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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.42  São Paulo  2024  Epub 27-Jan-2025

https://doi.org/10.70435/junguiana.v42.107 

Artigo Original

Autismo e individuação atípica

Autism and atypical individuation

Ceres Alves de Araujo* 
http://orcid.org/0009-0003-2946-4757

Francisco Baptista Assumpção Jr.** 
http://orcid.org/0000-0002-3446-8221

*Psicóloga pela PUC-SP, mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP e doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp. Analista junguiana pela SBPA e coordenadora de seminários do Programa de Formação de Analistas da SBPA. Membro da Academia Paulista de Psicologia (cadeira 39). ORCID 0009-0003-2946-4757. E-mail: ceres.ceresaraujo@gmail.com

**Psiquiatra da infância e adolescência, professor livre-docente pela FMUSP, professor associado do IPUSP. Membro da Academia Paulista de Medicina (cadeira 103) e membro da Academia Paulista de Psicologia (cadeira 17). ORCID 0000-0002-3446-8221. E-mail: cassiterides@bol.com.br


Resumo

O artigo busca discutir o processo de individuação das pessoas com quadros de autismo, que são classificados como transtornos do espectro autista (TEA). O autismo é uma síndrome comportamental com etiologias biológicas múltiplas e evolução de um distúrbio do neurodesenvolvimento com prejuízo cognitivo caracterizado por déficit na interação social e no relacionamento com os outros, associado a alterações de linguagem e comportamento. As pessoas com autismo não seguem os trajetos típicos da estruturação da consciência humana. No autismo, pode-se constatar uma agenesia da função estruturante do Arquétipo Matriarcal, um desenvolvimento sem Eros. O daimon agindo no estado crônico de deficiência seria o Arquétipo do Inválido.

Palavras-chave autismo; TEA; psicologia analítica; arquétipos; desenvolvimento atípico

Resumen

El artículo busca discutir el processo de individuación de las personas con autismo, las cuales se clasifican como Trastornos del Espectro Autista (TEA). El autismo es un síndrome conductual con múltiples etiologias biológicas e la evolución de un transtorno del neurodesarrollo com deterioro cognitivo, caracterizado por déficits en la interacción social y las relaciones com los demás, associado a cambios en el lenguage y la conducta. Las personas con autismo no sieguen los caminhos típicos de estructuración de la conciencia humana. En el autismo se aprecia una agenesia de la función estructurante del Arquetipo Matriarcal, un desarrollo sin Eros. El daimon que actúa en un estado crónico de deficiencia sería el Arquetipo del Inválido.

Palabras clave autismo; TEA; psicologia analítica; arquetipos; desarrollo atípico

Abstract

The article aims to discuss the individuation process of people with autism, which are classified as autism spectrum disorders (ASD). Autism is a behavioral syndrome with multiple biological etiologies and evolution of a neurodevelopmental disorder with cognitive impairment characterized by deficits in social interaction and relationships with others, associated with language and behavioral changes. People with autism do not follow typical paths of human consciousness structuring. In autism, there may be an agenesis of the structuring function of the Matriarchal Archetype, a development without Eros. The daimon acting in a state of chronic deficiency would be the Archetype of the Invalid.

Keywords: autism; ASD; analytical psychology; archetypes; atypical development

Introdução

O processo de individuação das pessoas com quadros de autismo é atípico, em geral difícil, quase sempre doloroso, do início ao fim da vida. Pessoas com autismo não seguem os trajetos típicos da estruturação da consciência humana, têm uma forma diferente de estruturação da mente e mostram padrões atípicos de processar informações, sentir, pensar e comportar-se. São pessoas que enfrentam uma luta titânica, dadas suas condições, para sobreviver no mundo dos outros.

O autismo acarreta um déficit particular na percepção de si mesmo e na teoria da mente. É possível que, desde o início da vida, indivíduos com TEA tenham sido incapazes de se engajarem nas interações sociais que promovem a obtenção de autoconhecimento. Eles carecem da percepção do próprio comportamento e apresentam, com frequência, dificuldade nas formas adaptativas, voluntárias e involuntárias, de regulação das emoções. A possibilidade de vivenciar as diferentes formas amorosas na relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo está alterada nas pessoas com autismo, constituindo um impedimento importante ao processo de individuação.

Kanner (1942) descreveu, sob o nome “distúrbios autísticos do contato afetivo”, um quadro caracterizado por isolamento extremo, comportamentos obsessivos, estereotipias e ecolalia.

Atualmente, entende-se o autismo como parte de um continuum de características próprias de um espectro com causas biológicas e congênitas. É um quadro inespecífico decorrente da causação múltipla de fatores não lineares, o que justifica a imensa variedade de suas manifestações. Apresenta extrema complexidade, o que exige abordagens multidisciplinares, visando à possibilidade de prognósticos e de terapêuticas eficazes.

A qualidade de vida e o bem-estar das pessoas com autismo dependem do suporte emocional apropriado e financeiro da família e da sociedade no início e, na maioria das vezes, ao longo da vida. Dificuldades importantes com a conduta interativa e social agravam mais o isolamento e a discriminação, e o adulto autista, em geral pouco autônomo, nada flexível, mesmo que inteligente, experimenta dificuldade para se inserir em equipes de trabalho. Desorientação e sofrimento acompanham o processo atípico de individuação desses indivíduos.

Hoje observamos uma visão romanceada do autismo. Pessoas famosas, conhecidas como cientistas, artistas e esportistas com dotação especial, são consideradas autistas. Consequentemente, ter esse diagnóstico pode conferir uma validação positiva à própria patologia.

Adeptos do “paradigma da neurodiversidade” sustentam que qualquer variação neurológica faz parte da diversidade humana. Assim, pessoas com autismo, embora venham sendo consideradas através de um paradigma patológico, representariam apenas a diversidade natural dentro da população em geral.

É possível também que haja um excesso de diagnósticos de autismo nível 1, conhecido como autismo leve, de alto rendimento ou síndrome de Asperger. Alguns dos sinais presentes no autismo são também encontrados em muitas outras condições nosológicas, sem que se justifique o diagnóstico de autismo.

Atualmente, considerável número de pessoas tem se autodiagnosticado, na vida adulta e na terceira idade, como autistas e neurodiversas. Pode ser verdadeiro um diagnóstico tardio nos casos de TEA nível 1, nos quais os sinais são mais atenuados, a inteligência é preservada e o prognóstico, melhor. Diversos casos podem, de fato, não ter sido diagnosticados 20 ou 30 anos atrás. Contudo, parece exagerada a frequência com a qual pessoas têm descoberto que são autistas.

Esse exagero no número de autodiagnósticos de autismo acaba formando uma noção romanceada sobre o autismo em geral, levando a crer que se trata de uma neurodiversidade leve e não uma condição complexa e grave.

Autismo: aspectos gerais

Autismo é uma síndrome comportamental com etiologias biológicas múltiplas e evolução de um distúrbio do desenvolvimento com prejuízo cognitivo, caracterizado por déficit na interação social e no relacionamento com os outros, associado a alterações de linguagem e comportamento (Gillberg, 1990).

O déficit na interação social, fator nuclear dos quadros autísticos, implica um déficit em habilidades essenciais para que o indivíduo lide com as demandas do seu ambiente social (Del Prette; Del Prette, 2005), o que acarreta um prejuízo adaptativo marcado. Esses aspectos são de fundamental importância, pois qualquer comportamento que implique vantagem evolutiva é reforçado pela seleção de determinantes genéticos, sendo o comportamento o marca-passo da evolução, com fundamental importância no processo adaptativo e de sobrevivência.

Como não se fala com o outro seguindo um conjunto de regras imutáveis como no mundo natural e para a sobrevivência, o indivíduo deve aprender a lidar com objetivos divergentes, coalizões complexas e rivalidades invejosas — todas essas categorias são de muito difícil acesso para o indivíduo autista, que, sem a capacidade de diferenciar ações intencionais de não intencionais, tem uma habilidade muito limitada de prever atos futuros de convivência de outras pessoas, ou seja, de antever o comportamento do outro compreendendo o raciocínio e os objetivos dele.

Descritivamente, a partir desses aspectos conceituais, o TEA é caracterizado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta edição (DSM-5), pelos seguintes critérios:

Deve preencher os critérios 1, 2 e 3 abaixo:

  1. Déficits clinicamente significativos e persistentes na comunicação social e nas interações sociais, manifestadas de todas as maneiras seguintes:

    • a. Déficits expressivos na comunicação não verbal e verbal usadas para interação social;

    • b. Falta de reciprocidade social;

    • c. Incapacidade para desenvolver e manter relacionamentos de amizade apropriados para o estágio de desenvolvimento.

  2. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades, manifestados por pelo menos duas das maneiras abaixo:

    • a. Comportamentos motores ou verbais estereotipados, ou comportamentos sensoriais incomuns;

    • b. Excessiva adesão/aderência a rotinas e padrões ritualizados de comportamento;

    • c. Interesses restritos, fixos e intensos.

  3. 3. Os sintomas devem estar presentes no início da infância, mas podem não se manifestar completamente até que as demandas sociais excedam o limite de suas capacidades. (American Psychiatric Association, 2013, p. 50)

Descritivamente, a CID-11 caracteriza o transtorno do espectro autista por déficits persistentes na capacidade de iniciar e manter a interação social recíproca e a comunicação social, bem como por padrões, comportamentos e interesses restritos, repetitivos e inflexíveis. Seu início ocorre durante o período de desenvolvimento, geralmente na primeira infância, mas seus sintomas podem não se manifestar até mais tarde, quando as demandas sociais excedem as capacidades limitadas desse indivíduo. Seus déficits são suficientemente graves e causam prejuízo na vida pessoal, familiar, educacional, ocupacional, social e outras, sendo uma característica generalizada desse indivíduo com funcionamento observável em todos os ambientes, embora possa variar conforme o contexto.

Pode ser subdividido, segundo essa classificação, em diferentes categorias, embora a mídia privilegie aquilo que denominamos autismo de alto funcionamento, que aporta a ideia errônea de que essa condição é acompanhada por altas habilidades, inteligência superior e genialidade — o que não se verifica na realidade.

Seus sinais e sintomas surgem antes dos 3 anos de idade e, a cada 10.000 crianças, de quatro a cinco apresentam o transtorno, com predomínio em indivíduos do sexo masculino (3:1 ou 4:1).

Nas últimas décadas, a incidência de autismo cresceu, segundo o Centers of Disease Control and Prevention (CDC). Uma em cada 54 crianças teria, em 2015, esse diagnóstico de TEA aos 8 anos (aumento de quase 10% em relação a 2014 — 1:59) sem diferenças nas taxas de prevalência entre crianças negras e brancas, também segundo o CDC. O número de crianças que passou por uma triagem de desenvolvimento aos 3 anos de idade aumentou de 74% para 84% (progresso potencial em direção a uma triagem mais precoce e mais consistente por profissionais de saúde ou, a nosso ver, em direção a um diagnóstico mais superficial, com os meninos apresentando quatro vezes mais chances de serem diagnosticados do que as meninas), tendo se mantido estável em relatórios anteriores (Maenner et al., 2021).

Outros autores, como Burack (1992), reforçam a ideia do déficit cognitivo, frisando que o autismo deveria ser enfocado sob uma ótica desenvolvimentista, relacionado ao transtorno do desenvolvimento intelectual, haja vista que cerca de 70% a 85% dos indivíduos com autismo têm deficiência mental.

Nos TEA as comorbidades, sejam genéticas, sejam ambientais, são detectadas em cerca de 20% dos indivíduos em amostras não selecionadas, com diferentes fatores associados: exposição pré-natal a teratógenos, complicações pré-natais como prematuridade, anóxia, infecções ou outros quadros, bem como síndromes genéticas cromossômicas ou gênicas, com a maior comorbidade sendo representada pelas síndromes genéticas (Garcia, Viveiros, Schwartzman, Brunoni, 2016).

A ocorrência das comorbidades aumenta ou diminui conforme a idade da primeira avaliação. Elas são comuns e se estendem de alterações genéticas e deficiência intelectual a diferentes tipos de alterações comportamentais (sono, agressividade, controle de impulsos), bem como a quadros psicopatológicos específicos, como transtornos de humor e deficiência intelectual, o que mostra sua grande variabilidade e extrema inespecificidade de conceitos e associações.

Projetos terapêuticos serão, em geral, pautados pelos níveis de gravidade do TEA, segundo o DSM-5 (APA, 2013), pois nível 3 indica necessidade de suporte muito grande; nível 2 exige suporte grande; e nível 1 requer suporte.

Quadros autísticos podem ser pensados sob o ponto de vista do desenvolvimento pessoal, considerando-se não só as peculiaridades decorrentes do próprio quadro, mas também aquelas decorrentes da principal comorbidade, ou seja, a deficiência intelectual. Estima-se que três quartos da população com transtorno do espectro autista tenham algum grau de deficiência intelectual, ou seja, apenas 25% têm inteligência típica (Barbaresi, Katusic, Colligan, Weaver, 2005).

Desenvolvimento: um estado indiferenciado

Pessoas com autismo não seguem trajetos típicos da estruturação da consciência humana. Parecem privadas do processo de individuação, como o desenvolvimento do indivíduo como essência diferenciada do todo da psicologia coletiva. Existe uma atipia do desenvolvimento.

Diferentes linhas teóricas na psicologia buscam entender a gênese dessa forma tão distinta de desenvolvimento psíquico. As linguagens das diferentes teorias, hoje mais complementárias do que discordantes, apontam para alterações desde fases muito precoces da vida.

Segundo autores lacanianos, como Berlinck (1999), o autismo é um estado primitivo ontogenético e filogenético, sendo o limite entre o natural e o humano. O autismo é uma doença em que o humano parece não ser capaz de ultrapassar a natureza em direção à cultura. É um estado contemporâneo à constituição do aparelho psíquico, pois este é autístico no tempo de sua constituição filogenética. Como o aparelho psíquico é do âmbito da subjetividade e esta se manifesta pelo desejo, o autismo dá testemunho de uma ausência do aparelho psíquico.

Na perspectiva ontogenética, crianças autistas são concebidas como “filhos naturais”, permanecendo o autista ligado à natureza, ou seja, a um mundo sem representação. Na perspectiva filogenética, o autismo seria um estado em que, por ser inaugural da espécie, não haveria regressão possível. Por mais animal que seja o humano, a espécie não admite um retorno ao pré-humano (Berlinck, 1999).

Segundo esse autor, o autismo seria uma mutação coincidente com a constituição filogenética do psiquismo, que, por sua vez, se organiza segundo o paradigma autístico. O autismo é, portanto, para o autor, o paradigma do aparelho psíquico, na medida em que este é a organização narcísica do vazio. Conforme essa abordagem, o princípio de funcionamento deste aparelho psíquico é o narcisismo entendido como um movimento libidinal, em que a energia não é dirigida ao objeto, mas permanece no corpo em que foi originada.

Bleuler sugeriu o termo “autismo”, em 1911, por subtração do trecho “eros” da expressão “aut(ero)tismo” (apudBerlinck, 1999). No autismo, não se observa a presença de Eros, que se refere ao poder próprio do humano em estabelecer ligações. A função materna dá lugar à autoctonia, ao filho natural, revelando a ausência do objeto, a causa do desejo. O autista tem genitora, mas não tem função materna, pois é o filho natural, existindo ausência de mãe como objeto de desejo, segundo Berlinck (1999). A libido, por não ser pulsional, por não ser erótica, não estabelece ligações. Não existe Eros. A pulsão não se entrelaça com objetos para constituir representações mentais. Não existe função materna. Não há interlocutor.

No autismo tem-se um mundo silencioso, sem palavra, sem ruído e equilibrado, com movimentos repetitivos e padronizados. A ecolalia, característica do autismo, daria testemunho da existência de uma ressonância própria de uma organização do vazio, em que o som das palavras não encontra Eros, mas encontra Eco, já que o primeiro só existe no âmbito do humano.

Tustin (1995) abandona a ideia de que o autismo contém uma regressão para concebê-lo como primitivo, remetendo-o a um limite entre o estado natural e o estado humano, tanto filogenético como ontogenético. No seu último trabalho, denominado A perpetuação de um erro, declarou que não existe um estágio autístico infantil no desenvolvimento normal, para o qual o autismo infantil poderia ser uma regressão.

Fordham (1976) considera que o autismo é determinado por uma falha no processo de de-integração do Self. O processo de de-integração não ocorre ou ocorre parcialmente. A criança com autismo não recebe o fluxo de estímulos provenientes do Self e do mundo externo para organizar a percepção, ocasionando alterações no desenvolvimento do mundo interno. Quando este se desenvolve, fica impedida a possibilidade da fantasia e da capacidade simbólica.

A possibilidade de desenvolver consciência é compartilhada pelos seres humanos, chimpanzés, macacos, entre outros animais, mas o que é característico do ser humano é a capacidade de manipular a consciência intencionalmente e a capacidade de processar as informações.

É importante o desenvolvimento pré-natal para a estruturação e o funcionamento do sistema cérebro-mente. A teoria do apego/regulação de Schore (2003) mostra que as relações estabelecidas em função das primeiras interações mãe-bebê começam a construir as redes neurais, e isso acontece já no útero.

A mente, com seu potencial para a função simbólica, emerge no processo do desenvolvimento, da experiência dos relacionamentos interpessoais iniciais. A constelação dos arquétipos nos primeiros estágios do desenvolvimento psíquico forma a base para o desenvolvimento de significados centrais para a vida. Gradualmente constroem-se os modelos mentais sobre o mundo ao redor, organizando-se a experiência do dia a dia em padrões que dirigem as expectativas da vida em todos os aspectos. A interação mãe-bebê, desde o útero, é uma relação que se constela sob a dinâmica de Eros e implica em trocas relacionais, amorosas, eróticas.

A dinâmica de Eros não parece se constelar na interação entre a mãe e o bebê com autismo. Ao nascer, ele começa a se mostrar diferente, pois não segue padrões humanos e mostra uma alteração dos instintos básicos, inclusive de autopreservação. Há atipia e desproporção na reatividade à estimulação. O choro não consegue ser entendido e a criança não pode ser apaziguada. Seus gestos não ganham funcionalidade. Ela tende a repetir automatismos desprovidos de significado. Apenas o isolamento e a incomunicabilidade se manifestam cada vez mais.

Diferente das crianças típicas ou das crianças com outras deficiências, a criança autista vive em outro mundo. Mãe e criança estão em mundos separados, sem possibilidade de comunicação. A relação de maternagem não se constela nos padrões próprios da espécie humana.

O instinto materno se realiza na ação de nutrir física e psicologicamente o filho e, quando a função da maternagem é impedida ou rejeitada, passa a existir uma predisposição para o inconformismo e a depressão.

Dessa forma, pode-se supor que o arquétipo da Mãe Terrível preside o mundo do autista — arquétipo esse conectado com morte, destruição, aridez, fome, nudez, frio, pobreza. Não se constela o princípio de Eros, e não há a integração entre a criança, como ego e o “eu” como corpo, Self, outro e mundo.

No autismo, pode-se constatar uma agenesia da função estruturante do Arquétipo Matriarcal (Araujo, 2000), um desenvolvimento sem Eros, considerando-se Eros uma força ou um poder que une os elementos do mundo intrapsíquico. O daimon agindo no estado crônico de deficiência seria o Arquétipo do Inválido.

Guggenbühl-Craig conceitua o Arquétipo do Inválido, considerando que a invalidez é de natureza arquetípica. Segundo ele, “totalidade e invalidez são dois aspectos do Self, representando polaridades básicas em nossa psique” (Guggenbühl-Craig, 1998, p. 19).

“Como o cérebro ocupa uma posição central no funcionamento físico e emocional do ser humano, existe um enorme espectro de invalidez em relação a esse órgão” (Guggenbühl-Craig, 1998, p. 9). Combinam com essa assertiva a etiologia biológica múltipla do autismo e sua apresentação dentro de um espectro (Guggenbühl-Craig, 1998, p. 19).

O Arquétipo do Inválido enfatiza a falta de Eros, de crescimento, de independência e de cura, observada no autismo. Esse arquétipo não pode ser confundido com o Arquétipo da Criança, pois a criança, como o inválido, é frágil, dependente e carente das qualidades dos adultos. Porém, ela cresce, muda e se torna adulto, ela tem futuro e só temporariamente é fraca. O Arquétipo do Inválido enfatiza a dependência unilateral do indivíduo e contrabalança a imagem arquetípica do Herói, que não se apresenta nessa população.

O Arquétipo do Inválido também não deve ser confundido com o da Doença, pois a doença tem futuro, leva à morte ou à saúde. Mas o Arquétipo do Inválido não leva a nada — nem à morte, nem à saúde. Tem-se a deficiência crônica, duradoura.

No autismo observa-se uma alteração, uma desarmonia crônica no processo do desenvolvimento, e não apenas um atraso. E até hoje o autismo, ainda que possa ter seus sintomas atenuados em alguns casos, não tem cura.

A primeira metade da vida

De forma muito diferente do padrão humano desenvolvem-se as crianças, os adolescentes e adultos com autismo, uma vez consideradas as peculiaridades decorrentes do próprio quadro, o nível de gravidade e o suporte do ambiente.

A primeira metade da vida tem como metas a realização heroica, a procriação e a propagação da espécie — metas difíceis para as pessoas com autismo.

No início da vida, quando o Self se de-integra, os sistemas dinâmicos, observáveis antes do nascimento, começam a funcionar. O ego do bebê se desabrocha e se estrutura mediante os processos de de-integração-integração, a partir do Self primário. O processo de individuação se inicia muito precocemente na vida intrauterina e após o nascimento, existindo a criança como um ser psicológico individual, separado de sua mãe. Estados de identidade com o Self e estados de consciência dessa separação parecem coexistir e se alternar. Os estados de identidade inicialmente têm prevalência junto com a capacidade crescente de intuir o estado emocional da mãe.

No indivíduo autista, fragmentos do Eu instalam-se como não integrados, alterando o processo de diferenciação do Eu. Funções egoicas como controle sobre a mobilidade, percepção, teste da realidade, memória, organização de conteúdos mentais, comunicação, utilização de defesas, capacidade de reconhecer limites ficam todas prejudicadas.

No autismo, a sensorialidade se mostra alterada. Ela é bidimensional e se manifesta por presença/ausência. A ausência do objeto não produz sensação de perda, não leva à tristeza, nem suscita produção psíquica de imagens relacionadas ao objeto ausente. Não se criam objetos transicionais. Essa sensorialidade de superfícies e bordas, bidimensional, constitui-se graças a um narcisismo primitivo em que não se observa a força propulsora visando ligações, que têm representações como meta (Magalhães,1985). Nesse narcisismo primitivo, anterior ao narcisismo primário, faltam ligações libidinais, que seriam provocadas pela ausência e, depois, consequentemente, pelo desejo do objeto parental faltante, o que não ocorre.

No bebê autista, já se observa a falta do desejo pelo outro, o que acarreta dificuldade para a aquisição da percepção de si e do outro ao longo da vida. Não há espaço para a intersubjetividade. Esse bebê vive o processo de maturação biológica relativo às suas necessidades de sobrevivência e mostra comportamentos de apego, mas o apego parece ser apenas por segurança, não por filiação.

Ao nascer, a criança defronta-se com um mundo físico e biológico estabelecido e imutável. Através do contato com ele, a criança típica percebe a si mesma, bem como os limites que tal pertencimento ocasiona, passando a perceber, de maneira gradual, que o desrespeito a esses limites ocasiona dor e sofrimento. Quando entra em contato com o mundo social, enquanto animal gregário, defronta-se, novamente, com um mundo estruturado, com barreiras e limites pré-estabelecidos, tendo que perceber, mais uma vez, que a transgressão às suas regras e a esses limites leva a sanções e punições estabelecidas e organizadas para ele. Os limites e interdições são os organizadores da vida psíquica.

O aumento na noção que o bebê tem da realidade é simultâneo à estruturação da consciência corporal e, também, à sua capacidade de construir seu mundo interior. A progressão gradual para a representação simbólica é promovida através da formação dos objetos transicionais. Assim, na medida em que cresce, ele consegue se separar cada vez mais da mãe, estabelecendo-se a personalidade a partir do próprio corpo (Alvarenga, 1997).

No autismo, o Eu se estrutura em termos de outras codificações, isolado e privado das vivências relacionais primordiais. Crianças com autismo apresentam déficit nos processos afetivo-sociais básicos desde uma idade muito precoce e carecem das habilidades cognitivas sociais necessárias a uma teoria da mente. A dificuldade para adquirir uma teoria da mente é resultante de déficit na capacitação básica para interação.

Pessoas com autismo e inteligência preservada, privadas da função de relação e da função afetiva, característica da dinâmica matriarcal, podem adquirir uma estruturação da consciência via dinamismos patriarcais. A constelação do arquétipo do Pai tende a ordenar o mundo da criança com autismo. Ela busca rotinas e situações que lhe permitam decodificar, pois a possibilidade de antecipar o que irá ocorrer lhe dará maior controle sobre a angústia. A literalidade tende a dominar seu pensamento e a determinar sua ação. Muitas crianças mostram evidência de prodigiosa memória, já que, devido à função integradora da mente comprometida e à falta da função da coerência central, os eventos são engramados segundo padrões atípicos, desprovidos da qualidade emocional do momento. Isso facilita a evocação praticamente ponto por ponto dos acontecimentos, daí a memória prodigiosa.

Os pais, humanizadores do arquétipo do Pai, têm a possibilidade de ajudar a ordenar e organizar o conhecimento das relações entre o mundo externo e o mundo interno da criança autista. O desenvolvimento crescente das representações mentais auxilia na adaptação. Porém, é uma adaptação parcial. O outro, no relacionamento, só é considerado na medida em que atende aos interesses específicos da criança. Quanto à conduta social em grupos, a criança com autismo inclina-se a permanecer em uma posição marginal ao grupo de referência.

Sob a égide do arquétipo do Pai, constituem-se os papéis parentais e o papel de filho — ou seja, o papel de “filho do pai” — é adquirido. Na vida adulta, entretanto, observa-se um uso abusivo do papel de filho, muitas vezes ao longo da vida inteira, em função da dificuldade de autonomia da pessoa. O “filho do pai” tende a perpetuar-se, comprometendo relações de trabalho, sociais e amorosas.

O ser humano típico, no seu processo de individuação, ganha a possibilidade da relação simétrica. Adquire papéis relacionados à amizade, fraternidade e conjugalidade; vivencia uma forma de amor que implica amar o outro como a si mesmo, sendo os dinamismos da alteridade a troca, a dialética, o fascínio e a paixão. Constela-se o Arquétipo da Anima-Animus, que é o arquétipo da ágape e da comunhão.

No autismo, mesmo no de alto funcionamento, predomina apenas o arquétipo patriarcal, não se manifestando os demais. O autista não consegue experimentar uma vivência apaixonada, ter um estado de êxtase provocado pela paixão. Essa paixão nunca será projetada no outro e, assim, a procura por esse objeto ocorre, mas ele nunca é atingido nem é idealizado, pois a própria experiência remota da vida — a experiência materna — não se processou de maneira adequada.

É difícil acreditar que a alteridade seja possível para as pessoas com autismo. Na vida adulta, a teoria da mente pode já se desenvolver em seu componente cognitivo, porém falta o componente afetivo, que é a sintonização espontânea e natural com as ideias e sentimentos do outro, compreendendo as reações de compaixão e misericórdia. O que se observa é a permanência de um abusivo papel de filho, impedindo o altruísmo, a amizade, a fraternidade e a conjugalidade.

Na adultícia, a expectativa de um parceiro em relação ao outro é que se preencham os papéis a ele atribuídos na cultura, o que gera uma tensão constante e crescente no inconsciente. No autismo, quando esses papéis não são correspondidos, esses elementos do inconsciente podem gerar intensos conflitos, favorecendo o aparecimento de estruturas rígidas e dominadoras, inflexíveis e incapazes de criar alternativas. Isso, de maneira quase despótica, restringe o indivíduo com autismo, pois ele não admite particularidades nem um caráter individual, só conseguindo gostar daquilo que determina e controla de maneira total. Presente em pessoas com autismo, a necessidade de controle, do afastamento do individual e da rejeição da singularidade dificulta de forma clara o estabelecimento de relações interpessoais. Estas, quando ocorrem, se embasam em atitudes de rigidez e pequena criatividade.

Isso se presentifica no adulto autista a partir da tendência à sistematização, que lhe proporciona uma forma de encarar o mundo de maneira linear, partindo da premissa de que ele é estruturado em sistemas, pensamento útil quando lida com as situações técnicas, mas que falha quando se lida com as pessoas — momento em que as habilidades de empatia (nele deficitárias) devem ser preponderantes. Tais condutas se associam a comportamentos repetitivos e estereotipados, bem como a interesses restritos, que, funcionando como sistemas, possibilitam que ele perceba o mundo como controlável e previsível.

Mesmo sendo inteligentes, têm dificuldades em formar representações complexas, elaboradas e precisas a respeito de seus atributos pessoais, fundamentais para o autoconhecimento e a comunicação com o outro.

O Pai molda a consciência coletiva através do arquétipo masculino, que é usualmente vivenciado em situações de autoridade (Boechat, 2009). Levado às últimas consequências, faz com que se viva conforme a norma e se renuncie à aventura existencial individual. Esse é o modelo de educação que se propicia e que favorece o indivíduo com autismo, que praticamente estanca nesse momento, ficando prisioneiro das regras e dos hábitos.

Para a pessoa com desenvolvimento típico, esse exercício do dever unicamente torna-se tedioso e vazio, constituindo a rotina cotidiana que aponta, muitas vezes, para a insatisfação. A insatisfação é um terreno propício para aqueles que, por suas características criativas, afetivas e pelo momento de desenvolvimento, têm a possibilidade de encontrar algo de valor no dia a dia, alterando, assim, um cotidiano enfadonho.

Isso não ocorre nos autistas, cuja vida, inautêntica, impossibilita o aparecimento daquilo que chamaríamos de crise, isto é, de um tempo de renovação de uma vida vivida de modo imperfeito e inautêntico. Tem-se um obstáculo à relação individual, pois não existe relacionamento possível, uma vez isso geralmente decorre de motivações inconscientes que fazem com que um pressuponha uma estrutura psíquica similar no outro, conforme descreve Jung (2015), o que não se observa nos autistas.

Assim, a manutenção de um relacionamento interpessoal é tarefa penosa e a destrutividade dessa dinâmica está claramente associada ao bloqueio da criatividade. A personificação de uma imagem que ameaça o relacionamento é tão assustadora que o indivíduo costuma preferir a manutenção daquilo que, embora muitas vezes mau, é familiar, rotineiro e estereotipado (Kast, 2011).

Para a pessoa autista, o encontro com o outro não transcende as meras situações cotidianas; não se estabelece a cumplicidade a partir do conhecimento do que cada um pode esperar do outro, e um verdadeiro relacionamento é impossível de ser construído, a menos que seja institucionalizado e protegido.

Nela não se dá o encontro nem do homem nem da mulher interior idealizada e, consequentemente, não acontece aquilo a que Hillman (1985) se refere como o encontro com a própria anima, com o si-mesmo, a relação com esse inconsciente e a mediação com o próprio desconhecido. Não se fazem projeções ou fantasias, nem ocorre um encontro ou uma paixão, ficando-se estático, sem mudanças pessoais, sobrando uma sensação de incompletude.

A segunda metade da vida

No processo de individuação, o ser humano se constrói a partir de suas possibilidades e limites e estabelece significados pessoais que o motivam e o direcionam a um projeto existencial estabelecido por ele próprio. Para sua realização, é necessário enfrentar o desafio de conhecer-se cada vez mais — não somente naqueles aspectos que lhe foram ensinados e que são socialmente aceitos, mas também em outros, muito mais pessoais e, muitas vezes, sombrios e ocultos.

O caminho para a individuação dá-se em direção à alteridade e a um futuro de fusão com o Absoluto de forma solitária. Caso contrário, o indivíduo fica preso ao passado e às forças primitivas e ctônicas que o mantêm acorrentado às questões instintivas e mundanas ou às forças sociais que preservam a conformidade.

Assim, esse desenvolvimento tem propósitos diversos, sendo o primeiro um propósito biológico destinado a dar origem a outro ser semelhante. Posteriormente, estabelece-se um propósito relacional que deve cumprir um objetivo sociocultural que gesta a humanização das suas relações com o outro. Finalmente, em um terceiro momento, forma-se um propósito espiritual que o religa a si mesmo e que culmina em um propósito cósmico que transcende e o leva a se perceber como pertencente à própria totalidade (Alvarenga, 2010).

Dessa maneira, o ser humano está em constante progresso, sendo a meta desse desenvolvimento a autorrealização enquanto diferenciação (que permita que se saiba quem se é) e fusão harmoniosa mais plena e completa entre todos os aspectos de sua psique.

Nessa caminhada, o indivíduo, de maneira consciente e inevitável, se separa da massa indeterminada e inconsciente e nada impede que se perceba só — nem a adaptação bem-sucedida, nem a incorporação ao meio ambiente, nem a família, nem a sociedade, nem a posição social. Isso o impulsiona a escolher seu próprio caminho e a elevar-se acima da identidade com a massa humana a partir de um impulso enquanto fator irracional que o impele a emancipar-se da massa gregária e de seus caminhos. Com isso, ele alarga a esfera pessoal com a vontade, identificando-se cada vez mais com as finalidades oferecidas pela natureza dos motivos inconscientes (Jung, 1981).

Ele se sente diferente e isolado de todos, uma vez que obedeceu à voz interior, da qual só ele tem conhecimento. Assim, estabelece a “sua lei”, que coloca seu caminho acima de todos, das convenções que o afastam de si, que o massificam e impedem a criação. Solidão e consciência da solidão talvez sejam os primeiros passos para que se escute a voz interior.

Dentro dessa perspectiva de desenvolvimento da segunda metade da vida, como pensaríamos o padrão de desenvolvimento do indivíduo autista?

Para Whitmont (1990), a sombra é um arquétipo, parte essencial da construção da personalidade do ser humano. O confronto com a sombra é necessário para que haja o desenvolvimento do autoconhecimento. “A sombra se refere à parte da personalidade que foi reprimida por causa do ego ideal. Como tudo o que é inconsciente é projetado, encontramos a sombra na projeção, em nossa visão, da outra pessoa” (Whitmont, 1990, p. 144).

Para o desenvolvimento da sombra, é de importância fundamental o vínculo estabelecido entre pais e filhos. Desde o início da vida, a criança necessita de um vínculo afetivo com a mãe e/ou o pai ou com substitutos, que possam funcionar como modelos. Dessa maneira, cria-se um fundamento para a vida moral, uma vez que a vida moral é fruto do passado e das ligações da pessoa. No desenvolvimento da pessoa com autismo, no qual o ego se estrutura isolado, privado das vivências relacionais primordiais, como pensar o desenvolvimento da sombra?

A moralidade precisa andar lado a lado com o conhecimento pessoal da sombra (Sanford, 1988). Quando os escrúpulos moralistas sobrevivem apenas por causa das sanções existentes e a pessoa não tem conhecimento sobre si mesma, ela tem uma moralidade apenas no nível coletivo. Poderia uma pessoa com autismo, dadas suas peculiaridades de desenvolvimento, alcançar uma moralidade pessoal, decorrente do autoconhecimento da sua sombra? Na pessoa com autismo, até que ponto uma consciência moral poderia se desenvolver?

Piaget (1994) mostra que, no estágio primitivo de egocentrismo, a criança reconhece e segue normas somente quando respeita e teme as figuras de autoridade que as impõem e que apenas em um estágio posterior, por movimentos de cooperação entre pares, as regras vão se impondo per se até se alcançar a autonomia moral.

O que se observa nas pessoas com autismo é a dificuldade de atingir esse estágio posterior visando à autonomia moral. Elas não apresentam curiosidade referente aos princípios que referendam as regras. Buscam seguir rigidamente os preceitos ensinados e demonstram ansiedade por medo de errar ou por não entenderem a situação criada.

Na segunda metade da vida, a individuação deve ser vista como uma “realização moral” em termos junguianos. Segundo Barreto (2012), o fator moral enraíza-se no centro da concepção psicológica de Jung e constitui um dos fundamentos irrefutáveis, caracterizando a dimensão ética da psicologia analítica. Jung (1977) considera a realização moral uma lealdade a si mesmo, afirmando que, frente à necessidade da individuação, é frequente que a voz interior do Self entre em colisão com o código moral coletivo, criando um conflito ético que precisa ser enfrentado.

Sabe-se que a lealdade a si mesmo implica a liberdade para viver a vida com o significado que lhe seja mais genuíno. Muitas vezes, a possibilidade de liberdade entra em conflito com regras coletivas da sociedade, trazendo sentimentos de culpa e sofrimento, indicativos da ética da individuação. Com o impulso da individuação, cria-se um paradoxo para o sujeito ético, e a transgressão nele implicada será vivida pelo sujeito como uma dolorosa necessidade. A possibilidade da transgressão implica liberdade e responsabilidade absoluta por ela.

A possibilidade da transgressão é impensável para as pessoas com autismo, sem chances de conseguirem uma autonomia moral, a “realização moral” em termos junguianos. A atipia do desenvolvimento, a alteração no vínculo primário entre o filho e os pais, já traz um comprometimento no desenvolvimento da própria sombra, pois o indivíduo autista permanece apenas como seguidor das regras extrínsecas a ele, sem alcançar a autonomia moral.

Conclusão

De forma muito diferente do padrão humano, transcorre o desenvolvimento dos bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos com autismo, devendo-se considerar as peculiaridades decorrentes do próprio quadro, do nível de gravidade e do suporte do ambiente. O Eu pode se estruturar em termos de outras codificações, mas isolado e privado das vivências relacionais primordiais.

Pessoas com autismo, com inteligência preservada, privadas da função de relação e da função afetiva, características da dinâmica matriarcal, podem adquirir uma estruturação da consciência via dinamismos patriarcais. Porém, observa-se o impedimento das dinâmicas da alteridade. Ainda que na vida adulta a teoria da mente possa já estar desenvolvida em seu componente cognitivo, falta o componente afetivo, que é a sintonização espontânea e natural com as ideias e os sentimentos do outro. Relações simétricas não se constelam e o que se vê é a permanência de um abusivo papel de filho, a qual impede o altruísmo, a amizade, a fraternidade e a conjugalidade. Sobra a incompletude, pois não se fazem projeções e fantasias nem se dá o encontro com o outro, e não se vive a paixão.

Se, na segunda metade da vida, a individuação das pessoas neurotípicas deve ser vista como “realização moral” em termos junguianos, o que se observa nas pessoas com autismo é a dificuldade em atingir esse estágio posterior visando à autonomia moral. Indivíduos com autismo que têm a inteligência preservada enfrentam uma luta titânica para se adaptar ao mundo dos outros, para estudar, conseguir uma profissão e trabalhar. Muitos empreendem uma luta heroica pelo direito de existir nesse mundo, como pessoas tão diferentes.

Assim, em termos da psicologia analítica, pode-se pensar que, ocorrendo no autismo uma alteração no processo de de-integração do Self, tem-se possivelmente um distúrbio desde a fase intrauterina, quando as vivências matriarcais não se constelam. Porém, como a organização do desenvolvimento é arquetípica, a função estruturante da organização patriarcal se torna dominante. As pessoas com autismo têm os papéis referentes à filiação dupla alterados e são filhos ou filhas de uma mulher-Pai e de um homem-Pai. Sob a ordenação do Self como princípio de totalidade, acredita-se que elas podem ter a integração dos demais arquétipos entre si por meio de um processo de individuação peculiar, mesmo com a falha da humanização do arquétipo da Grande Mãe.

Os princípios de centroversão e do automorfismo, atuantes sob a organização patriarcal, dirigem os processos de ampliação da consciência e a integração da personalidade, abrangendo as relações entre os sistemas consciente e inconsciente. É uma personalidade que, estruturando-se em outras bases, tem a possibilidade de viver um processo de individuação atípico.

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Recebido: 19 de Dezembro de 2023; Aceito: 06 de Outubro de 2024

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