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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.42  São Paulo  2024  Epub 27-Jan-2025

https://doi.org/10.70435/junguiana.v42.98 

Artigo Original

Nise da Silveira e as espécies companheiras

Nise da Silveira y las especies de compañía

Guilherme Franzon Berti* 
http://orcid.org/0000-0001-6045-8871

Rodrigo Caprio Leite de Castro** 
http://orcid.org/0000-0002-6006-6787

*Psicólogo pela Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões (URI), em 2019. Especialista em Saúde Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2021. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6045-8871. Email: guilhermebeerti@gmail.com

**Médico de família e comunidade. Mestre e doutor em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor adjunto do departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DMS/FAMED/UFRGS). Https://orcid.org/0000-0002-6006-6787. Email: rodrigo_caprio@yahoo.com.br


Resumo

Este artigo procura resgatar e revigorar ideias de Nise da Silveira (1992, 1995, 1998, 2015) acerca das relações entre humanos e animais, além de discutir, em conjunto com os autores Haraway (2007, 2021), Levinson (1962, 1982), Minerbo (2002) e Gentile (2021), as possibilidades e as limitações dos animais como coterapeutas em casos de sofrimento mental e indicar o potencial terapêutico das espécies companheiras.

Palavras-chave Nise da Silveira; espécies companheiras; animais como coterapeutas; animais de companhia; psicologia junguiana

Resumen

Este artículo intenta rescatar y revitalizar ideas de Nise da Silveira (1992, 1995, 1998, 2015) sobre las relaciones entre humanos y animales, además de actualizar, a través de autores como Haraway (2007, 2021), Levinson (1962, 1982), Minerbo (2002) y Gentile (2021), las posibilidades de los animales como co-terapeutas en casos de sufrimiento psíquico y señalar el enorme potencial terapéutico de las especies de compañía.

Palabras clave Nise da Silveira; especies de compañia; animales; animales de compañia; psicología junguiana

Abstract

This article aims to reclaim and reinvigorate ideas by Nise da Silveira (1992, 1995, 1998, 2015) about the relationships between humans and animals, as well as to discuss, along with authors such as Haraway (2007, 2021), Levinson (1962, 1982), Minerbo (2002) and Gentile (2021), the possibilities of animals as co-therapists in cases of mental suffering and to point to the enormous therapeutic potential of companion species.

Keywords: Nise da Silveira; companion species; animals; companion animals; Jungian psychology

Introdução

Nise da Silveira, no ano de 1955, encontrou uma cadelinha faminta e abandonada nos arredores do Centro Psiquiátrico Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, que, inaugurado em 1852, havia sido o primeiro hospício brasileiro e o segundo da América Latina. Ela tomou-a em suas mãos, olhou para um paciente, que estava, ali, internado e perguntou: “Você aceita tomar conta dessa cadelinha, com muito cuidado?” (Silveira, 1992, p. 112). Ele aceitou, e essa cadelinha, depois chamada, por Nise da Silveira, de Caralâmpia, viria a se tornar a primeira coterapeuta animal na prática da psiquiatra.

Caralâmpia foi o apelido de infância de Nise da Silveira, recebido do pai, Faustino, e referente à liberdade da imaginação dela (ou de ambos, pai e filha, o mais provável). Quando o mundo se tornava ameaçador, Nise se recolhia no “Mundo de Caralâmpia”, mundo, utilizado para tranquilizá-la em momentos difíceis, que misturava diversão e proteção (Melo, 2007).

A inusitada coterapeuta Caralâmpia, que inaugurou novas possibilidades para a clínica e para a pesquisa da psiquiatra, não seria a única. Depois dela, haveria outros animais coterapeutas no Centro Psiquiátrico Pedro II; alguns desses animais chegaram a ser considerados terapeutas em contextos clínicos em que a própria Nise da Silveira e os monitores passaram a se atribuir a função de coterapeutas (Silveira, 2015).

Neste artigo, buscaremos resgatar, apresentar e, assim, revigorar o pensamento de Nise da Silveira a respeito das relações entre os animais e os humanos. Em diálogo com Haraway (2007, 2021), Levinson (1962, 1982), Minerbo (2002) e Gentile (2021), investigaremos a função de coterapia atribuída aos animais em casos de sofrimento mental, reforçando, ao final, a possibilidade de se pensar no potencial terapêutico das relações entre humanos e outras espécies.

O mundo de Caralâmpia

Nise da Silveira conferiu importância às relações entre os humanos e os animais não somente porque tinha afinidade com os animais, mas, sobretudo, porque ela observava uma teia relacional entre todos os seres: humanos, animais, vegetais e, também, seres inorgânicos (Magaldi, 2020).

Essa visão, somada à compreensão de que a psique se defende quando tem o equilíbrio perturbado, de que, mesmo no psiquismo mais cindido, existem pulsões de vida, tentativas de ordenação interna, de renovação e de retorno à realidade, fez com que a psiquiatra apostasse na conexão afetiva entre humanos e não-humanos como sendo capaz de ensejar contornos terapêuticos em casos de sofrimento psíquico (Magaldi, 2020).

Ao pensar nos processos de autocura da psique e na reabilitação de pessoas em sofrimento psíquico grave, Nise da Silveira apontou duas condições primordiais, estreitamente vinculadas entre si: o tratamento (1) deve ocorrer em ambiente livre e ameno, no qual o ser se desdobra sem interferências e (2) necessita, para isso, de relações catalisadoras, de vínculos de referência, de afeto e de constância no mundo externo (Silveira, 2015).

Nise da Silveira (2015) chamou de relações catalisadoras, ou de afeto catalisador, as relações afetivas capazes de coordenar as funções psíquicas em tentativas de renovação da psique e de possibilitar, eventualmente, a reabilitação das pessoas adoecidas. Ela observou, junto aos pacientes psicóticos internados no Centro Psiquiátrico Pedro II, que, além de desenvolverem vínculos com os monitores, eles constituíam excelentes relacionamentos com os animais que residiam no hospital. Assim, ela dedicou-se a estudar não só as aproximações, mas, principalmente, os relacionamentos entre os humanos e os animais (Silveira, 2015).

Ela reconhecia também, na relação entre humanos e animais, um potencial efeito terapêutico sobre os últimos, sendo que sentia a necessidade de proteger os animais e de “[...] doar afeto àqueles seres solitários aos quais poucos homens ou mulheres sequer dirigiam uma palavra ou um gesto amigo” (Silveira, 1992, p. 112). Adicionalmente, aqui, pode-se intuir o potencial efeito positivo do afeto tanto para o quem o doa, como para quem o recebe.

O conceito de alteridades significativas de Donna Haraway (2021), filósofa e bióloga estadunidense, parece dialogar com Nise da Silveira (1992, 1998, 2015) e pode nos auxiliar a pensar nas aproximações e nos relacionamentos entre humanos e animais. Haraway caracteriza as alteridades significativas como conexões parciais, que atentam para as semelhanças, bem como para as diferenças, entre seres de histórias díspares, mas que, em relações constitutivas, constroem um futuro comum.

As relações entre as alteridades significativas acabam por conectar estilos de vida não harmônicos, possuindo, assim, a capacidade de ensejar um “devir-conjunto”. Animais de companhia, como cachorros, gatos, cavalos, pássaros, peixes e inúmeros outros animais, dispostos à biossociabilidade interespécies, estariam para os humanos, bem como os humanos para esses animais, como alteridades significativas.

Os animais como coterapeutas

Nise da Silveira, na tentativa de aproximar os animais dos doentes, e vice-versa, passou por dificuldades e sofrimentos. Ela ouviu comentários grosseiros dos colegas do Centro Psiquiátrico Pedro II, que não apreenderam a intenção e o sentido da pesquisa dela. Em 1960, Joaquim Fernandes, administrador do hospital, ordenou que os animais fossem removidos do estabelecimento, sem sucesso (Mello, 2014), e, em 1961, no recinto onde os animais permaneciam à noite, nove cães foram envenenados (Silveira, 2015).

O psicanalista estadunidense Boris Levinson, solidário à proposta de Nise da Silveira, enviou cartas a ela, demonstrando compaixão pela pesquisa dela e corroborando a ideia de que, para alguns doentes, os animais seriam o único caminho em direção à saúde mental (Silveira, 1998). As contribuições de Levinson (1962, 1982) são interessantes e elucidam a prática de animais como coterapeutas. Em 1962, ele escreveu o artigo The dog as a “co-therapist”, no qual relatou o caso de uma criança em sofrimento psíquico, que, apesar de não interagir com ele nem com outras pessoas, criou um vínculo com o cachorro que ficava no consultório. Essa criança, com o passar do tempo, procurou incluir o psicanalista nas brincadeiras com o cachorro e estabeleceu um vínculo também com ele. A criança, segundo o autor, apresentou excelente recuperação.

Para o psicanalista (Levinson, 1962, 1982) as relações com os animais podem apontar caminhos em direção à saúde mental, sendo os animais coterapeutas agentes catalisadores que auxiliam os humanos nos processos de regressão, de aceitação e, progressivamente, de cura. Alguns pacientes, ele comenta, sentem a relação transferencial com o terapeuta como ameaçadora. Nesses casos, o animal é capaz de possibilitar experiências de aceitação mútua e interações sem ansiedade de perda do objeto. O animal, para algumas pessoas, pode se tornar, inclusive, a primeira relação, ao longo do processo de maturação, para além de si mesmo.

No artigo C(ã)es-terapeutas: o enquadre a serviço do método na análise de uma adolescente, da psicanalista brasileira Marion Minerbo (2002), observamos outro caso em que os animais aparecem como coterapeutas. A autora refere que a análise de uma das pacientes só foi possível graças aos cães. De maneira bem-humorada, divide a análise em dois tempos: antes do cachorro (A.C.) e depois do cachorro (D.C.). Minerbo, na análise com Taís, procurava “[...] outros canais de comunicação, já que, no campo transferencial, as palavras, minhas e dela, tinham essa estranha propriedade de se transformar em plástico...” (Minerbo, 2002, p. 16). Ela encontrou nova direção quando Taís passou a levar a cachorrinha Loli às sessões.

Para Minerbo (2002), “o caminho para a recuperação do humano [...] passou por um longo período canino” (Minerbo, 2002, p. 20), e ela, Taís e Loli encontraram “novos canais para a circulação do afeto” (Minerbo, 2002, p. 20). A psicanalista afirmou: “o tom carinhoso de Taís se destinava a mim através de Loli [...] meus carinhos eram oferecidos ao cão, mas era Taís quem os recebia” (Minerbo, 2002, p. 20). Após um longo período de análise com a participação de Loli e, posteriormente, dos cães Sandy e Billy, Taís prosseguiu a análise sem a presença dos animais nas sessões.

Não seria justamente isso o que fora observado por Levinson? Ou seja, será que a relação transferencial de Taís com Minerbo fora sentida como ameaçadora pela paciente e que o animal possibilitara interações sem ansiedades intoleráveis de perda do objeto? É uma boa hipótese. O que podemos afirmar, com certeza, é que a conexão afetiva entre Taís, Minerbo e os cães foi capaz de ensejar contornos terapêuticos (Magaldi, 2020) e que os animais auxiliaram o processo relacional, indicando caminhos em direção à saúde mental (Levinson, 1962).

Outra importante contribuição é a de Katie Gentile (2021), psicanalista estadunidense, no artigo Kittens in the clinical space: expanding subjectivity through dense temporalities of interspecies transcorporeal becoming. Latrice, analisanda de Gentile, chegou certo dia à análise pretendendo adotar um gato. A analista preocupou-se com o gato, porque Latrice havia sofrido negligência e abusos quando criança e apresentava recorrentes episódios de raiva e de violência, em que poderia machucar o animal. Para a surpresa de Gentile, Latrice recusou essa narrativa e adotou o gato. A relação entre Latrice e o gato, segundo a autora, revelou-se um relacionamento entre sujeitos de direitos particulares e proporcionou a Latrice novas formas de representação e de simbolização.

Neste mesmo artigo, Gentile (2021) trata de demonstrar outro aspecto das relações entre humanos e animais, além do potencial terapêutico da relação: o vínculo entre Latrice e o gato caracteriza-se como uma relação entre “sujeitos de direitos particulares”. Dessa forma, ela aponta para a agência do animal, notando que o humano e o animal não estariam separados nem simplesmente em interação mútua, não seriam sujeito e objeto, mas sujeitos em um processo de coemergência, em um devir compartilhado, que, ao descentralizar o humano do seu pedestal imaginário, indicaria a coconstituição interespécies.

Gentile (2021) critica certos usos de animais como coterapeutas, com razão, porque, a partir de uma perspectiva centrada no humano, eles podem ser entendidos enquanto objetos ou instrumentos. Donna Haraway (2021), de maneira análoga, problematiza a ideia de amor incondicional dos animais. Não seria um narcisismo caninofílico? O ser humano manifestando as suas intenções em seus objetos? Para essas autoras, as relações entre humanos e animais devem ser pensadas em termos de coconstituição, são devires compartilhados e não relações entre sujeitos e objetos pré-constituídos.

Nise da Silveira (1998, 2015), ao reconhecer que os relacionamentos entre os humanos e os animais são envoltos por tramas complexas de projeções e de identificações, apresentou uma terapêutica sem contornos e objetivos específicos, mas fundamentada nos relacionamentos (Silveira, 1992). No livro Imagens do Inconsciente (Silveira, 2015), ela descreveu o caso de Djanira, internada no Centro Psiquiátrico Pedro II, que sofria de mutismo irredutível e que havia passado por inúmeras sessões de eletrochoque sem melhora da condição. Djanira, entretanto, se relacionava com os animais, dividia os alimentos com a gata Cravina e pintava sempre com ela no colo. Em 26 de julho de 1961, Djanira, internada com “mutismo irredutível”, foi surpreendida por uma monitora enquanto conversava com a gata. Segundo Nise da Silveira, ela, por meio das relações com os animais, apresentou melhora significativa dos sintomas, vindo, inclusive, a compor, ao piano, um samba para um cachorro.

Carlos, outro paciente de Nise da Silveira (2015), que utilizava muitos neologismos e palavras desordenadas em suas frases, permaneceu absorvido em seu mundo interno até conhecer o cão Sultão. Segundo a autora, os dois foram grandes amigos. Quando, em 1961, Sultão morreu envenenado, Carlos tornou-se mais inacessível do que antes. Dois anos depois da morte de Sultão, contudo, o paciente veio a estabelecer um vínculo com outro cão, chamado Sertanejo. Eles tornaram-se amigos inseparáveis e, os assuntos referentes ao cão, Carlos exprimia com frases inteligíveis.

Notamos, nesses relatos de Nise da Silveira, que a prática da psiquiatra , valorizando os relacionamentos e o afeto entre os seres, fez com que humanos e animais se encontrassem em suas particularidades. Ela apresentou, assim, uma terapêutica que não considera os animais como objetos, mas como sujeitos de direitos particulares, e que leva em conta a coconstituição, os devires compartilhados e as alteridades significativas. A prova disso é que Sultão e Sertanejo se tornaram amigos e fontes de afetos transformadores para Carlos, da mesma forma como Djanira e Cravina constituíram as suas biografias na carne e no signo.

Entendemos, assim, que a proposta de animais como coterapeutas, em Nise da Silveira, apesar de não possuir contornos e objetivos específicos, tem direções relacionadas (1) ao afeto catalisador, que pode ser pensado juntamente com as problemáticas da transferência (mesmo que não se reduza a isso), levando em conta as contribuições de Boris Levinson e de Marion Minerbo; e (2) à compreensão de que humanos e animais podem apresentar devires compartilhados e estabelecer relacionamentos em que ambos são sujeitos de direitos particulares, considerando as contribuições de Donna Haraway e de Katie Gentile.

As espécies companheiras

As relações entre humanos e animais envolvem a cooperação interespécies em aspectos afetivos, instrumentais, mas, também, as interações agonísticas1 e a disseminação de doenças. Esses relacionamentos são fenômenos socioecológicos relevantes porque, por meio de alterações ambientais e de práticas culturais, o ser humano, ao longo do tempo, alterou o comportamento e a morfologia de outras espécies e, por meio dessas relações, a espécie humana também foi transformada (Cabral & Savalli, 2020).

Os animais, hoje, são considerados aliados nos tratamentos da depressão, da ansiedade e do Alzheimer, apresentam benefícios à saúde cardiovascular, contribuem para estilos de vida que envolvem o cuidado (Haraway, 2007), auxiliam no desenvolvimento de traços de personalidade adaptativos (Levinson, 1982) e, além disso, existem evidências de que as pessoas que têm animais domésticos realizam menor número de consultas médicas, consomem menos medicações para hipertensão, colesterol e insônia (Haraway, 2007).

Segundo Haraway (2007), esses benefícios aos humanos não se devem unicamente ao suporte emocional que os animais oferecem, mas, sobretudo, a formas complexas de comunicação interespécies. A chave para entender esse fenômeno está na coconstituição. Ou seja, deve-se levar em consideração a própria agência dos animais, como se aproximam e como interagem com os humanos.

Os cães, por exemplo, são animais que possuem capacidade de interpretação do comportamento social, que utilizam pistas comunicativas, gestos, orientação corporal, movimentação do corpo, que distinguem as aproximações amigáveis das ameaçadoras, que avaliam o contexto social, que reconhecem as emoções humanas e que integram estímulos auditivos e visuais. Eles estão presentes em 44,3% dos domicílios brasi-leiros, existindo, ainda, outra parte desses animais que vive nas ruas, nas comunidades e nos bairros, sobrevivendo de modo errante, interagindo marginalmente com os humanos, (Cabral & Savalli, 2020).

Penteado e Safra (2022), no artigo A memória do ethos: um estudo exploratório sobre a relação entre o ser humano e os cães no mundo contemporâneo, destacam que o vínculo humano-cão está cada vez mais estreito. Os autores trabalham com a hipótese de que o ser humano se encontra em profunda crise, na qual há perda gradual do sentido de alteridade. Desse modo, a presença dos animais indica um modo de recuperação do estar-com próprio da condição humana. Os cães, especificamente, apresentam grande sinergia com os humanos, são passíveis da experiência de cuidado-amor fazem-se lar e família, companhia e testemunhas das aflições humanas.

Em 1982, no artigo The future of research into relationships between people and people and their animal companions, Levinson apresentou quatro possíveis áreas da pesquisa com animais: (1) o papel dos animais em diferentes culturas e grupos étnicos ao longo dos séculos; (2) o efeito dos animais no desenvolvimento da personalidade, das emoções e das atitudes no humano; (3) a comunicação entre humanos e animais; e (4) o uso de animais, nas instituições, em psicoterapia com pessoas idosas e/ou que apresentam alguma patologia.

Levinson (1982), assim como Nise da Silveira (2015) e Haraway (2021), considera os animais parceiros de vida na Terra e sugere uma investigação atenta das relações entre humanos e animais, sejam eles domésticos ou selvagens, porque a existência humana, sem dúvida, depende da maneira como ocorrem essas relações.

Encontramos, na escrita de Nise da Silveira (1992, 1998, 2015), histórias de coconstituição entre humanos e os companheiros animais. A psiquiatra parece preocupada em mostrar que, para entender o que ocorre entre humanos e animais, deve-se estudar, principalmente, os relacionamentos, e que essas relações (catalisadoras) ocorrem não somente nos consultórios e nas instituições.

No livro Gatos, a emoção de lidar (Silveira, 1998), ela nos apresentou a história da escultora francesa Camille Claudel (1864-1943), que foi internada de maneira forçada em um asilo no sul da França, onde permaneceu por mais de trinta anos. Em suas cartas, Claudel não só denunciou o sofrimento, a revolta, a solidão dela e as péssimas condições do asilo, mas também escreveu sobre um gato, que a auxiliou a preencher um pouco do vazio que sentia. No mesmo livro, Nise da Silveira conta sobre o filósofo Michel de Montaigne (1533-1592), que repudiava a realeza imaginária que o homem atribuíra a si próprio e que, em companhia da gata, se perguntava: “Quando me entretenho com minha gata, quem sabe se ela não faz de mim seu passatempo, mais do que eu faço dela?” (Silveira, 1998, p.21), tratando, de forma caricata, da agência dos animais, da coconstituição e dos devires compartilhados.

Destaca-se, ainda, a notável observação de Nise da Silveira (1992), feita no livro O mundo das Imagens, que pode ser tomada, inclusive, como um exemplo de narrativa coconstitutiva: a de que as pessoas que vivem em situação de rua são acompanhadas, frequentemente, por cães. Eles são amigos de destino. Nessa relação de amizade é que reside, muitas vezes, o único elo daquela pessoa com a vida, estando, no reconhecimento da importância dessa relação por parte, por exemplo, do terapeuta, frequentemente, a chave, a porta de entrada para uma nova relação entre humanos, ou seja, para o ambiente psíquico do vínculo possível.

Considerações finais

Ao receber a cadelinha Caralâmpia no Centro Psiquiátrico Pedro II, Nise da Silveira (1992) iniciou uma prática terapêutica que apostou nas relações afetivas entre humanos e animais como passíveis de ensejar contornos terapêuticos nos casos de sofrimento psíquico. Essa prática, que compreende uma teia relacional entre os seres, tem a intenção de colocar animais e humanos em relação, mas não de utilizar os animais como meros instrumentos ou objetos, destituindo, assim, o ser humano do pedestal imaginário que criou para si (Silveira, 2015).

As ideias de Nise da Silveira a respeito das relações entre humanos e animais devem ser resgatadas e revigoradas através do diálogo com outros autores — como Boris Levinson, Marion Minerbo, Katie Gentile e Donna Haraway —, para pensarmos nas possibilidades e nas limitações dos animais como coterapeutas nos casos de sofrimento psíquico, assim como no potencial dessas cooperações interespécies.

A terapêutica de Nise da Silveira, apesar de não possuir contornos definidos, deve ser estudada (e atualizada) a partir dos conceitos de (1) afeto catalisador e de (2) coconstituição. Nas obras da psiquiatra, encontramos histórias de muitos animais, alteridades significativas para ela e para os pacientes dela, e reconhecemos que estudar as alteridades significativas pode movimentar a humanidade em direção à concepção da teia relacional entre todos os seres.

Por fim, entre as muitas histórias contadas pela psiquiatra, gostaríamos de destacar uma última narrativa de coconstituição, que ocorreu entre Nise e a sua gata Belle-Minette. Essa gata “selvagem”, que não se agradava da máquina de escrever, mas divertia-se brincando com as folhas de papel, deixou uma participação reconhecida pela própria autora na obra, algo que poderia ser compreendido como uma coautoria: impressões das patas e arranhaduras em alguns dos manuscritos de Nise da Silveira (Silveira, 1998).

1Relações que afetam tanto o bem-estar do ser humano, como, também, o do animal.

Referências

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Recebido: 03 de Janeiro de 2024; Aceito: 18 de Setembro de 2024

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