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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.22 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010

 

SEÇÃO LIVRE

 

A feminização na psicose: empuxo-à-mulher e erotomania

 

The feminization in psychosis: the push towards woman and erotomania

 

 

Vanessa Campbell da GamaI; Angélica BastosII

IPsicóloga e Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
IIPsicanalista; Professora Associada I no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Bolsista de produtividade científica do CNPq

 

 


RESUMO

A tendência à feminização nas psicoses constitui uma questão para a direção do tratamento psicanalítico. Denominada por Jacques Lacan de empuxo-à-mulher, ela se distingue da posição do neurótico no lado mulher da divisão dos sexos. Este trabalho tem por objetivo conceituar o empuxo-à-mulher e delinear o destino que o delírio é capaz de lhe conferir. O procedimento consiste em circunscrever a problemática da sexuação entre os humanos com base na teoria freudiana e no ensino de Lacan sobre a inscrição do sujeito na partilha sexual. Os casos Aimée e Schreber serão abordados com o intuito de delimitar a pressão da estrutura no empuxo-à-mulher, a emergência do fenômeno e sua articulação com a erotomania.

Palavras-chave: psicose, empuxo-à-mulher, erotomania, psicanálise.


ABSTRACT

The trend towards feminization in psychoses is an issue to be dealt by psychoanalytical treatment. Entitled by Jacques Lacan as push towards woman, it is different from the position of the neurotic on the woman's category in the division of gender. The aim of this paper is to appraise the push towards woman and outline the destination that the delirium is able to grant it. The procedure consists in circumscribing the problematic of sexuality among human beings based on the Freudian theory and on Lacan's teaching about the subject inscription in the sexual partition. The cases Aimée and Schreber will be approached with the intention of delimiting the structure pressure on the push towards woman, the phenomenon emergency and its articulation with erotomania.

Keywords: psychoses, push towards woman, erotomania, psychoanalysis.


 

 

A tendência à feminização nas psicoses e o fenômeno nomeado por Lacan ([1973] 2001) de empuxo-à-mulher (pousse à la femme), que lhe é correlato, constituem um problema teórico-clínico na direção do tratamento psicanalítico. Esta experiência do empuxo não deve ser entendida como inscrição subjetiva no lado mulher da partilha sexual, mas como a certeza delirante de transformar-se em mulher ou de estar à mercê de um Outro que goza do sujeito como de um corpo de mulher. A expressão empuxo-à-mulher, como veremos, contempla não apenas o fenômeno da feminização, pois decorre de uma pressão inerente à estrutura psicótica, devido a impasses que o sujeito sofre no processo de sexuação. Em casos da literatura psicanalítica, como Aimée (Lacan, [1932] 1987) e Schreber ([1903] 2006), bem como na clínica contemporânea, observa-se que, quando convocados a responderem como homem ou mulher, um impasse se apresenta. Uma paciente paranoica de nossa experiência clínica afirma ser homem e mulher ao mesmo tempo, testemunhando ausência de fronteira entre o masculino e o feminino.

Na manifestação do empuxo-à-mulher, o psicótico experimenta-se como objeto de gozo do Outro, um gozo ilimitado, posição cuja relação com a erotomania assume formas variadas. O presente trabalho visa definir o empuxo-à-mulher e discutir o destino que o delírio é capaz de lhe dar através da erotomania, sem, no entanto, preconizá-lo como direção do tratamento.

Do ponto de vista do sujeito, a realidade é psíquica: embora a diferença anatômica entre os sexos não seja sem consequências, não se nasce psiquicamente homem ou mulher. A constituição sexuada do sujeito requer um posicionamento frente à castração e, quando ele a inscreve, submete-se à lógica fálica, situando-se do lado masculino ou do lado feminino. Assumimos o pressuposto de que na psicose o sujeito não registrou a castração e, por isso, não se inseriu na lógica fálica. Interrogamo-nos, então, sobre os recursos de que pode valer-se para situar-se diante da – e não na – divisão dos sexos, posto que a diferença sexual, que não simbolizou, não lhe escapa. Nossa hipótese é de que o empuxo-à-mulher, submetido a um trabalho psíquico como o delírio, pode ser considerado uma forma de o sujeito responder por sua condição sexuada – em lugar de inscrever-se na partilha – e alcançar a estabilização. Entendemos por estabilização o restabelecimento da realidade (Lacan, [1957-1958] 1998). O delírio, reconhecido como tentativa de cura, é uma forma de reconstrução da realidade que, nos casos de paranoia, chega a produzir uma significação alternativa à significação fálica que não adveio. Assim, delimitamos nossa investigação ao empuxo-à-mulher atrelado a uma significação delirante nas psicoses paranoicas, tentativa de cura que não pretendemos erigir como paradigma bem-sucedido de suplência nas psicoses.

 

SEXUAÇÃO E FORCLUSÃO

Por não se nascer homem ou mulher, trata-se, para a psicanálise, de um processo, a sexuação, que franqueia identificações para o falante desprovido de identidade sexual a priori. Tanto para os meninos quanto para as meninas existe "apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo" (Freud, [1923] 1996: 158). É quando um significante se diferencia de todos os outros que alguma lógica pode ser instaurada. Homem e mulher estão referidos à lógica fálica, ambos se posicionam na partilha dos sexos a partir da primazia do falo, alçado à categoria de significante e função na qual o sujeito se inscreve.

O quadro em que Lacan ([1972-1973] 1985) expõe as fórmulas da sexuação compreende o lado do homem, com x e x Φx, e o lado da mulher, com e Φx.

No lado masculino, há uma exceção que funda o conjunto dos homens, ou seja, há um que não está submetido à castração, representado pela fórmula: x . Este lugar de exceção reporta-se ao mito do pai da horda descrito por Freud ([1912] 1996), segundo o qual havia um pai que gozava de todas as mulheres, o "ao menos um" não submetido à lógica fálica. O pai da horda funda, ao mesmo tempo, a exceção à castração e o conjunto dos homens, enquanto inscritos de modo todo na lógica fálica. A exceção delimita o conjunto dos homens: x Φx, o homem está todo submetido à castração: "O todo repousa, portanto, aqui, na exceção colocada" (Lacan, [1972-1973] 1985: 107).

Do lado feminino não há exceção: não há nenhuma mulher que não esteja submetida à castração, ou seja, que se exclua da função fálica, o que é representado por: . Não obstante, Φx, as mulheres estão de modo "não-todo" submetidas à função fálica, porque não existe exceção que funde o conjunto. Pela referência ao falo, a menina se constitui como mulher, mas, como do lado feminino não há exceção, o conjunto das mulheres não existe: elas só podem ser contadas uma a uma, por falta de um significante que as represente; daí o aforismo lacaniano: A Mulher não existe. Ao mesmo tempo que todas as mulheres são castradas, elas estão não totalmente inscritas na lógica fálica.

A lógica fálica não dá conta do que é ser uma mulher. Lacan postula que as mulheres possuem um gozo suplementar ao fálico, gozo Outro, não capturado pelo significante. Este gozo feminino é impossível de ser dito e sobre ele "talvez ela não saiba nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe" (Lacan, [1972-1973] 1985: 100). Em seguida, ele assinala que "Nada se pode dizer da mulher" (Lacan, [1972-1973] 1985: 109).

A partir da formulação de que A Mulher não existe, e da inexistência da relação sexual que dela decorre, Miller (1998) cunha o conceito de forclusão generalizada: para todo sujeito falta significante. Trata-se de uma falta estrutural inerente à linguagem, com a qual todo falante se depara, configurando uma impossibilidade de tudo inscrever com os significantes. O modo como neuróticos e psicóticos respondem a este impossível é diferente. Na neurose, com o Nome-do-Pai inscrito, esta falta aparece de forma simbólica nas formações do inconsciente, especialmente no sintoma. Na psicose, com o Nome-do-Pai forcluído, conforme a teorização solidária da primazia do simbólico, o que é recusado na ordem simbólica reaparece no real, como significante fora da cadeia e como gozo deslocalizado.

O Nome-do-Pai – significante que engendra a significação fálica – passa a ser entendido como, mais que um recurso simbólico, uma suplência à falta estrutural, constituindo um sintoma, que tem por função domesticar o gozo. Quando ele não se apresenta, o gozo não-negativizado e não-localizado retorna, provocando os fenômenos típicos da psicose, como a experiência de feminização com o transbordamento de gozo que lhe é peculiar: o sujeito torna-se objeto de um gozo sexual excessivo, às vezes inadmissível e aviltante, nas mãos do Outro que dele se apodera como, no seu entender, se faz com uma mulher.

A forclusão generalizada não invalida a forclusão do significante do Nome-do-Pai, formalizada por Lacan ([1955-1956] 1985) para a psicose. Ao invocar o Nome-do-Pai, pela ausência deste recurso simbólico, o psicótico pode responder com o desencadeamento. Uma das formas de compensação à falta de significante é a construção da metáfora delirante, que tem por função organizar o mundo de acordo com uma nova significação suscetível de tratar o empuxo-à-mulher, quando este se manifesta.

 

O EMPUXO-À-MULHER: UM EFEITO

Sem acesso à função fálica para posicionar-se sexualmente, o psicótico pode inventar uma solução, como o trabalho em torno do empuxo-à-mulher. Este pode emergir como algo insuportável e, apesar disso, o sujeito trabalhar no sentido de conciliar-se com ele. Em outros casos, o sujeito defende-se dele e busca outra solução para sua condição sexuada. Dado que a função fálica limita e localiza o gozo, sua inoperância dá lugar a um retorno do gozo, que pode assumir a forma do empuxo-à-mulher, correspondendo à emergência de um gozo sem limites. A forclusão determina a irrupção do gozo que retorna no real, mas o ponto para o qual o empuxo pressiona extrapola a mera invasão de gozo, pois envolve a feminização. Por que o empuxo-à-mulher, que não conduz à inclusão do psicótico no lado mulher, constrange na direção da mulher? É importante marcar uma diferença: embora a mulher seja não-toda inscrita na lógica fálica, como sublinha Maleval (2002), "o gozo suplementar de uma mulher não deixa de estar limitado pelo gozo fálico" (Maleval, 2002: 296), e o que está em questão na psicose é precisamente a ausência deste limite. A definição de empuxo-à-mulher liga-se ao quantificador existencial do lado feminino, ou seja, não existe nenhuma que não esteja submetida à castração: "para se introduzir como metade a se dizer das mulheres, o sujeito se determina a partir de que, não existindo suspensão na função fálica, tudo possa dizer-se dela, mesmo que provenha do sem razão" (Lacan, [1973] 2001: 466).

Tudo se pode dizer das mulheres, porque, na ausência de exceção do lado feminino, não há traço comum que faça delas um conjunto. Segundo Miller (2003), afirmar que tudo pode ser dito da mulher implica ao mesmo tempo o contrário, ou seja, que nada se pode dizer sobre ela. Paradoxalmente, podemos dizer tudo da mulher, pois, na falta de um conjunto lógico e estrutural do lado mulher, nada podemos dizer de seu ser feminino. Logo após a referida passagem, Lacan menciona o caso do presidente Schreber e teoriza o empuxo-à-mulher:

Desenvolvendo a inscrição que fiz da psicose de Schreber por uma função hiperbólica, poderia demonstrar, no que ele tem de sarcástico, o efeito de empuxo-à-mulher, que se especifica pelo primeiro quantificador, depois de precisar que é pela irrupção de Um-pai como sem-razão que se precipita, aqui, o efeito sentido como de forçamento para o campo de um Outro a ser pensado como o mais estranho a qualquer sentido (Lacan, [1973] 2001: 466; grifos nossos).

A função hiperbólica remete ao futuro assintótico no qual se concluiria a transformação de Schreber em mulher, ponto indicado, mas não alcançado. O sarcasmo que se depreende do empuxo especificado pelo quantificador existencial consiste em tentar ocupar um lugar impossível de exceção, pois este lugar ou é paterno (no lado homem), ou é logicamente impossível (no lado mulher). Mais sarcástico ainda seria fundar o universal masculino por meio da exceção feminina. O empuxo-à-mulher decorre da ausência estrutural da função fálica, ou seja, resulta da posição do psicótico, e o ponto para o qual ele é arrastado coincide com aquele em que falta significante para dizer o sexo, onde o significante que representaria a mulher não existe. Após cunhar o conceito de empuxo-à-mulher, Lacan volta a falar da neurose, deixando-nos a tarefa de desenvolver este conceito essencial para pensarmos os impasses teórico-clínicos colocados pela feminização.

Alguns psicanalistas dedicaram-se à definição de empuxo-à-mulher. De acordo com J. Santiago (2001), "a foraclusão do Nome-do-Pai é assinalada clinicamente pela antecipação, pela irrupção de um gozo infinito, gozo verdadeiramente inédito, supremo, cujo nome é o empuxo-à-mulher" (Santiago, 2001: 131). Ainda segundo o autor, Lacan postula que a "foraclusão do Nome-do-Pai tem como efeito fazer existir A mulher. E por isso mesmo o empuxo-à-mulher não assume o valor de mais um dado particular ao caso Schreber, mas, sim, de um fato de estrutura para toda psicose. É a lei universal do gozo nas psicoses" (Santiago, 2001: 131).

Quinet (2003) também parece sustentar que o psicótico faz existir A Mulher não-barrada: "O delírio de Schreber inventa a mulher que não existe" (Quinet, 2003: 43). Nesta mesma linha, encontram-se Mahieu (2004) e Maleval (2002). Este último afirma que "Um efeito da forclusão do Nome do Pai é fazer existir A Mulher, ou seja, a encarnação de um gozo infinito" (Maleval, 2002: 301). Este autor chama a atenção para o fato de que, se A Mulher existisse, teríamos que retirar a negação presente acima do quantificador existencial, , que significa não existir uma que não esteja submetida à lei do falo. Assim, Maleval (2002) frisa que, logicamente falando, A Mulher Toda se confunde com o Pai Gozador, pois representa a existência de um não submetido à castração. Existindo A Mulher, não haveria distinção entre o lado masculino e o feminino, mas equivalência entre eles, vale dizer, a impossível relação sexual. Cabe averiguar que mulher, então, é esta que o psicótico inventaria, sem o registro da castração.

É preciso dizer que é impossível escrever A Mulher, pois não há significante que a represente. A inexistência da relação sexual, evidenciada pela inexistência d'A Mulher, é o que "não para de não se inscrever" (Lacan, [1972-1973] 1985: 127). Se o impossível é o que "não para de não se inscrever", o psicótico não inscreve A Mulher que, estruturalmente, não existe. O empuxo-à-mulher não corresponde à inscrição no lado mulher; tampouco à inscrição de A Mulher; traduz uma pressão intrínseca à estrutura psicótica, inerente à sua dinâmica diante da diferença sexual não simbolizada. Ora, se não é esta a Mulher que o psicótico inventa, qual é? Ao mesmo tempo que o psicótico não chega, por uma impossibilidade lógica, a fazer existir A Mulher, ele tampouco pode ser uma mulher, que é não-toda inscrita na lógica fálica. Por conseguinte, se o psicótico inventa A Mulher Toda, não-barrada, cabe frisar que não é aquela que não existe do lado mulher das fórmulas da sexuação. Podemos aventar a hipótese de que, experimentando o empuxo-à-mulher, o sujeito é convocado a inventar não o lugar da exceção, enquanto termo lógico que funda a regra, mas uma posição de exceção, no sentido em que, por não estar amparado por um discurso estabelecido, é inédita e absolutamente original.

A possibilidade de o sujeito vir a alcançar a estabilização com o trabalho em torno do empuxo-à-mulher parece-nos clinicamente mais relevante que a questão da invenção ou não de A Mulher não-barrada. A articulação entre empuxo-à-mulher e estabilização deve ser examinada caso a caso, pois em si o empuxo não é estabilizante; ele incide sobre a dimensão puramente objetal e é vivido pelo psicótico como uma força que pressiona, que vem de fora, retornando do lugar do Outro que goza de sua feminização.

Segundo Soler (2007): "Já a noção de empuxo-à-mulher situa-se claramente no nível da sexuação do sujeito: implica uma modalidade de gozo [...] aquele de quem dizemos não que ele é mulher, mas que é impelido a sê-lo, que está em vias de se tornar mulher" (Soler, 2007: 228). Na impossibilidade de se posicionar seja como homem, seja como mulher, o sujeito sofre, conforme já citado, um "forçamento para o campo de um Outro a ser pensado como o mais estranho a qualquer sentido" (Lacan, [1973] 2001: 466). A manifestação do empuxo-à-mulher não significa que o sujeito vá se inscrever do lado da mulher, mas que será empuxado, empurrado para o campo de um Outro cuja estranheza ao sentido é superlativa.

 

SCHREBER: A MULHER DE DEUS

Anos após uma crise de hipocondria durante a qual conheceu Dr. Flechsig, Schreber volta a procurá-lo com a sensação de ser objeto de manobras maléficas. Quando se achava entre o sono e a vigília, veio-lhe à mente o pensamento de que deveria "ser belo ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula", ideia germinal do delírio. Sua condição piora e, dessa vez, ele permanece internado por nove anos, ao longo dos quais constrói seu sistema delirante e redige suas Memórias. Na ideia germinal do delírio, Freud ([1911] 1996) localiza a emergência de um impulso homossexual e a causa do desencadeamento da paranoia. A explicação gira em torno desta "fantasia de desejo homossexual" (Freud, [1911] 1996: 67). Contudo, ele enfatiza que, na tentativa de repelir o desejo homossexual, o paciente responde precisamente com "delírios de perseguição desta espécie" (Freud, [1911] 1996: 67).

Em um primeiro tempo, a ideia delirante de ser transformado em mulher é inadmissível: Schreber experimenta sofrimentos terríveis, pois seu corpo "devia ser transformado em um corpo feminino e, como tal, entregue ao homem em questão para fins de abusos sexuais, devendo finalmente ser 'deixado largado', e portanto abandonado à putrefação" (Schreber, [1903] 2006: 67).

No efeito de empuxo-à-mulher, a invasão de um gozo desmedido toma o sujeito como objeto de um Outro devastador. Ele é submetido a terríveis experiências corporais, dentre as quais a mais abominável é a transformação de seu corpo em corpo de mulher. Neste primeiro tempo, a eviração era contrária à Ordem do Mundo. O corpo de Schreber seria utilizado e abandonado como o de uma prostituta. Como sublinha Freud, "Era impossível para Schreber resignar-se a representar o papel de uma devassa para com seu médico" (Freud, [1911] 1996: 57), e Lacan ([1966] 2001) identifica nesta relação de Schreber com Flechsig uma erotomania mortífera.

Através do trabalho delirante, há uma passagem de Flechsig a Deus, o que culmina em uma reconciliação com o pensamento de ser transformado em mulher. Na segunda etapa, a transformação do sujeito em mulher passa a estar em conformidade com a Ordem do Mundo, à qual o próprio Deus está submetido. A transformação de Schreber passa a ter um nobre e honroso objetivo: ser a Mulher de Deus e dar origem a uma nova raça de homens. O efeito de empuxo-à-mulher, portanto, através do trabalho do delírio, recebe um enquadramento.

Houve alterações no posicionamento diante do empuxo-à-mulher. Se no início este efeito era insuportável, ao final ele consente em ser transformado em mulher. Embora o cerne do delírio permaneça inalterado – transformação em mulher –, há uma mudança entre o primeiro e o segundo tempos. A transformação, que se resumia a sofrer abusos sexuais, ganha uma solução elegante: ser a Mulher de Deus e, fecundado pelos raios divinos, dar origem a uma nova humanidade.

Concordamos com Maleval (2002), que aponta duas vertentes do empuxo-à-mulher: irrupção de um gozo desatado e possibilidade de refreá-lo. Schreber recorre ao empuxo-à-mulher para construir sua metáfora delirante. Se o empuxo é vivenciado como um gozo mortífero, através de um trabalho psíquico ele comporta possibilidade de estabilização. Schreber conseguiu inscrever o seu gozo como feminino e "Com isso se restabelece uma versão sexuada do gozo" (Soler, 2007: 48).

A exclusão do falo na psicose foi assim assinalada no caso Schreber: "na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens" (Lacan, [1957-1958] 1998: 572). O psicótico não pode ser o falo que falta à mãe porque, quando há falta fálica na mãe, a castração está simbolizada. Ser a mulher que falta aos homens manifesta o empuxo-à-mulher ao mesmo tempo que lhe dá um sentido. Ao elaborar a metáfora delirante, Schreber construiu um lugar para ele no Outro e inscreveu Mulher de Deus como uma posição possível de ser sustentada, posição que lhe valeu a estabilização por alguns anos e cuja fragilidade é apontada pela recaída que sofreu anos depois.

Soler (2007) sublinha que, a partir do trabalho do delírio, Schreber "instaura uma quase relação sexual com Deus, na qual Schreber menos é a Mulher que lhe falta do que a que não lhe falta, porque ele a tem" (Soler, 2007: 48). Assim, o paranoico ocupa o lugar de objeto que obtura o Outro, a quem nunca nada faltou, para que nada lhe falte. O delírio engendrou uma mudança na posição frente ao gozo maciço do Outro. Se Schreber era objeto de abusos do Outro, passa a ser objeto indispensável ao Outro (Muñoz, 2005). Aí mesmo onde o sujeito é esmagado pelo Outro é que ele tem de inventar uma regulação. No início de sua loucura, Deus gozava de Schreber, no final Deus goza com Schreber. No último tempo do delírio, Schreber afirma que, se tem alguma parcela de prazer sensual ao proporcionar o gozo de Deus, sente-se "justificado a recebê-lo, a título de um pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações" (Schreber, [1903] 2006: 219) que há anos lhe é imposto. Há uma passagem de "a mulher que falta aos homens" para a mulher que (não) falta a Deus, sendo que Schreber adia a conclusão de sua transformação em mulher para um futuro assintótico, tornando-a um ideal crucial para a estabilização.

Que não haja um significante que represente A Mulher não atesta a impotência do significante, mas a impossibilidade de tudo dizer: o gozo transborda o sentido, ultrapassa o que o significante pode abarcar. Se do lado mulher o gozo excede o sentido e coloca em jogo algo que não acede ao significante, na psicose o gozo desmedido próprio ao empuxo-à-mulher é estranho ao sentido, pois o campo do Outro configura-se como puro campo de gozo. Portanto, a diferença entre o psicótico e a mulher é que o gozo desta, embora não totalmente, está amparado na lógica fálica; o do psicótico não. O empuxo ao lugar de objeto de gozo do Outro não-barrado remete à erotomania, sugerindo uma relação entre os dois.

 

EROTOMANIA E EMPUXO-À-MULHER

Se o empuxo responde à condição estrutural, a erotomania emerge solidária à condição objetal do sujeito sem, no entanto, fazer-se necessariamente acompanhar de feminização no plano dos fenômenos. Sua característica fundamental reside no fato de que a iniciativa parte sempre do Outro, nunca do sujeito, que se descobre apassivado no amor de que é objeto. Freud assinala que, em casos de erotomania, as afeições começam "por uma percepção externa de ser amado" (Freud, [1911] 1996: 71).

Para Freud a causa do desencadeamento da psicose de Schreber "foi a irrupção de um impulso homossexual" (Freud, [1911] 1996: 54). Articulando desejo homossexual e desencadeamento, ele afirma que, ao menos em sujeitos do sexo masculino, "as principais formas de paranoia conhecidas podem ser todas representadas como negação da proposição única eu (um homem) o amo (um homem)" (Freud, [1911] 1996: 71). Nas três formas de negar a proposição fica bastante evidente que a iniciativa parte do outro e que o sujeito está em posição de objeto. No caso do delírio erotomaníaco: "Eu não o amo – eu a amo, porque ela me ama" (Freud, [1911] 1996: 71), embora o sujeito possa declarar o seu amor, foi o outro que amou o sujeito primeiro.

De acordo com Broca (1985), o termo erotomania foi criado em 1810 pelo criminalista Zieller. É Clérambault quem define seus elementos fundamentais e "descreve a expressão pura com suas três fases clássicas de esperança, despeito e rancor, a partir de um postulado fundamental: 'É o Outro que me ama'" (Broca, 1985: 122). Como coloca Mezêncio (2004), foi Clérambault quem isolou, na década de 1920, o grupo das psicoses passionais, que ele distingue das psicoses paranoicas. As primeiras englobam delírio de reivindicação, delírio de ciúme e erotomania, cujo delírio ele sistematizou como uma síndrome.

Para Clérambault, as características da síndrome são: o postulado fundamental, ou seja, a iniciativa partiu de um outro superior ao sujeito, e as deduções – mais imaginativas que interpretativas – que indicam complementaridade entre o sujeito e o objeto. Ademais, ele sublinha o caráter contingente do platonismo (Mezêncio, 2004). Freud e Clérambault convergem ao enfatizarem a iniciativa do outro, mas o primeiro isola uma posição subjetiva por meio da gramática pulsional, enquanto o segundo busca a estrutura do fenômeno: "De Clérambault oferece a formulação lógica do fenômeno enquanto Freud parte da causa da psicose, identificada com uma posição libidinal, a partir da qual explicita o delírio, produzido por uma gramática transformadora" (Hanna, 2000: 18).

Na erotomania, o sujeito sustenta a certeza de que é amado, não experimentando necessariamente vivência de feminização. Como o fenômeno do empuxo deve ser remetido ao plano da estrutura, cabe investigar a posição subjetiva do erotômano, como fez Lacan. Seu interesse pela erotomania remonta à sua tese de doutorado, no caso chamado por ele de Aimée (Amada), nome de uma heroína do primeiro romance escrito pela paciente. O próprio nome atribuído à paciente já indica sua posição erotomaníaca. Embora Lacan tenha designado este caso como "paranoia de autopunição", em 1975 ele revê seu próprio diagnóstico, destacando em Aimée a erotomania (Mezêncio, 2004).

Alguns psicanalistas relacionam o empuxo-à-mulher à erotomania. Broca se pergunta "se não é a partir de uma posição feminina que o homem experimenta a erotomania. Em todo caso, Schreber o testemunha eloquentemente. A erotomania indicaria, portanto, o momento do empuxo-à-mulher nas psicoses" (Mezêncio, 2004: 122). Soler (1991) também atrela a erotomania ao empuxo-à-mulher no caso Schreber: "O efeito de empuxo-à-mulher, produzido pela falta de uma existência que funda o universal da função fálica como função de castração, é o pivô estrutural da dita erotomania de Schreber" (Soler, 1991: 156). Ela assinala que "O empuxo-à-mulher schreberiano fornece o modelo do que é, nas chamadas erotomanias, a mania de gozo" (Soler, 2007: 49) que predomina sobre a mania de amor. A autora sublinha que "A formulação correta do laço que une Schreber a seu Outro parece-nos ser esta: Deus goza de mim" (Soler, 2007: 46). A erotomania como forma de gozo na psicose implica um alargamento do conceito:

Sua última observação sobre a erotomania, em 1975, observação de entrada surpreendente, que qualifica Aimée de erotômana – quando em um sentido estrito os poucos temas secundários desta ordem discerníveis em seu delírio de perseguição não parecem autorizá-lo –, parece que tem de ser entendida como uma tentativa de extensão do conceito de erotomania, congruente com sua concepção da transferência psicótica (Maleval, 2002: 330).

Lacan ([1955-1956] 1985) utiliza a expressão erotomania divina para a relação de Schreber com Deus. Mais tarde fala em "erotomania mortífera" (Lacan, [1966] 2001), contemplando a dimensão do gozo. A erotomania "apenas mascara a presença do Outro gozador, sempre inclinado a converter o psicótico em sua coisa" (Maleval, 2002: 373). Ou ainda: "No curso do ensino de Lacan a erotomania será precisada como uma erotomania mortificante na qual, mais além do amor, o que está posto em jogo é o gozo" (Tendlarz, 1999: 61).

Nos anos cinquenta, a problemática da psicose era pensada através da lógica significante e o desencadeamento descrito em termos de rompimento da cadeia. Através do delírio, um gozo transexualista se define na relação de Schreber com Deus, introduzindo a dimensão da satisfação e o posicionamento em relação à sexuação. A esta primeira teorização acrescenta-se "Apresentação das Memórias de um doente dos nervos" (Lacan, [1966] 2001: 221), na qual a expressão "sujeito do gozo" define o paranoico como aquele que identifica o gozo no lugar do Outro. Schreber situa o gozo no lugar do Outro ao conceber um Deus que usufrui de seu corpo em vias de transformação em corpo de mulher. A dimensão do gozo articula erotomania e empuxo-à-mulher, respondendo pela dimensão mortificante de ambas. A posição de objeto remete tanto ao empuxo como à erotomania.

De acordo com Soler (2007), as erotomanias platônicas se distinguem por elidirem a dimensão do gozo. "O parceiro eleito por postulado ama, porém não goza. É, ao contrário, o último recurso contra a ameaça do gozo" (Soler, 2007: 50). O platonismo, portanto, "surge como um recurso que elide o gozo, circunscrevendo-o no Outro, sob a forma de amor que dele emana" (Hanna, 2000: 139). Portanto, a erotomania platônica é um modo de proteção contra o gozo, à medida que o vela.

A função do amor é distinta na neurose e na psicose. Enquanto na primeira ele vem suprir a ausência da relação sexual, na segunda ele "é invocado para resistir à iminência de uma relação mortífera" (Soler, 2007: 51). A mania de gozo não limita o gozo que retorna no real, mas torna-se uma companhia compensadora, que Schreber designa de "indenização" para aplicá-lo não ao amor, mas à parcela de gozo que lhe cabe (Soler, 2007: 51).

A irrupção do gozo ilimitado pode encontrar na erotomania um recurso para tratá-lo; tal como para o empuxo-à-mulher, em si ela não tem um efeito apaziguador devido a seu eventual caráter mortífero e persecutório. Na ausência de inscrição na partilha sexual, a erotomania vem a ser uma maneira de o psicótico lidar com o impasse colocado por sua condição sexuada. Empuxo-à-mulher e erotomania se entrelaçam, na medida em que ambos dizem respeito ao retorno do gozo que invade o sujeito, sendo que o primeiro concerne diretamente à irrupção do gozo desmedido, enquanto a segunda já se presta a moderá-lo.

O sujeito pode defender-se do empuxo-à-mulher de outra forma. Briole (2003) relata o caso de um homem que forjou uma solução nomeando-se um Senhor. Após a nomeação, que o mantinha longe das mulheres, ele se estabilizou: a solução para o impasse na sexuação não seguiu o empuxo-à-mulher, que não é a única resposta do psicótico ao enigma sexual. O tratamento do empuxo pela erotomania não configura uma solução para todos. Aimée, caso abordado a seguir, tratou o empuxo-à-mulher pela erotomania, mas estabilizou-se quando foi considerada culpada perante a lei por uma passagem ao ato homicida.

 

O CASO AIMÉE

Aimée é internada aos 38 anos no Asilo de Sainte-Anne por ocasião de sua segunda crise psicótica, logo após ser presa por cometer um atentado contra uma atriz. Durante esta internação, Lacan encontra-se com ela e acompanha-a por cerca de um ano e meio.

Lacan ([1932] 1987) assinala que estão presentes no delírio de Aimée os temas de perseguição e de grandeza. Quanto aos últimos, destacam-se as intuições de ter uma grande missão social, "idealismo reformista, enfim, numa erotomania sistematizada sobre uma personagem da realeza" (Lacan, [1932] 1987: 155). Aos 28 anos de idade observa-se o "começo dos distúrbios psicopáticos de Aimée" (Lacan, [1932] 1987: 155), quando a paciente engravida. Todos começam a falar dela: colegas de trabalho, transeuntes, jornais. Ela tem a convicção de que querem a morte de seu filho, certeza que constituiu o cerne do delírio de perseguição. Ela dá à luz um bebê natimorto, o que reforça seu delírio: ela imputa a desgraça a seus inimigos, concentrando toda a responsabilidade numa mulher que foi sua melhor amiga e que, de uma cidade afastada, telefonou logo após o parto em busca de notícias.

Alguns meses depois, Aimée engravida pela segunda vez, sofrendo o retorno de um quadro depressivo. Com 30 anos dá à luz um menino: "Ela se dedica à criança com um ardor apaixonado; ninguém mais vai cuidar dela até os cinco meses. [...] Todos ameaçam seu filho" (Lacan, [1932] 1987: 156-157). Ela afirma que queria ir aos EUA para buscar o sucesso: almejava ser romancista. Ao mesmo tempo que confessa ter abandonado seu filho, diz que foi por causa dele que se lançou nesta empreitada. Diz que a família fez um complô contra ela: tiraram-lhe o filho e a prenderam em uma casa de saúde.

Aimée vai trabalhar em Paris, onde constrói o delírio que desemboca em uma passagem ao ato. Enquanto se perguntava de onde vinham as ameaças contra seu filho, escutou seus colegas de trabalho falarem da Sra. Z. Desta forma, ela compreendeu que era a atriz que queria o mal de seu filho. A paciente lê no jornal "que seu filho ia ser morto 'porque sua mãe era caluniadora', era 'vil' e que se 'vingariam dela'" (Lacan, [1932] 1987: 160) e, transtornada, fica sabendo que a atriz atuará em um teatro próximo de sua casa. "É para zombar de mim" (Lacan, [1932] 1987: 160). Embora seja a principal, a Sra. Z não é a única perseguidora. "Ela é o tipo da mulher célebre, adulada pelo público, bem-sucedida, vivendo no luxo" (Lacan, [1932] 1987: 161). Lacan chama atenção para o fato de que a própria Aimée "desejaria ser uma romancista, levar uma grande vida, ter uma influência sobre o mundo" (Lacan, [1932] 1987: 161). A Sra. Z, portanto, encarna o ideal de Aimée.

Durante um curto período, chamado por Aimée de "dissipação", ela acredita que "deve ir aos homens". "Isto quer dizer que ela aborda os transeuntes ao acaso e os entretém com seu vago entusiasmo; [...] ela é levada várias vezes aos hotéis, onde, contra a vontade ou não, é preciso que ela se decida" (Lacan, [1932] 1987: 165).

Ao escrever sobre o caso, Lacan está longe de teorizar o efeito de empuxo-à-mulher. Ele cunha a expressão em 1973, embora já comentasse a feminização na psicose. Relendo Lacan a partir dele próprio, identificamos nesta passagem o empuxo-à-mulher em Aimée e não a erotomania, que ela também chega a apresentar. Como afirma Tendlarz: "Neste período Aimée se situa como 'a mulher que falta aos homens'. Ao dirigir-se aos homens, um por um, busca situar-se no lugar da exceção que lhe permite construir o universal dos homens" (Tendlarz, 1999: 211).

Às vésperas do atentado "um tema se precisa, o de uma erotomania que tem como objeto o príncipe de Gales" (Lacan, [1932] 1987: 165), a quem escreve pequenas poesias apaixonadas. Não consta que ela tenha tentado alguma aproximação quando o príncipe esteve em Paris, mas enviou-lhe seus sonetos por correio, indicando que "O traço maior do platonismo ali se mostra com toda a nitidez desejável" (Lacan, [1932] 1987: 167).

Mahieu (2004) coloca que o empuxo-à-mulher recebe na erotomania uma formulação especial: "como nos fez notar bem F. Gorog: na erotomania o empuxo-à-mulher se apresenta de um modo particular, posto que é a-mulher-que-falta-a-um-só-homem e não a-mulher-que-falta-a-todos-os-homens" (Mahieu, 2004: 113). O autor evidencia que parte substancial da noção de empuxo-à-mulher consiste em "ocupar uma posição de exceção" (Mahieu, 2004: 113) devido à associação com a erotomania.

Ao acreditar que deveria "ir aos homens", Aimée se posicionava como a mulher que falta aos homens; com o desenvolvimento do delírio erotomaníaco em direção ao príncipe de Gales, ela passa a ser a mulher que falta ao príncipe; portanto, a um só homem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de um não-lugar na partilha sexual, o sujeito constrói um lugar Outro, uma posição inédita. Schreber alcançou a estabilização graças à invenção da metáfora Mulher de Deus; em uma nova posição tecida pelo trabalho delirante, ele consente em realizar o querer do Outro. O efeito de empuxo-à-mulher, como enuncia Maleval (2002), não se reduz à irrupção de um gozo desatado, mas, amiúde, facilita uma certa regulação deste gozo. Existem, portanto, duas vertentes do empuxo: uma mortífera, que implica um gozo desmedido, e outra apaziguante, na medida em que contribuiria como proteção a este gozo.

A erotomania pode ter um papel importante rumo à estabilização, como em Schreber, na passagem de "a mulher que falta aos homens" para "a mulher que (não) falta a Deus". No final, ele não é objeto de amor de um outro qualquer (um homem comum e mortal), mas o complemento do próprio Deus. Como "a mulher que falta aos homens", Aimée acreditava que deveria "ir aos homens". Com a erotomania platônica, ela passa a ser a mulher que falta a um só homem, o príncipe. Em ambos, reconhecemos a formulação que recebe o empuxo-à-mulher temperado pela erotomania, ou seja, a passagem de "a mulher que falta aos homens" para "a mulher que falta a um só homem", criando uma posição excepcional.

Com base nesses dois casos que não contaram com a participação de um analista, a clínica psicanalítica da psicose aposta que, na escuta das produções desses sujeitos e no testemunho de que ali há um tratamento do empuxo-à-mulher, outras soluções, talvez mais eficientes no tratamento do gozo, sejam vislumbradas. Schreber, que só se estabilizou após nove anos de muito trabalho e – por que não dizê-lo? – de muito sofrimento, dá uma indicação do lugar do analista no endereçamento do delírio: "Se eu tentasse me explicar só oralmente, dificilmente poderia esperar que alguém tivesse paciência de me ouvir numa exposição demorada; menos ainda se considerariam esses pretensos absurdos dignos de uma reflexão" (Schreber, [1903] 2006: 117).

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 14 de fevereiro de 2009
Aceito para publicação em 14 de maio de 2010

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