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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.29 no.3 Rio de Janeiro 2017
SEÇÃO LIVRE
Por que eles permanecem juntos? Contribuições para a permanência em relacionamentos íntimos com violência
Why do they stay together? Contributions for endurance in intimate relationships with violence
¿Por qué siguen juntos? Contribuciones para la permanencia en relaciones íntimas con violencia
Josiane RazeraI; Denise FalckeII
IDoutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS), Especialista em Dinâmicas das Relações Conjugais e Familiares pela Faculdade Meridional (IMED), Passo Fundo, RS, Brasil
IIProfessora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil
RESUMO
A violência conjugal é reconhecida como um problema de saúde e observa-se que muitos casais permanecem nesses relacionamentos, inclusive por um longo período de tempo. Por isso, buscou-se conhecer como os parceiros, inseridos em uma relação íntima com presença de violência conjugal, avaliam seus relacionamentos e que aspectos os levam a permanecer no mesmo. Participaram três casais que vivenciam situações de violência e permanecem no relacionamento há mais de cinco anos. Realizou-se uma entrevista semiestruturada e aplicação da CTS2 – Revised Conflict Tactics Scale – (Strauss, Hamby, Boney-McCoy, & Sugarman, 1996). A análise foi baseada em estudo de casos múltiplos. Observaram-se estratégias de violência física e psicológica nos casais sendo desencadeadas por conflitos ocasionados pela discórdia na educação dos filhos, infidelidade, alcoolismo e questões financeiras. Os casais referem permanecer juntos por diferentes motivos, especialmente o amor que os uniu e a praticidade da convivência. Ainda que tenham relatado abertamente as situações de violência, foi constatada a dificuldade no reconhecimento delas como tal e também a minimização da gravidade do fenômeno e de suas consequências. Ademais, verificou-se que as situações de violência nas famílias de origem do casal contribuem para os relacionamentos violentos. Considera-se a dificuldade de sair desses relacionamentos, porém é importante salientar que vivenciar essas relações pode trazer danos à saúde dos cônjuges, inclusive contribuindo para a perpetuação do ciclo de violência.
Palavras-chave: casamento; violência doméstica; estabilidade.
ABSTRACT
Conjugal violence is considered a health issue, and many couples remain in these relationships, even for long periods. The objective of this study was to investigate how spouses, in intimate relationships with the presence of violence, assessed their own relationships and which aspects led them to remain in it. The participants three couples who experienced violent episodes and had remained in the relationship for more than 5 years. The procedure involved a semi-structured interview and the application of CTS2 – Revised Conflict Tactics Scale – (Strauss, Hamby, Boney-McCoy, & Sugarman, 1996). The analysis was based in multiple case studies. The couples showed strategies of physical and psychological violence, aroused by dissension in the education of children, infidelity, alcoholism, financial issues, and others. Explained their remaining together based on the love that initially united them, and practicality of coexistence. Although couples openly mentioned episodes of violence, they found it difficult to recognize them as such, minimizing the seriousness of the phenomenon and its consequences. In addition, it was verified that the situations of violence in the families of origin of the couple contribute to the violent relationships. Abandoning these relationships may be difficult, but it is important to realize that experiencing these situations may bring negative effects on the health of the spouses, contributing to a violence cycle perpetuation.
Keywords: marriage; domestic violence; stability.
RESUMEN
La violencia doméstica es reconocida como un problema de salud y se observa que muchas parejas permanecen en estas relaciones, incluso durante un largo período de tiempo. Por lo tanto, tratamos de saber cómo las parejas que están en una relación íntima con la presencia de la violencia doméstica, evalúan sus relaciones y qué aspectos los llevan a permanecer en el mismo. Participaran tres parejas que viven situaciones de violencia y siguen en la relación por más de cinco años. Se realizó una entrevista semi estructurada y la aplicación de la CTS2 – Revised Conflict Tactics Scale - (Strauss, Hamby, Boney-McCoy, & Sugarman, 1996). El análisis se basó en el estudio de casos múltiples. Se observó estrategias de coerción física y psicológica en las parejas desencadenados conflictos acerca de los hijos, infidelidad, el alcoholismo y los problemas financieros. Refieren permanecer juntos por diferentes razones, sobre todo el amor que los unió y el sentido práctico de la vida. Aunque las parejas han informado abiertamente situaciones de violencia, se identificó dificultad en reconocer como tales y también la minimización del fenómeno, la gravedad y sus consecuencias. Además, se verificó que las situaciones de violencia en las familias de origen de la pareja contribuyen a las relaciones violentas. Se considera la dificultad de salir de estas relaciones, pero es importante señalar que estas experiencias pueden ser perjudiciales para la salud de los cónyuges, incluso contribuyendo a la perpetuación del ciclo de la violencia.
Palabras clave: matrimonio; violencia domestica; estabilidad.
Introdução
A violência conjugal tem se apresentado como um problema de saúde pública, indiscutivelmente. É considerada uma das formas mais comuns de violência interpessoal (Almeida, & Soeiro, 2010) e, por se tratar de um fenômeno complexo e multifacetado, sua compreensão torna-se desafiadora (Falcke, Oliveira, Rosa, & Bentancur, 2009). Sabe-se que as relações conjugais violentas trazem prejuízos emocionais a todos os envolvidos, não somente ao casal, mas também aos filhos que testemunham a violência interparental. As ações violentas podem se expressar de diversas formas, porém as mais frequentes são as agressões psicológicas e verbais, abusos físicos e abusos sexuais (Anacleto, Njaine, Longo, Boing, & Peres, 2009; Lamoglia & Minayo, 2009; Shah et al., 2012).
Os direcionamentos dados às pesquisas que envolvem a temática da violência conjugal são diversos. Destaca-se que muitas delas focam a perspectiva de gênero e atribuem diferentes papéis para homens e mulheres, de agressor e vítima respectivamente. Os reflexos de uma cultura patriarcal seria a principal justificativa assumida pelos autores para ocorrência de relações conjugais violentas (Dantas-Berger, & Giffin, 2005; Dias, & Machado, 2008; D’Oliveira, Schraiber, Hanada, & Durand, 2009; Gomes, et al., 2012; Kim, Laurent, Capaldi, & Feingold, 2008; Kronbauer, & Meneghel, 2005; Lamoglia, & Minayo, 2009).
Outro direcionamento crescente apontado por pesquisadores são os estudos que sugerem um entendimento relacional para o fenômeno. Essa perspectiva não desconsidera a influência das questões relacionadas ao gênero, porém instiga para uma multiplicidade de variáveis que influenciam a ocorrência do fenômeno e para o entendimento da violência como uma ação mais ampla e interacional, em que ambos os cônjuges podem ser coautores da dinâmica conjugal violenta (Colossi, & Falcke, 2013; Falcke et al., 2009; Razera, Cenci, & Falcke, 2014; Williams, & Frieze, 2005). Em uma pesquisa com 3.578 casais da Espanha, Goméz e Montesino (2014) encontraram, a partir de análises diádicas, índices de até 80% de agressão psicológica bidirecional e 25% de agressão física. Os autores referiram que não necessariamente a violência é simétrica, mas que ambos os cônjuges podem assumir o papel de autor e/ou vítima na relação. Postura semelhante assumiu Straus (2008), que referiu o fenômeno da violência como dinâmico e que os cônjuges podem assumir ambas as posições, agressor e vítima, dependendo da forma como a situação se estabelece.
Na mesma perspectiva interacional, dos 233 casais canadenses pesquisados por Fortin, Guay, Lavoie, Boisvert e Beaudry (2012), 80% das mulheres referiram ter vivenciado pelo menos uma vez agressões psicológicas na relação, enquanto que 78% dos homens apresentaram a mesma vivência. Da amostra, 27% das mulheres e 28% dos homens referiram ter sofrido alguma forma de violência física no relacionamento. Com isso, além do intercâmbio de papéis de vítima e agressor, observa-se que a agressão psicológica tem se apresentado como a violência de maior incidência nos relacionamentos, conforme apresentam estudos nacionais e internacionais (Colossi, & Falcke, 2013; Dantas-Berger, & Giffin, 2005; Follingstad, & Edmundson, 2010).
As formas de agressão, bem como a intensidade das mesmas, podem variar significativamente de uma relação para outra e, buscando compreender as interações conjugais violentas, Walker, no ano de 1979 (1999), apresentou a teoria do ciclo da violência conjugal, compreendendo que ele seria composto por três fases: o "Aumento da tensão", etapa na qual ocorrem menores incidentes de brigas e desentendimentos entre os cônjuges, mas que ainda acreditam ter o controle sobre a situação. Na medida em que a tensão aumenta e as habilidades de enfretamento tornam-se ineficazes, inicia-se a segunda fase, que se refere ao "Ataque violento ou fase da explosão", em que as ações violentas podem chegar ao extremo. Por fim, a terceira fase, denominada "Lua de Mel", trata da reconstrução do relacionamento, pois os cônjuges demonstram-se arrependidos e buscam mudanças na forma de se relacionar, a fim de restabelecer a relação. Com o passar do tempo, devido ao desgaste relacional, os casais podem iniciar um novo ciclo (Guimarães, Silva, & Maciel, 2007) e com isso os cônjuges tendem a viver uma relação de diferentes fases, em que a violência se torna um fenômeno cíclico, progressivo e relacional (Falcke et al., 2009).
É valido ressaltar que a chamada fase da Lua de Mel é uma das responsáveis pela permanência dos cônjuges em relações violentas. Esse aprisionamento pode ocorrer pela esperança de um relacionamento melhor baseado nas promessas e no arrependimento do agressor (Falcke et al., 2009). Para Perrone e Nanini (2007), nessa fase ocorre uma espécie de feitiço, em que o agressor convida a vítima para entrar, novamente, na dança da situação abusiva. Ravazzolla, antes disso, já no ano de 1997, falava sobre uma anestesia, ou "duplo-cego", o que simboliza uma forma de defesa para a vítima em que a mesma tira do consciente as agressões ocorridas e fica incapaz de percebê-las. De certa forma, seria essa uma possibilidade de manter a sobrevivência do relacionamento e, consequentemente, permanecer no mesmo, conforme o ciclo da violência.
Relacionamentos conjugais com violência também podem ser compreendidos através de uma perspectiva intergeracional. O modelo relacional violento aprendido na infância pode estar vinculado às formas de relacionar-se na vida adulta (Falcke, 2006; Falcke et al., 2009; Gomes, 2005; Razera, Cenci, & Falcke, 2014). Ao avaliar 87 casais, Karakurt, Keiley e Posada (2013) encontraram associação entre o relacionamento conflituoso presenciado na infância por mulheres e as relações de abuso na vida adulta. Os autores pontuaram que ter presenciado modelos hostis de relacionamento na infância pode ter modelado o comportamento das mulheres para os relacionamentos vivenciados na vida adulta. Ser vítima ou testemunha de relações violentas na infância pode ser preditor de relações adultas também violentas, bem como pode ser uma explicação para a naturalização da violência (Marasca, Colossi, & Falcke, 2013).
A permanência dos cônjuges em relacionamentos com violência, inclusive em alguns casos por muito tempo, tem instigado pesquisadores a analisar, até mesmo, a existência ou inexistência de satisfação conjugal nesses relacionamentos (Ackerman, 2012; Follingstad, Rogers, & Duvall, 2012; Lawrence & Bradbury, 2007; Williams, & Frieze, 2005). Os estudos apresentam resultados que divergem. Por um lado, percebe-se que a ocorrência de violência pode levar à redução da satisfação, que por sua vez pode levar à existência de violência na relação, o que se torna um ciclo vicioso (Hellmuth, & McNulty, 2008; Lawrence, & Bradbury, 2007). Em controvérsia, por outro lado, algumas pesquisas (Follingstad et al., 2012; Williams, & Frieze, 2005) apontaram que também foram observados níveis de satisfação mesmo em relações com violência, podendo oscilar na percepção de homens e mulheres (Ackerman, 2012).
Frente à divergência de tais achados, avaliações mais específicas sobre a dinâmica dos relacionamentos conjugais tornam-se fundamentais para melhor compreensão dos aspectos que levam casais em situação de violência a permanecer juntos, muitas vezes, tornando suas relações duradouras. A partir desse questionamento, buscou-se avaliar a percepção dos parceiros inseridos em uma relação íntima com presença de violência conjugal sobre como avaliam seus relacionamentos e que aspectos os levam a permanecer no mesmo.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa e exploratória, que teve como base o Estudo de Casos Múltiplos (Yin, 2005). Os estudos de casos podem ser utilizados para investigações empíricas de um fenômeno em seu contexto de vida real, além de permitir a compreensão do que não está claramente definido. Os estudos de casos múltiplos buscam seguir a lógica da replicação.
Participantes
Tabela 1
Participaram três casais heterossexuais, que coabitavam há pelo menos cinco anos e apresentavam alguma forma de violência conjugal física ou psicológica, mensuradas por meio da Revised Conflict Tactics Scale (CTS2). O perfil dos casais e dos participantes pode ser melhor observado na tabela 01.
Instrumentos
Para atender os objetivos deste estudo foram utilizados os seguintes instrumentos:
1) Revised Conflict Tactics Scales – CTS2, concebida por Strauss, Hamby, Boney-McCoy e Sugarman (1996) e adaptada ao português por Moraes, Hasselmann e Reichenheim (2002). O instrumento é constituído por 78 itens que descrevem possíveis ações do respondente e, reciprocamente, de seu/sua companheiro/a. É formada por cinco escalas, que tratam das seguintes dimensões: 1) violência física; 2) agressão psicológica; 3) coerção sexual; 4) lesão corporal; 5) negociação.
d) Entrevista Semiestruturada – buscou contemplar dados sociodemográficos, além das seguintes questões: a) como ocorreu a escolha dos cônjuges? b) como era o relacionamento conjugal dos cuidadores? c) qual foi a história do relacionamento conjugal?d) como os cônjuges avaliam o relacionamento conjugal que construíram? e) o que os cônjuges consideram como fatores positivos e negativos em seu relacionamento? f) como se manifesta a violência no relacionamento? g) quais os fatores que levam o casal a permanecer junto? As questões foram construídas a partir da revisão de literatura.
Procedimentos para coleta e análise de dados
Esta pesquisa seguiu todas as diretrizes e normas regulamentadoras para pesquisas que envolvem seres humanos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, sob o parecer número 558.906.
Os casais foram localizados por meio de um banco de dados de um estudo prévio, intitulado "Variáveis preditoras da violência conjugal: experiências na família de origem, características pessoais e relacionais", em que os participantes se prontificaram a participar de etapas seguintes. Foram sorteados dentre os que apresentaram índices de violência conjugal, mensurada a partir da CTS2. Receberam informações pertinentes à pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Em seguida, foi realizada a entrevista semiestruturada, coletando as informações sociodemográficas e realizando a sequência das questões acima citadas.
A entrevista foi realizada em dois momentos: inicialmente com o casal e, posteriormente, individualmente com cada cônjuge, possibilitando que expressassem o seu ponto de vista, especialmente sobre os aspectos que os fazem permanecer juntos.
A análise integrativa de cada caso foi realizada visando compreender a dinâmica de funcionamento do casal inserido em uma relação com violência e os aspectos que foram considerados relevantes para a manutenção do relacionamento. A partir da análise vertical de cada caso, foi realizada uma análise horizontal, buscando semelhanças e particularidades entre os casos, compondo a síntese de casos cruzados, conforme proposto por Yin (2005).
Apresentação e Discussão dos resultados
Caso 1 – Casal Evolução
O primeiro casal será apresentado aqui como Casal Evolução. Este nome foi atribuído a eles por citarem, em muitos momentos, que a relação superou várias situações ruins e de muita violência, relatam ter evoluído enquanto casal e por isso permanecem juntos.
Carlos considera que a sua infância foi tranquila e que costumava apanhar quando merecia, "os meus [pais] foram tranquilos [...]. Apanhava quando merecia, alguma vez que outra entrava pro chinelo". Para Carlos, os pais tiveram um relacionamento tranquilo, que melhorou após uma separação causada por traição do pai. Relata que sua família vivenciou um período difícil durante a separação dos pais, porém, após a reconciliação do casal, a relação parece ter melhorado e passaram a ter mais diálogo.
Por sua vez, Cássia comenta que teve uma infância distante do pai, pois ele ficou separado da mãe até seus oito anos. Em virtude dessa distância, mesmo após ter retornado, não participava muito da educação da filha, enquanto que a mãe utilizava um modelo punitivo, geralmente através de atos violentos: "o meu pai, o pouco que eu acompanhei, sempre foi no grito. Às vezes, eu preferia levar um tapa do que ficar ouvindo aquele gritedo [...]. A mãe batia, mas apanhava assim de chinelo, de vara, não era assim nenhum espancamento sabe, ela sabia bater e batia na hora certa". Observa-se que a violência psicológica, evidenciada através dos gritos do pai incomodavam mais Cássia do que a violência física cometida pela mãe. Como o pai bebia, presenciou inúmeras discussões, enquanto que o pai ameaçava: "‘tu qué vê que eu te arrebento, tu qué vê que te bato’, aí ele xinga ela verbalmente, ele desmoraliza ela". A mãe tinha atitudes de agredir fisicamente o marido, da mesma forma como fazia com os filhos: "se ela tem alguma coisa na mão e ele começar provocar, ela joga. Teve uma vez que ela jogou uma moranga na cabeça dele".
Ao questionar a participante sobre os conflitos do casal, a mesma refere que geralmente estavam relacionados com as questões financeiras: "o Carlos não tinha muito compromisso com pagar as contas de casa, então eu assumi tudo [...]. Ele queria mandar no meu salário e não queria me ajudar". Ou, outro motivo que gerava inúmeras brigas foram as saídas noturnas de Carlos: "ele posava fora bebendo com os amigos, eu não dormia a noite inteira esperando [...]. Daí quando ele chegava em casa, eu estava com aquela raiva pra explodir nele, né? Aí a gente acabava se batendo". No decorrer da entrevista, fica mais evidente a existência de violência física, quando Cássia conta: "ele me deu um soco no olho, daí arroxou tudo aqui assim e parte branca ficou vermelha, cor de sangue".
Cássia refere que geralmente ela começava as brigas, mas, devido à força física, acabava apanhando do esposo: "eu voava nele, a vontade que eu tinha era de lenhar ele à mordida e unhada, mas daí eu não tinha força e ele acabava se prevalecendo". Atualmente, relatam que as agressões são mais psicológicas e que já conseguem conversar mais: "A última briga faz um mês, me ofendeu na frente da minha prima e do meu irmão. Ele não conseguia acessar [ligar o vídeo game] o jogo dele e ele me disse assim: essa imundície não me fala o que o homem mexeu".
Foram questionados quais eram os aspectos negativos da relação percebidos pelo casal e Cássia comenta que é difícil conviver com uma pessoa tímida igual ao Carlos: "é difícil conviver com uma pessoa fechada, tímida [...] e ele não quer que nada atrapalhe, senta no sofá, joga vídeo game, não pode passar na frente. Ah, contrariar ele é motivo de briga". Carlos apresenta-se realmente bastante tímido, falando pouco sobre a relação dos dois mas, quando questionado sobre os conflitos conjugais, bem como os aspectos negativos da relação, ele comenta: "ah, às vezes ela é muito chata, qualquer coisa ela briga. Às vezes, ela tá cansada, mas ela tá brigando, então esse é o ponto negativo, né? Então,falar alguma coisa parece que é pior, às vezes, até um copo sujo em cima da pia, ela briga". Relata que o tempo tem colaborado bastante com o casal, que aprendeu a conversar mais antes de brigar "depois de tanto tempo a gente já aprendeu a conversar mais e se entender um pouquinho mais também. Então agora em vez de fazer todo gritedo, a gente tá se entendendo mais".
Para ambos, existem vários aspectos positivos na relação que os fazem conviver juntos até os dias atuais. Carlos comenta que "ultimamente, ela anda bem querida também, bem simpática, é uma companheira excelente, bem meiga, bem fofa, bem tudo", enquanto que para Cássia os motivos que os fazem permanecer juntos, depois de dez anos, mesmo com muita violência, resumidamente é: "o amor, eu amo ele mesmo de paixão, por que eu sei que ele tá sempre ali pra me proteger, pra me cuidar, porque como é que tu não vai ter amor por uma pessoa que te faz um chá quando tu tá doente". Carlos também refere os motivos que os mantêm juntos até os dias atuais: "a confiança um no outro, a amizade que a gente tem, não só por ser marido e mulher, como se a gente fosse um irmão também um do outro".
Entendimento dinâmico do Caso 1
O relacionamento de Carlos e Cássia evidencia sérios conflitos conjugais, inicialmente por se tratar de indivíduos estranhos, que não tiveram tempo hábil para se conhecer e que buscavam administrar as individualidades na construção da conjugalidade (Féres-Carneiro, 1998). Outro aspecto que se observa é a naturalização da violência vivenciada na infância por ambos, vista por eles como uma forma usual de educação, o que pode refletir-se na forma de se relacionarem também na vida adulta (Marasca, Colossi, & Falcke, 2013). Com relação aos aspectos intergeracionais, observa-se violência na conjugalidade dos pais de Cássia, enquanto que, com relação aos pais de Carlos, foi descrito um episódio de infidelidade, que, em alguns casos, também pode ser considerado uma manifestação de violência (Lusa, 2008; Trindade, Almeida, & Rozendo, 2008). Para Silva, Menezes e Lopes (2010), muitas vezes, os cônjuges podem seguir ou até mesmo querer evitar um modelo relacional vivenciado pelos pais. No caso, observa-se a repetição tanto da violência como da suspeita de infidelidade pelas saídas noturnas de Carlos, que muito irritavam Cássia.
Com o amadurecimento da relação, a intensidade, porém não a quantidade, das brigas do casal foram se atenuando. Os mesmos percebem que conseguiram melhorar enquanto casal, promovendo uma evolução positiva para a relação. Embora alguns estudos não associem a idade com a violência conjugal (Vieira, Perdona, & Santos, 2011), também existe uma perspectiva que dá suporte aos achados dessa associação que refere que, com o amadurecimento, as pessoas tendem a desenvolver maior tolerância, encontrando outros recursos para resolução dos conflitos (Oliveira et al., 2009). Percebe-se que existem fases de mais cuidado, amor e carinho com o parceiro, bem como a existência de fases de maior tensão, porém o casal ainda consegue restabelecer a relação após as brigas, o que permite pensar que esse modelo de relacionamento violento já se tornou um modelo relacional do casal (Falcke et al., 2009), por vezes sequer percebido.
Caso 2: Casal Eternidade
O casal a seguir teve esse nome atribuído por compreenderem que a relação deles estava pré-destinada e que a mesma não terminará aqui nesta vida. Os dois referem um sentimento de completude com a relação e uma vida inimaginável sem o outro, mesmo com graves situações violentas que permeiam a relação.
Luiz relembra de um passado difícil e de muita superação, pois quando criança o pai abandonou a família para construir um novo relacionamento. No decorrer dos cinco anos sequentes não manteve contato, inclusive com os filhos. Dessa fase, ele refere: "a gente não passou por alguma dificuldade, a gente passou por todas. Chegou uma época que a gente só comia o que plantava". Percebe que ficou desamparado e sem muita orientação na época. A mãe buscou transferir aos filhos o apego que passou a ter na igreja: "eu tinha que ir pra igreja. Quando eu não queria ir, ela me levava literalmente pendurado pelas orelhas".
Nas lembranças de Laura também surgem sentimentos de abandono, embora seus pais permaneçam ainda casados. Ela cita inúmeras brigas, principalmente por questões financeiras: "eu me lembro de muitas brigas na minha juventude, muitas brigas na minha infância, mas o diferencial é que, às vezes, o meu pai não voltava". Quando comenta a respeito dos estilos educativos dos pais, considera uma grande diferença entre o pai e mãe: "ele sempre muito duro conosco e a minha mãe sempre vendo o lado melhor das coisas".
Embora ambos os cônjuges refiram em muitos momentos uma solidez inabalável na relação, também se observou muitos momentos de dificuldades vivenciados por eles. Laura diz: "nossas discussões sempre são em função dessas questões financeiras, de altos e baixos". Em toda a entrevista fica bastante saliente a dificuldade que ela tem em lidar com a falta de dinheiro, até mesmo por ter sido esse o principal motivo das brigas dos seus pais. Deparar-se com falta de dinheiro já desencadeou reações extremas nela: "eu quebrei o dedo do meu pé por ter chutado ele, acho que pegou no osso dele por que quebrou meu dedo". Também, observa-se que as agressões partem de ambos os lados. Na mais recente, ocasionada por uma discórdia em relação ao banho da filha, ela conta: "daí ele se utiliza da força maior dele, me tirou de lá de dentro, me empurrou, trancou a porta e é isso". A relação é permeada por brigas que levam o casal ao descontrole emocional e, além de se xingarem, acabam se agredindo fisicamente, principalmente através de tapas e empurrões.
A respeito dos aspectos positivos da relação conjugal, Laura fala dos sentimentos que tem por Luiz e o quanto estes são a base que lhes permite a reconciliação após as brigas. Ela comenta: "nosso amor é muito forte. Eu não vivo sem ele e sei que ele não vive sem mim". Sempre que se refere ao esposo, ela fala com muito carinho e com emoção. Em diversos momentos da entrevista, referem que a união deles traz muita felicidade: "eu sou muito grata a Deus, por que é o pai que eu queria pras minhas filhas, é um amigo, é um amante, é um amor mesmo de verdade".
Laura, quando questionada sobre os possíveis aspectos negativos da relação, refere que não os percebe, que as brigas são passageiras e que eles sempre acabam se reconciliando depois de algum tempo. Ela refere: "negativo nada, eu viveria tudo de novo, como foi desde o início. Acho que nós estávamos pré-destinados". Além desse sentimento de completude e de amor, ela também comenta que o que os mantêm juntos é o cuidado que um tem com o outro: "eu cuido dele da minha forma e ele cuida de mim da forma dele e isto é o que nos mantém unidos, a gente é feliz, eu posso afirmar, de todo meu coração".
Luiz explica que os principais conflitos da relação são as discórdias em relação à educação das filhas e que isso tem ocasionado diversas agressões físicas: "eu posso dizer que eu apanhei mais, eu me machuquei mais". Quando brigam, observa-se que ambos perdem o controle. Na percepção de Luiz, empurrar é uma forma de afastar a esposa, como se fosse uma tentativa de terminar com a briga: "o que eu costumo fazer é tirar ela de perto, então eu pego, seguro e boto pra fora. Aí já teve casos de eu pegar e empurrar e ela cair no chão. Aí eu vou acudir, aí apanho mais porque fui acudir". Questionado sobre os aspectos positivos e negativos da relação, ele comenta: "tudo pra mim é positivo, não tenho nada de negativo, a gente se dá muito bem. Nós somos bons amigos, bons companheiros, então realmente não tem um ponto negativo". Mesmo com situações de desacordos e conflitos que levam a situações de violência, observa-se que existe um sentimento de amor na relação conjugal. Luiz, quando questionado sobre os motivos que os fazem permanecer juntos, refere: "eu nunca me imaginei sem a Laura. Parece que já veio engessada junto comigo".
Entendimento dinâmico – Caso 2
O segundo casal vive constantemente diferentes ciclos na relação, extremos que vão do amor pleno à lesão corporal. Observa-se uma aceitação dos parceiros para essa condição relacional, podendo-se pensar na concepção de Ravazzolla (1997), a respeito da anestesia que acomete o casal, sendo uma forma de defender a relação que ambos entendem como eterna e que poderia fragilizar-se caso atribuíssem importância à violência que existe na relação. É possível pensar em uma dinâmica conjugal contraditória, pois ao mesmo tempo que o casal possui fases hostis, também transfere a sensação de que existe zelo pela relação e que consideram-se felizes e satisfeitos com a mesma.
A literatura científica (Follingstad et al., 2012; Williams, & Frieze, 2005) já aponta a coexistência de satisfação e violência em relacionamentos conjugais, o que parece concretizar-se nesse caso. É possível pensar que o ataque e a agressão são entendidos como estratégia de resolução de conflitos, internalizados e compreendidos como naturais no relacionamento desse casal, até mesmo pelo fato relatado a respeito da forma de relacionar-se de seus pais. Na família de origem de ambos, verificou-se um padrão disfuncional de comportamentos, seja na relação conjugal ou parental. Presenciar esse modelo de resolução de conflitos pode estar relacionado com a forma utilizada pelos participantes para relacionar-se com seus cônjuges e filhos (Marasca et al., 2013).
Caso 3 – Casal Aceitação
O terceiro casal foi identificado como casal aceitação, pois deixa transparecer um grande esforço em aceitar as adversidades que surgiram no decorrer da relação, bem como tenta aceitar e suportar as divergências que um tem em relação ao outro. Para permanecerem juntos já aceitaram: o alcoolismo, a violência, a desconfiança, a traição e a ausência.
Pedro conta que recorda seus pais sempre tentando preservar os filhos das brigas do casal. Ele conta como foi a briga mais marcante para ele: "ele empurrou a minha mãe assim... Ele começou a cobrar a minha mãe e a minha mãe falou dos amigos dele e ele se levantou berrando e queria reagir sabe". Os pais dele morreram quando ainda era criança, mas ficam as recordações de cada um: "a minha mãe sempre foi uma guerreira, sempre foi muito protetora. O meu pai era boêmio, meu pai era mulherengo, era sem vergonha". No que se refere à forma como eles agiam com os filhos, Pedro fala que eram bastante rígidos, mas que isso foi fundamental para sua educação: "quando saia fora, o relho pegava. Eu até sinto falta, se eles tivessem comigo agora, as coisas erradas que eu fiz, talvez eu não tivesse feito".
Na percepção de Paula, seus pais não tinham uma relação de muitos conflitos, porém de maior submissão: "o meu pai achava que mulher tinha que ser muito submissa. A minha mãe era submissa à vontade dele". Ao mesmo tempo, carrega consigo um legado deixado pelo pai: "ele dizia que a gente tinha que saber fazer de tudo pra nunca depender de ninguém". Com relação à forma com que os pais educavam os filhos, recorda: "eu apanhei muito do meu pai. Ele saia pra trabalhar e eu sumia. Aí, claro, quando ele voltava...".
Conversando com Paula a respeito de seu casamento e dos principais conflitos, ela revela: "a gente diverge muito de opinião. Ele acha que eu tenho que falar mais e não, cada um no seu momento". O casal já passou por algumas separações. A mais recente foi a mais impactante para a família, pois, no período em que Pedro esteve fora, teve um relacionamento com outra mulher, que acabou engravidando: "quando ele voltou, essa mulher estava grávida e eu aceitei. Eu sou louca por criança, porque a criança não tem culpa de nada". Na percepção dela os principais conflitos são relacionados ao trabalho, pois ele não aceita que ela passe tanto tempo fora de casa: "ele fala que eu sou ignorante, que eu sou grossa e que já não me abala. Ele fala, eu viro as costas e deixo ele falando, porque ele é muito explosivo". Ela também refere que acaba reagindo através de gritos: "sempre fui muito braba [...]. Quer ver me tirar do sério é começar gritar comigo, eu perco o foco, aí sim, qualquer coisa que me disser eu saio explodindo. Digo o que vem na cabeça, certo ou não, depois eu resolvo". No decorrer das discussões, também acabam se agredindo fisicamente: "se viesse levantar a mão ou me empurrar, coisa assim, aí eu também partia pra cima".
Para Paula, os aspectos positivos da relação referem-se a: "a gente é bem parceiro, companheiro. A gente batalha junto, a gente bota alguma coisa e batalha junto até porque não teria dado tão certo a coisa né". Enquanto que, sobre os negativos, refere a não aceitação do trabalho dela e mais recentemente o filho que o esposo teve enquanto estavam separados: "negativos, seria o principal esse negócio de respeitar o espaço, respeitar o meu serviço, [...] porque ele não aceita. Eu trabalho fim de semana, feriado e ele é funcionário público". Quanto ao filho: "às vezes, o filho dele me estressa. [...]. Eu vejo que ele fica bajulando o guri, o guri fazendo desaforo, ele pula em cima do meu sofá, nem os meus filhos não fizeram". Mesmo considerando as adversidades, na percepção dela, hoje eles ainda permanecem juntos porque: "eu gosto dele, eu gosto do jeito dele. Ele é alegre, é como eu te disse, o oposto. Eu acho que a gente se completa muito, sabe? Eu sou troncuda e ele é alegre [...]. Era isso que eu queria pra minha vida, a minha casa é o meu castelo".
Pedro, que está em tratamento para o alcoolismo, recorda que quando chegava em casa bêbado e era repreendido brigava muito com a esposa: "ofendia ela, ‘vai te embora, da minha vida cuido eu’". Além das ofensas, gritos e xingamentos, ele também comenta sobre as agressões físicas: "Dei tapa na cara, agredia ela, então foi um período bem difícil pra mim". Além disso, lembra que as questões financeiras e o trabalho dela são os motivos que desencadeiam as brigas: "teve um mês do pagamento do aluguel da casa, ‘está aqui os 570,00 reais’, deixei passar dois ou três dias e ela disse que perdeu, não achou. Resumindo, não pagou o aluguel". Também, percebe-se que existe uma desconfiança em relação ao tempo que ela passa fora de casa, especialmente quando ele tenta ligar e ela não atende ou não retorna: "ah, eu xingo e digo, então está bem, ‘vai lá onde tu estava que devia estar bom’. Aí ela diz: ‘ah, eu não sou tu, primeiro problema que teve já pegou outra e arrumou filho’".
Com relação aos aspectos positivos que ele percebe na relação com Paula, ele comenta: "ela é muito parceira, batalhadora, é uma apoiadora. Ela é dinâmica para as coisas, é muito inteligente, tanto em relação à casa e com os filhos". Porém, quando ele fala sobre os aspectos negativos da relação, comenta novamente a ausência dela na casa e refere que muitas vezes sente-se sozinho, atribuindo à insegurança uma das causas da traição que cometeu: "eu me sentia inseguro [...] e talvez, foi isso que me permitiu. Claro, teve algumas outras coisas que eu acumulei". Sobre os motivos que os fazem continuar no relacionamento, ele fala: "ah eu acho que ela gosta de mim e eu gosto dela. Não digo que é amor da minha parte, dela eu acho que sim. Eu é porque eu me sinto seguro e ela é boníssima assim sabe".
Entendimento dinâmico – Caso 3
Observou-se que, embora os cônjuges não tenham recordações sobre o estabelecimento de um relacionamento violento dos pais, referem ter vivenciado muita violência enquanto filhos, que pode ser uma das variáveis associadas às relações violentas na vida adulta (Razera et al., 2014). O alcoolismo, presente no caso, também tem sido uma pré-disposição ao desencadeamento da violência conjugal (Vieira et al., 2011).
Verifica-se que os dois assumem ações violentas e pelo depoimento recebido ficaram mais salientes as agressões cometidas do que propriamente as agressões sofridas. Ambos se percebem mais como protagonistas do que como vítimas. Tanto a violência verbal, quanto a física, é exercida por ambos os cônjuges. Seria possível inferir que nessa relação eles assumem o papel tanto de vítimas como de agressores, dependendo da forma como o conflito se estabelece, constituindo-se uma dinâmica violenta interacional (Colossi, & Falcke, 2013).
A partir dos três casos apresentados foi possível constatar que os cônjuges, contemplando suas particularidades, visualizam em atos de violência uma estratégia usual para a tentativa de resolução dos conflitos. Embora de diferentes formas e intensidades nesses casais, tanto os homens quanto as mulheres utilizaram-se de violência em algum momento da relação. Esse dado reforça a compressão de que a violência pode ser uma ação interacional e que os cônjuges apresentaram-se como corresponsáveis pela dinâmica conjugal atual (Colossi, & Falcke, 2013; Williams, & Frieze, 2005).
Outro aspecto saliente é a repetição de comportamentos aprendidos ou vivenciados na infância. Padrões de relacionamentos violentos na família de origem podem estar associados aos modelos relacionais transmitidos entre as gerações. Embora se compreenda que essa repetição não é necessariamente uma regra, também se observa a tendência à perpetuação da violência em relacionamentos vivenciados na vida adulta (Razera et al., 2014; Silva et al., 2010). Uma possível explicação para a repetição de comportamentos violentos é a internalização de que essas formas são necessárias para resolver um conflito. Esse padrão relacional pode dificultar o reconhecimento do agravo, colocando os cônjuges e as pessoas envolvidas em situações de risco à saúde, visto que podem chegar a níveis de agressão muito elevados até que possam perceber que estão vivenciando relacionamentos violentos (Karakurt et al., 2013; Marasca et al., 2013). O convívio em ambientes tóxicos pode fazer com que as pessoas minimizem a gravidade da violência ou até mesmo a naturalizem em seus relacionamentos, como se fosse algo inevitável de acontecer (Boeckel, 2013).
Observaram-se diferentes motivos para a ocorrência de violência, tais como educação dos filhos, traições, desconfiança, alcoolismo e desentendimentos relacionados às questões financeiras. Estas últimas surgiram muito frequentemente nas falas dos entrevistados, não necessariamente associada ao quanto eles ganhavam, mas sim à forma como utilizavam o dinheiro e a falta de comunicação e consenso sobre os investimentos familiares, o que tem sido seguidamente apontado pela literatura como motivo de conflitos conjugais (Oliveira et al., 2009; Von Eye, & Bogat, 2006).
Analisando os depoimentos desses casais, reitera-se a necessidade de pensá-los a partir de suas particularidades. Notam-se diferentes aspectos relatados como motivos para a permanência nesses relacionamentos, as crenças de que o casamento é eterno e até mesmo o sentimento de amor que uniu o casal e que os mantém vinculados. Em alguns casos, ambos os cônjuges ressaltam a presença de violência, mas indicando a coexistência desta com cuidado e proteção, podendo-se pensar na presença do ciclo de violência, proposto na literatura (Guimarães, Silva, & Maciel, 2007; Walker, 1999. Os discursos de amor também são utilizados muitas vezes como uma forma de tolerar as práticas abusivas e violentas da relação (Dias, Manita, Gonçalves, & Machado, 2013), fazendo com que o momento da lua de mel do ciclo seja compreendido como a armadilha do mesmo.
Sabe-se que a violência é uma prática que desfavorece o bem-estar dos cônjuges e que pode provocar danos à saúde de todos os envolvidos, especialmente em longo prazo. Nesse sentido, é importante pensar ações que sinalizem aos casais, da população em geral, que ações violentas são prejudiciais aos relacionamentos e geram sofrimento, sendo possível recorrer a outras formas mais funcionais para resolução de conflitos. Para tal, estratégias preventivas, como grupos de preparação para o casamento, poderiam incluir a temática das estratégias de resolução de conflitos. Considerando que os conflitos serão inevitáveis em qualquer relacionamento, o desenvolvimento de habilidades de negociação com os cônjuges pode contribuir para evitar a violência nos relacionamentos.
Considerações finais
As pesquisas sobre a violência conjugal, embora volumosas, ainda não respondem a muitos questionamentos sobre o fenômeno. Neste estudo, foi discutida a permanência de indivíduos nessas relações e reitera-se que as particularidades de cada caso precisam ser avaliadas. Cada membro do casal apresenta diferentes motivações, tanto para agredir ou ser agredido, como para manter-se nessas relações.
Muitas variáveis estão presentes nesses casos, como a dificuldade de lidar com as particularidades do parceiro, divergências na educação de filhos, desconfiança, questões relacionadas ao dinheiro, entre outras, que se tornam potenciais desencadeadores de conflitos, que na maioria das vezes tentem a ser resolvidos através de estratégias coercitivas, com utilização de violência de diferentes tipos (psicológica, física, sexual). Esse pode ser um padrão de comportamento desenvolvido pelo casal, porém existem muitas evidências de uma ligação com os modelos intergeracionais aprendidos. Fenômeno esse que parece contribuir com a naturalização da violência, como se ela fosse parte de todo e qualquer relacionamento.
Por se tratar de uma amostra não clínica, verifica-se que os participantes não possuem uma compreensão clara de que suas ações são violentas e que podem causar uma série de danos aos envolvidos. Observou-se uma tendência dos casais a falar da violência como um padrão normal de relacionamento, o que se torna uma situação preocupante para os profissionais da psicologia e para a sociedade em geral. Nesta amostra, nenhum casal realizou denúncias, o que nos leva a pensar que os índices reais de violência são muito maiores do que os que existem hoje computados nas estatísticas oficiais sobre o fenômeno.
Percebeu-se uma coexistência de cuidado, amor e carinho com as situações de violência. Esses são aspectos muito positivos dos relacionamentos, porém também indaga-se se essa não é uma forma de minimizar a gravidade dos atos de violência, bem como uma maneira de proteger a relação de uma possível separação, constituindo-se na armadilha do ciclo de violência.
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Recebido em 06 de novembro de 2015
Aceito para publicação em 08 de junho de 2017