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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A03 

SEÇÃO TEMÁTICA: CLÍNICA DO SOCIAL

 

O "carrapateiro" visto de fora: olhares sobre uma cracolândia em Divinópolis, MG

 

An outside view of "carrapateiro": looks on a crackland in Divinópolis, MG

 

El "carrapateiro" visto desde afuera: miradas sobre una crackolandia en Divinópolis, MG

 

 

Roberto Lopes MendonçaI; Mardem Leandro SilvaII; Ana Lívia AmaralIII; Geovane Antônio TeixeiraIV

IProfessor do curso de psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Unidade Divinópolis, MG, Brasil
IIProfessor do curso de psicologia da UEMG, Unidade Divinópolis, MG, Brasil
IIIGraduanda do curso de psicologia da UEMG, Unidade Divinópolis, MG, Brasil
IVGraduando do curso de psicologia da UEMG, Unidade Divinópolis, MG, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo é fruto da primeira fase de uma pesquisa que busca conhecer a visão da população do entorno de uma região de uso público de drogas conhecida como "Carrapateiro", em Divinópolis, MG. Tal pesquisa se justifica pela falta de dados que embasem intervenções em locais chamados de cracolândias. Para isso, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com 35 moradores/comerciantes do entorno do Carrapateiro, visando a confirmar ou refutar nossas hipóteses iniciais de preconceito, conflito e medo. Como método de análise foi utilizada a perspectiva Bardin da Análise de Conteúdo. Os resultados confirmaram as hipóteses, apresentado uma relação conflituosa entre os moradores/comerciantes do entorno do Carrapateiro e os usuários que viviam e/ou consumiam drogas no local. O medo da criminalidade e o preconceito para com os usuários também foram confirmados. Foi observado ainda o tipo de intervenção que mais representa o pensamento da população do entorno, girando entre os polos da saúde pública e da segurança pública. Por fim, ponderamos sobre a falta de responsabilização da sociedade civil em tal situação, e a apresentamos como uma forma de xenofobia.

Palavras-chave: Carrapateiro; Divinópolis; cracolândia; opinião pública; dependência química.


ABSTRACT

This article is the result of the first stage of a research seeking to know the view of the neighboring population in an area where public use of drugs takes place, known as "Carrapateiro", in Divinópolis, MG. Such research is warranted by the lack of data to back intervention in places called "cracklands". To this purpose, semi-structured interviews were held with 35 residents/shopkeepers from the vicinity of Carrapateiro, aiming to confirm or refute our initial hypotheses of prejudice, conflict and fear. The Bardin view of Content Analysis was employed as the method of analysis. The results have confirmed our hypotheses, revealing an antagonistic relationship between the residents/shopkeepers from around Carrapateiro and the people who lived and/or used drugs there. The fear of crime and the prejudice towards drug users were also substantiated. Additionally, the kind of intervention mostly favored by the neighboring population was shown to revolve around public health and public safety. Finally, we considered the lack of accountability of civil society in this context, and we deem it an instance of xenophobia.

Keywords: Carrapateiro; Divinópolis; crackland; public opinion; chemical dependency.


RESUMEN

Este artículo es el resultado de la primera fase de un estudio que busca comprender la visión de una población de los alrededores de una zona de uso público de droga conocida como "Carrapateiro", en Divinópolis, MG. Esta investigación se justifica por la falta de datos que podrían apoyar una intervención en lugares conocidos como "cracolândias". Para este propósito, consistió en entrevistas semiestructuradas realizadas con 35 habitantes/vendedores de los alrededores del Carrapateiro, con el objetivo de confirmar o refutar nuestras hipótesis iniciales de prejuicios, conflictos y miedo. El método de análisis se utilizó fue la perspectiva Bardin de análisis de contenido. Los resultados confirmaron nuestras hipótesis, presentando una relación de confrontación entre los habitantes/vendedores de los alrededores del Carrapateiro y los usuarios que vivían y/o consumían drogas en el lugar. El miedo al crimen y los prejuicios hacia los usuarios también se confirmaron. También se observó el tipo de intervención que más representa el pensamiento de la población de los alrededores, circundando a los polos de la salud pública y la seguridad pública. Por último, reflexionamos sobre la falta de responsabilización de la sociedad civil en una situación de este tipo, y la presentamos como una forma de xenofobia.

Palabras clave: Carrapateiro; Divinópolis; cracolândia; opinión pública; dependencia química.


 

 

Introdução

O espaço público se constitui pela dinâmica de interação discursiva entre os sócios que compõem a sociedade. Ser sócio implica aceitar, de bom grado ou não, pagar o preço da sociabilidade e arcar com as consequências do laço social. Em outras palavras, implica numa recusa de satisfação que impõe severas condições ao corpo não disciplinado pelo Estado. O Estado, por sua vez, demarca os espaços de trânsito comum e distribui os dispositivos que irão compor as linhas simbólicas e imaginárias da educação em sociedade. A cidade é um resultado da produção dessas linhas, coordenadas que localizam o sujeito do discurso que nela transita: o cidadão, aquele que pertence à cidade, por ser constituído pelo mesmo dispositivo que a produz.

A cidade, como lócus de ação do poder público, traz em si as marcas do poder do Estado. No entanto, tal espaço também é composto por aquilo que Foucault (2001) denomina de heterotopias, verdadeiros não-lugares ou lugares outros, margens, produções alheias à biopolítica e à maquinação estatal. Na geografia humana descrita por Foucault, a heterotopia é uma interpretação plural dos espaços; ela descreve lugares com múltiplas camadas de significação, aparentemente incompatíveis entre si, cujo sentido não pode ser captado de imediato, cabendo o esforço da pesquisa para descrever a lógica destas condições não hegemônicas. Estes outros lugares encerram em si regimes próprios: palavras, significações e desejos que organizam ações. Se o espaço social de influência estatal traduz as plataformas de identificação social, com instituições, regras e valores, os espaços alheios se reorganizam pela margem não admitida desses poderes, produzindo efeitos de contracultura.

Segundo Salgado (2013) os sujeitos utilizam do espaço e se distribuem nele a partir de suas características e individualidades. Na atual conjuntura da sociedade, o consumo abusivo do crack, que vem se destacando como um fenômeno social, modificou silenciosamente a lógica das cidades e se concretizou aos olhos da população como considerável alteração do próprio espaço urbano. Isso porque os usuários de droga intervieram no espaço comum e de forma manifesta reorganizaram algumas de suas alternativas numa perspectiva de encontro e trocas. Esses locais de socialização de suas dependências receberam a alcunha geral de "cracolândias", espaços públicos alocados pelos usuários e dependentes químicos que, não sem razão, funcionam como ambiente de identificação, sociabilidade, proteção e, sobretudo, acesso fácil à droga. Os usuários de crack rompem a reprodução dos laços sociais e exibem aos olhos da cidade o que é considerado pelo autor como uma nova forma de sociabilidade.

A cracolândia seria um local cronificado por indivíduos como o lugar de uso do crack. O processo de cronificação territorial pode ser traduzido como procedimento de demarcação de determinados espaços pela incapacidade de controle, devendo, portanto, ser etiquetado e separado dos demais para não ser confundido. (Salgado, 2013, p. 274)

O território de consumo de crack é aquele que ocupa o espaço urbano, e é conhecido pelos que nele habitam e circulam como lócus da droga. Nele, há uma lógica identificada por práticas ilegais, que devem se manter ocultas (MacRae et al., 2013). Rui (2012) permite compreender que o fato de o consumo de crack ter ocupado contornos e espaços delimitados nos espaços públicos leva a uma nova forma política e social de perceber tal fenômeno. Além disso, são criadas novas redes de relações por aqueles que ocupam tal espaço, onde os frequentadores se aproximam e em conjunto ocupam o local. A convivência e a continuidade em tal ambiente levam a uma condição relativamente estável.

Os territórios das cracolândias - espaço social e discursivo - anunciam um espaço-sede imaginário, marcado pelo incômodo social, pela poluição do espaço urbano, pela presença manifesta daquilo e daqueles que a sociedade gostaria de esconder: droga, prostituição, delinquência, doenças e ameaças. Por esse motivo ele é apresentado como o "não-lugar", em que a miséria humana e a falta são gritantes, bem como a ausência de intervenções públicas (Rui, 2012).

Tais intervenções no espaço público, quando ocorrem, são comumente pautadas pela lógica higienista e violenta, enquanto o adequado seria buscar compreender toda a complexidade de relações que se faz presente no local (Lima, 2012).

O espaço público, como dito por Narciso (2008), pertence a todos, mas nos espaços da cracolândia nota-se um fenômeno social distinto, onde os frequentadores têm sua lógica própria (Salgado, 2013).

A região da Luz em São Paulo, considerada como a cracolândia da maior cidade do país, evidencia esse fenômeno social, onde sujeitos buscam subjetivamente demarcar e ocupar o espaço geográfico e existencial perante a sociedade, reproduzindo e construindo toda uma lógica para sua sobrevivência, com leis e hierarquia, bem como trocas de favores. Dominguez (2015) publicou um artigo na Revista Radis discutindo a realidade da cracolândia da cidade de São Paulo, demonstrando como são estabelecidas as relações nesse contexto.

Na terra do crack, existem leis próprias. E quem tem isqueiro é rei. Acender um cachimbo custa R$ 0,25. Preço tabelado. Ninguém pode cobrar mais ou menos. Homens são proibidos de bater em mulheres. Para cobrar na força a dívida de uma mulher, um homem precisa contratar uma outra mulher. (Dominguez, 2015, p. 26)

Assim como em São Paulo, essas ocupações geográficas e existenciais pelos usuários de drogas se reproduzem em outras cidades. O espaço público conhecido como "Carrapateiro", e que deste ponto em diante chamaremos apenas por este nome, publicamente reconhecido, é uma região da cidade de Divinópolis, MG, situada no Bairro Niterói, próximo ao Rio Itapecerica e à região do Parque da Ilha, espaço público criado para interação social e realização de atividades físicas.

Divinópolis é uma cidade de porte médio do centro-oeste de Minas Gerais, com uma população de aproximadamente 230 mil habitantes e que tem como carro-chefe de sua economia a indústria do vestuário. Muitas pessoas buscam a cidade para fazer compras em suas diversas lojas de roupas e também pelo número de universidades públicas de qualidade, assim como algumas faculdades privadas.

O Carrapateiro é, aos olhos externos, frequentado por um público homogêneo de usuários de crack. É certo que algo os une naquele espaço, o que, conforme Salgado (2013), envolve a identificação e o fácil acesso ao produto para consumo. O Carrapateiro ficou amplamente conhecido por ser um espaço público tomado por usuários de crack. Nele o trânsito da população é contido, já que os consumidores da droga ocuparam o local.

O local foi alvo de uma intervenção em junho de 2015, conhecida como Operação Fênix, feita conjuntamente pelas polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros, Ministério Público e Prefeitura do município. Como previu Lima (2012), a intervenção ocorreu a partir da lógica higienista e repressora, em que cães farejadores ajudaram na captura de 62 pessoas, que foram detidas e levadas para o ginásio poliesportivo da cidade. No local, foi oferecido tratamento aos usuários, o que foi aceito por 30% dos apreendidos. Conforme o Secretário Adjunto Antidrogas - terminologia que poderia ser alvo de inúmeros questionamentos -, os detidos que não aceitaram ajuda voltaram para as ruas, ou seja, 43 dos 62 apreendidos, número que permite perceber o insucesso da intervenção.

O texto dessa notícia informa ainda a origem do nome do local, que se deve aos muitos carrapatos ali encontrados. Ela traz a seguir o subtítulo "Limpeza", deixando ainda mais evidente a partir de qual lógica ela fala (Portal de Notícias G1, 2015).

 

Justificativa

É diante desta e das demais intervenções realizadas em tais contextos espalhados pelas cidades brasileiras que se faz necessário estudar e pesquisar. A pesquisa que resultou neste artigo é parte da primeira fase de um projeto que se justifica pela necessidade de buscar soluções mais efetivas para a questão que se apresenta no Carrapateiro em Divinópolis. Vários são os problemas que podem ser observados nesse local (uso de drogas, criminalidade, prostituição, problemas ambientais etc.). Consequentemente, a proposta de solução deve ser também complexa.

Não esperamos uma solução imediata ou mágica como as que geralmente são propostas para tais locais, de forma que o ganho a ser obtido pela comunidade da cidade de Divinópolis com tal projeto seria a médio ou a longo prazo. O trabalho com a toxicomania, em especial com populações de rua, geralmente é infrutífero, pois não se conhece a população com a qual se quer trabalhar, o que leva a ações a partir de conceitos previamente organizados pelo senso comum.

Nesta primeira fase da pesquisa, o foco foi o olhar dos moradores e comerciantes que vivem e trabalham no entorno do Carrapateiro. Supomos encontrar nesse olhar o preconceito da população e o olhar do senso comum, mas também as dificuldades encontradas nesse convívio, por hipótese conflituoso, entre o cidadão comum e os usuários que frequentam tal local. Esse conflito existe no limite alcançado pelo braço da lei, o braço do Estado. Onde este braço não lança sua força, a lei se faz de outra forma. É deste ponto de vista que partimos na primeira fase de nossa pesquisa.

 

Objetivo

Este estudo pretende discutir o desenvolvimento do fenômeno da cracolândia no Carrapateiro. Para tanto, será considerada a forma com que tais sujeitos são vistos pelas pessoas que vivem na região. Então, tem por objetivo discutir o desenvolvimento do fenômeno da cracolândia na região, por meio da experiência de moradores e comerciantes das proximidades do Carrapateiro, investigando suas percepções sobre os usuários e o espaço que eles ocupam, permitindo assim compreender qual é e como se constrói essa relação entre usuários, moradores e comerciantes das proximidades.

A partir disso, busca viabilizar a construção de intervenções possíveis, partindo das demandas suscitadas pela população que convive com adversidades provenientes das condições vivenciadas pelos usuários de drogas do local. Nesse aspecto, podem surgir algumas indagações que germinam dessa relação dicotômica. Os usuários de droga do Carrapateiro são vistos como risco para os moradores e comerciantes da região? Qual a imagem que os moradores e comerciantes têm desse espaço conhecido como Carrapateiro e de seus frequentadores? Há possibilidade de intervenções que melhorem as condições de vida de ambas as populações?

 

Método

Os participantes desta pesquisa foram pessoas com idades entre 18 e 74 anos, moradores e comerciantes da região próxima ao Carrapateiro, localizado no Bairro Niterói, em Divinópolis, MG, no período de outubro de 2015 a janeiro de 2016. Foram entrevistadas 35 pessoas, com uma média de idade de 44 anos, 18 do gênero masculino e 17 do feminino.

Os critérios de inclusão para participação na pesquisa incluíram pessoas que moram ou trabalham na região próxima ao Carrapateiro e que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, considerando-se que estas poderiam ter mais contato e sofrer algum tipo de interferência dos usuários de drogas que frequentam o local. Nesse sentido, foi considerado não só o espaço geográfico, mas também toda uma construção subjetiva, cultural e social que os participantes têm sobre o contexto do Carrapateiro que orientou a escolha dos sujeitos da pesquisa.

Foi aplicada uma entrevista semiestruturada com o objetivo de identificar qual impressão as pessoas têm daquela região e dos usuários que a frequentam. A entrevista foi composta primeiramente pela identificação do voluntário, que terá sua identidade preservada dentro das discussões levantadas; em seguida, propusemos analisar qual a identificação que o voluntário mantém com o local foco da pesquisa. Por fim, utilizamos seis perguntas para investigar como os frequentadores do Carrapateiro são vistos pelas pessoas que vivem na região. Após a coleta, a análise dos dados foi realizada com o auxílio do Microsoft Excel e as entrevistas serão discutidas a partir da Análise de Conteúdo na perspectiva de Bardin.

Tal perspectiva, dentro de análises conhecidas como Análise de Conteúdo (AC), envolve vários elementos metodológicos que podem ser aplicados em diversos discursos, e se presta a pesquisas quantitativas e qualitativas, sendo comum sua utilização nas ciências sociais. Tal análise, a partir de inúmeras técnicas, visa clarificar o que está no discurso, tratando e analisando os dados, de forma a pôr em evidência aquilo que está oculto no discurso. A AC é constituída por diversas fases: de início é feita a pré-análise, quando os documentos são selecionados e a hipótese e o objetivo são formulados; em seguida ocorre a exploração do material e o tratamento dos resultados da interpretação. Tais fatores facilitam a compreensão do objeto de pesquisa (Bardin, 1977).

 

Análise e discussão dos dados

As entrevistas anteriormente citadas foram realizadas com 35 pessoas, comerciantes e moradores, que de alguma forma guardam relação com o Carrapateiro e com os que o frequentam. Pôde-se evidenciar que a falta de segurança, os relatos de violência ocorridos no local e o uso abusivo de drogas pelos frequentadores são critérios que de alguma forma interferem na condição de vida dos entrevistados, com impactos sobre a liberdade de acesso às vias públicas da região, a falta de segurança nos estabelecimentos comerciais e nas próprias residências, que em algumas vezes foram arrombadas, e também de forma subjetiva, causando desconforto e receio em se referir ao local, sendo estas reações percebidas em algumas pessoas que não aderiram à pesquisa por medo de se comprometerem.

As falas de alguns entrevistados exemplificam tais inseguranças: "já tentaram arrombar meu salão e passam aqui também para vender coisas" (Entrevistado 19). Outro entrevistado diz do receio que tem ao sair para trabalhar e deixar a casa sozinha, pois disse ter sido roubado. As saídas de casa se tornaram restritivas para a Entrevistada 11, que disse: "Não me sinto segura morando aqui, pois não posso sair de casa a qualquer hora, não posso ir em muitas festas, minha mãe fica preocupada quando saio à noite. Às vezes me sinto refém disso tudo."

Contudo encontramos pessoas que não se sentem ameaçadas morando ou trabalhando na região, mesmo relatando o uso abusivo de drogas dos frequentadores do Carrapateiro e da violência que ali ocorre por causa de drogas: "Me sinto seguro trabalhando aqui na região, pois os usuários já me conhecem" (Entrevistado 27). Outro entrevistado disse que nunca teve problemas com os usuários de drogas do Carrapateiro e que morar na região não lhe traz insegurança.

As entrevistas demonstraram que 83% das pessoas guardam uma impressão depreciativa do local, acreditando ser uma situação de vulnerabilidade para os moradores e comerciantes da região, assim como para os próprios usuários, cuja vida é marginalizada perante a sociedade. Diante deste apontamento, podemos indagar se pode haver algo em comum nos dois grupos populacionais considerados neste trabalho. Moradores e comerciantes dizem se encontrar em uma situação de vulnerabilidade devido à falta de segurança, e os possíveis riscos que os usuários de drogas do Carrapateiro oferecem. Por outro lado, consideram que os mesmos usuários também estão vulneráveis, pelo fato de viverem em condições precárias de saúde, segurança e assistência.

Nesse sentido a vulnerabilidade é uma palavra que permeia as narrativas dos entrevistados, que relatam ela estar presente nos dois campos, moradores e usuários do Carrapateiro. Contudo, se faz importante indagar até que ponto o fato de se considerar vulnerável a tais situações não remove a responsabilidade de se haver com a realidade vivenciada, o que pode sugerir a repetição, de forma oculta, de métodos de exclusão.

Um fato interessante sobre a vulnerabilidade que surge no discurso dos entrevistados é que ela apresenta dois polos distintos. De um lado, uma vulnerabilidade social e de saúde, por parte dos usuários do local; de outro, uma vulnerabilidade de segurança, por parte dos moradores e comerciantes da região. Estes polos refletem a visão geral do senso comum sobre o que é o mundo do uso/abuso de drogas: ou uma questão de saúde pública, ou uma questão de segurança pública. Retomaremos este ponto mais adiante.

Dominguez (2015) apresenta uma breve pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, evidenciando que os usuários de drogas estão em segundo lugar entre os grupos mais odiados pelos brasileiros, e propõe um questionamento interessante: será que todos os usuários de drogas são odiados pelos brasileiros? Os usuários encontrados ao redor de universidades são igualmente odiados como os que vivem nas ruas, em situação degradante de pobreza e aparentemente considerados como perigosos? Assim conclui que o uso de crack feito por moradores de rua, especificamente da cracolândia paulista, serve apenas como uma "cortina de fumaça para uma exclusão histórica" (Dominguez, 2015, p. 26).

Outros dados encontrados por meio dos questionários realizados foram que 63% dos entrevistados disseram que não tiveram problemas com os moradores e usuários do Carrapateiro, divergindo dos 37% que relataram a ocorrência de algum tipo de problema. Algumas pessoas que disseram não ter problemas com os usuários, apontam em suas respostas certa insegurança e receio, como na resposta da Entrevistada 11: "não tive problemas com eles, mas passo longe quando os vejo, pois tenho medo de ser roubada". Outra narrativa também evidencia a mesma ambivalência: "Nunca tive problemas, pedem dinheiro e eu não dou. Eles saem fora e não me incomodam. Já teve umas três vezes que um homem gritou comigo porque não quis dar dinheiro, fiquei constrangida." (Entrevistada 14)

Seria uma forma de preconceito? Afinal, a grande maioria nunca teve problemas com os usuários e ainda assim o medo permanece. Dos que relataram problemas, 75% relataram episódios de roubo ou arrombamento. Os outros 25% apenas temem roubos ou relatam pedidos (de dinheiro, água, coisas emprestadas). Considerando então apenas os que tiveram algum problema efetivo, somente 34% tiveram algum problema. Por que, ainda assim, 83% têm uma visão depreciativa do local?

Mesmo relatando ocorrências de violência que acontecem entre os usuários de drogas, registros de furtos em residência e no comércio local, e a insegurança em transitar e estabelecer alguma proximidade com eles, 60% dos entrevistados relataram se sentirem seguros morando ou trabalhando na região. Contudo, buscam estratégias para garantir esta segurança, que são apresentadas como adaptações para o enfrentamento da realidade vivenciada.

Me sinto segura aqui, tive que adaptar minha rotina devido a eles: não saio sozinha à noite, não passo por certas ruas, mas hoje isso ficou natural de tanto tempo que é assim. Tenho receio pelo meu filho, de 8 anos, mas converso muito com ele. Ele já sabe o que é bom e mau. Os usuários chamam a atenção de quem passa pelo local, ainda mais das crianças, que precisam de orientação. (Entrevistada 14)

Quando questionados sobre a existência de uma cracolândia na região, o Carrapateiro, 94% dos entrevistados se posicionaram dizendo que é uma situação ruim para a cidade. Dentre as respostas, alguns já consideram a região como uma cracolândia: "Acredito que já é uma cracolândia, e a considero uma região que atrai ladrões." (Entrevistado 29) Outros acreditam que depois da intervenção policial o local melhorou. Contudo, há pessoas que demonstram certo receio com tal possibilidade: "tenho medo, pavor. Ali vai gente de todo tipo" (Entrevistada 7).

Também foi percebido em algumas falas que se delegava ao Estado a responsabilidade pelos cuidados e prevenção para com a situação do Carrapateiro; porém, não se evidenciava nas narrativas quais poderiam ser as contribuições da sociedade civil para lidar com a realidade existente na região. Evidencia-se neste sentido a incumbência ao Estado de uma responsabilidade que escapa dos limites do particular, necessitando uma intervenção do poder maior. O Entrevistado 30 diz que: "As autoridades não deveriam deixar chegar a tal ponto." Em consonância com ele, o Entrevistado 27 diz: "Já considero como uma cracolândia, e o governo deveria focar na raiz do problema e não só nos usuários." Outro entrevistado disse que o fato de ter chegado ao ponto de a região do Carrapateiro ser considerada como uma cracolândia seria uma vergonha para o município, e acrescenta que este deveria executar seus projetos com mais eficiência.

Outro ponto que chama a atenção nas entrevistas é a resposta dada à questão sobre possíveis intervenções em relação aos usuários. Em primeiro lugar temos a internação dos usuários, com 37% das respostas; em segundo, uma intervenção política, do poder público, com 26% das respostas; em terceiro lugar, empatados com 14%, temos os que não opinaram e os que acham que é necessária uma intervenção policial; em último lugar um dado assustador: 9% acham que os usuários devem ser deixados ao acaso, abandonados para morrer.

Esses dados nos remetem a alguns pontos-chave da visão geral sobre o uso de drogas no Brasil, como dissemos anteriormente. Em geral, tal tipo de assunto é considerado ou um caso de saúde pública, que deveria ser cuidado pelo Estado, em especial com a solução mágica das internações; ou um caso de segurança pública, que deveria ser tratado pela polícia, deixando novamente a responsabilidade para o Estado. As duas formas geralmente se mostram ineficazes, como podemos ver nas estatísticas sobre internações, e nos jornais, nas notícias sobre as intervenções policiais.

Podemos notar um grande desconhecimento sobre a rede de saúde mental do município, o que não é obrigatoriamente sabido pela população, mas este desconhecimento também se verifica nas entidades que lidam com a questão, bem como no poder público. Há uma enorme falta de informação sobre as políticas públicas para álcool e drogas, assim como sobre a Lei que rege a saúde mental no Brasil, conhecida como Lei Paulo Delgado, que prevê a internação como último recurso. Estes pontos são discutidos longamente em Mendonça & Rodrigues (2011), por isso não nos debruçaremos sobre eles aqui.

De toda forma, é importante ressaltar a xenofobia, o medo daquilo que nos é estrangeiro, estranho, ainda que nos seja familiar. O simples fato de que surjam nos resultados respostas que proponham que tais usuários sejam abandonados à própria sorte até que morram nos remetem à "Nau dos loucos" citada por Foucault (1978), na qual os loucos eram abandonados à própria sorte em uma nau que os levava sem rumo ao sabor do vento. Se essa nau atracasse em outra cidade ou afundasse, matando todos seus ocupantes, não era mais responsabilidade da cidade. O problema já estava resolvido de antemão, com o simples gesto da expulsão do território. Não é esta a solução sugerida por essa parcela da população? Caso tomemos a nau dos loucos como uma analogia para a questão do Carrapateiro, o fato de a nau atracar em outro porto, poderia ser semelhante ao fato de uma parcela da sociedade civil entrevistada apenas tomar como solução a intervenção de outrem (Estado, internação)?

As respostas às entrevistas confirmaram nossas hipóteses iniciais de um grande preconceito em relação aos usuários, de uma situação conflitante entre os moradores e comerciantes do entorno do Carrapateiro e seus usuários, e ainda reforçaram as ideias do senso comum sobre o trabalho a ser realizado em um local como esse. Geralmente as ações que são levadas a cabo nas cracolândias, como podemos acompanhar nas notícias do dia a dia, seguem essa lógica. Sua ineficácia também é patente. Sequer precisamos de dados estatísticos para confirmar, basta olharmos ao nosso redor. O que precisamos fazer efetivamente para mudar o panorama do uso de drogas a céu aberto em nossas cidades - as cracolândias?

 

Considerações finais

Um fato curioso ocorreu durante o percurso da pesquisa que deu origem a este trabalho. O projeto original, construído e submetido aos parâmetros e processos legais para a realização de pesquisas com seres humanos, propunha entrevistas com os moradores e comerciantes do entorno do Carrapateiro e também com vários usuários residentes no local. A população de usuários na pesquisa seria cerca de duas vezes maior que a de moradores/comerciantes. Entretanto, durante o demorado processo burocrático normal de uma pesquisa que envolve seres humanos, ocorreu, no local que seria alvo da pesquisa, uma intervenção, eminentemente policial, do poder público: a Operação Fênix.

Como dissemos anteriormente, a grande maioria dos que foram detidos retornaram às ruas, não mais no Carrapateiro, que ficou ocupado pela polícia por um longo período, mas em outros locais da cidade. O desmanche do Carrapateiro inviabilizou parte de nossa proposta inicial da pesquisa, mas serviu para reforçar nossa posição quanto à ineficácia de tais intervenções, haja vista que a grande maioria dos usuários continua seu uso franco de drogas, e mesmo os que aceitaram a ajuda podem neste momento estar de volta às ruas, mas isso é um algo de que não temos notícia.

A ação da Operação Fênix baseou-se também nos dois polos anteriormente citados: o da segurança pública (intervenção policial) e o da saúde pública (internação dos que aceitaram tratamento). É a mesma lógica já tantas vezes reprisada, e que ressurge como o eterno retorno do mesmo, uma simples repetição baseada no senso comum. A visão dos moradores e comerciantes do entorno do Carrapateiro embasa esse tipo de lógica. É o tipo de solução pensada pela grande maioria da população. Sua ineficácia patente ao longo dos anos não é suficiente para uma mudança nas formas de intervenção.

O que notamos é que a sociedade civil normalmente não faz outra coisa que queixar-se da situação, ignorando sua parcela de responsabilidade na solução da questão, ainda que diversas possibilidades possam ser pensadas, como a participação nas Conferências Municipais sobre o tema, iniciativas que busquem pequenas intervenções diretas com os usuários e moradores das cracolândias, busca de melhores formas de se relacionar com os usuários e moradores destes locais com o intuito de diminuir o medo tão frequente nos relatos dos entrevistados, entre outras.

Quando da realização das entrevistas com os moradores e comerciantes do entorno do Carrapateiro, a Operação Fênix já havia ocorrido, e há relatos de melhora na situação do local com a presença da polícia. É claro que o braço da lei estendido sobre o local retira dele a lei feita pelos usuários e estabelece novamente a lei do Estado, retirando da margem, desmarginalizando, o local.

Entretanto alguns pontos chamaram nossa atenção nas entrevistas e eles apresentam um fio condutor, que nos direciona para uma possível futura intervenção. A visão dicotômica entre a saúde pública e a segurança pública retira o tempo todo a responsabilidade da sociedade civil para com o local estudado. Nem um único entrevistado sugeriu algum tipo de intervenção por parte da sociedade civil, por parte dos próprios moradores e comerciantes do local. Seria isto uma decorrência da xenofobia e do não reconhecimento do Carrapateiro como um lugar da cidade?

Ao incluir o sufixo "lândia" à droga crack, estaria a sociedade civil considerando aquela uma outra cidade, a cidade do crack? Daí ser uma questão que não diz respeito a ela, à cidade oficial? Esse estrangeiro, morador dessa estranha cidade não oficial dentro de outra cidade, seria alguém assim tão indesejado ao cruzar a fronteira? Este estrangeiro seria alguém tão diferente de nós, moradores da cidade oficial? Seria pelo uso da droga ou pela ocupação de um território que antes pertencia à cidade oficial? Reformulando a questão em outras palavras: o problema seria a cracolândia (espaço, cidade não oficial) ou os usuários (os habitantes desta cidade não oficial)?

Esta questão parece ser resolvida quando a intervenção policial retoma o poder sobre o espaço do Carrapateiro e seus habitantes são expulsos, buscando novos espaços. A xenofobia é dirigida aos habitantes, não ao local. O problema não é a cracolândia, mas seus moradores. Mas agora, com a retomada do espaço, o que fazer com os refugiados de tal cidade não oficial? O problema apenas se afastou dos olhares da mídia por estar disperso. O estigma se desfez. Mas o problema foi resolvido?

O medo relatado pelos moradores/comerciantes deixa de existir caso eles se encontrem com um dos ex-moradores do Carrapateiro pelas ruas da cidade de Divinópolis? O risco de roubos, tão temido pela população, diminuiu? Haverá números que a polícia apresentará depois da Operação Fênix que nos deixarão mais seguros?

O início desta pesquisa nos encaminha para uma possível solução já encontrada em outros meios e que, infelizmente, não é ainda reconhecida quando o assunto é o uso de álcool e outras drogas. Historicamente, a internação foi a solução (ineficaz) para a lepra, a loucura e o uso de drogas. Com os dois primeiros problemas, descobriu-se que o tratamento, não a exclusão, pode trazer mudanças, ainda que não seja possível curar (aqui no sentido de extirpar) o mal. Tomando a loucura como exemplo, os tratamentos extra-hospitalares se mostram eficientes, principalmente por não buscarem a cura, a absoluta retirada dos sintomas da loucura. Conviver com a loucura passou a ser algo normal e o louco deixou de ser alguém perigoso para a sociedade, ainda que o verdadeiro reconhecimento desse fato ainda esteja em construção.

Poderíamos fazer o mesmo com os usuários de álcool e outras drogas? Poderíamos produzir um novo olhar sobre essa população da cidade não oficial? As políticas públicas para álcool e outras drogas no Brasil, em especial a política de redução de danos, seriam uma intervenção mais inteligente e realista que as demais? Haveria a possibilidade de construção de intervenções alternativas que não dependessem do poder público para tratar (aqui não no sentido de curar, mas de lidar com) a questão?

Enfim, qual será nossa cota de responsabilidade no caos do qual nos queixamos? Será que apenas transferir o problema para o poder público é suficiente para resolver a questão que tanto incomoda àqueles que todos os dias convivem com a cracolândia? Não nos limitamos, nessa questão, aos moradores e comerciantes do entorno de tais regiões. Pensemos em nós mesmos ao simplesmente assistir ou ler um jornal. Qual o nível de incômodo nos traz a imagem de uma criança fumando crack em uma lata de refrigerante bem no meio da rua? Estes são questionamentos que teremos que nos fazer, e quem sabe a partir deles e com novas propostas, buscar soluções, ainda que parciais para estas cidades do crack - as cracolândias.

 

Referências

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Recebido em 09 de novembro de 2016
Aceito para publicação em 27 de outubro de 2017

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