A psicologia constituiu-se como disciplina, área do conhecimento e da pesquisa organizada pela metodologia científica europeia, ainda no século XIX. O objetivo primeiro era atuar em instituições como escolas, presídios e hospitais, promovendo uma compreensão de indivíduo que possibilitasse o controle dos corpos por meio do mapeamento de como eles se comportavam. Nesse sentido, a psicologia emerge como um campo marcado pelo pensamento europeu liberal que sustentava a primazia do indivíduo ao mesmo tempo em que tentava discipliná-lo para o suposto progresso da sociedade (Figueiredo & Santi, 2003).
A efervescência intelectual europeia dos fins do século XIX às primeiras décadas do século XX deu à luz a psicanálise e outros campos férteis de escuta individual como, por exemplo, a orientação fenomenológica de Binswanger e, afinal, a psicologia analítica de C. G. Jung. Este último relacionou-se com a psicanálise entre 1906 e 1912, como sabemos, seguindo, deste ano em diante, um caminho próprio na elaboração de ideias. Em comum com a psicanálise, a psicologia analítica partilha a hipótese do Inconsciente. Entre as muitas divergências das propostas psicanalíticas, contudo, está a própria noção do inconsciente do qual se tenta falar.
A proposta de C. G. Jung de inconsciente não consistiria meramente nos conteúdos reprimidos pelo sujeito, que precisariam constituir um outro espaço psíquico. Para Jung (2015, vol. VII/2), o Inconsciente seria formado a partir de três vetores, a saber: o reprimido de Freud e da Psicanálise; os conteúdos esquecidos por falhas da memória; tudo o que é desconhecido. Esta noção de Inconsciente é formulada a partir de uma oposição à Consciência, trazendo uma ideia final de que o desconhecido, o esquecido e o reprimido estão de alguma forma unidos constituindo o grande inconsciente.
O interesse de Jung em ampliar a ideia de Inconsciente que transitava pela Psicanálise no começo do século XX justifica-se pelo seu trabalho com pacientes psicóticos e pela observação, nos sonhos, nos relatos e nas produções manuais desses pacientes, de imagens que remetiam a motivos presentes em religiões e em mitologias. Ao reconhecer tais imagens, aparentemente sem conexão umas com as outras, em diferentes culturas, Jung (2014, vol. IX/1, par. 711) postula o conceito de inconsciente coletivo, “uma disposição capaz de produzir em todos os tempos e todos os lugares os mesmos símbolos ou, pelo menos, muito semelhantes entre si”. Não devemos deixar de notar ainda os experimentos de associação de palavras de Jung (2012, vol. II), os quais deram um lugar mais destacado à ideia de esquecimento, que poderia ser ou uma derivação do reprimido, no caso de se esquecer daquilo que não se deseja lembrar, ou um esquecimento trivial relegado ao inconsciente da memória.
É importante que pausemos a reflexão aqui para reconhecer o giro epistemológico junguiano na hipótese de inconsciente coletivo. Até publicar a tese dos arquétipos e do inconsciente coletivo, primeiramente vista em público em Símbolos da Transformação, os debates na Psicanálise tratavam de um inconsciente como efeito de certas experiências do indivíduo em nossa sociedade. Quando Jung elabora o inconsciente como uma disposição capaz de produzir algo (neste caso, símbolos), há uma drástica virada lógica na concepção do que é a psique. Para Jung, ao contrário da Psicanálise, o inconsciente se torna uma causa que produz efeitos: os complexos. Neste sentido, torna-se compreensível que Jung (2015, vol. VII/2) trate o ego como um complexo porque ele é também um efeito da produção inconsciente, como qualquer outro complexo.
Jung propõe, em seguida, que cabe ao eu a jornada de individuação, a qual se constituirá como processo que levará o sujeito à singularidade dele ou, nas palavras de Jung (2015, vol. VII/2), a individuação tornará o sujeito um indivíduo único, aquele que não é dividido. A ideia de divisão está presente tanto na Psicanálise quanto na psicologia analítica, mas a sugestão de um processo de individuação leva a imaginar que essa divisão possa ser superada de alguma forma por uma outra organização psíquica. Como se fosse utópico imaginar um ser indiviso, Jung propõe em vez disso que os elementos psíquicos possam se reorganizar de outra maneira que não seja uma tensão entre opostos. Nessa ideia, está implícita a noção de que o eu seria abalado por uma divisão entre dois termos que se tensionam entre si. Jung (2013, vol. VIII/2), então, diz que, suportada essa tensão, um terceiro elemento solucionador do conflito pode emergir e, assim, reconfigurar a forma como a psique se relaciona com aqueles aspectos, alcançando a reelaboração que dissolveria o conflito. Novamente, o papel dado ao eu é de uma espécie de observador participante, sem que seja a causa ou a força-motriz do próprio processo de individuação. Ainda que imaginemos uma atitude egoica ativa que precise ser exercida para a elaboração de conteúdos inconscientes, mais uma vez o inconsciente figura como causa de uma transformação na consciência, cabendo ao eu um papel de observação, de facilitação e de interação com a ação do inconsciente no processo. Na psicologia analítica, dois atos importantes são designados ao eu consciente: o reconhecimento do próprio inconsciente e a capacidade de suportar os conflitos que os conteúdos inconscientes provocam quando tensionados.
Com o giro epistemológico no qual o inconsciente deixa de ser efeito e pode ser reimaginado como produtor dos processos psíquicos, Jung fissura um ponto da ideologia liberal que fundou a própria psicologia: na concepção junguiana, não há força de vontade ou afirmação do desejo individuais que bastem para transformar uma situação. É preciso a ação do inconsciente para que uma transformação se efetive ou, nas palavras do próprio autor, é necessário o deo concedente (Jung, 2014, vol. IX/1).
Ao formular a hipótese de inconsciente coletivo, ampliando as fronteiras da própria compreensão de inconsciente e propondo o eu como efeito do inconsciente, a ideia liberal de garra e de perseverança do eu perde força e torna-se necessário reposicionar a vontade do eu frente a inúmeros elementos que o constituirão. Entretanto, essa nova proposição de inconsciente trará também um problema: esse inconsciente coletivo, amplo e magnânimo, que produz e não é produzido, onde se localizaria? Qual seria o modo de ação dele, a partir do qual ele pode ser concebido? Seria o inconsciente um sujeito, um tipo de força com capacidade de agir sobre o mundo? Jung (2013, Vol. VIII) sugere em certa altura que o arquétipo é psicoide, isto é, está além da psique. Em outro momento, trata o inconsciente coletivo como uma espécie de repositório da memória da espécie humana, remetendo a um aspecto algo genético dos arquétipos (Jung, 2014, vol. IX/1). Ao não elaborar propriamente essas ideias, o autor abre margem para uma interpretação transcendental da hipótese dele, o que poderia nos levar a uma concepção religiosa da psique. Como Butler (2003) aponta, a tentativa universalizante de expansão de um conceito tem a vantagem de fornecer consistência e unidade àquela proposição, entretanto às expensas do desafio lógico de prosseguir com a discussão: se o inconsciente faz, quem ou do que ele se trata? Quem o criou como sujeito capaz de agir sobre o mundo? Evitar o prosseguimento da discussão nos paralisa no nível transcendental que nos leva à resposta mais óbvia do apelo a uma entidade superior ou a outras categorias universalizantes que pouco descrevem e que detém reduzida nitidez, tais como “a vida”, “o universo” ou “deus”.
Se levarmos adiante essa discussão de uma hipótese biológica, hereditária ou genética para o inconsciente, colocaríamos em questão a constituição da memória da espécie a partir de eventos vividos por ela ao longo de milênios de existência. Tais eventos, que ficaram supostamente registrados nesse grande repositório coletivo de imagens e de símbolos, compõem um processo histórico da espécie humana, que se organizou ao longo do tempo por meio de diversas formas sociais e políticas, cultivando meios de subsistência e de sobrevivência da própria espécie. Em outras palavras, a formação psicoide dos arquétipos e do inconsciente coletivo não poderia ser outra que não fossem os aspectos sociais, políticos e culturais desenvolvidos pela humanidade ao longo da história. Se admitirmos essa proposição, nos afastamos suficientemente de uma premissa transcendental como fundamentadora da hipótese do inconsciente coletivo.
Ainda nos restaria pensar o que leva imagens e símbolos a sobreviverem na memória a ponto de se constituírem como algo coletivo, tão potentes que seriam capazes de persistir no tempo e de atravessar gerações ao longo de nosso processo histórico. Aqui, faz sentido nos aliarmos a Dantas (2019), que nos lembra que o arquétipo é determinado pela presença da numinosidade, isto é, pelo impacto do fascínio intenso ou do terror inigualável que uma experiência arquetípica pode provocar. O numinoso, por sua vez, se determinaria pela carga afetiva, a qual produz um efeito acachapante no indivíduo, suficiente para um potente registro dessa experiência em si mesmo. Ao articularmos uma teoria dos afetos à tentativa de tornar o inconsciente coletivo algo histórico, podemos imaginá-lo como algo outro que não seja regido pela metafísica da substância. Além disso, a ideia de uma carga afetiva presente ou residual nos auxilia na compreensão da ideia de ação do inconsciente, o qual seria movimentado pelos afetos comuns que proporcionam experiências tipicamente humanas, tal como a vivência do cuidado promovido pelo outro que nos leva à concepção de maternidade ou o impulso social para organizar relações, grupos e comunidades que institui a maioria das leituras modernas sobre a função paterna do ponto de vista simbólico.
Butler (2003), ao discutir a concepção de gênero, formula a ideia de metafísica da substância para designar os processos pelos quais algo é repetido ad infinitum em determinadas culturas para gerar uma aparência de naturalização a respeito de algo que é, de fato, historica e socialmente construído, afirmando que “certas configurações de gênero assumem o lugar do real e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma auto naturalização apta e bem-sucedida” (Butler, 2003, p. 69).
O inconsciente coletivo, se vislumbrado sem a lente reificadora da metafísica da substância, pode ser imaginado como o conjunto de aspectos inconscientes, isto é, reprimidos, esquecidos e desconhecidos, segundo a concepção de Jung, ao longo dos processos históricos das culturas de nossa espécie. A carga afetiva presente em certas experiências carrega-as pelo fio da nossa história através das gerações. Nesse contexto, a ideia de arquétipo psicoide se conectaria a todos os eventos e a todas as experiências que, de fato, não são propriamente nossos e nossas, nem compõe precisamente a nossa psique, mas que estiveram presentes nesse fio interminável de ancestralidade a que pertence nosso processo histórico.
A vantagem de imaginar um inconsciente coletivo histórico reside justamente na possibilidade de filtrarmos, por meio da ideia de metafísica da substância, tudo aquilo que foi considerado arquetípico sem um exame mais detido e aprofundado a respeito do que isso implicaria. Um bom exemplo dessa situação são os conceitos de anima e animus em Jung (2014, vol. IX), os quais alçaram o gênero à dimensão arquetípica. Como pode ser observado em Pessoa (2021), o gênero é melhor tratado se compreendido como um complexo cultural, de modo que possamos localizar e explicitar os atravessamentos históricos, sociais e políticos que levam a algumas concepções de gênero serem esperadas ou consideradas ideais, enquanto outras performances de gênero são designadas como inadequadas ou patológicas. Considerando que, ao nascer, a psicologia tinha objetivos centrados em catalogar e normatizar, é compreensível que uma psicologia do gênero formulada ainda nas primeiras décadas do século XX seja pensada também a partir dos mesmos parâmetros. Para avançarmos sobre o tema e compreendermos por que o gênero é causador de enorme sofrimento entre as pessoas, constituindo-se, portanto, como tema relevante para a psicologia, é necessário que elaboremos outras formas de pensar o gênero.
Evidentemente, aqui, o gênero é também um exemplo de muitos outros fenômenos que podem ter sido indevidamente considerados como arquetípicos. As discussões no campo de estudos de gênero são especialmente interessantes para a psicologia porque, ao lado das categorias de raça e classe, indica terrenos férteis para discutirmos a questão das identidades. Como nos conta Dantas (2019), em Jung, a divisão inicial do humano parece ficar metaforizada como aquela entre masculino e feminino. O par masculino-feminino daria, de alguma forma, o contorno de uma tensão originária entre opostos. Essa visão, se historicamente posicionada, pode ser compreendida como um efeito do contexto histórico e cultural do pensamento europeu, como elaborado em Pessoa (2022). O uso do gênero como marcador principal da diferença entre humanos é, como nos mostra Oyeumi (2021), algo tipicamente europeu; não é reproduzido em outras culturas. Por exemplo, ao relatar a história do povo iorubá ao sul da Nigéria, Oyeumi (2021) ensina-nos que o marcador fundamental da diferença naquela sociedade é a idade.
Para o que compreendemos como o povo ocidental, isto é, para os povos europeus e os povos brutalmente colonizados e reconstituídos pelos europeus, a fala de Oyeumi (2021) deixa claro que compreender o gênero é inexorável. Do mesmo modo, para os povos profundamente atravessados pela história de violenta colonização europeia é inevitável compreender as categorias de raça e de classe, além de como essas nos afetam. Para tentar avançar na compreensão das identidades de gênero nesse contexto, abordarei duas experiências distintas: as identidades de pessoas LGBT e as masculinidades.
A experiência de pessoas LGBT e as imagens dos armários
A partir da segunda metade do século XIX, as pessoas LGBT começam a se organizar social e politicamente de forma mais clara (Quinalha, 2022). A compreensão de que a sexualidade dissidente, isto é, distinta da norma heterossexual, se configura como uma identidade, é um fenômeno que vem emergindo ao longo do século XX e que ganha força após os anos 2000. No fim da década de 1980, intelectuais que se identificam como pessoas LGBT iniciam produções acadêmicas marcantes, assumindo, na produção do conhecimento, o lugar de sujeitos, em vez de objetos de pesquisas de pessoas heterossexuais, e constituindo pela primeira vez uma teoria. Três obras são consideradas seminais para a emergência do que hoje é conhecido como teoria queer, segundo Preciado (2020): Queer Theory, artigo de Teresa de Lauretis, Problemas de Gênero, livro de Judith Butler e, finalmente, Epistemologia do Armário, publicação de Eve Sedgwick.
Sedgwick (2008) explora as especificidades da constituição da identidade de pessoas LGBT. A homossexualidade é atravessada por “um torturante sistema de duplos vínculos, oprimindo sistematicamente as pessoas, identidades e atos gays” (Sedgwick, 2008, p. 26). Da mesma forma, segundo a autora, a homossexualidade é tratada como assunto simultaneamente público e privado sobre o qual, ao mesmo tempo em que não desejam conhecer detalhadamente suas práticas, pessoas heterossexuais são autorizadas a opinar.
O argumento principal de Sedgwick é de que as identidades LGBT repousam sobre o manto do segredo, funcionando como um eterno armário entreaberto, que, embora tenha a existência conhecida, é negado. Mensagens de duplo sentido são enviadas e recebidas a todo momento, convidando a pessoa LGBT a se expor ao mesmo tempo em que se nega a legitimidade da forma como ela se identifica subjetivamente. A autora afirma:
Cada uma dessas possibilidades complicadoras deriva, pelo menos em parte, da pluralidade e da incoerência cumulativa das formas modernas de conceituar o desejo pelo mesmo sexo e, portanto, a identidade gay. [...] Passam a vê-la como uma função de definições estáveis de identidade de tal modo que a estrutura da personalidade de alguém pode marcá-lo como homossexual mesmo na ausência de qualquer atividade genital. (Sedgwick, 2008, p. 42)
A teoria queer, de modo mais amplo, advogará pela instabilidade das identidades a partir da compreensão das identidades LGBTs. Este é um dos argumentos promissores de Butler (2003), quando a autora propõe que a identidade da mulher e, por extensão, todas as demais identidades embasadas no campo do gênero e da sexualidade, são instáveis. A identidade, como uma identificação em relação a uma certa categoria, é algo performativo, que se estabelecerá pela repetição no corpo de certos atos. Por isso, Butler (2003) cunhará o termo performatividade de gênero para descrever como o gênero e as identidades de gênero ocorrem no corpo e existem na medida em que são performados nos corpos. Dessa forma, identidades são expressões de si mesmo que podem se dissolver, se transformar e que possuirão, por definição, contradições e incoerências constitutivas que darão contorno à própria identidade. A identidade não se resume ao grupo ou à cultura com a qual uma pessoa se identifica. Por sua existência política inefável, a identidade também diz de como uma pessoa é identificada pela cultura e pelos outros.
Butler (2003) critica a ideia do gênero naturalizado, como já vimos no conceito de metafísica da substância. Diz a autora que “o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, uma classe natural de ser.” (Butler, 2003, p. 69)
A estrutura altamente rígida a que a autora se refere é o patriarcado, ou heteropatriarcado na concepção de Preciado (2017). É nesse regime histórico, social, político e cultural que as pessoas tentam expressar-se no corpo, em forma de comportamentos, desejos e imaginações profundamente atravessadas pelas experiências dentro da rigidez de nossa sociedade. Há pouca margem para manobras individuais, embora Butler (2003) reconheça e nomeie como agência a capacidade do eu de efetivamente realizar escolhas e de agir fora da estrutura que o condiciona.
Eribon (2008) formula as identidades de pessoas LGBT como emergentes do insulto e da ofensa. Para o autor, antes de se reconhecerem propriamente, muitas vezes ainda crianças, pessoas LGBT são insultadas e ofendidas por outras crianças e adultos e, assim, iniciam seu processo de autorreconhecimento. A noção de si-mesmo é iniciada por meio de um valor negativo, sendo as pessoas LGBT primeiramente nomeadas como aquilo que não é bom, não é desejado ou não é adequado. Além das ideias de duplo sentido e de contradição, entra em jogo aqui a inferiorização como atributo da identidade.
A discussão das identidades de pessoas LGBT coloca em pauta a instabilidade das identidades em geral, nomeando a opressão como fator de registro de uma insegurança permanente a respeito de quem se é. Os autores da teoria queer esclarecem que a identidade, antes de ser vista como lugar seguro para identificações e laços sociais, é ela mesma um problema pela inconsistência e pela permeabilidade alternadas com experiências de rigidez e de inflexibilidade. Aqui, há um outro giro epistemológico semelhante ao que vimos anteriormente: ao advogar contra a metafísica da substância, a teoria queer nos mostra que a identidade não é uma força interior produtora de autenticidade no sujeito; antes, ela é um efeito das opressões vividas por cada um de nós em nossas histórias de vida. Em sua trama de identificações, pode ocasionalmente proporcionar a sensação de pertencimento e de guarida em momentos de dificuldades. Em sua rigidez e sua inflexibilidade, torna-se um cobertor demasiado curto para que possa descrever quem somos em nossas singularidades. No fio da história das lutas de pessoas LGBT e do movimento LGBT, pode ser resgatado algo criativo dos meandros da identidade: uma história compartilhada, uma ancestralidade, formada a partir de uma comunidade que resiste.
Sobre as masculinidades
As discussões sobre as identidades masculinas mostram-se também produtivas para compreendermos como se formam as identidades e quais são os desafios que trazem. Nesse campo de estudo, destacam-se as pesquisas de Connell (2005) e Kimmel (2016).
Connell (2005) formula a categoria de masculinidade hegemônica, descrita como um conjunto de traços atribuídos à masculinidade e desejados pela maioria dos homens, mas desempenhado efetivamente por muito poucos. Segundo Zanello (2018), podemos compreender esses ideais masculinos por meio de dois dispositivos: a virilidade sexual e a virilidade laboral. A masculinidade hegemônica relaciona-se ao homem de corpo apto, bom desempenho sexual, conquistador de mulheres, desejado por elas e admirado por eles. Em termos de virilidade laboral, temos o homens bem sucedidos nas carreiras e nas finanças, desempenhando o papel do provedor e também a figura do winner norte-americano, ou seja, aquele que venceu na vida.
Kimmel (2016) contribui com o debate adicionando o eixo da competitividade, em concordância com o conceito da instabilidade de identidades trazido por Butler (2003). Para o autor, é necessário ao homem provar-se homem o tempo inteiro, em uma competição infinita consigo próprio. Além disso, Kimmel (2016) afirma que as masculinidades se constituem por duas negativas: o homem é aquele que não é mulher e é aquele que não é homossexual. Cabe a ele, também o tempo todo, falar sobre aquilo que ele não é. Diz o autor sobre as pesquisas que realizou com homens identificados como heterossexuais:
Agora alterando a pergunta e imaginando o que um homem heterossexual faz para assegurar que ninguém possivelmente tenha uma ‘ideia errada’ sobre ele. As respostas tipicamente se referiam aos estereótipos originais, desta vez um conjunto de regras negativas acerca de comportamento. Nunca se vista deste modo. Nunca converse ou ande desse modo. Nunca mostre seus sentimentos, ou, seja emocional. Sempre esteja preparado para demonstrar interesse sexual em mulheres que você encontra, portanto é impossível para que qualquer mulher tenha uma ideia errada sobre você. Nesse sentido, homofobia, o medo de ser percebido como gay, como não sendo um homem de verdade, mantém homens exagerando todas as regras tradicionais de masculinidade, incluindo sexo predatório com as mulheres. A homofobia e o sexismo andam de mãos dadas. (Kimmel, 2016, p. 114)
Os estudos sobre masculinidades apontam que essas identidades também se mostram frágeis, instáveis e contraditórias. O homem alterna entre o lógico-racional da pessoa bem sucedida em uma sociedade heteropatriarcal e o animalesco e predatório, aparentemente não satisfeito de modo pleno em nenhuma de suas performances. Ao discorrer sobre seus estudos clínicos a respeito das identidades de meninos e de adolescentes, Tyminski (2018) relata a dificuldade desses jovens em acompanharem mudanças sociais e a tentativa de retornarem a uma identidade mais genérica, dada por estereótipos de gênero que perpetuam o viés agressivo de muitas identidades masculinas ou que, alternativamente, produzem um sentimento agudo de inadequação, levando ao isolamento desses jovens.
Ao contrário das identidades LGBTs, as identidades masculinas aparentemente dispõem de uma porta de saída das opressões mais agudas da sociedade: o privilégio de ser homem em uma sociedade assustadoramente sexista. O problema, como afirma Connell (2005), é que o exercício desse privilégio é geralmente reservado aos poucos que acumulam categorias de poder em nossa sociedade: não basta ser homem, é preciso ser branco, cisgênero, heterossexual, rico, atlético, não ser pessoa com deficiência, e os requisitos continuam... de modo que a masculinidade hegemônica se torna mais um ideal do que uma vivência propriamente experimentada pela imensa maioria dos homens. O risco, aqui, é a disposição masculina para agir a qualquer custo para tentar obter e sedimentar esse privilégio, o que tipicamente inicia mais um ciclo de violência.
Neste sentido, novamente vemos as identidades se tornando efeito das opressões: a maioria dos homens constitui-se por aquilo que eles não são, se voltarmos às categorias mencionadas no parágrafo anterior. A possibilidade de elaboração desse sofrimento é uma alternativa, embora mais comumente vejamos os homens perseguindo esses ideais inatingíveis de uma masculinidade privilegiada e reservada a poucos.
Considerações finais
Este artigo buscou explicitar como o contexto histórico que possibilitou a emergência da psicologia analítica leva a uma noção de inconsciente que, sem a devida cautela, pode incorrer no que Butler (2003) apontou como a metafísica da substância. Tal leitura da psicologia analítica é indesejável porque leva a concepções naturalizantes, que são a base do sofrimento de muitas pessoas, o que fica evidenciado particularmente quando adentramos na discussão a respeito das identidades.
Ao mencionar brevemente as identidades de pessoas LGBT e as identidades masculinas, procurei demonstrar que tomar traços e características como constitutivos de uma interioridade genuína e espontânea, sem a devida consideração dos contextos sócio-político, histórico e cultural, pode nos levar a uma interpretação transcendental a respeito de como o sofrimento das pessoas é produzido e de quais caminhos podem ser eficazes em sua elaboração. A identidade faz-se a partir de uma repetição dos atos no seio das interações sociais, em vez de caracterizar-se por uma coleção de traços intrapsíquicos descritivos de uma personalidade, os quais passam a existir a posteriori da constituição das identidades.
Finalmente, enfatizei dois giros epistemológicos: em primeiro lugar, quando Jung afirma que o inconsciente produz consciência em vez de ser o efeito desta. Em segundo lugar, o giro de Butler que afirma que as identidades não são forças criativas interiores naturalizadas, mas performances instáveis que se dão dentro de um sistema social rígido. Tais afirmações foram usadas para a consideração de que as identidades são também elas efeitos da opressão em vez de suas causas. Neste sentido, pretendo negar asserções do tipo “fui oprimido porque sou assim”; em vez disso, proponho que somos o resultado de uma multiplicidade de experiências que vão de encontro ao polimorfismo da nossa libido, produzindo nossas identidades a partir, ainda que não somente, de nossas opressões e de como nós as elaboramos. ■