio de excertos de algum jornal de junho de 2021, poderíamos fazer um recorte no qual em uma mesma semana soubemos do assassinato do repórter Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira após as suas lutas contra o garimpo ilegal na Amazônia; outra notícia trazia a situação de uma servidora pública que foi espancada por um colega no seu ambiente de trabalho e, mesmo com tudo filmado, o agressor foi liberado sem que a vítima tivesse ao menos uma medida protetiva; já outra matéria nos relatava a extinção da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, com o nítido desmonte desse setor no Brasil.
Conforme argumentei, Alvena reside na ferida de um muro e foi concebida em erosões urbanas cotidianas. Em diálogo com o complexo cultural do machismo que a informa, ela trocou a envergadura de uma barra pela exibição ostensiva de sua vulva. Ganhou chifres e enrubesceu. De que forma as corrosões infligidas incessantemente nos últimos tempos em nossa existência coletiva seguem a afetá-la? A existência de Alvena em um muro denuncia a arbitrariedade entre o individual e o coletivo, a propriedade privada e a rua pública. A própria distinção dicotômica entre o dentro e o fora é derivada de uma epistemologia europeia e androcêntrica (WONS, 2022). O muro que distingue o individual e o coletivo foi construído na fantasia do homem branco. Das pessoas que nos dão a honra de nos apresentar suas histórias, quantas delas nunca trouxeram para você as feridas da pólis?
O ano agora é 2023, é possível vislumbrar um lampejo de esperança. Todavia, até onde nos próximos quatro anos os nossos complexos culturais terão ao menos a possibilidade de diálogo? Onde estará a sombra azul do conservadorismo? Cara leitora - e quem sabe companheira de luta de cuidado da nossa ferida coletiva -, a despeito de mudanças de governo, algo é fundamental: precisamos lutar contra a desesperança em nós, pois esta é uma engrenagem constituinte do processo de alienação. Que deixemos ecoar em nossos corpos o seguinte convite:
Devemos, portanto, - em recuo do reino e da glória, na brecha aberta entre passado e o futuro - nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade do lampejo, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 154-5).
Uma estratégia possível para viver o luto e a luta contra a desesperança pode ser o cultivo da memória, e consequentemente o combate a qualquer esquecimento histórico. Como também, atendermos ao pedido de Clarice Lispector e do slogan/imagem de Thereza Nardelli, no qual nossas mãos se apoiam juntas.