Introdução
Em uma nota de rodapé na introdução de 1989, escrita por William McGuire, no livro Seminários sobre Psicologia Analítica, evidencia-se a presença de um animal, Joggi, durante os atendimentos de Jung. O cachorro, que “[...] tinha seu lugar na sala de consultas” (JUNG, 2014, p. 26), por consequência, acompanhava-o em seus atendimentos. Apesar disso, nos textos de Jung, não é possível encontrar referências sobre a importância do animal no setting terapêutico, mesmo que outras informações confirmem a presença do animal, como registros de cartas publicadas após a sua morte (JUNG, 2018) e informações coletadas em sua biografia, escrita por Hannah (2022), a qual expõe:
[...] Quando veio me chamar na sala de espera, segurava o cachimbo na mão e estava acompanhado por seu cão schnauzer, grande e cinzento, o qual evidentemente estava acostumado a tirar suas próprias conclusões sobre as pessoas que vinham ver seu dono (p. 266, grifo da autora).
Nise da Silveira foi a primeira pesquisadora a introduzir animais domésticos no âmbito psicoterapêutico no Brasil, durante a década de 1950, (PEREIRA et al., 2007) de modo a relatar tal experiência desenvolvida com seus pacientes no Hospital Psiquiátrico Pedro II. A autora destaca alguns [... ] exemplos retirados do volumoso dossiê da seção de terapêutica ocupacional sobre a relação afetiva dos esquizofrênicos com os animais” (SILVEIRA, 2019, p. 87), como o caso de Carlos, que apresentava dificuldades expressivas de comunicação verbal, pronunciando palavras e neologismos incompreensíveis. Silveira (2019) explicita que, a partir da relação entre Carlos e seus cachorros, foi possível atribuir significados às palavras incompreensíveis do paciente, por exemplo, “nonai”, utilizada para se referir ao cão com o significado de “valente”.
Silveira (2019) especifica que Carlos era responsável pelo cuidado das necessidades básicas dos cães, oferecendo-lhes comida, banho e escovação até que um deles foi morto por envenenamento, fato que ocasionou a regressão de seu quadro, tornando-se inacessível à equipe do setor terapêutica ocupacional. Após dois anos, a autora afirma que ele se aproximou e se vinculou a Sertanejo, outro cão que participava das atividades, o que foi crucial para mudanças significativas em sua relação com o mundo, de modo que conseguiu se comunicar por meio de frases gramaticalmente estruturadas quando se referia a animais e colaborasse com os monitores do setor. Segundo Silveira (2019):
Parece-me merecer observação atenta a maneira como se processa o relacionamento do homem (doente ou não) com o animal. Este relacionamento reflete a problemática entre o homem que se esforça para firmar-se na condição humana, e o animal existente nele próprio. Relacionamento difícil, de luta, sacrifício, confronto, amizade, desenvolvido ordinariamente numa trama complexa de projeções e identificações (p. 93).
É possível compreender que, para Silveira (2019), o animal servia como uma ponte com o mundo externo, uma vez que seus pacientes, diagnosticados com esquizofrenia, apresentavam dificuldades de estabelecer vínculos sociais com outras pessoas.
Conforme Jung (2000), a projeção é um fenômeno inconsciente e espontâneo, no qual há um direcionamento de questões individuais e coletivas a algum objeto, pessoa ou animal, cujas características podem representar aspectos importantes a serem integrados à sua própria consciência. Uma vez que o reconhecimento das projeções contribuiu para o processo de individuação, a presença de animais no contexto clínico poderia permitir algumas interpretações e análises diante dos materiais projetados pelo analisando nos animais.
O fenômeno da domesticação do cão
No tocante às origens dos animais domesticados pelo ser humano, Larson et al. (2012) explicitam que o cachorro foi o primeiro, mas não se sabe exatamente quando esse processo começou. Os autores chegaram a analisar geneticamente 1.375 cachorros de 35 raças e 19 lobos; mediante comparação dos resultados, concluíram que as raças ancestrais de cachorros domésticos não derivavam de regiões onde foram encontrados seus mais antigos registros arqueológicos, além de três das raças analisadas provirem de regiões além do território do Canis lupus, ancestral dos cães domésticos.
Segundo Larson et al. (2012), os resultados apresentados pelo estudo permitiram a conclusão de que o processo de domesticação é visível há mais de 15 mil anos, mas a presença desses animais nos continentes da África e da América do Sul iniciou há 1.400 anos, a partir dos movimentos realizados pelos seres humanos. Os autores também afirmam que novas tecnologias e constantes estudos genéticos são necessários, pois podem revelar histórias complexas sobre o fenômeno da domesticação.
Galiberti et al. (2011, apud SAVALI, ALBUQUERQUE, 2017) identificaram que o fóssil do cão mais antigo encontrado no mundo tem cerca de 31.700 anos, denominando um processo anterior à domesticação real, a protodomesticação. A teoria mais aceita define que esse processo teve início a partir da criação de um novo nicho ecológico pelo ser humano, com a geração de lixo, a qual passou a garantir alimentos a esses animais e, como consequência, adquiriram função de higiene e proteção contra intrusos, em função de suas audições e olfatos apurados (COPPINGER, COPPINGER, 2001, apud SAVALI, ALBUQUERQUE, 2017).
Mediante o avanço e a modernização das tecnologias, é possível constatar que não há mais razão biológica para que o ser humano possua animais em seu domicílio, visto que, hoje, a presença desse animal está mais relacionada à companhia e ao afeto, como descrito por Oliveira (2006). A autora acrescenta que há um fenômeno crescente e consumista em relação aos produtos para animais e, em muitos casos, eles são tratados como integrantes da família, recebendo, até mesmo, nome e sobrenome.
Animais como símbolos em mitos, contos de fadas e outras manifestações culturais
Segundo Von Franz (2020), os contos de fadas caracterizam-se como um modo de expressão arcaico, puro e próximo dos elementos do inconsciente coletivo. A autora identifica frequente presença de personagens animais nestas produções, os quais detêm caráter projetivo da esfera instintiva de seus leitores e ouvintes.
Bachmann (2016) explicita que tanto o cão quanto o gato são símbolos importantes para a humanidade. Ao discorrer sobre os cães, a autora expõe sua influência na linguagem, por exemplo, no uso de locuções como “cão estúpido”, “colocar o rabo entre as pernas”, “cão que ladra não morde”, tal qual nos mitos, como a figura de Anúbis, na mitologia egípcia, o deus responsável pelos ritos de embalsamamento e detentor dos conhecimentos necessários para o pós-vida. Bachmann (2016) também ressalta este fenômeno como representativo da instintividade do homem, o que pode trazer uma nova visão de mundo, implícita e desconhecida, sobre determinadas situações.
Em relação aos gatos, Bachmann (2016) expõe serem populares nos ambientes domésticos, caracterizando-os pela sua sensibilidade e segurança instintiva. A autora retoma que seus primeiros registros como animais de estimação foram encontrados no Egito Antigo, sendo que eram venerados sob a forma da deusa Bastet, conhecida por ser o Olho de Hórus, protetora e vigia do mundo dos mortos.
Além do fato do cachorro e o gato representarem a instintividade animal, Bachmann (2016) confere aos dois a característica de psicopompo, definido por Balieiro et al. (2015) como “[...] uma palavra de origem grega, que surge da junção de psyché (alma) e pompós (guia), indicando alguém ou algo que possui a função de guiar” (p. 296) a reinos desconhecidos, o que pode ser aludido ao âmbito inconsciente da psique.
Em relação às atribuições simbólicas da cultura sobre a imagem do cão, Bachmann (2016) explicita que era levado em batalhas com o objetivo de tratar as feridas dos soldados com sua saliva, promovendo a cicatrização, sendo assim, relacionado à cura. Ramos et al. (2005) também associam esse potencial à figura do ancestral comum do cão, o lobo: “[...] a assimilação da força agressiva, representada pela figura do lobo, mobiliza o arquétipo do curador em seu aspecto combativo e energético” (p. 159). Nesse sentido, Von Franz (2020) afirma que o cão era o companheiro de Esculápio, deus grego da cura, bem como capaz de se curar ao comer grama.
No tocante ao ancestral do cão, Ramos et al. (2005) identificam que o lobo possui diversas representações na cultura, por vezes, opostas. As autoras indicam essa contradição no conto da Chapeuzinho Vermelho, apresentando o lobo como um personagem devorador, em contraste com a história de Rômulo e Remo, alimentados por Lupa, uma loba-mãe protetora, a qual garantiu a sobrevivência das duas crianças que teriam fundado Roma. Ramos et al. (2005) encontram ligações entre os lobos e os rituais de bruxaria, morte e renascimento, cura, entre outros, que se assemelham aos processos de alquimia que podem ser concebidos como símbolos do processo de psicoterapia. Von Franz (2020) também identificou essa natureza dupla do cão nos contos de fadas, dado que, muitas vezes, é amigo e guia, mas também aquele que traz doenças e más notícias.
O gato aparece nos contos e mitos com significados parecidos aos do cão, mas há aspectos a se destacar, como sua proximidade com os seres humanos a partir de sua divinização pela cultura egípcia há milhares de anos (VON FRANZ, 2003). A autora afirma que Bastet, deusa egípcia felina, apresentava status na hierarquia dos deuses, pois era considerada a guerreira que lutava contra Apófis, cobra gigante que engoliria o Sol e causaria o apocalipse. Em contrapartida, Von Franz (2003) apresenta que, a partir da Idade Média, o gato passou a ser visto como próximo à bruxaria, criando uma ambivalência em relação aos seus significados e, consequentemente, aos símbolos associados a ele. Em muitas culturas, o gato passou a ser considerado como símbolo de poderes demoníacos ou a forma assumida por bruxas para amaldiçoar pessoas.
Acerca de tais aspectos ambivalentes, Bachmann (2016) identifica que o gato é associado à deusa Afrodite na mitologia grega, aproximando seu significado a aspectos do feminino e da cura. Em contrapartida, Von Franz (2003) afirma que, durante a Idade Média, o feminino foi reprimido pelo cristianismo, acarretando perseguições de mulheres destoantes do padrão imposto pela religião e, consequentemente, de gatos. Ainda, Von Franz (2003) atribui qualidades mercuriais ao gato, uma vez ser constantemente representado como o guardião da árvore da vida, mediador de conflitos, guia da alma, o que permite aludi-lo a um psicopompo, assim como o cão.
Animais como coterapeutas no consultório psicoterapêutico
Em relação ao uso de animais como coterapeutas em consultório psicoterapêutico, não há registros dessa prática nos textos de Jung, contudo, o autor realizou reflexão sobre os animais como objetos de projeções dos pacientes, de modo a poderem ser alvos de sua transferência (1998). Nesse sentido, outros autores buscaram descrever esse fenômeno em seus textos.
Brousselle (2018) relata sua experiência clínica com sua gata, afirmando que esta havia se instalado em seu consultório e o analista não sabia o que fazer em relação aos pacientes que atenderia. Então explicita que seria uma ilusão imaginar que o analista teria controle sobre seu setting, sendo que o paciente poderia reconhecer qualquer transgressão nesse ambiente, como a presença de um animal.
O autor exemplifica sua fala por meio do caso de uma mulher de 42 anos, diagnosticada com depressão grave, cuja queixa principal era a dificuldade de confiar em homens. Certo dia, passou a acariciar a gata e atribuiu-lhe o gênero masculino, ao passo que dizia que todos os homens eram maus e apenas os animais eram bons, desse modo, Brousselle (2018) ficou surpreso pela confusão da paciente acerca do sexo do animal, o que foi um fator crucial para a análise.
Na sessão referida, a paciente começou a se lembrar dos gatos de sua infância - “[...] cette époque où la frontière entre l’animal et l’humain est floue”1 (BROUSSELLE, 2018) -, o que leva o autor a perceber que a paciente atribuía inconscientemente similaridades entre a gata e ele, como analista, o que poderia decorrer do fenômeno da transferência.
A analista junguiana Renard (2020) inicia seu texto afirmando que, apesar de Freud e Marie Louise Von-Franz terem relatado a presença de seus animais de estimação em seus consultórios, não registraram seu papel nas sessões.
Renard (2020) relata que atendeu durante sete anos com uma cadela-guia, Phèdre, o que não condiz ao setting analítico tradicional. Desde a primeira ligação, avisava seus pacientes de que possuía deficiência visual e atendia com a presença de sua cadela, a fim de verificar se a pessoa possuía alergias, fobias ou qualquer questão. A autora identifica que a cadela fazia parte da transferência mesmo que seus pacientes fossem alheios à sua presença, aspecto sobre o qual refletiu após a morte do animal.
A autora analisa que sua cadela desempenhou papel de objeto transicional2 para alguns pacientes e cada um deles se concentrava em aspectos diferentes - ternura maternal, agressividade, presença corporal, sexualidade, entre outros -, que também se manifestavam em seus sonhos, de modo a serem concebidos como expressões de suas psiques.
Imber-Black (2009) discorreu sobre sua experiência com animais coterapeutas em terapia familiar, destacando o caso de uma família que só encontrou conforto para a situação que enfrentava a partir da presença de um animal. Segundo o autor, as memórias felizes vivenciadas por uma família constantemente remetem aos animais de estimação, assim, defende serem necessários estudos acerca da relação de famílias com seus animais.
Abrams (2009) expõe que utiliza seus animais como coterapeutas em setting terapêutico, afirmando que aprendeu a entender suas linguagens corporais durante os atendimentos. Segundo a autora, a partir do comportamento dos cães, é possível entender se seus pacientes estão mais deprimidos ou ansiosos, o que a ajuda a conduzir a sessão e perceber detalhes que seriam perdidos sem a presença deles. Ademais, Abrams (2009) explicita que a presença de seus cães em seu consultório foi crucial para identificar casos de violência sexual contra crianças, exemplificando o caso de uma menina que quis contar um segredo ao cão e, a partir disso, pegando-o no colo, contou à terapeuta que estava sofrendo abuso sexual. A autora identifica a presença dos cães como uma ponte entre ela e seus pacientes, afirmando que, provavelmente, a menina se sentiu segura para compartilhar a situação vivida por ela em decorrência da presença do cão.
Schneider e Harley (2006) avaliaram os efeitos da presença de cães no contexto clínico e sua influência na percepção sobre os psicoterapeutas. As autoras identificam que o sucesso da terapia está diretamente relacionado ao vínculo estabelecido entre paciente e terapeuta, sendo que a presença de animais facilitaria a criação desse vínculo. Para comprovar a hipótese, as pesquisadoras conduziram uma pesquisa com a participação de 85 pessoas da Universidade de Toronto, com idades entre 18 e 52 anos.
Os participantes deveriam assistir quatro vídeos de apresentação de dois psicólogos - um homem e uma mulher e, então, preencher um questionário sobre as impressões sobre eles. Os vídeos apresentados foram: a) psicoterapeuta homem sozinho; b) psicoterapeuta homem acompanhado de um cão; c) psicoterapeuta mulher sozinha; d) psicoterapeuta mulher acompanhada de um cão. Os vídeos foram filmados nos respectivos consultórios de cada psicoterapeuta, cujos cães foram aqueles que apareciam nas gravações transmitidas.
Os resultados apresentados pela pesquisa sinalizaram que a presença dos animais influenciou positivamente a avaliação dos participantes em relação aos psicoterapeutas, ao conferirem características como afetividade e confiança, mas não, competência. Por fim, as autoras explicitam que os resultados são encorajadores em relação ao uso de animais em consultório clínico, principalmente, com a intenção de melhorar o vínculo estabelecido entre terapeuta e paciente.
Método
A pesquisa da qual se trata este artigo foi realizada como trabalho de conclusão de curso de graduação em psicologia, sob a perspectiva da psicologia analítica e caráter qualitativo, buscando a compreensão acerca da utilização de animais no contexto clínico. Os protocolos éticos dessa pesquisa estão de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/12 e obtiveram aprovação pela Plataforma Brasil, sob nº 53185321.1.0000.5482.
Em relação à fundamentação teórica e revisão bibliográfica, foram realizadas pesquisas nas Obras Completas de Carl Gustav Jung, em produções de pós-junguianos e em plataformas de artigos indexados nos idiomas português, inglês, espanhol e francês, os quais contribuíram com os estudos e facilitaram a análise dos dados obtidos nas entrevistas.
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semidirigidas com cinco participantes, psicólogas que atuavam com animais em seus consultórios, utilizando a abordagem da psicologia analítica. Tais encontros tiveram duração de 22 a 40 minutos e foram conduzidos na modalidade online, por meio da plataforma Microsoft Teams, garantindo o sigilo e o uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A análise dos dados foi realizada com base na transcrição dos áudios gravados das entrevistas, a partir dos conteúdos que surgiram das respostas das participantes. Posteriormente, foram feitas comparações entre as respostas das entrevistadas e análises a partir da perspectiva da psicologia analítica.
Resultados
Perfil das pessoas entrevistadas
As cinco pessoas entrevistadas identificam-se com o gênero feminino, têm idades entre 25 e 59 anos e atuam profissionalmente nos municípios de São Paulo e Guarujá do estado de São Paulo. As entrevistadas são graduadas em psicologia, realizaram cursos de pós-graduação em psicologia analítica e possuem tempo de atuação na área clínica que varia de dois a sete anos. Durante o período da pandemia de SARS-COV-2, atenderam de modo online e apenas uma retornou à modalidade presencial.
Animais domésticos em atendimento psicoterapêutico
As participantes relataram principalmente a presença de seus próprios animais domésticos durante o atendimento a seus pacientes, especialmente cães e gatos. Também houve o relato da presença de animais que não fossem das terapeutas, como em uma clínica, na qual os gatos eram alimentados e acabavam entrando na sala durante o atendimento, além de ter sido reportado o barulho dos cachorros dos vizinhos.
Em vista da situação de isolamento social decorrente da pandemia do vírus SARS-COV-2, durante a época da pesquisa, é possível compreender que os animais se apresentaram de modo espontâneo no atendimento online, devido ao fato de seus tutores terapeuta e paciente estarem em seus ambientes, desse modo, foi possível observar a relação dos atendidos com os animais de estimação. O atendimento presencial com os animais, relatado por uma das participantes, também parece ter ocorrido espontaneamente, apesar de a terapeuta utilizar-se de sua presença com o intuito de facilitar o atendimento clínico.
Outro aspecto importante a ser destacado é que os animais das psicoterapeutas, no contexto online, aproximavam-se mais delas, enquanto na modalidade presencial, a possibilidade de interação dos pacientes com os animais parece ter sido maior.
Relação psicoterapeuta e animal no processo de atendimento
As entrevistadas afirmaram sentir-se mais confortáveis com a presença de seus animais, sendo que, em alguns relatos, houve a preocupação acerca de como seria se retornassem ao presencial. Uma das participantes também destacou que passar a mão em sua cachorra auxiliava a se manter menos “desestruturada” (sic), como se fosse um ponto de apoio. Outro fator relevante foi a sensação de não se sentirem sozinhas diante da presença de seus animais, em contraponto à referida solidão do psicólogo no trabalho clínico.
Abrams (2009) relata que, durante os seus atendimentos com a presença de seus animais, identificou que eles se aproximavam dela na tentativa de acalmar suas emoções, contribuindo para a reflexão de que os animais, sobretudo os cães, conseguem identificar comportamentos humanos. Esta afirmação é consonante com o escrito por Savali e Albuquerque (2017) sobre o cão apresentar alto nível de sociabilidade, fator que lhe confere amplo repertório sobre os comportamentos humanos e contribui para maior comunicação entre espécies.
Além disso, as participantes identificaram que a presença do animal facilita a criação de vínculo, palavra que três das participantes utilizaram diretamente durante as entrevistas e duas citaram-na indiretamente. Tal fato parece estar de acordo com o que foi produzido até o momento sobre a utilização de animais em consultórios, dado que facilita a criação de vínculo terapêutico entre o paciente e o psicólogo (ABRAMS, 2009; BROUSSELLE, 2018; IMBER-BLACK, 2019; RENARD, 2020). Abrams (2009), inclusive, expõe que identifica o sucesso em atendimentos clínicos a partir do vínculo que ela estabelece com seus cães.
Atendimento online e presencial
É necessário destacar a diferença entre o modelo de atendimento presencial e o online, uma vez que a maioria das psicólogas relatou que atendiam de fone de ouvido e, no decorrer das entrevistas, refletiram que seus animais percebiam mais o comportamento delas do que dos próprios pacientes, o que ocorreria de modo diferente no contexto presencial.
Ainda, a participante que retornou aos atendimentos presenciais expressou que ocorria maior interação entre os pacientes e os animais nesta modalidade.
Relação animal e paciente no processo psicoterapêutico
As participantes relataram que os pacientes gostam dos bichos e, muitas vezes, acabam mostrando seus próprios animais, sendo que, em alguns casos, eles se tornaram o conteúdo da terapia.
Dentre os casos emblemáticos relatados pelas entrevistadas, uma das experiências tratou-se de uma psicóloga que estava atendendo uma paciente há mais de cinco anos e percebia que ela tinha algo a falar, mas não conseguia. Em um dos encontros, a paciente pediu para conversar com a cachorra da terapeuta e contou a ela que sofreu abuso sexual quando mais nova. Segundo a participante, esse foi um momento decisivo para o processo terapêutico e se não fosse pela presença do animal, tal informação demoraria muito para ser expressa.
Abrams (2009) observou um caso semelhante, no qual uma criança que atendeu chegou a pedir para contar ao seu animal um segredo, a saber, tinha sido vítima de um abuso sexual. A autora identificou que a criança transferiu para ela a confiança que depositou no animal para que, assim, pudesse contar e elaborar o trauma durante os atendimentos. Tal como relatado pela entrevistada, Abrams (2009) afirma que acredita que sem a presença do cão, a criança, talvez, não contasse a ela ou demoraria muito tempo para que pudesse falar sobre este fato.
De acordo com o relato das entrevistadas, a utilização de animais no atendimento clínico de crianças parece ser algo que merece destaque, pois promove a expressão de lembranças de seus animais e auxilia a construção de vínculo. Ainda, os animais representam conteúdos arquetípicos nos contos de fadas, os quais são mais compreendidos pelas crianças pequenas (VON FRANZ, 2020), que estabelecem proximidade com tais personagens, possivelmente, em virtude de o desenvolvimento biológico infantil ocorrer paralelamente ao desenvolvimento psíquico, logo, quanto mais nova é a criança, mais próxima encontra-se do inconsciente coletivo (FORDHAM, 2002).
Conforme todas as entrevistadas, a presença dos animais contribuiu positivamente para que os pacientes trouxessem aspectos importantes de si para serem trabalhados na terapia.
Animais como símbolos
Identificou-se a presença dos animais como símbolos no contexto clínico, principalmente, mediante sonhos, sincronicidades e projeções de aspectos dos pacientes em relação aos seus animais de estimação reais. Alguns desses exemplos foram explicitados durante as entrevistas, como os sonhos de pacientes com os próprios animais e a escolha de adotar um animal de estimação em uma fase importante da vida. Segundo as psicólogas, esses fatos se mostraram relevantes para o processo terapêutico, pois refletiam aspectos que estavam trabalhando quando emergiram.
A presença de animais em contos de fada, mitos, fantasias, entre outros, é contemplada na bibliografia, tal como exposto por Bachmann (2016), ao relatar que o gato e o cão, analisados como símbolos nessas produções culturais, possuem característica de psicopompo, ou seja, de personagens que desempenham a função de mensageiro e guia entre mundos distintos (BALIEIRO et al., 2015), a qual também é realizada pelos psicoterapeutas, ao se considerar seu papel de promoção da comunicação entre os âmbitos psíquicos. Logo, acredita-se não ser ao acaso que cães e gatos tenham surgido ao longo dos atendimentos conduzidos pelas participantes e se mostrado perceptíveis a elas.
Formação em cursos na área da saúde
Nenhuma das participantes realizou comentários sobre a realização de cursos na área da saúde que qualificassem o trabalho com animais em consultório clínico. Ao longo das entrevistas, foi possível compreender que essa prática surgiu de forma espontânea, por exemplo, a partir do contexto da pandemia que fez com que as pessoas atendessem em suas próprias residências ou dos gatos que entravam no consultório através de uma janela.
Outro ponto importante exposto por uma das entrevistadas refere-se à necessidade de o animal ter um treinamento específico para poder auxiliar como coterapeuta. Abrams (2009) identifica a necessidade de que os animais utilizados durante os atendimentos recebam treinamentos específicos de comportamento animal para que tanto ele quanto o psicólogo possam aprender a se comunicarem melhor e respeitarem seus limites.
Animais como coterapeutas
Ao serem questionadas sobre como entendiam a função dos coterapeutas, sem fazer relação direta aos animais, a maioria das participantes correlacionou-os a esse papel no contexto terapêutico, sendo que uma delas citou as experiências de Nise da Silveira com os animais no hospital psiquiátrico.
Nesse sentido, as participantes indicaram que a presença dos animais é benéfica tanto para elas quanto para os pacientes, de modo que os animais podem ser considerados coterapeutas em atendimento clínico. Essa conclusão também foi observada nos artigos de: Abrams (2009), Brousselle (2018), Chouinard (2021), Cirulli et al. (2011), Conrath e Ouazzani (2021), Imber-Black (2019), Renard (2020), Silveira (2019) e Silveira (1998).
Análise
Tendo em vista os significados atribuídos ao cão e ao gato, pode-se considerar que estes são alvos de projeção por parte dos indivíduos que, com eles, interagem, seja de modo direto ou por meio de suas expressões em enredos de histórias e mitos.
Ademais, os animais também parecem carregar valor simbólico, sendo dotados de numinosidade. Importante destacar que o símbolo é definido por Jung (1998) como “[...] um conceito, uma figura ou um nome que nos podem ser conhecidos em si, mas cujo conteúdo, emprego ou serventia são específicos ou estranhos, indicando um sentido oculto, obscuro e desconhecido” (§ 416). Dessa forma, segundo o autor, os símbolos são formados espontaneamente, a partir da denominada função transcendente, cujo objetivo é trazer à consciência o material imerso no inconsciente. Jung (1998), ainda, destaca que os símbolos são materiais inesgotáveis em sentido, podendo se manifestar individualmente, como em sonhos e fantasias, ou em produções coletivas da humanidade, por meio das artes, mitos, contos, dentre outras.
O símbolo pode emergir a partir de qualquer relação que o sujeito possui com o mundo e lhe cause um arrebatamento, desse modo, a relação entre os seres humanos e os animais pode ser considerada simbólica, uma vez que é permeada por afeto e mobilização intensa. Assim, a presença de animais em contos de fadas, sonhos, mitos, folclores e outros é marcada pela necessidade de o homem caracterizar e significar conteúdos psíquicos, por meio de projeções de comportamentos humanos em animais, remetendo a características observadas, ao longo do tempo, pela humanidade. Ainda que essa significação possa diferir entre as culturas, é possível criar um paralelo e entender que o animal parece carregar valor simbólico para o ser humano.
Em relação às entrevistas, os resultados obtidos assemelham-se ao encontrado em publicações científicas, especialmente, sobre a presença dos animais alterar o espaço terapêutico e a relação de vínculo entre paciente e terapeuta, bem como permitir maior apoio emocional durante os atendimentos, tanto aos psicólogos quanto aos pacientes. Essas dimensões foram encontradas ao longo do discurso das participantes, de modo que é possível compreender que os animais podem ser utilizados em atendimento psicoterapêutico como coterapeutas, ao se considerarem os benefícios que apresentam para o processo terapêutico e o fortalecimento do vínculo entre o paciente e o terapeuta.
No que tange aos materiais arquetípicos, os animais fizeram-se significativamente presentes ao longo dos atendimentos, sobretudo, por meio de sonhos e projeções. Nesse sentido, a utilização das ferramentas da psicologia analítica para compreender os símbolos emergentes no transcorrer dos atendimentos é de fundamental importância para contribuir com o desenvolvimento psíquico dos pacientes, o que foi ilustrado pelos casos que as participantes apresentaram e o rumo que os atendimentos tomaram após as respectivas análises simbólicas. Recomenda-se que novos estudos sejam realizados a partir de análises simbólicas sobre animais e suas representações em produções culturais, de modo a complementarem o material já produzido sobre o tema.
Importante ressaltar que, assim como a bibliografia demonstra, os relatos das participantes indicam que as crianças seriam mais receptivas ao atendimento com animais. Assim, novas pesquisas devem ser realizadas com o intuito de compreender melhor essa relação.
Apesar de não ter sido abordada no trabalho, é nítida a diferença existente entre os atendimentos presenciais e online, fato que se mostrou constante durante as entrevistas, porém não foi encontrado trabalho acadêmico, até o momento, que correlacione essa diferença e o atendimento com animais no contexto terapêutico.
Constatou-se, ainda, que a produção de materiais sobre o tema foco deste artigo é escassa, principalmente no Brasil, apesar de Nise da Silveira ter sido uma das pioneiras da prática e estudo do uso de animais em contexto terapêutico, durante a década de 1950. Assim, foi necessário realizar pesquisas em outros idiomas como inglês, francês e espanhol, para que fosse possível embasar a pesquisa de modo satisfatório.
Conclusão
Essa pesquisa buscou, portanto, contribuir com o material já existente com o intuito de compreender o objeto de estudo, expondo as experiências autênticas e espontâneas das participantes psicoterapeutas. A partir desses relatos, foi possível depreender que o animal pode ser utilizado como coterapeuta no contexto terapêutico, ressaltando que novos estudos devem ser elaborados para que o tema possa ser ampliado e aprofundado.
Nesse sentido, é válido mencionar que já existem psicólogos que utilizam animais no consultório clínico, mas não há sistematização dessas experiências e produção de material científico pertinente para sustentar tal prática, denotando novamente a necessidade de aprofundamento da temática.