Introdução
Carl Gustav Jung (1875-1961), médico psiquiatra suíço, teve uma vasta produção intelectual. Sua obra teórica está dividida em dezoito volumes, além de suas memórias, que constam no livro Memória, sonhos e reflexões, de suas fantasias expostas em O livro vermelho e nos Livros negros, cartas trocadas com amigos e pensadores da época, e da publicação dos registros de seminários proferidos. Diferindo de Sigmund Freud (1856-1939) em relação à ideia de inconsciente, formulou seu próprio conjunto de explicações sobre o funcionamento da psique a partir de materiais empíricos reunidos durante sua atuação em hospitais psiquiátricos, na clínica e em experiências pessoais. Para Jung, além de um inconsciente pessoal, haveria uma instância mais ampla e mais profunda chamada de inconsciente coletivo, fonte de vida e expressão da história da humanidade, sendo os mitos exemplos disso.
Jung e sua psicologia analítica são cada vez mais conhecidos no ambiente acadêmico e nas clínicas psicoterápicas. Sua obra é vasta, sua vida foi longa e, em seu círculo de amigos, pode-se incluir importantes intelectuais da época em que viveu. A relação entre Freud e Jung é conhecida como a mais importante delas. Desde o primeiro encontro, que durou longas horas, o trabalho em parceria, o apoio e a admiração mútua reverberaram, como uma lenda, que muito se comenta até os dias de hoje. Segundo Shamdasani (2013), nas histórias que envolvem o tema, insiste-se no equívoco posicionamento do trabalho de Jung como um apêndice do trabalho de Freud. Essa visão diz que a fonte principal de todo o trabalho junguiano viria de Freud. Entretanto, Jung se posicionou de maneira contrária, afirmando que muitas das suas reflexões foram criadas antes do encontro com o mestre vienense e que sua inspiração teria vindo de diversos professores.
Segundo Shamdasani (2013), o estudo sobre o inconsciente repousaria em dois grandes grupos, tendo um deles sua base em Jean Martin Charcot (1825-1893) e o outro em Pierre Janet (1859-1947). Freud estudou com Charcot, e Jung, com Janet, o que aponta diferenças fundantes na obra dos dois. Todas essas relações de amizade, trabalho e pesquisa ainda necessitam ser mais investigadas para que melhor se delineie o percurso teórico desses importantes pensadores que marcaram seu tempo e o conhecimento sobre a psique e a psicologia.
Théodore Flournoy foi uma dessas importantes referências. Nasceu em 1854 na Suíça. Interessado em diversos temas, estudou literatura, matemática, teologia e medicina (Martinez, Alves, Maraldi & Zangari, 2021). Após o rompimento da relação de Jung com Freud, ocorrido entre 1911 e 1913 devido à reformulação do conceito de libido por Jung e ao seu modo de abordar os fenômenos religiosos, a relação com Flournoy é intensificada.
O vínculo entre Jung e Flournoy se inicia em 1900, quando este tinha 46 anos e aquele ainda 25. Dois importantes encontros entre eles ocorreram nas cidades de Zurique e Viena. Flournoy veio a falecer no ano de 1920, e seu filho seguiu em contato com Jung posteriormente (Martinez et al., 2021).
Há uma notável relação entre os dois a partir de suas pesquisas sobre a mediunidade. Flournoy acompanha uma suposta médium ao longo de 5 anos, chamada Catherine-Elise Müller, e a registra em sua principal obra, Das Índias ao planeta Marte: estudo de um caso de sonambulismo com glossolalia. Jung, tendo acesso ao livro, o utiliza como modelo para a elaboração de sua tese de doutorado, também sobre um caso de mediunidade (Martinez et al., 2021).
Se, em um primeiro momento, os diversos autores que moldaram a psicologia enquanto ciência se debruçaram sobre fenômenos ocultos, parapsicologia e mediunidade, cabe realçar seu uso na pesquisa psicológica de Jung. Os limites epistemológicos de seu trabalho e a importância de sua análise, que se propunha científica, promoveram o avanço da psicologia e o conhecimento aprofundado da mente humana, em particular do inconsciente, e mais precisamente do inconsciente coletivo.
Este artigo propõe analisar, a partir da relação de amizade entre Flournoy e Jung, como os conceitos de arquétipo e criptomnésia se aproximam ou se afastam ao longo de seu desenvolvimento teórico. Para isso, fizemos uma pesquisa bibliográfica que abrangeu as duas principais obras, Símbolos da transformação (Jung) e Das Índias ao planeta Marte (Flournoy), além do amparo teórico de outras obras de Jung que trazem conceitos e temas que se sintonizam com nossa investigação. Ainda, pesquisamos em artigos e teses a contextualização do surgimento da psicologia científica, no final do século XIX, bem como a influência das investigações sobre os fenômenos ocultos que ocorriam em diferentes partes do mundo, com diversos focos, tanto religiosos quanto como tentativas de compreensão da psique humana.
A popularização dos fenômenos ocultos
A Europa do século XIX foi marcada por uma efervescência da popularização dos fenômenos psíquicos, como as famosas mesas girantes em sessões espíritas; os médiuns que diziam ser capazes de contatar os mortos; os relatos de aparições de espíritos e barulhos estranhos em casas; entre outros. Também conhecidos como fenômenos ocultos ou paranormais, estavam inseridos em um campo do saber distinto das ciências naturais que estavam sendo elaboradas na época. A parapsicologia foi para Jung uma área de interesse contínuo, fato encontrado em um dos livros centrais de sua obra, Símbolos da transformação, no qual encontramos seu trabalho sobre o caráter psicológico dos supostos fenômenos mediúnicos de Miss Miller (Jung, 1911/1912/2011c).
Para tratarmos de como os fenômenos mediúnicos influenciaram as investigações de Jung, optamos por realizar antes uma breve exposição sobre a gênese desses fenômenos. Três eventos ocorridos na América do Norte entre 1837 e 1848 deram início às primeiras investigações científicas da mediunidade: (1) o caso dos Shakers, (2) o caso de Jackson Davis e (3) o caso de Hydesville (Vianna, 2002).
O caso dos Shakers ocorreu em uma comunidade dos Estados Unidos, entre 1837 e 1844, na qual os integrantes relataram terem sido possuídos por espíritos de indígenas norte-americanos. Pouco depois, surge em um distrito rural de Nova Iorque o caso de Andrew Jackson Davis (1826-1910), que afirmava ter dons extrassensoriais. Alguns anos depois, em 1848, na região de Hydesville, Califórnia, ocorre o fenômeno das irmãs Fox, que relataram terem estabelecido um diálogo com o espírito de um antigo caseiro assassinado em sua casa. Durante esse período, fenômenos similares começaram a ocorrer na Europa, particularmente na França e na Alemanha (Vianna, 2002).
Interessados pelos fenômenos psíquicos que vinham se popularizando na época, surgiram dois grupos dispostos a estudá-los: os indivíduos vinculados a um saber religioso que passaram a fazer parte do movimento espírita oriundo dessas investigações e “[...] os que permanecem na linha exclusivamente científica de pesquisa dos fenômenos, sem abraçar o movimento religioso” (Vianna, 2002, p. 135). O primeiro grupo tem como exemplo o educador francês Hippolyte Denisart Rivail (1804-1869), conhecido por seu pseudônimo Allan Kardec e responsável pela organização da doutrina espírita e sua difusão no ocidente (Vianna, 2002). Já do segundo grupo temos o exemplo do eminente psicólogo e filósofo William James (1842-1910), que considerou a experiência religiosa e os fenômenos ocultos como objetos imprescindíveis à psicologia científica nascente:
[…] entre 1890 e 1902, James ampliou a sua noção de Psicologia para abranger os estados excepcionais da consciência, especialmente as experiências religiosas e os fenômenos psíquicos. [...] após o Varieties1, ele deu continuidade às suas investigações sobre a consciência, as curas mentais, os fenômenos psíquicos e os estados místicos [...] (Araújo & Honorato, 2017, p. 11).
Outra importante figura foi Pierre Janet. Para compreender alguns temas da psicologia nascente, como o inconsciente e as dissociações, Janet também adentrou investigações mediúnicas. Jung estudou com Janet, e este o influenciou a partir da construção de uma classificação das formas básicas de doença mental, do foco em personalidade dupla, ideias fixas e obsessivas, além da necessidade de se aprofundar na investigação do inconsciente de pacientes neuróticos. Janet também foi o primeiro a definir o fenômeno de dissociação e complexos (Douglas, 2008). Também Frederic Myers (1843-1901) estudou telepatia, hipnose, alucinações e assombrações. Além disso, sua maior contribuição para o estudo do inconsciente diz respeito ao self subliminal, já que o self consciente (ou self supraliminal), para este autor, não representaria toda a mente (Almeida & Neto, 2004). Mesmo Freud discutiu abertamente sobre os fenômenos ocultos, como a feitiçaria. Influenciado por Charcot, para a compreensão do que acontecia na histeria, adentrou o que seriam os estados de êxtase e possessão (Almeida & Neto, 2004).
Jung segue essas mesmas indagações. Para o psicólogo suíço, “[...] parapsicologia seria a ciência que lida com os eventos biológicos e psicológicos, que mostram que as categorias de matéria, espaço e tempo (e também o de causalidade) não são axiomáticos” (Jung, 1963/2011f, p. 89, § 1213). Estudar os fenômenos ocultos seria compreender cada vez mais o que seria a psicologia do inconsciente.
Além desses autores, Théodore Flournoy também se interessava pela temática. Seu trabalho mais famoso é a obra Das Índias ao planeta Marte (1900), na qual ele faz um estudo de caso de uma jovem médium cujo pseudônimo é Hélène Smith. Nesse estudo, ele acompanha algumas sessões mediúnicas na qual ela, em transe, diz se lembrar de encarnações precedentes. Essas encarnações eram três: 1) uma princesa indiana, 2) a rainha francesa Maria Antonieta, e 3) uma existência no planeta Marte. Desta última, ela dizia se lembrar do dialeto marciano e informações sobre sua estrutura física (Martinez et al., 2021).
Como veremos a seguir, esses pensadores se inserem em um momento específico da história da Psicologia, marcados pelo que movimentava o espírito da época.
O nascimento da psicologia científica
É digno de observação o fato de o Zeitgeist europeu do século XIX ter sido o berço de dois movimentos investigativos que viriam a impactar substancialmente a psicologia do século XX: as investigações dos fenômenos mediúnicos e as investigações do inconsciente.
A psicologia como projeto científico havia dado seus primeiros passos já na segunda metade do século XIX. Dentre seus precursores, destacam-se o já citado William James e o médico, filósofo e psicólogo Wilhelm Wundt (1832-1920). Ambos tinham como objetivo comum a organização de um campo separado das especulações filosófico-metafísicas e das interpretações religiosas da época, um campo fundamentado na ciência que se dedicaria à investigação dos fenômenos psicológicos humanos (Abib, 2009). Segundo Schultz & Schultz (2019), o marco que estabeleceu o surgimento da nova ciência foi a publicação de Contribuições para a teoria da percepção sensorial por Wundt entre 1858 e 1862, no qual descreveu seus experimentos originais e suas propostas sobre os métodos da nova psicologia. Em 1867, Wundt inicia o primeiro curso de psicologia, na Universidade de Heidelberg, constituído de palestras que se transformam em livro em 1874, o Princípios de psicologia fisiológica. Obra-prima do médico alemão, o Princípios foi responsável por estabelecer a psicologia nos moldes de uma ciência de laboratório, munida das próprias perguntas e com novos métodos de experimentação (Schultz & Schultz, 2019). Também é creditada a Wundt a criação do primeiro laboratório da área em 1881, na cidade de Leipzig, e de uma revista dedicada à investigação sobre psicologia, nomeada Estudos Filosóficos. Sua intenção inicial era de chamá-la Estudos Psicológicos, o que não foi possível pois já existia uma com esse nome focada em temas de espiritismo e ocultismo (Schultz & Schultz, 2019), o que reforça a ideia de que esses temas se confundiam na época.
William James, seguindo os passos de Wundt, é considerado o precursor da psicologia norte-americana. Em 1872 ocupou o cargo de professor de fisiologia em Harvard, e em 1875 deu seu primeiro curso de psicologia na mesma universidade, com o título As relações entre a Fisiologia e a Psicologia. Como fruto desse cargo e de seu curso, foi criado por James o primeiro laboratório de psicologia em solo americano (Schultz & Schultz, 2019). Jung, em viagem aos Estados Unidos junto à comitiva psicanalítica que se apresentaria na conferência da Universidade de Clark em 1909, conhece James, e a conversa entre os dois reverbera em sua obra (Resende & Melo, 2018). É importante perceber que, mesmo investigando temas como religiosidade e psiquismo, James defendia a ciência que nascia com métodos científicos:
[...] a psicologia é hoje pouco mais do que era a física antes de Galileu ou a química antes de Lavoisier. Ela é uma mistura de descrição fenomenal, fofoca e mito, incluindo, contudo, material real suficiente para justificar a esperança de que, com discernimento e boa vontade por parte dos interessados, seu estudo possa ser organizado a ponto de tornar-se digna do nome de ciência natural em um dia não muito distante. [...] Meu desejo, ao tratar a psicologia como uma ciência natural, era ajudá-la a tornar-se uma (James, 1892, p. 146, como citado em Araújo & Honorato, 2017, p. 8).
Seu método investigativo se manteve alinhado ao objetivo de organizar uma ciência psicológica. A forma como James pensava a psicologia exigia do psicólogo o espírito científico em seu sentido estrito, isto é, a disposição para se relacionar morosamente, despido de medo e preconceitos, com qualquer que seja a área na qual se façam presentes fenômenos relacionados ao humano. Tal posicionamento pode ser encontrado em William James, como aponta Araújo e Honorato:
Para o psicólogo, as propensões religiosas do homem devem ser pelo menos tão interessantes quanto quaisquer outros fatos pertencentes à sua constituição mental. Parece, portanto, que a coisa mais natural para mim, como psicólogo, é convidá-los a um levantamento descritivo dessas propensões religiosas. Se a investigação tem que ser psicológica, o seu objeto deve ser os sentimentos e impulsos religiosos, não as instituições religiosas (James, 1902/1985, p. 12 como citado em Araújo & Honorato, 2017, p. 7).
Logo, podemos observar dois pontos com tal posicionamento de James: (1) ao propor uma psicologia científica, compreende a investigação dos fenômenos religiosos como parte constituinte do objeto da nova ciência; e (2) ao propor a organização de uma psicologia apartada das especulações metafísicas e teológicas, propõe também que tais fenômenos sejam investigados com rigor científico (Abib, 2009).
Flournoy também pode ser citado como um pesquisador caro à história dos primórdios da psicologia, considerado um dos pais fundadores dos campos da parapsicologia e da psicologia da religião. No ano de 1891, o psiquiatra ocupou a nova cátedra de psicologia experimental da Universidade de Genebra, tornando-se o primeiro professor de psicologia da instituição. No ano seguinte, fundou nela um laboratório de psicologia dedicado ao estudo da personalidade nos moldes da psiquiatria dinâmica. Ambos os acontecimentos constituem um marco para o nascimento da psicologia científica, uma vez que sua cátedra e seu laboratório foram alocados na faculdade de ciências, e não na de filosofia, como era de costume (Martinez et al., 2021). O período histórico em que Flournoy construiu sua carreira de pesquisador foi marcado por um interesse cada vez maior da psicologia nos processos de funcionamento da mente, bem como nos diferentes estados de alteração da consciência. Esses fenômenos foram investigados à época por meio de técnicas como a hipnose, a observação de casos clínicos de sonambulismo e personalidades múltiplas, e pelo estudo de experiências religiosas. Além de ter publicado o livro Das Índias ao planeta Marte e de ter influenciado Jung com esse livro, Flournoy, cabe destacar, publicou livros de William James na Europa. Também trabalhou com a hipótese da existência de processos subliminares à consciência, hipótese investigada pelo já citado psiquiatra Pierre Janet e pelo pesquisador de fenômenos paranormais Frederic Myers (Martinez et al., 2021).
Já sobre as investigações do inconsciente, Freud é considerado o principal precursor do campo devido ao seu papel de fundador da psicanálise, uma área que tem por principal objetivo a investigação dos processos psicodinâmicos da mente.
Na primeira tópica da Psicanálise – publicações até 1920 –, Freud concebe o aparelho psíquico como um todo dividido entre consciente e inconsciente. O consciente seria composto por conteúdos reconhecidos pelo ego, nomeáveis e acessíveis ao pensamento, e estaria submetido ao princípio da realidade, isto é, às exigências socioculturais de conduta e moderação que, para manter a ordem e a coesão social, barram a realização plena do desejo (Nasio, 1999). Já o inconsciente estaria submetido ao princípio do prazer, um movimento incessante de busca da satisfação pulsional por meio da liberação da libido. Para Freud, o inconsciente seria constituído no processo de recalcamento, quando experiências conscientes são expulsas do consciente pelo princípio da realidade, a fim de conferir coesão e equilíbrio ao ego. As formações do inconsciente, como os sonhos, as manifestações patológicas, os atos involuntários, e as relações afetivas desmedidas, seriam representações modificadas dos desejos recalcados que, se viessem à consciência em sua verdadeira forma, causariam a ruptura do ego, da imagem construída do eu (Nasio, 1999).
Na segunda tópica, com a formulação dos conceitos de pulsão de morte e pulsão de vida, a teoria psicanalítica sofreu alterações consideráveis; porém, o entendimento de que o inconsciente é composto por experiências recalcadas que um dia já foram conscientes permaneceu (Nasio, 1999). Será nesse ponto que Freud e Jung irão divergir em suas concepções sobre o funcionamento do aparelho psíquico. Como veremos adiante, para Jung o inconsciente descritivo composto por conteúdos recalcados seria denominado como inconsciente pessoal; apesar de ter assimilado em sua teoria essa explicação, rompeu com Freud ao apontar a incapacidade de trabalhar certos fenômenos inconscientes pela teoria do recalque.
Ainda sobre Freud, ao contrário do que se pensa, ele não foi o primeiro a investigar os fenômenos da mente inconsciente. A publicação de seu primeiro livro, em 1895, Estudos sobre histeria, se insere em um movimento investigativo que já tomava corpo em meio às especulações filosóficas correntes desde a Renascença (Schultz & Schultz, 2019). A teoria das mônadas de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), o conceito de limiar da consciência proposto por Johann Friedrich Herbart (1776-1841), a analogia entre a mente e um iceberg de Gustav Theodor Fechner (1801-1887) e o mote de que o inconsciente seria a chave para o consciente (Noé, 2015) de Carl Gustav Carus (1789-1869) são exemplos, antecedentes a Freud, de especulações filosóficas sobre os fenômenos da mente inconsciente (Schultz & Schultz, 2019). A contribuição central de Freud estaria em, a partir do que já fora discutido, ter iniciado a construção de um método científico de investigação do inconsciente, o que tornou possíveis os avanços teóricos sobre os processos psicodinâmicos do humano ao longo do século XX.
Sua empreitada sofreu influência de dois proeminentes pensadores: Charcot e seu discípulo Janet, como já mencionado anteriormente. Charcot, no cargo de diretor da clínica neurológica de Salpêtrière, um renomado manicômio em Paris para mulheres histéricas, foi responsável por trazer o método da hipnose aos holofotes da ciência psiquiátrica da época, apresentando resultados positivos do método aplicado às pacientes (Schultz & Schultz, 2019). Já Janet, convidado por Charcot a abrir um laboratório experimental em Salpêtrière, foi responsável por modificar a psiquiatria da época de uma perspectiva somática para uma perspectiva psíquica. A primeira empenhava-se em encontrar uma causalidade física para os comportamentos anormais, como lesões cerebrais e falta de estimulação nervosa. A segunda empenhava-se em encontrar causalidades psicológicas e emocionais (Schultz & Schultz, 2019). A hipnose e o método catártico usados por Charcot já continham a essência do método de associação livre elaborado por Freud anos depois. Já a reforma iniciada por Janet representou um ponto de ancoragem a Freud, uma vez que o material empírico dos estudos psicanalíticos não provinha dos experimentos laboratoriais tradicionais da academia, mas da observação de casos clínicos. Freud, no papel de precursor de um novo método investigativo, foi responsável por modificar a forma da época de pensar os casos de histeria, podendo-se considerar a psicanálise um movimento de revolta contra a orientação somática tradicionalmente predominante na psiquiatria da época (Schultz & Schultz, 2019).
Todos esses importantes pensadores contribuíram para o nascimento da psicologia científica. Com ela, no estrito método científico que sustentava tantas outras áreas, aparecem também questionamentos da filosofia, religião, parapsicologia e ocultismo. Havia uma inquietação para compreender o funcionamento da psique e seus limites.
Jung e Flournoy, portanto, se inseriram nesse universo de maneira a avançar no conhecimento da psique: Flournoy, com o caso da médium Catherine-Elise Smith2; assim como Jung, com o estudo de caso de sua prima médium Hélene Preiswerk3 (sob influência da obra de Flournoy). Mas, para além de uma compreensão religiosa e mediúnica dos fenômenos dito ocultos, sua interpretação é psicológica, como em seu relato:
[...] o hábito de fazer a mesa girar acabou libertando-se de seus primórdios e alcançava o nível do espiritismo da moderna crença nos espíritos, um renascimento das religiões xamanistas de nossos antepassados. Este desenvolvimento de conteúdos reativados do inconsciente, que ainda persiste, levou nos últimos decênios a uma prodigiosa expansão de níveis subsequentes de desenvolvimento, isto é, a sistemas gnósticos ecléticos, à teosofia e antroposofia e, ao mesmo tempo, aos primórdios da psicologia analítica que tem sua origem na psicopatologia francesa, especialmente da escola dos hipnotistas, e procura averiguar cientificamente os fenômenos do inconsciente: os mesmos fenômenos que se tornam acessíveis à índole ingênua de seitas teosófico-gnósticas sob a forma de mistérios (Jung, 1918/2011e, p. 23, § 21).
Dois importantes conceitos foram úteis na tentativa de ampliar a compreensão do que seria o inconsciente, discutido de muitas maneiras por filósofos e pelos psicólogos citados anteriormente: criptomnésia e arquétipo. Flournoy e Jung estabelecem um diálogo nem sempre coincidente. Contudo, dos questionamentos e dissidências, foi possível chegar a pistas do que viria a ser o conceito junguiano de inconsciente coletivo.
De criptomnésia a arquétipo: tateando um inconsciente para além do pessoal
Em seu livro Símbolos da transformação (Jung, 1911/1912/2011c), investigando o que seria o inconsciente, Jung vai analisar as fantasias de uma mulher chamada Frank Miller. Dentre essas fantasias, Jung destaca dois de seus poemas, um intitulado Hino ao criador4 e o outro O canto da mariposa5. Sobre o segundo poema, Frank Miller, diferenciando a mediunidade de outros processos cognitivos, reflete:
Este pequeno poema me impressionou profundamente. É verdade que não encontrei logo para ele uma explicação suficientemente clara e direta. Mas poucos dias depois, desejando ler para uma amiga um texto filosófico que eu lera em Berlim, no inverno anterior, e que me entusiasmara, deparei com as seguintes palavras: “La même aspiration passionnée de la mite vers l’étoile, de l’homme vers Dieu”. Eu as tinha esquecido completamente, mas parecia bem claro que justamente estas palavras tinham reaparecido em minha poesia hipnagógica. Além disso, lembrei-me de um drama, visto há alguns anos, “La mite et la flamme”, como outra possível fonte do poema. Vê se quantas vezes a expressão “mariposa” me foi inculcada (Jung, 1911/1912/2011c, p. 107, § 123)6.7
Ou seja, para ela o tema da mariposa ter aparecido em sua poesia se justificava por já ter tido contato anterior com essa expressão, mesmo a tendo esquecido. De acordo com Flournoy, o retorno de algo completamente esquecido seria um caso de criptomnésia. Ele define esse conceito como sendo o “[...] reaparecimento de memórias profundamente enterradas sob o estado normal de vigília, juntamente com uma quantidade indeterminada de exagero imaginativo sobre a tela de fatos reais”8 (Flournoy, 1900, p. 276).
Jung, pesquisando os fenômenos inconscientes, se interessa pelas pesquisas de Flournoy sobre as médiuns e pelo tema da criptomnésia. Já em suas primeiras publicações encontramos um artigo intitulado Criptomnésia (Jung, 1905/2011b) em que descreve o referido conceito como um conjunto de processos psíquicos autônomos inconscientes, em que traços perdidos de memória reaparecem na consciência em fragmentos maiores, com fidelidade fotográfica. Esse modo de rememorar se diferenciaria da rememoração direta, que utiliza da percepção consciente de um estímulo para resgatar uma memória, e da rememoração indireta, que consiste na percepção inconsciente de um estímulo e no resgate espontâneo da memória. Na direta, ocorre uma mediação consciente, e na indireta, um reconhecimento da memória como um acontecimento prévio. Já a criptomnésia, por outro lado, significa uma recordação não reconhecida como memória esquecida, e é encarada pelo sujeito como uma ideia original (Jung, 1905/2011b). Jung cita as pesquisas de Flournoy sobre criptomnésia como fonte importante para seus estudos, mencionando o caso de glossolalia de Catherine-Elise Smith enquanto um fenômeno criptomnésico característico. Trata-se, nesse caso, de todo um sistema linguístico autônomo. Cita também o caso em que o filósofo Nietzsche descreve em seu Zaratustra a cena de um vulcão como a porta de entrada para o inferno, muito semelhante a uma cena ocorrida no livro de Julius Kerner, Blatter aus Prevorst [Folhas de Prevorst], lido por ele na infância (Jung, 1905/2011b). Alguns anos mais tarde, Jung publica em duas partes — 1911 e 1912 — o livro Transformações e símbolos da libido: contribuições para o desenvolvimento do pensamento9, no qual analisa o caso de Frank Miller. O que para Flournoy tratava-se de um exemplo de criptomnésia, para Jung passava a iluminar suas reflexões sobre o inconsciente, levando-o a introduzir o conceito de arquétipo.
Outro caso interessante foi o de um interno do Hospital de Burghözli, que relatava ver no sol um pênis ereto e que, quando balançava a cabeça para a esquerda e para a direita, via o pênis também oscilar entre as direções, originando, com isso, o vento do mundo. Jung encontra, tempos depois, em um manuscrito da liturgia de Mitra10, a descrição de uma visão quase idêntica. Desse e de outros casos semelhantes, Jung propõe a hipótese da existência de uma predisposição funcional para produzir imagens semelhantes que tratam de temas repetidos. A essa predisposição chamou de arquétipo (Jung, 1911/1912/2011c). Jung também esclarece nessa obra que o arquétipo não seria uma ideia inata e hereditária, e sim uma estrutura da psique predisposta a criar fantasias paralelas que não corresponderiam a memórias esquecidas. Esse conceito apresenta uma possível explicação para o surgimento de mitos com conteúdo semelhante em diferentes culturas que, aparentemente, nunca tiveram contato entre si, como as diferentes leituras simbólicas do deus solar, tão bem demonstradas no segundo poema de Frank Miller (Jung, 1911/1912/2011c).
Jung não situa suas pesquisas apenas no inconsciente pessoal, como versava a psicanálise da época. Para ele, existiria uma instância mais ampla denominada inconsciente coletivo. Segundo o autor:
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade (Jung, 1936/2011d, p. 51, § 88).
Para compreender o caso de Frank Miller, Jung traça paralelos mitológicos, como por exemplo o Fausto de Goethe, no qual o protagonista, estando no inferno e sentindo-se saudoso da luz solar, queima suas asas. Na fantasia de Frank Miller, a mariposa vai buscar o Sol e com isso suas asas se derretem e ela se queima. Ele define o conceito dizendo que o arquétipo:
[...] indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as “motivos” ou “temas”; na Psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito das représentations collectives de Levy-Brühl e no campo das religiões comparadas foram definidas como “categorias da imaginação” por Hubert e Mauss. Adolf Bastian designou-as bem antes como “pensamentos elementares” ou “primordiais”. A partir dessas referências torna-se claro que a minha representação do arquétipo – literalmente uma forma preexistente – não é exclusivamente um conceito meu, mas também é reconhecido em outros campos da ciência (Jung, 1936/2011d, pp. 51-52, § 89).
A partir dessa movimentação dos conteúdos do inconsciente, surge a poesia, e a suposta médium diz simbolicamente como se sente: como uma mariposa que quer alcançar o inalcançável, o Sol. Se a mariposa alcança o Sol, suas asas derretem. Jung (1911/1912/2011c), analisando esse caso, confirma que esse movimento de busca da luz, não seria apenas uma expressão literária ou de criptomnésia, mas arquetípica, repetida em diversos mitos.
Com esse estudo do psiquiatra suíço, o que antes seria apenas um conteúdo esquecido no inconsciente pessoal, de acordo com o conceito de criptomnésia de Flournoy. passa a fazer parte de instância mais abrangente, que Jung denomina de inconsciente coletivo. É nessa instância, ele especula, que atuam os arquétipos (Jung, 1936/2011d).
Neste sentido, há uma sintonia maior na relação entre Flournoy e Jung. A apresentação do conceito de criptomnésia contribui para as reflexões deste. Entretanto, Jung não segue o raciocínio de seu colega à risca. Ele diverge (Jung, 1911/1912/2011c) e, a partir disso, desenvolve sua reflexão inovadora sobre o inconsciente. A relação com Flournoy e sua obra parece ter servido como importante material para que Jung pudesse avançar em sua teoria e inaugurar as bases do conceito de arquétipo para a psicologia analítica.
Considerações finais
A psicologia científica nascente se debruçou sobre as manifestações mediúnicas que ocupavam os salões e as atividades sociais da época (Viana, 2002). A mediunidade instigava a ambos os pensadores, Flournoy e Jung. Flournoy (1900) investigou os materiais produzidos pela autodeclarada médium Catherine-Elise Smith (Hélène Smith), que dizia ter vivido três existências, uma como princesa hindu, uma como Maria Antonieta e outra como habitante do planeta Marte. Flournoy reconheceu a experiência como um caso de traços perdidos de memória que retornavam como ideias originais, ou seja, um caso de criptomnésia. A publicação de suas investigações no livro Das Índias ao Planeta Marte (1900) incomodou a comunidade mediúnica da época e levou a insatisfeita médium Frank Miller a enviar suas produções na tentativa de refutá-lo.
Já Jung (1902/2011a) iniciou suas investigações psicológicas sobre a mediunidade, que fundamentaram sua tese como médico, com sua prima Hélene Preiswerk, que também se dizia médium. Posteriormente, no contato com as investigações de Flournoy, tem acesso ao caso de Frank Miller, sobre o qual se debruça em sua obra Símbolos da Transformação (Jung, 1911/1912/2011c), na qual desenvolve sua teoria sobre a energia psíquica geral, em divergência à concepção freudiana de libido.
A relação Flournoy-Jung não foi amplamente debatida academicamente. Ficou à margem, sobressaindo outras figuras do mundo médico e psicológico. Entretanto, a influência de Flournoy na obra de Jung foi central e contribuiu para o amadurecimento do conceito de inconsciente e um desprendimento do posicionamento freudiano. Esse conceito não nasce com esses autores, porém há um rico aprofundamento do tema (Martinez et al., 2021).
Da observação de médiuns, Flournoy (1900) cunha o conceito de criptomnésia. Jung (1911/1912/2011c), por sua vez, chega ao conceito de arquétipo e concebe a ideia de um inconsciente que não se limitaria ao nível pessoal, mas seria parte da própria história da humanidade, chamado de inconsciente coletivo.
Ainda que breve, a relação entre Flournoy e Jung propiciou avanços na psicologia, na criação e desenvolvimento de importantes conceitos da obra junguiana, que ainda hoje são estudados e que ampliam a compreensão da psique. ■