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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.27 no.2 Rio de Janeiro 2015
SEÇÃO TEMÁTICA
Clínica dos primórdios e processos de simbolização primários
Clinic of the early infancy and the primary processes of symbolization
Clínica de los comienzos y los procesos de simbolización primarios
Silvia Maria Abu-Jamra Zornig
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
A reflexão sobre a clínica dos primórdios nos permite revisitar as concepções psicanalíticas sobre a constituição do sujeito e ressaltar a importância das relações intersubjetivas na constituição do psiquismo, apontando para uma articulação entre a dimensão pulsional e a qualidade das relações entre sujeito e objeto no início da vida. Neste texto, procuramos ampliar a noção de representação para nela incluir as experiências sensoriais e não verbais do bebê, visto que a subjetividade se constrói ao longo de um processo cujo elemento fundamental é a experiência compartilhada com o outro. As contribuições de R. Roussillon e A. Green apontam para dois elementos que devem se articular para favorecer os processos de simbolização primários: a qualidade de presença continente e sensível do objeto, assim como a importância da constituição do negativo, resultante do apagamento do objeto primário e de sua transformação em estrutura enquadrante. Assim, se a presença do objeto é imprescindível para possibilitar a representação de sua ausência, o trabalho do negativo é igualmente fundamental para permitir a instauração dos limites entre interno/externo e entre as instâncias psíquicas.
Palavras-chave: função simbolizante; trabalho do negativo; clínica dos primórdios.
ABSTRACT
The discussion on the clinic of the early infancy makes it possible to review classical psychoanalytic conceptions about the constitution of the subject and to emphasize the importance of the intersubjective relations in the beginning of the psychic life, indicating an important relationship between the drive theory and the early object relations. The paper aims to broaden the notion of representation to include the sensory and non-verbal communication between the baby and his primary objects, based on the fact that the process of subjectivation is constructed through the experiences that are shared between the infant and his primary others. The contributions of R. Roussillon and A. Green indicate that the quality of early interactions are extremely important to facilitate the representation of the absence of the object. Thus, the symbolizing function of the object is at the same time the constitution of its affective presence as well as its capacity to become a containing structure through the work of the negative.
Keywords: symbolizing function; work of the negative; clinic of the early infancy.
RESUMEN
La reflexión sobre los primeros días nos permite revisitar los puntos de vista del psicoanálisis en la constitución del sujeto y destacamos la importancia de las relaciones interpersonales en la constitución de la psique, que apunta a una relación entre la dimensión de la unidad de calidad e de las relaciones entre sujeto y objeto a temprana edad. En este trabajo se busca ampliar la noción de representación a fin de incluir las experiencias sensoriales y no verbales del bebé, ya que la subjetividad se construye sobre un proceso cuyo elemento clave es la experiencia compartida con los demás. Las contribuciones de R. Roussillon y A. Green a dos elementos que deben ser articulados para favorecer los procesos de simbolización tempranos: la calidad del continente y la presencia sensible del objeto, así como la importancia de la constitución de lo apagamiento del objeto que resulta do trabajo del negativo y su transformación en la estructura encuadrante. Por lo tanto, la presencia del objeto es esencial para permitir la representación de su ausencia, el trabajo del negativo es también esencial para permitir el establecimiento de límites entre interior / exterior y entre instancias psíquicas.
Palabras chave: función simbólica; negativo; clínica de los comienzos.
A investigação da clínica dos primórdios tem sido um tema de grande interesse dentro do campo da psicanálise com crianças, principalmente em função da relação entre a constituição psíquica na infância e o desejo e o discurso parental e da constatação de que os sinais de sofrimento psíquico do bebê aparecem na forma de distúrbios do funcionamento somático: distúrbios da alimentação e do sono, distúrbios motores, alergias (Golse, 2003; Stern,1992; Lebovici, 1987; Zornig, 2008). Nesse contexto, é preciso priorizar a noção de um aparato psíquico que é eminentemente sensório/afetivo/corporal: corpo aqui tomado em sua função relacional, que afeta e é afetado pelo outro.
A noção de plasticidade psíquica também é importante por valorizar a concepção de um psiquismo que se constrói através dos diversos envelopes psíquicos em oposição à ideia de cristalização sintomática na primeira infância. Nesse sentido, o conceito de representação é ampliado para nele incluir os registros corporais que se inscrevem no psiquismo a partir das relações inaugurais pais/bebê (Anzieu, 1995; Bleichmar, 1985; Golse, 2003; Stern, 2005).
As pesquisas efetuadas por Spitz (1946) na década de 40 sobre a síndrome do "hospitalismo" em bebês institucionalizados e os trabalhos de Bowlby (1969, 1973) sobre os efeitos das separações pais/bebê trouxeram à tona os resultados danosos das separações ocorridas em um momento de vida em que a criança depende de seus adultos fundamentais para se estruturar psiquicamente. Como indica Golse (2003), na segunda metade do século XX ocorreu uma grande modificação no campo psicanalítico, com a mudança do foco de uma clínica referida aos conteúdos psíquicos e aos conflitos intrapsíquicos para uma clínica do continente, relacionada ao sofrimento da criança e priorizando o estudo do psiquismo em seu estado nascente e não mais como um sistema estabelecido. O autor indica dois fatores fundamentais para tal mudança de ênfase: - os efeitos da Segunda Guerra Mundial sobre as crianças, na medida em que os bebês e as crianças foram suas maiores vítimas por ficarem órfãos ou separadas de suas famílias de origem por um longo período; e a descoberta do autismo precoce infantil por L. Kanner em 1942 (Kanner, citado por Golse, 2003), reconhecendo o sofrimento psíquico precoce e a necessidade de repensar estratégias clínicas para lidar com a dor e os distúrbios psicossomáticos na primeira infância.
A partir do reconhecimento do sofrimento infantil, diversos autores como (Winnicott, (1947/1978; 1990) e Balint (1968)), discutem a eficácia do método psicanalítico clássico, repensando a noção de estruturas clínicas e centrando seu estudo nos primórdios da vida e em uma clínica das relações objetais primárias. Ou seja, a dimensão não pulsional das primeiras relações entre sujeito e objeto é priorizada e a ideia de falhas no processo de construção subjetiva relacionada à ausência de investimento afetivo e de sustentação psíquica na relação mãe/bebê.
É a partir da presença e ausência do outro materno, das representações parentais sobre o bebê mesmo antes de seu nascimento, do desejo e do investimento dos adultos na função de pais que a criança inicia seu percurso subjetivo. Assim, a dicotomia entre o intrapsíquico e o intersubjetivo passa a ser relativizada, já que o processo de subjetivação da criança é sempre iniciado a partir das fantasias e representações de seus adultos fundamentais e da transmissão psíquica entre gerações (Zornig, 2012; Houzel, 2004; Golse & Bydlowiski, 2002).
Nessa perspectiva, surge a noção de um aparelho psíquico que se constitui em referência a diversas temporalidades: a temporalidade retroativa do a posteriori freudiano, que surge pelo discurso parental sobre sua própria infância, e a temporalidade progressiva da construção psíquica na primeira infância, que prioriza sinais de sofrimento e não sintomas fixos e estruturados. A questão da transmissão psíquica é particularmente relevante nesse contexto, pois ressalta a dimensão fundadora da transmissão parental - "herança psíquica" do ser humano (Lebovici, 1987), indicando como a relação intersubjetiva tem um papel primordial na constituição do psiquismo da criança.
As pesquisas desenvolvidas sobre indicadores de risco para autismo precoce infantil e transtornos globais do desenvolvimento (Kupfer, et al., 2010; Laznik, 2000), os estudos sobre os efeitos da depressão pós-parto no desenvolvimento emocional da criança e do adolescente (Golse, 2003; Green, 1988b) e a clínica da intervenção precoce (Zornig, 2008; Crespin, 2004; Golse, 2003,) demonstram como as carências e problemas nas relações iniciais podem colocar em risco os elementos primordiais à construção da subjetividade na primeira infância.
Os autores (Zornig, 2008; Golse, 2002; Crespin, 2004; Laznik, 2000) indicam como durante o primeiro ano de vida sinais de sofrimento psíquico podem ser observados, desde que não sejam tomados como uma cristalização sintomática e sim como indicadores de vulnerabilidade psíquica. Nesse sentido, podemos argumentar que o trabalho clínico na primeira infância ocorre de maneira preventiva, desde que a noção de prevenção seja entendida como uma possibilidade de intervir no tempo de construção do sujeito e não como uma "predição" (Golse, 2003) de problemas futuros. Enquanto a "predição" seria a fixação de uma doença de forma antecipada, a prevenção na primeira infância deveria ser pensada como a possibilidade de intervir antes de uma cristalização sintomática.
A reflexão sobre a clínica dos primórdios aponta também para a problemática dos sofrimentos narcísicos, que trazem a marca das vicissitudes da relação entre o sujeito e seus objetos nos primórdios da subjetivação. Assim, para avançar no estudo de uma metapsicologia da constituição psíquica e na reflexão sobre a clínica psicanalítica de casos graves (denominados de não neuróticos) é preciso discutir a função simbolizante dos objetos primários e não somente a questão da representação de sua ausência (Roussillon, 2008ª; Green, 1988ª).
Tendo como referência o trabalho psicanalítico com crianças, pretendemos neste texto, propor uma noção ampliada de representação, incluindo as primeiras produções do infante como experiências de protossimbolizações, ancoradas no corpo, nas sensações e nas percepções, desde que o objeto possibilite pela sua presença, o reconhecimento e a simbolização de sua ausência.
As contribuições de Roussillon (2008b) e Green (1988a) sobre a problemática dos sofrimentos narcísicos e dos casos-limite nos auxiliam a analisar a função simbolizante do objeto e o trabalho do negativo na constituição psíquica e no processo de simbolização e apropriação subjetiva.
Os processos de simbolização nos primórdios da vida
O bebê inicia sua relação com o mundo através da musicalidade da voz materna, do toque e do cuidado que ela lhe proporciona e da identificação da mãe às suas necessidades afetivas. Ou seja, antes de apreender o conteúdo verbal e o sentido da narrativa, o bebê interage e entra em sintonia afetiva com seus adultos fundamentais através da comunicação analógica, não verbal, que é baseada na forma, na musicalidade e no ritmo da comunicação.
A noção de Stern (2004) sobre o "momento presente" é interessante para ilustrar essa concepção, pois segundo o autor o momento presente contém os elementos essenciais para compor uma história de vida, mas é composto primordialmente de afetos que se desenrolam em intensidade, como uma "narrativa composta de afetos mas sem um fio condutor verbal" (Stern, 2004, p. 32). Essa indicação remete à noção de narratividade nos primórdios da subjetivação, isto é, uma narratividade fundada nas interações entre o bebê e seu entorno afetivo, pelos elementos da sensorialidade do infante, que são construídos já na vida intrauterina e se desenvolvem após o nascimento.
Lebovici (1987), ao ressaltar que o objeto é investido antes de ser percebido, indica que o psiquismo se constitui através de sensações e inscrições corporais e relacionais antes da percepção de um eu autorreflexivo e diferenciado de seu entorno. Ou seja, é necessário um holding materno (Winnicott, 1956/1978) que funcione inicialmente como um continente, para possibilitar a atividade de pensar que transforma o continente em conteúdo. Em outras palavras, é preciso uma experiência de sustentação materna para que a criança possa internalizar a mãe e se automaternar. Assim, a capacidade de narrar a própria história decorre da qualidade das trocas entre o bebê e seu ambiente afetivo, visto que o bebê parece muito mais sensível, inicialmente, à musicalidade da língua do que à significação dos signos.
Dessa forma, a clínica da primeira infância confronta o clínico com uma mudança de paradigma, a passagem de uma clínica do conteúdo para uma clínica do continente, na qual a ênfase na relação e no vivido e a ideia de construção em análise é mais importante do que uma clínica baseada no significante e na linguagem em sua vertente verbal. Isso não significa desconsiderar a função da linguagem na constituição do sujeito, mas ressaltar sua dimensão sensível: a musicalidade da língua materna, os diferentes tipos de comunicação não-verbal, as sensações que envolvem as interações entre o bebê e seus pais ou cuidadores primordiais.
A obra freudiana, apesar de ressaltar a necessidade da presença do outro para que o sujeito possa se constituir, tem como proposição clínica uma metapsicologia direcionada às neuroses, ou ao que se convencionou denominar uma clínica do conteúdo ou dos conflitos intrapsíquicos (Urribarri, 2012; Roussillon, 1999). Foi a partir da inquietação de Ferenczi em procurar modificações que permitissem o trabalho com pacientes graves, considerados refratários à técnica clássica da interpretação, que ocorreu uma mudança de foco na clínica psicanalítica - de uma clínica centrada no Édipo e na castração para uma clínica direcionada às falhas básicas no processo de construção do self, remetendo a pacientes empobrecidos, esvaziados, com dificuldade de expressão e representação psíquica.
Em "A elasticidade da técnica psicanalítica" (1928/1992), Ferenczi defende a noção do "tato psicológico" na situação analítica, isto é, a capacidade empática do analista de "sentir-com" o analisando, vivenciando seus conflitos, para então representá-los, transformando-os em discurso. Essa capacidade afetiva, que pressupõe uma clínica de intensidade e de movimento é retomada por Stern (1992), ao propor que a constituição do psiquismo do bebê se inicia através de uma coconstrução sensório-perceptual entre este e seus adultos primordiais.
A noção de "afetos de vitalidade" é particularmente relevante, pois propõe uma ênfase na dimensão de intensidade e movimento do afeto e não só de seu conteúdo formal. Como indica Stern (1992), o bebê inicia seu percurso subjetivo através de modalidades afetivas que se diferenciam dos afetos categóricos (alegria, raiva, medo, tristeza) por pertencerem ao domínio da experiência afetiva em uma perspectiva de ativação e intensidade.
A dança revela ao expectador-ouvinte múltiplos afetos de vitalidade e suas variações, sem recorrer à trama ou aos sinais de afeto categórico dos quais os afetos de vitalidade podem ser derivados. O coreógrafo, na maior parte das vezes, está tentando expressar uma maneira de sentir, não um conteúdo específico de sentimento. Esse exemplo é particularmente instrutivo porque o bebê, quando observa um comportamento parental que não possui uma atividade intrínseca (isto é, nenhum sinal de afeto darwiniano), pode estar na mesma posição do espectador de uma dança abstrata ou do ouvinte de música. A maneira como é realizado o ato de um progenitor expressa um afeto de vitalidade, seja ou não esse ato algum afeto categórico (ou parcialmente colorido por algum afeto categórico) (Stern, 1992, p. 49).
Os afetos de vitalidade permitem ao bebê sentir antes de compreender intelectualmente. Nessa concepção, a linguagem tem início através de trocas não verbais entre os pais e o bebê que lhe permitem figurar no corpo a história recente dessa relação. Para Stern, a realidade psíquica do bebê pode ser decomposta em uma sucessão de unidades temporais elementares que são vivenciadas por ele de forma independente e com uma dinâmica própria. A unificação destas experiências separadas é realizada através do "envelope protonarrativo", uma unidade de base que tem a função de integrar diversas vivências e possui uma estrutura próxima à narratividade (Stern, 2005).
Um dos exemplos dados por Stern (2005) é bem simples e se refere às características do rosto materno, que apesar de se modificar durante um determinado dia nas interações com o bebê (mãe que alimenta, mãe que brinca, mãe que se prepara para sair, etc.), pode ser identificado por este em seus elementos invariantes que permanecem constantes apesar das modificações ocorridas durante as diversas situações. A constelação de elementos invariantes, tais como estados emocionais, percepção, sensações, excitações, ações motoras, constituem um envelope protonarrativo que representa o início da própria atividade de pensar.
Apesar de não ser denominada uma representação no senso estrito, o envelope protonarrativo permite ao bebê experimentar a potência de um afeto antes de compreender seu conteúdo. Como toda experiência subjetiva se desenvolve no tempo e no espaço, os elementos que constituem esse envelope se desenrolam em uma cadência temporal e aparecem em uma curva que cresce, decresce, explode, aumenta e diminui de intensidade, demonstrando seu movimento e plasticidade.
A ideia de processo em movimento (surgindo, desaparecendo, levantando explosivamente da cadeira) e não de categorias formais, indica um ato que expressa um afeto, priorizando a forma e não o conteúdo. A intensidade de uma ação e de um gesto é vivenciado pelo bebê como uma linguagem analógica, à qual ele responde com seu corpo. Corpo aqui entendido como corpo relacional, que afeta e é afetado pelo outro. Como indicam Golse e Desjardins (2005, p. 18), "o bebê precisa - não saber - mas experimentar e sentir profundamente que a linguagem do outro (e singularmente a de sua mãe) o toca e o afeta, e que esta é afetada e tocada, por sua vez, pelas primeiras emissões vocais dele".
Roussillon (1999) avança nessa discussão ao propor uma distinção entre os processos de simbolização primária e a simbolização secundária. De acordo com o autor, a simbolização secundária se funda sobre a ausência e sobre o trabalho de luto pela perda do objeto enquanto o campo das simbolizações primárias se apoia sobre a qualidade da presença do objeto, das sensações e percepções decorrentes das interações significativas entre o bebê e seus outros fundamentais.
Isso não significa propor uma simetria no encontro entre uma criança e um adulto, mas sim indicar que o processo de simbolização precisa ser compartilhado para ser integrado e apropriado pelo sujeito. Se retomarmos a concepção de Stern da constituição dos "envelopes protonarrativos" como narrativas compostas de afetos de vitalidade, podemos articulá-la à proposição de Roussillon (1999) sobre a importância da presença do objeto nos primórdios da subjetivação. O bebê só consegue transformar percepção em representação a partir de uma experiência de prazer compartilhado com um objeto que se deixa utilizar como espelho sem contudo perder sua singularidade como sujeito.
Roussilon (2008b) propõe a noção de "homossexualidade primária em duplo" para descrever a constituição do narcisismo primário na qual o objeto desempenha o papel de semelhante, de espelho, de duplo do sujeito, sem que a experiência seja uma vivência de fusão. Para Roussillon, o outro primordial precisa no início da vida, refletir e partilhar os estados afetivos do bebê, sem no entanto se confundir com ele. Como indica o autor:
O prazer é sentido no "ballet" do encontro com um outro semelhante, um duplo, um outro percebido em seu movimento de espelho do sujeito. Repito, um "duplo" é um mesmo outro, é um semelhante, um espelho do sujeito, mas é um outro, não há confusão entre o sujeito e o duplo. Um duplo deve ser suficientemente "mesmo" para se um duplo do sujeito, mas deve ser também suficientemente "outro" para não ser o próprio sujeito. Entre mãe e bebê, o vetor do encontro, o que condiciona o prazer da relação e talvez até a composição psíquica do próprio prazer, é o processo pelo qual um e outro dos dois parceiros se constitui como espelho e, portanto, duplo do outro (Roussillon, 2008b, p.b123, tradução da autora).
As contribuições de Roussillon (2008b) revisitam as proposições winnicottianas sobre a função de espelho da mãe na constituição psíquica do infante, colocando a ênfase na experiência de prazer compartilhado em dois níveis: um primeiro nível de prazer estésico, de compartilhamento de sensações corporais, e um segundo nível de compartilhamento emocional, de sintonia afetiva.
O compartilhamento estésico primitivo favorece o investimento libidinal do corpo, pois é através do ajuste do objeto às necessidades do bebê que um ritmo e uma temporalidade se constituem entre os dois. Na mesma direção, Stern (1992) ao descrever as trocas intersubjetivas pais-bebê, indica que os pais devem ser capazes de espelhar o estado afetivo de seu filho, indo além de uma imitação de gestos e posturas. O autor ressalta que "o bebê deve ser capaz de ler essa resposta parental correspondente como tendo a ver com a sua experiência de sentimento original e não apenas como uma imitação de comportamento" (Stern, 1992, p. 124). Sintonia pressupõe não uma imitação de gestos e posturas do outro, mas um ajustamento que não é simétrico, mas uma resposta que reconhece o valor de mensagem nas figurações corporais do bebê.
A sintonia do afeto pressupõe compartilhar não só comportamentos, mas a qualidade do sentimento que está sendo compartilhado. Nesse sentido, a sintonia se aproxima de uma "comunhão interpessoal" como indica Stern (1992), diferenciando-a da comunicação que busca trocar ou transmitir informações. Segundo o autor, a comunhão significa compartilhar a experiência de outrem sem tentar mudar o que a pessoa está fazendo ou acreditando.
Retomando a indicação de Roussillon (2008b) sobre a função de espelhamento do objeto primário, podemos avançar e dizer que o narcisismo primário só pode se constituir em função do tipo de compartilhamento oferecido pelo objeto primordial ao bebê. Cabe ao objeto conter e sustentar os afetos em estado bruto do bebê para evitar que o acesso à diferença seja insuportável e leve à vivência de desamparo.
A contribuição winnicottiana sobre o objeto encontrado/criado na experiência de ilusão ilustra esta concepção. De acordo com Winnicott (1956/1978), a experiência de ilusão se dá a partir da sensibilidade da mãe, em estado de preocupação materna primária, de apresentar o objeto ao bebê no exato momento em que o bebê o alucina. Assim, a possibilidade de transformar a alucinação (tentativa de transformar a ausência do objeto em percepção) em experiência de ilusão (criação de objetos subjetivos) repousa sobre a capacidade do objeto de evitar que o bebê se depare com a percepção da diferença entre eu-outro, interno-externo, prematuramente, tendo que reagir ao ambiente ao invés de vivenciar o sentimento de continuidade de existência.
A questão da diferença é fundamental para nossa reflexão sobre a função do objeto nos processos de simbolização primários, pois não é possível haver simbolização sem um espaço entre dois sujeitos, sem uma experiência de "terceiridade" que permite ao sujeito sair da dimensão especular. No entanto, como indica Roussillon (2008a), falar somente do modo de organização edípica não é suficiente para pensar esse processo, pois são as modalidades de ligação primárias que constituem a base para o acesso à exterioridade do objeto e à sua representação.
O autor destaca duas facetas do objeto primário: o objeto a ser simbolizado enquanto diferença, alteridade e ausência, e o objeto enquanto presença qualitativa que permite a elaboração da ausência da qual ele é a causa. Essa ideia paradoxal sugere que só é possível ter acesso à alteridade e à falta/falha do outro a partir do encontro e da possibilidade de simbolizar junto com o objeto a sua ausência.
Nesse contexto, os objetos a serem simbolizados são investidos pelo objeto primordial para suprir sua falta e ajudar a criança a reduzir a distância entre o que é encontrado e o que é criado. A experiência de transicionalidade conforme proposta por Winnicott (1953/1975) ilustra magistralmente esta noção, na medida em que o objeto transicional é o primeiro objeto não-eu, mas não se encontra nem dentro nem fora do sujeito, fazendo parte de um espaço potencial. Sua função é ao mesmo tempo testemunhar a experiência de união com a mãe, suprindo sua falta e, por sua utilização, indicar o reconhecimento de sua ausência.
Assim, se as primeiras experiências são vivenciadas com prazer e compartilhadas com o objeto, podem ser transferidas para a relação do sujeito com a atividade de simbolização e com o reconhecimento simbólico resultante dessa atividade.
O trabalho do negativo na constituição psíquica
Como indicamos, a simbolização é resultado de um trabalho interno que traz as marcas da relação primária com o objeto e depende da abertura de um espaço de metaforização entre sujeito e o outro. Em outras palavras, a ausência ou separação do objeto não deve exceder a capacidade da criança de restabelecer, graças à representação, a continuidade psíquica necessária ao sentimento de continuidade de existência. Como indica Roussillon (2008ª), é através do jogo intersubjetivo mãe-bebê, da brincadeira com a presença e a ausência do objeto materno, que a simbolização da ausência do objeto se inicia ainda em sua presença.
A contribuição de Green (2010a, 2010b) sobre o trabalho do negativo é fundamental para compreender como as modalidades de ligação primária favorecem a inibição necessária aos processos de simbolização. Segundo o autor, a obra freudiana aborda a questão do negativo através das diversas operações psíquicas, desde a operação de um recalcamento bem-sucedido nas neuroses até a operação da recusa extrema na psicose. Assim, ele pode aparecer em dois extremos, em um aspecto estruturante ou patológico.
Podemos dizer que o trabalho do negativo é estruturante quando permite a constituição dos limites entre interno/externo, entre eu e não eu e quando o objeto possibilita, por seu apagamento, que os processos de simbolização se iniciem. Desse ponto de vista, a ausência é vivenciada como presença em potencial e pressupõe a internalização de uma relação segura que possibilite dispensar as funções cuidadoras do objeto e propicie a autorreflexividade.
Segundo Green (1988a), a transformação do objeto materno em estrutura de enquadramento só se efetua quando essa estrutura oferece a garantia da presença materna em sua ausência e pode ser posteriormente preenchida por fantasias e substituída por outros objetos. Nas palavras do autor "ausência é uma presença em potencial, uma condição para a possibilidade não só de objetos transicionais, mas também de objetos potenciais, necessários à formação do pensamento" (Green, 1988a, p. 62). Nessa perspectiva, se o objeto primário consegue cumprir sua função, ele pode se deixar apagar para se constituir como enquadramento e não só presença. Esse apagamento é fundamental para propiciar ao ego investir outros objetos sob o fundo de um amor objetal seguro, que pode desempenhar o papel de continente.
Ao se apoiar sobre as ideias freudianas referentes às primeiras moções pulsionais, Green (1988/2010) indica como o primeiro não do sujeito se relaciona a cuspir para fora o que é desprazeroso. A excorporação é justamente esse movimento de expulsar o que é desagradável, o que é vivenciado como mau, para permitir a criação de um espaço interno no qual o ego enquanto organização pode nascer. É essencial para a construção do ego do bebê que a mãe reconheça e aceite que ele possa lhe dizer não para poder dizer sim a si mesmo (Green, 1988/2010a, p. 293). Se o objeto não aceita esse não, respondendo imediatamente ao bebê, a idealização do objeto materno provoca o esmagamento do desejo do sujeito. Se há excesso de ausência, o desespero e desamparo são tão grandes que provocam a destruição das ligações, a intolerância à frustração e uma necessidade de dizer não a tudo, inclusive a si mesmo. Assim, a face patológica do negativo aparece quando o objeto não se deixa apagar, sendo incapaz de cumprir suas funções ou por excesso de presença ou por excesso de ausência
Se retomarmos as proposições de Roussillon (1999) sobre a função simbolizante do objeto, podemos dizer que assim como Green (1988/2010a, 1986/2010b), ele também enfatiza como a falta só pode se produzir sobre um fundo de presença continente e como a ausência só pode ser vivenciada como presença em potencial se a resposta do objeto se produz em um tempo tolerável e sob uma forma assimilável. É nesse sentido que a teorização sobre a organização edípica não é suficiente para refletir sobre o acesso aos processos de simbolização primários, mesmo reconhecendo que a representação só pode se iniciar com a experiência de terceiridade que permite ao sujeito sair de sua especularidade pré-simbólica.
Urribarri (2012) ressalta que a contribuição de Green relativa ao tema do complexo de Édipo é instigante por recusar a concepção de uma relação dual como modelo teórico e clínico, mesmo se a relação principal do bebê inicialmente se dê com sua mãe. A centralidade do Édipo aparece primeiramente pela constatação de que a criança tem um lugar na história infantil de cada um de seus progenitores e também pelo pai aparecer desde o início, como figura de ausência e como o "outro do objeto" (Urribarri, 2012).
Green (1988a) procura construir uma teoria da simbolização que não se limite somente ao triangulo edípico, mas que postula uma compreensão do Édipo como um triângulo aberto no qual o terceiro é um objeto que pode substituir o objeto primário como função terceirizante, não se restringindo ao pai, mas a um terceiro substituível, que pode ou não ser o pai. Nesse sentido, a indicação de Roussillon (1999) de que a função paterna é herdeira dos objetos transicionais parece se articular à noção de triangularidade generalizada proposta por Green, pois é enquanto estrutura enquadrante que a função materna permite que a experiência de terceiridade seja interiorizada pelo sujeito.
Essa sugestão é interessante, pois sugere que a terceiridade se inicia com o trabalho do negativo que favorece a constituição dos limites intra e intersubjetivos. Ou seja, é necessário recusar o excesso de ligação para constituir os limites entre o ego e seus objetos. Há um aspecto paradoxal no psiquismo que faz com que seja preciso dizer não ao excesso pulsional e ao objeto para preservar as possibilidades de ligação e de vida.
Cabe assinalar que não há vida pulsional sem objeto e que, no início da vida, o outro do infante é ao mesmo tempo protetor e necessário para funcionar como uma "camada protetora ou de para-excitações" (Freud, 1920/1976), mas pode, ao mesmo tempo, ameaçar a integridade do bebê por seu caráter de excesso e de transbordamento pulsional. Nessa formulação, o trauma é relacionado a uma descontinuidade temporal e a diversas rupturas nas relações objetais precoces, impelindo o infante a ter que reagir ao invés de poder sentir. As situações clínicas da primeira infância predominantemente psicossomáticas podem ser uma forma de expressão da face patológica do trabalho do negativo, da angústia em seu estado bruto - angústia de aniquilamento e não de castração.
Como indica Green,
a categoria do "em branco" - alucinação negativa, psicose em branco, luto em branco, todos ligados àquilo que se poderia chamar de o problema do vazio ou o negativo, em nossa prática clínica - é o resultado de um dos componentes da repressão primária: descatexia maciça, tanto radical como temporária, que deixa traços no inconsciente na forma de "buracos psíquicos" (Green, 1988b, p. 152).
O autor indica que se trata de uma perda experimentada em âmbito narcísico e não edípico, pois ocorre uma descatexia central do objeto primário materno. A característica essencial do que ele denomina de complexo da mãe morta é se referir a uma depressão que tem lugar na presença do objeto em que a tristeza da mãe e a diminuição de seu interesse pelo seu bebê estão em primeiro plano. O ego se vê afetado em sua capacidade de simbolização e os sentimentos de vazio e a dificuldade de pensar são expressões da problemática.
A impossibilidade de fazer o luto da mãe morta coincide com a dificuldade de renunciar ao objeto, resultando na incapacidade para amar e para representar sua ausência. Como consequência, o objeto materno não se torna função e não abre caminho para a terceiridade e para o investimento de objetos que possam ocupar o lugar deixado em aberto pela estrutura enquadrante.
Considerações finais
A reflexão sobre a clínica dos primórdios nos permite revisitar concepções clássicas sobre a constituição do sujeito e ressaltar a importância das relações intersubjetivas na constituição do psiquismo. Observamos que grande parte dos sintomas que aparecem nessa clínica refletem uma dor encenada no corpo, mas que deve ser traduzida em sua dimensão de sofrimento psíquico para unificar corpo e psiquismo (Zornig, 2008).
Assim, a noção de sintoma no sentido freudiano do termo, de ser tomado como um representante simbólico de uma moção pulsional, na clínica dos primórdios se transforma em falhas no âmbito narcísico, decorrentes do mal-estar das relações precoces do sujeito com seus objetos primordiais. O sofrimento decorre de uma falta a ser e não de uma falta no ser (Roussillon, 2008a).
Como indica Freud (1937/1976), as inscrições precoces têm um peso fundamental na construção da subjetividade, sendo que muitas delas não são lembradas ulteriormente ou por efeito do recalcamento ou por não terem se constituído como memória e história, sendo encenadas no corpo, sem uma representação verbal.
Como decorrência dessa indicação, parece imprescindível ampliar a noção de representação para nela incluir as experiências sensoriais, estésicas e não verbais do bebê, visto que a subjetividade se constrói ao longo de um processo cujo elemento fundamental é a experiência compartilhada com o outro.
As contribuições de R. Roussillon (2008a, 2008b, 1999) e A. Green (1988/2010a, 1986/2010b) apontam para dois elementos que devem se articular para favorecer os processos de simbolização primários: a função simbolizante do objeto enquanto qualidade de presença continente e sensível; e a constituição do negativo, resultante do apagamento do objeto primário e de sua transformação em estrutura enquadrante.
Procuramos ressaltar a função paradoxal do objeto de, ao mesmo tempo, estimular e conter a atividade pulsional. Dessa forma, se a presença do objeto é imprescindível para possibilitar a internalização de sua ausência, o trabalho do negativo é igualmente fundamental para permitir a instauração de limites entre interno/externo e entre as instâncias psíquicas.
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Recebido em 03 de julho de 2015
Aceito para publicação em 15 de outubro de 2015