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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.42  São Paulo  2024  Epub 17-Mar-2025

https://doi.org/10.70435/junguiana.v42.112 

Republicações

Ética e processo analítico1,2

Ética y Proceso Analítico

Ana Lia B. Aufranc* 

* Psicóloga. Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e da International Association for Analytical Psychology (IAAP). Supervisora e coordenadora de seminários do Instituto de Formação de Analistas da SBPA. Conselheira do Conselho Ético, Fiscal e Administrativo (CEFA) da SBPA.E-mail: ana-lia@uol.com.brBrasil


Resumo

A autora aborda e tece considerações acerca das noções de saúde e de doença na perspectiva junguiana. A seguir, discute o que seria a cura no processo analítico. Tece elaborações sobre o significado da ética do processo de individuação. Revê a questão da consciência ética individual vis-à-vis com o código moral de determinada cultura. Finaliza refletindo sobre a ética envolvida no processo analítico e na relação paciente-analista.

Palavras-chave ética; saúde; doença; processo de individuação; processo analítico

Resumen

La autora inicialmente aborda los conceptos de salud y enfermedad desde una perspectiva junguiana. A continuación, analiza la cura en el proceso analítico, elaborando sobre el significado de la ética del proceso de individuación y revisando la cuestión de la conciencia individual en relación al código moral de una cultura determinada. Finaliza reflexionando sobre la ética involucrada en el processo analítico y en la relación paciente-analista.

Palabras clave ética; salud; enfermedad; proceso de individuación; proceso analítico

Abstract

The author initially approaches the concepts of health and illness from a Jungian perspective. The discussion which follows focuses on healing in the analytical process, elaborating on the meaning of the ethics of individuation and reviewing the issue of individual conscience in relation to the moral code of a given culture. The author concludes by reflecting on the ethics involved in the analytical process and in the patient-analyst relationship.

Keywords ethics; health; illness; individuation process; analytical process

Devo ressaltar que minha formação, bem como minha prática, é eminentemente empírica. Sou psicóloga, analista junguiana e trabalho há vinte e cinco anos, em meu consultório, com um paciente concreto sentado à minha frente. Meu referencial, portanto, não é filosófico, mas sim psicológico. Assim, para lidar com a questão em pauta — ou seja, ética, saúde e doença — preciso olhar para esses três tópicos do ponto de vista prático. Por isso, propus o tema ética e psicoterapia ou, mais especificamente, ética e processo analítico, o que significa tomar como base minha experiência clínica em uma prática que se respalda no referencial junguiano.

Ao falarmos em psicoterapia, pressupomos que uma terapia da psique seja não só possível, como desejável. Pressupomos que exista a doença psíquica e a saúde psíquica. O que isso significa? Qual o parâmetro que podemos usar para entender a saúde e a doença? Estaria doente o ser que sofre? Consequentemente, estaria sadio aquele que não sofre? Seria sadio quem funciona de forma efetiva na sociedade? Estaria doente, portanto, quem está desadaptado socialmente?

Ao respondermos afirmativamente a essas questões e usarmos esses parâmetros, aparentemente tão claros e seguros, incorreríamos em erros graves. Um psicopata não sofre e pode ser muito bem-adaptado e próspero socialmente, como são, por exemplo, tantos corruptos bem-sucedidos em nossa sociedade. Será isso saúde? Em oposição, um artista que mergulha em seu inconsciente, que traz renovação e criatividade, que questiona a sociedade, poderá evidentemente sofrer e não poderá sempre ser considerado bem-adaptado à sociedade. Será, então, que poderíamos dizer que ele está doente?

Na verdade, acredito que deveríamos refletir sobre a saúde a partir de parâmetros que vão além do critério de se há sofrimento ou não, de se há adaptação social ou não. Na prática, o paciente procura-nos porque, de alguma forma, não se sente bem, seja porque tem um sintoma que o incomoda, seja porque tem um conflito que não consegue resolver, seja porque se sente insatisfeito, porque sente um desânimo difuso ou porque não sente nada disso, mas a esposa ou o esposo não o suporta mais. Ele espera de nós algo como uma cura, um alívio; afinal, nossos consultórios são herdeiros do confessionário, de um lado, e da prática médica, de outro.

Mas o que será curar, psiquicamente falando? Como podemos saber a priori, o que é bom ou mau para o nosso paciente? O padre certamente sabe como orientar o fiel: as leis já foram reveladas e ele sabe o que é o pecado e o que é a salvação. O médico também sabe o que é bom para seu paciente, se deve encaminhá-lo para um tratamento medicamentoso ou para uma cirurgia. O primeiro segue o código moral religioso e o segundo, os mais novos desenvolvimentos da ciência no que tange à saúde do corpo. E o analista, no que se pauta?

Feliz ou infelizmente, ao lidarmos com a psique, não podemos saber antecipadamente o que é bom ou mau para determinado paciente (Jung, 1981a) — não se pretendemos respeitar sua individualidade, sua essência, sua singularidade. Falo, portanto, do ponto de vista da análise e descarto qualquer trabalho adaptativo como podendo ser considerado psicoterapêutico.

Tentarei usar poucos conceitos teóricos. Porém, alguns se fazem necessários. Vimos que não podemos saber a priori o que é bom ou mau para nosso paciente se pretendemos respeitar sua individualidade, sua essência, se pretendemos respeitar sua individuação. A individuação implica tornar-se um in-divíduo, ou seja, um todo indivisível, tornar-se único pela diferenciação de características que são, em si mesmas, universais, arquetípicas. Assim como não há dois corpos iguais, não existem duas psiques iguais e, portanto, não há duas individuações iguais.

Aqui se coloca a questão da ética da individuação, da necessidade de atualizarmos o que potencialmente somos. A individuação é um processo que leva em direção ao Self como totalidade psíquica. Ao nascer, o bebê não é uma tábula rasa, mas já traz em si todo o arcabouço do inconsciente coletivo como potencial de desenvolvimento comum à humanidade. O inconsciente coletivo, ao contrário do individual, não é uma aquisição pessoal. Os conteúdos do inconsciente coletivo não foram reprimidos ou esquecidos. Diríamos que a experiência humana repetida durante milhões de anos cria estruturas psíquicas residuais que se tornam arquétipos, e que essas estruturas, por sua vez, exercem influência na experiência humana tendendo a organizá-la de acordo com um padrão preexistente.

Inerente ao conceito de inconsciente coletivo é o conceito de arquétipo. Arquétipos são potencialidades, tendências. São padrões herdados que estruturam e coordenam o desenvolvimento da consciência. O arquétipo se expressa, de um lado, como imagem associada ao espírito e, de outro, como instinto associado à biologia. No arquétipo, portanto, está o potencial para o desenvolvimento psíquico e corporal.

Falo, assim, a partir de uma visão de homem em que o fazer cultura é inerente ao ser humano, em que o movimento para o desenvolvimento é potencialmente criativo. A cultura não depende da repressão dos instintos para existir; é natural, é inerente ao desenvolvimento humano fazer cultura. O arquétipo implica, portanto, potencialidades psicofísicas que poderão ser atualizadas desde que haja condições ambientais condizentes.

A consciência nasce a partir do inconsciente coletivo, e dessa diferenciação vai se formando o ego como centro da consciência. A concentração, a continuidade, a diretividade são condições necessárias para o desenvolvimento da consciência. Como consequência, uma certa unilateralidade é inevitável e, com isso, a polaridade oposta àquela assumida pela consciência vai se constelando no inconsciente — e a partir da e concomitante à formação do ego, da consciência, irá se formando no inconsciente a sombra como depositária de tudo aquilo com o qual o ego não pode se identificar.

O que observamos na prática é que, sempre que uma atitude consciente foi suficientemente desenvolvida, outro desafio — seja ele vivenciado como interno ou externo — se coloca. Diríamos que em cada forma bem desenvolvida está sempre o germe do oposto. No paradoxo chinês: o nascer do sol inicia-se à meia noite. O físico contemporâneo Marcelo Gleiser (1997, p. 220) diz: “O preço do novo é o declínio da ordem”. Confúcio dizia que a confusão se estabelece quando o homem colocou tudo em ordem.

Ou seja, estamos em constante movimento, em constante transformação. O consciente e o inconsciente funcionam compensatoriamente. Não só o inconsciente é compensatório em relação à atitude consciente, como também a consciência é relativa ao conteúdo inconsciente que está constelado no momento, em um verdadeiro sistema de feedback. Aquilo que está faltando à consciência constela-se no inconsciente.

Ao afirmar isso, não nos referimos a uma mera complementação (Jung,1981b), e sim a um funcionamento compensatório que tem um sentido, que é o da individuação. A individuação, como dissemos, caminha em direção ao Self como totalidade psíquica. A individuação nos leva ao caminho da totalidade.

O Self, em sua essência arquetípica, é transcendente e, portanto, objeto das revelações místicas e das religiões. Já como imagem arquetípica é imanente e se expressa por meio dos símbolos, como símbolo de totalidade, de união dos opostos, de centro organizador, de fonte de energia para a individuação, para o impulso de nos tornarmos o que realmente somos, de realizarmos nossa própria identidade.

Na segunda metade da vida, vai-se tornando claro que o centro da psique é o Self, e não a consciência, o ego. O que somos em nossa totalidade única não é nossa responsabilidade subjetiva, mas o que fazemos com isso na realidade é, sim, nossa responsabilidade.

Quando um organismo vivo se encontra cortado de suas raízes, perde a conexão com os fundamentos de sua existência e necessariamente adoece. O Self procura realizar-se apesar das possíveis resistências internas ou externas.

A discriminação inicial da consciência, em seu desenvolvimento, do que é bom ou do que é mau naturalmente gerou, como vimos, a formação da sombra como depositária dos aspectos opostos àqueles com os quais a consciência se identifica. A sombra é facilmente projetada nos outros e, com isso, a verdadeira natureza do outro se perde (Stein,1995).

A necessidade da individuação, ou seja, da realização da totalidade do Self, requer o resgate das projeções, o confronto com a sombra, e é justamente a partir da integração da sombra que a capacidade ética é ativada.

É preciso, aqui, fazer uma diferenciação entre o que chamamos de ética e de código moral. A palavra grega ethos e a palavra latina mores parecem ter significados semelhantes como costumes do agir em sociedade e dos valores sociais (Proulx,1994). A moralidade, no entanto, está associada a um rol de regras e valores aceitos por determinada cultura; enquanto a ética pode significar, de um lado, a reflexão teórica sobre moralidade feita pelos especialistas — no caso os filósofos — ou ainda a capacidade individual de questionar a moralidade aceita socialmente, a partir do ponto de vista da consciência ética pessoal. Falamos, portanto, de um confronto entre a moralidade coletiva e a ética pessoal, entre o código moral e a consciência ética pessoal.

A grande diferença da perspectiva junguiana ao encarar esse confronto é a iniciativa do inconsciente em relação a ele. Vejamos.

É comum em nossa cultura, a partir de Freud, a identificação da consciência ética com o superego como código moral internalizado, a partir da educação, do ambiente e da família. Mas, como vimos, partimos da noção do inconsciente coletivo, arquetípico e potencialmente criativo, e, desse ponto de vista, a ética é arquetípica e o código moral é também resultado da própria natureza humana no plano coletivo. Diríamos que a psique inconsciente, e não determinado código moral introjetado, é a origem da consciência ética.

O fundador de um novo código moral, seja ele religioso, social ou político, é sempre um revolucionário que segue uma voz interior e capta as transformações que estão ocorrendo no inconsciente coletivo, opondo-se aos valores coletivos dominantes de seu tempo. A capacidade para desenvolver um código moral, bem como a ética de cada individuação, é, portanto, arquetípica, inerente à natureza humana.

No plano individual, diríamos que existem diferentes necessidades éticas, de acordo com o momento da individuação. Em um primeiro momento, o ego se diferencia do inconsciente e, ao se identificar como uma polaridade, considerada como sendo o bem, forma naturalmente no inconsciente a sombra, depositária da polaridade oposta, identificada com o mal. Há uma potencialidade arquetípica, natural para esse desenvolvimento, mas esse momento ainda pode ser identificado com a introjeção do código moral da sociedade em que o indivíduo se insere e, portanto, com a formação do superego como internalização das figuras parentais representantes do poder e da autoridade.

Nesse mesmo processo, dá-se a formação do ego ideal como desejo de identificação com as figuras parentais positivas e da persona, o segmento mais superficial da psique e que tem a função de adaptação social.

Em um segundo momento, a psique coloca a necessidade de confronto com o inconsciente e da integração das polaridades depositadas na sombra, visto que o Self procura sua totalidade. Na sombra encontram-se não só as polaridades reprimidas e incompatíveis, mas também potencialidades que não puderam ser atendidas. O ego ideal e o superego cedem, então, lugar ao Self.

O ego não pode mais simplesmente se identificar com a persona, com o ego ideal, e seguir o código moral super egóico. Há um momento em que surgirão conflitos que levarão à procura de uma consciência ética pessoal, advinda da necessidade do Self. Aí se colocam os conflitos de deveres, os dilemas éticos (Jung, 1981c). Não raramente esses conflitos têm início a partir da vivência de consciência pesada ou de sonhos em que há o questionamento da postura egóica e cujo questionamento nem sempre coincide com o código moral. Há a vivência de uma voz interior, que pode ser sentida como sendo a voz de Deus ou do Diabo, e que coloca para o indivíduo uma necessidade que se choca com o código moral.

É bem possível rejeitar a voz interna em favor do código moral, mas essa traição à própria individuação terá o preço da neurose. Aceitar o conflito, vive-lo até as últimas consequências e estabelecer o diálogo com o inconsciente, implica reflexão, vivência, algumas vezes sofrimento e necessariamente ampliação da consciência — e essa é a essência da consciência ética, o exercício do livre arbítrio por meio da vivência do conflito que não pode ser resolvido apenas intelectualmente, mas que requer para isso o ser como um todo. A natureza da solução ética está de acordo com a essência mais profunda da personalidade, com o todo que engloba o consciente e o inconsciente e, portanto, transcende o ego. Essa vivência traz em si a questão do significado da vida — o que a vida quer de mim?

Acredito, nesse momento, estar mais claro o que eu dizia no início sobre a impossibilidade de sabermos a priori o que é bom ou mau para determinado paciente. No inconsciente, encontra-se a força propulsora não só da vida individual, como também da história coletiva. Falo de uma psique que procura novos desenvolvimentos da consciência, seja no plano individual, seja no coletivo.

Nosso mundo ocidental vive, a partir do mito judaico-cristão, a necessidade da perfeição e, portanto, da projeção da sombra; Deus é identificado com o Summum Bonum e, portanto, o mal é tido como a ausência do bem. É fácil nesse contexto nos identificarmos com a persona, com o código moral vigente e projetarmos o mal no outro, individual ou coletivamente, como por exemplo no chamado “eixo-do-mal” ou no conflito Israel x Palestina, que ontem vestia a roupagem de EUA x União Soviética, entre outros.

Confrontar-se com a sombra significa aceitar a própria imperfeição, as próprias falhas, para só então poder atender o sentido da própria individuação, que não pode mais se pautar no coletivo. Só a partir da integração da sombra podemos desenvolver o sentido da solidariedade, da responsabilidade ética e de tolerância com as diferenças. Só então cessa a projeção da sombra e da necessidade do bode expiatório como luta supostamente ética para a abolição do mal.

Na Idade Média, os valores coletivos exigiam a aceitação da cosmovisão do Antigo Testamento e o científico era tido como heresia (Neumann,1991). A partir da Renascença a base moral deixa a religião em direção à ciência e à razão; os valores coletivos passam a exigir a cosmovisão científica e as tendências religiosas são condenadas como superstições. A partir da abordagem científica, o mito da objetividade sombriamente evita o questionamento ético; a objetividade é tida como verdade e, dessa forma, faz-se a exclusão do emocional, que é parte essencial do conflito ético.

Creio que agora se torna mais claro porque não podemos usar a adaptação social e a presença ou a ausência de sofrimento como parâmetros para saúde ou doença. Se pretendemos olhar para a questão ética colocada no processo analítico, não podemos partir de valores morais coletivos. Precisamos respeitar a individuação de cada paciente, a atualização do que potencialmente cada um é.

Observamos que o indivíduo que se encontra dissociado de suas raízes adoece. O Self procura sua realização apesar das resistências internas ou externas, e as necessidades da individuação não atendidas tornar-se-ão sintomas físicos ou psíquicos. A vida está em constante movimento, em constante transformação, e a paralisação desse movimento configura a doença.

Vimos que o inconsciente funciona compensatoriamente em relação à consciência, num sistema de feedback que tem o sentido da individuação. Portanto, aquilo que está faltando à consciência encontra-se no inconsciente e se expressa por meio dos símbolos.

É preciso aqui esclarecer o conceito de símbolo na psicologia analítica. O símbolo é a melhor expressão possível de algo desconhecido pela consciência. Por isso, falamos no símbolo vivo, carregado de significado, e que vai enriquecer a consciência; o que é muito diferente de um sinal, que é uma expressão análoga ou abreviada de algo conhecido, e diferente de uma alegoria, que é uma paráfrase de algo igualmente conhecido.

O símbolo, como expressão arquetípica, tem uma polaridade biológica, podendo se expressar por meio de sensações corporais ou de sintomas físicos, e uma polaridade espiritual, podendo se expressar através dos sintomas psíquicos ou das mais diferentes imagens: nos sonhos, nas fantasias, nas projeções, mas também nos mitos, nas lendas, nas religiões, na arte etc.

O analista procurará então trabalhar na procura do restabelecimento do diálogo perdido entre o consciente e o inconsciente, por meio da abertura para a elaboração dos símbolos trazidos pelo paciente. As mais diferentes técnicas poderão ser utilizadas com essa finalidade. Pode-se trabalhar com os sonhos, com as fantasias, com as projeções, com a transferência e a contratransferência na relação paciente-analista, com os símbolos que se constelam nessa relação.

Pode-se usar diferentes meios para dar expressão aos símbolos, como o desenho, a argila, a caixa de areia, a dramatização. Podem-se fazer amplificações simbólicas a partir das associações do paciente ou amplificações mitológicas ou folclóricas.

Enfim, não podemos entender que exista uma única técnica correta, assim como não existe o elixir universal. As mais diferentes técnicas poderão ser propiciadoras do restabelecimento do diálogo com o inconsciente e, novamente, cada caso pedirá uma abordagem própria e diferente.

Pode até mesmo ser que não sejamos o melhor analista para determinado paciente e que ele possa se desenvolver melhor com um colega que tenha características de personalidade que se coadunem favoravelmente com as do paciente. Mas como pode o analista ser o ser poderoso que tudo sabe sobre a individuação do outro? Como dizíamos no início, não podemos saber a priori nada do que seja bom ou mau para o nosso paciente. Precisaremos caminhar juntos, desvendando mistérios, abrindo-nos para o novo, bem como para o resgate do que se perdeu pelo caminho, mas que se mostra essencial para poder continuar a caminhada; suportando as dúvidas, os medos e as incertezas. Suportando o sofrimento do abrir mão de barreiras que já nos protegeram, mas que hoje nos sufocam, conscientizando conflitos e necessidades para que, no decorrer do caminho, seja possível ir resgatando o sentido dessa vida, a dignidade e a ética dessa individuação.

Mas o que habilita o analista a ser o companheiro de tal empreitada?

O mito da análise é certamente o do curador ferido (Groesbeck,1983). Quíron, o centauro, que iniciou Asclépio nas artes da cura, era um ser eternamente ferido. Era justamente da vivência dessa ferida, eternamente aberta, que advinha sua possibilidade de curar. Por isso, além da formação teórica, o analista necessita vivenciar e conhecer suas próprias feridas, sendo assim essenciais a análise pessoal do analista, bem como a supervisão. O paciente que nos procura identifica-se com a polaridade ferida ou doente e projeta no analista a polaridade do curador e da saúde. Caso o analista se identifique com a saúde e projete complementarmente a doença no paciente, nenhum movimento de transformação poderá ocorrer. Somente a partir do contato do analista com suas próprias feridas é que será propiciado o contato do paciente com seu curador interno e uma nova dinâmica poderá ter início. É preciso que o analista possa tomar para si a doença do paciente e experimentar seu lado ferido, sua própria vulnerabilidade. Por isso, o paciente é necessariamente significativo para a individuação do analista, e trata-se de um caminho de desenvolvimento conjunto.

Se o analista não pode se mobilizar pelas feridas do paciente, a análise não poderá ocorrer; ficará paralisada na projeção inicial do analista-curador e do paciente-ferido. Assim como Quíron, é no reviver as próprias feridas que podemos mobilizar a transformação criativa, abrindo-nos para as necessidades do Self, para o que a vida pede de nós e para o desenvolvimento ético de cada individuação.■

Referências

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Groesbeck, C.J. (1983). A imagem Arquetípica do Médico Ferido. Junguiana, (1), 72-96. [ Links ]

Jung, C.G. (1981a). Good and Evil in Analytical Psychology. In Civilization in Transition. CW 10. Routledge & Kegan Paul. [ Links ]

Jung, C.G. (1981b). The Role of the Unconscious. In Civilization in Transition. CW 10. Routledge & Kegan Paul. [ Links ]

Jung, C.G. (1981c). A Psychological View of Conscience. In Civilization in Transition. CW 10. Routledge & Kegan Paul. [ Links ]

Neumann, E. (1991). Psicologia Profunda e Nova Ética. Edições Paulinas. [ Links ]

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Stein, M. (1995). Jung on Evil. Princeton University Press. [ Links ]

1 Palestra proferida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no IX Simpósio Interdisciplinar de Estudos Greco-Romanos, em maio de 2002.

2 Artigo originalmente publicado em edição física na revista Junguiana, vol. 20, 2002

Recebido: 28 de Agosto de 2024; Revisado: 01 de Novembro de 2024

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