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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.34 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2022

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n01A06 

SEÇÃO TEMÁTICA - DINÂMICAS SOCIAIS E PSICOLOGIA: COGNIÇÃO, FAMÍLIA, TRAUMA E INOVAÇÃO TECNOLÓGICA EM RELACIONAMENTOS E TRATAMENTOS

 

A escuta em psicanálise: Abstinência e neutralidade em questão

 

Listening in psychoanalysis: Abstinence and neutrality in question

 

Escuchar en psicoanálisis: Abstinencia y neutralidad en cuestión

 

 

Kellen Evaldt ArrosiI; Milena da Rosa SilvaII

IPsicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias (NEPIs) do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil. email: kellenevaldtarrosi@gmail.com
IIPsicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Psicanálise: Clínica e Cultura da UFGRS. Co-coordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias (NEPIs). Porto Alegre, RS, Brasil. email: milenarsilva77@gmail.com

 

 


RESUMO

A escuta em psicanálise baseia-se em alguns conceitos fundamentais de operação clínica, a partir do manejo da transferência. Dois desses conceitos são os de abstinência e de neutralidade, os quais ainda protagonizam, por vezes, equívocos e confusões. Neste trabalho é realizado um percurso teórico com o objetivo de retomar as origens de tais conceitualizações, discutindo as formas como elas têm sido utilizadas e a importância de uma psicanálise implicada, tanto pela via da clínica quanto pela via da cultura. Sustentam-se as ideias de que a abstinência não corresponde a uma postura de passividade e de que a neutralidade não está relacionada a uma atitude de isenção ou desimplicação por parte do psicanalista. Assim, a repercussão de tais conceitos na prática analítica pode, sim, pautar-se em uma clínica sensível e em uma escuta atenta às vicissitudes do campo político e social nos sofrimentos e manifestações sintomáticas contemporâneas. Isso porque, além de subsídios para pensar a prática clínica, a abstinência e a neutralidade configuram-se também como conceitos políticos, marcando a importância de o psicanalista atentar nos movimentos contratransferenciais que, porventura, possam reverberar nas intervenções realizadas.

Palavras-chave: psicanálise; abstinência; neutralidade.


ABSTRACT

Listening in psychoanalysis is supported by some fundamental concepts of clinical operation stemming from the handling of transference. Two of these concepts are abstinence and neutrality, which still sometimes lead to misunderstandings and confusions. In this work, a theoretical course is followed with the aim of resuming the origins of such conceptualizations, discussing the ways they have been used and the importance of an involved psychoanalysis, both through the clinic and through the culture. Two ideas are upheld: that abstinence does not correspond to a passive posture, and that neutrality does not correlate to a stance of exemption or not implication on the part of the psychoanalyst. Thus, the repercussion of such concepts in analytical practice can be guided by a sensitive clinic and by listening attentively to the vicissitudes of the political and social aspects in contemporary sufferings and symptomatic manifestations. This is because, in addition to subsidies for thinking about clinical practice, abstinence and neutrality are also configured as political concepts, stressing how important it is for the psychoanalyst to mind countertransference movements that may, perhaps, reverberate in the interventions performed.

Keywords: psychoanalysis; abstinence; neutrality.


RESUMEN

La escucha en psicoanálisis se basa en algunos conceptos fundamentales de la operación clínica, a partir del trabajo de la transferencia. Dos de estos conceptos son la abstinencia y la neutralidad, que a veces conducen a malentendidos y confusiones. En este trabajo se realiza un recorrido teórico con el objetivo de retornar a los orígenes de tales conceptualizaciones, para discutir cómo están siendo utilizadas y la importancia del psicoanálisis implicado, clínica y culturalmente. Se sostienen las ideas de que la abstinencia no corresponde a una postura de pasividad y de que la neutralidad no está relacionada a una actitud de exención o desimplicación por parte del psicoanalista. Así, la repercusión de tales conceptos en la práctica analítica puede guiar una clínica sensible y una escucha atenta a las vicisitudes del campo político y social en los sufrimientos y manifestaciones sintomáticas contemporáneas. Esto se debe a que, además de los subsidios para pensar en la práctica clínica, la abstinencia y la neutralidad también se configuran como conceptos políticos y marcan la importancia del psicoanalista tener en cuenta a los movimientos contratransferenciales que, quizás, puedan repercutir en las intervenciones realizadas.

Palabras clave: psicoanálisis; abstinencia; neutralidad.


 

 

Introdução

Este escrito parte de indagações a respeito das posições daqueles que fazem uso da psicanálise como ferramenta de trabalho. Ao considerar como ativas as posturas desses profissionais, vamos na contramão daquilo que se imagina, num primeiro momento, como o estereótipo de um psicanalista (passivo, neutro, silencioso). Isso porque, ao produzir uma intervenção, algo se introduz, reverbera e produz deslocamentos. Há sempre uma escolha de por onde intervir, o que implica em dizer que a subjetividade daquele que intervém está, de alguma maneira, também sempre colocada. Ainda é recorrente a ideia de que o analista deve "deixar sua subjetividade na porta" para uma adequada condução do processo analítico. Tal concepção pode ser lida de forma a se confundir com o princípio da abstinência em psicanálise e de certa neutralidade requerida ao psicanalista. A abstinência e a neutralidade, enquanto operadores teórico-clínicos, frequentemente servem como justificativas para a adoção de posturas de maior distanciamento por parte do profissional que opera a partir da psicanálise. Traçaremos este escrito a partir do tensionamento dessa ideia, pensando o encontro em psicanálise como aquele tecido de palavras, onde ambos os lados, em maior ou menor grau, mostram-se como suscetíveis a afetações.

Existem pacientes que não suportam uma frieza que muitas vezes é performada pelo analista agarrado a um princípio de abstinência entendido de forma crua. Por vezes, é necessário o empréstimo de sentido, a reconstrução de uma história, a afetividade encontrada na pessoa do psicanalista, para que uma experiência de ser se consolide e as bases do sentido possam ser adquiridas. Só depois intervenções na via da quebra de sentido serão possíveis e toleradas, sem que um estado ainda maior de desamparo se repita também na situação analítica. É imprescindível que o analista seja e esteja, mais do que nunca nessas situações, com o analisando de forma viva. A contemporaneidade coloca em cena outros modos de subjetivação e, com eles, novas manifestações sintomáticas. Portanto, a postura daquele que conduz o tratamento também necessita de constantes reinvenções.

Os conceitos de neutralidade e abstinência também são usados, por vezes erroneamente, como subsídios de práticas que se esquivam de pensar acerca da implicação do próprio psicanalista como alguém atravessado por um discurso, pela cultura, pelos valores e também por preconceitos enraizados em uma sociedade da qual ele, naturalmente, também faz parte. Mais do que isso, as próprias bases epistemológicas da psicanálise estão calcadas numa teoria que não deixa de carregar as especificidades de seu tempo. A máxima de se escutar o singular de cada sujeito não deve nos eximir das discussões abarcadas pelo campo social. Norteado por essas discussões, é possível ao psicanalista apreender em que medida marcadores sócio-histórico-culturais incidem nos sofrimentos individuais e coletivos, intervindo clinicamente com base em uma escuta capaz de captar tais vicissitudes. Enquanto uma teoria que em seus primórdios foi tida como revolucionária, a psicanálise precisa continuar atenta e participante de discussões que abarcam o amplo espectro da cultura, uma vez que esta não pode ser considerada como algo que permaneça de fora da atuação clínica; muito pelo contrário.

Como pode, dessa maneira, a subjetividade do psicanalista "permanecer na sala de espera"? A fim de problematizar essa questão, este trabalho se inicia por um percurso teórico acerca dos conceitos de abstinência e neutralidade em psicanálise, os quais ainda são protagonistas de algumas confusões e equívocos. Posteriormente, será discutida a importância de uma psicanálise implicada, tanto pela via da clínica quanto pela via da cultura, as quais, na realidade, não devem ser entendidas como separadas. Nesse contexto, evidencia-se a importância de um manejo clínico marcado pela sensibilidade de quem escuta e por uma postura aberta às possibilidades de criação em cada encontro.

 

A abstinência e sua não correspondência à passividade

Figurando-se como conceito fundamental da psicanálise, a abstinência aparece no texto freudiano de 1915, Observações sobre o amor de transferência, como uma postura por parte do analista de recusa à concessão de afetos pelos quais o paciente anseia. Tal postura configurar-se-á como princípio do tratamento psicanalítico, uma vez que se deve "deixar que a necessidade e o anseio continuem a existir, na paciente, como forças impulsionadoras do trabalho e da mudança" (Freud, 1915/2010, p. 218). Dessa forma, o encontro em análise se diferencia daqueles experienciados cotidianamente, já que uma das partes - no caso, o analista - abstém-se de funcionar como objeto de satisfação da repetição em ato dos modos de se relacionar do analisando.

Em Recordar, repetir, elaborar, Freud (1914/2010) se detém na questão da repetição, aventando que o analisando, em vez de recordar aquilo que foi esquecido ou reprimido, coloca em ato suas lembranças, repetindo-as sem consciência de que o faz. Tal modo peculiar de recordar transferirá situações de um passado esquecido para diversos aspectos da conjuntura atual de vida do paciente, incluída aí a relação com o terapeuta a partir do estabelecimento da transferência. Valendo-se da abstinência do analista e do manejo da transferência, torna-se possível que, no lugar da repetição, aos poucos a elaboração ocupe o seu lugar no processo de análise.

Em seu escrito A dinâmica da transferência, Freud (1912a/2010) coloca que todo indivíduo tem modos característicos de conduzir a vida - clichês -, os quais tendem a se repetir sempre do mesmo modo. A maneira como cada um constrói relações, solidifica vínculos, tece narrativas e se articula no encontro com o outro diz de um modo de subjetivação que será sempre singular. Tais formas de conduzir a vida também manifestar-se-ão na relação entre analisando e analista. Para Freud (1912a/2010), quando algo do material do complexo se presta para ser transferido à pessoa do analista, ocorre a transferência.

Daniel Kupermann (2008) aponta diferenças entre a transferência como atualização do inconsciente - repetição em ato na relação analítica -, presente na teoria freudiana, e a transferência como produção de sentido, na obra de teóricos como Ferenczi e Winnicott. Para estes, o campo transferencial é entendido muito mais como um plano de compartilhamento afetivo que, por meio do encontro lúdico e da presença sensível e marcada pela alteridade do psicanalista, abre espaço para a criação do novo (Kupermann, 2008). Tal posição, que privilegia a criação de sentido a partir de uma experiência compartilhada, se engendra em uma dimensão do entre proposta pelo conceito winnicottiano de espaço transicional (Winnicott, 1953/2019). Esse espaço se situa numa área intermediária, entre o eu e o outro, entre o interno e o externo, que permite sobreposições e um encontro singular do sujeito com o objeto. As vicissitudes de cada encontro e de cada experiência compartilhada dirão do campo transferencial produzido. Apesar das divergências acerca do foco dado ao conceito de transferência, operar com ela a partir de uma posição de abstinência é o que possibilita o estabelecimento de uma escuta subsidiada pelo campo teórico da psicanálise.

No Dicionário de Psicanálise de Roudinesco e Plon (1998), encontramos a seguinte conceitualização para a abstinência:

A regra de abstinência designa o conjunto dos meios e atitudes empregados pelo analista para que o analisando fique impossibilitado de recorrer a formas de satisfações substitutivas, em condições de lhe poupar os sofrimentos que constituem o motor do trabalho analítico. (p. 4)

Na mesma direção, no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (2001), a abstinência aparece como regra de direção do tratamento, a ser conduzido de modo que o analista faça uso da interpretação em vez de satisfazer as exigências libidinais do analisando, e que o paciente encontre o menos possível de satisfações substitutivas para seus sintomas. Mais do que princípio de condução do tratamento, a regra da abstinência é considerada como essencial para que ele aconteça. Ela funciona como estratégia para que o motor da análise - os sofrimentos do paciente e seus desejos insatisfeitos - continue operando.

Em Caminhos da terapia psicanalítica, de 1919, Freud reforça a ideia de que, no que concerne à relação com o analista, o paciente deve conservar a não realização de seus desejos, diferenciando a psicanálise de outras terapêuticas que visam a tornar as circunstâncias mais agradáveis para o doente. Isso porque, ao deixar que o sofrimento encontre um fim prematuro por meio de satisfações substitutivas, "corremos o perigo de nunca atingir senão melhoras modestas e pouco duradouras" (p. 213). Porém, o autor nos alerta que não se deve entender por abstinência a privação de toda e qualquer satisfação, ideia que se configura como irrealizável: "alguma concessão lhe deve ser feita, maior ou menor, segundo a natureza do caso e a peculiaridade do paciente" (Freud, 1919/2010, p. 214). Portanto, torna-se importante destacar a não equivalência entre abstinência e privação total das satisfações do paciente. Tal equívoco, por vezes, sustenta a ideia de um analista opaco, passivo, que a qualquer sinal de maior vivacidade poderia estar colocando em perigo a regra da abstinência.

Sándor Ferenczi, em 1920, ao discorrer sobre o desenvolvimento de sua técnica ativa, põe em pauta a mera aparência de uma passividade na prática psicanalítica da época, já que a própria interpretação se configuraria como uma "intervenção ativa na atividade psíquica do paciente; ela orienta seu pensamento em uma certa direção e facilita a emergência de ideias que, de outro modo, a resistência não teria deixado ingressar na consciência" (Ferenczi, 1920/2011, p. 118). Dessa maneira, a interpretação é posta ao lado da atividade que, partindo do analista, é capaz de promover movimentações e reposicionamentos subjetivos no analisando.

No texto Elasticidade da técnica psicanalítica, Ferenczi (1928/1992) destaca o conceito de tato psicológico, o qual define como a faculdade de "sentir com":

Adquiri a convicção de que se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico, de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e esperar outras associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente, etc. (Ferenczi, 1928/1992, p. 27)

A atividade anteriormente mencionada deve, portanto, vir acompanhada de uma sensibilidade do analista, e é capaz de captar as nuances de cada encontro e as necessidades de cada paciente. Nesse contexto, o autor parece estar falando a respeito do manejo clínico calcado na regra da abstinência, a qual não requer necessariamente uma postura passiva do psicanalista, mas sim uma abertura para a experiência e para a descoberta no caso a caso.

Conhecido por sua clínica voltada para a ludicidade e para a importância do ato criativo, Winnicott (1967/2019), em seu texto A localização da experiência cultural, destaca a importância das bases da tradição para que seja possível agir com originalidade. A criatividade estaria inserida nesse interjogo entre aceitação da tradição e oportunidade para a inovação a partir dela. Nesse sentido, para o autor, "qualquer fidelidade teórica corria o risco de se tornar um ato de submissão, de prevenção contra o pessoal e o inesperado" (Philips, 2006, p. 189). Encontramos em Winnicott, assim como em Ferenczi, ênfase sobre a importância da sensibilidade do analista no que diz respeito à espontaneidade e a inovações na técnica, sem, no entanto, deixar de considerar a abstinência como princípio. A regra da abstinência não diz respeito a um modo opaco de colocar-se na situação analítica, como sustentam alguns estereótipos. Agir de modo a não satisfazer os investimentos libidinais do paciente não significa sustentar uma posição de frieza.

Em Lacan, encontramos, no Seminário 6, que o analista deve ser aquele que se oferece como suporte para todas as demandas e que não responde a nenhuma (Lacan, 1958-1959/2016). Avista-se já aí o que o autor chamará de desejo do psicanalista, balizador das suas proposições éticas para a psicanálise ao longo do Seminário 7: um desejo advertido por considerar o analista como objeto de uma transferência, ao qual ele não deve responder a partir de seu lugar de sujeito - colocando em cena seus desejos próprios - mas sim de um lugar vazio (Lacan, 1959-1960/1988). Tal lugar, ao apontar para a falta que é constitutiva do humano, propiciará uma abertura para que o desejo singular do analisando advenha e possa, paulatinamente, ir afrouxando - sem, no entanto, desatar - sua amarração ao desejo do Outro.

No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/1998) aponta que o analista deve situar-se mais na sua falta-a-ser do que em seu ser, sustentando uma posição de escuta abstinente a partir desse lugar faltoso. Mais adiante, o autor coloca que "o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como se costuma dizer, para frustrar o sujeito, mas para que reapareçam os significantes em que sua frustração está retida" (Lacan, 1958/1998, p. 624). Dessa forma, a teoria lacaniana entende que aquele que conduz um processo analítico - sustentado pelo desejo do psicanalista -, ao não responder à demanda do analisando, abre espaço para trabalhar com os significantes que giram em torno de questões centrais acerca da estruturação subjetiva daquele que procura tratamento. Promove-se, assim, a construção de um espaço em que reinvenções e ressignificações sejam possíveis.

Klautau (2002), a partir de uma interessante análise acerca dos encontros e desencontros entre as conceitualizações de objeto transicional em Winnicott e de objeto a em Lacan, destaca que essas duas concepções também apontarão para duas formas distintas de condução da prática clínica e, consequentemente, de posturas do psicanalista, norteado pela regra da abstinência. O objeto transicional serviria como metáfora da falta, ajudando o bebê a suportá-la, simbolizá-la, funcionando de modo a restabelecer uma continuidade que é ameaçada com a gradual - mas necessária - separação do outro materno. O objeto a, por sua vez, é entendido como a falta em si, marcando "o caráter irremediável de uma perda que estabelece uma distância intransponível entre o sujeito e o Outro" (Klautau, 2002, p. 131).

Na técnica analítica, tal diferenciação apontará, pelo lado de Lacan, para uma intervenção que privilegia a interpretação e a dimensão pulsional, calcada numa falta-a-ser do analista. Já pelo lado de Winnicott, a intervenção dará importância ao holding - que, a partir da relação de continuidade física e psíquica, proporcionará uma passagem da experiência de fusão eu-não-eu para o campo da diferenciação de um eu separado de um outro -, estabelecendo-se, a partir dessa diferenciação, o contato com a dimensão pulsional, do desejo e, consequentemente, da falta teorizada por Lacan (Klautau, 2002).

Transpondo a relação mãe-bebê para a relação estabelecida em análise, Winnicott (1956/2000) propõe mudanças do manejo clínico tido como tradicional, com ênfase na interpretação, para um fazer onde a ênfase se encontra no contexto. Nos casos em que esse deslocamento é necessário, dizemos que "o presente retorna ao passado, e é o passado" (p. 396). Assim, o analista precisa ser suficientemente bom para que o paciente possa experienciar um novo começo, agora sustentado por um ambiente atento às suas necessidades e que o auxilie na construção de sentidos para sua existência. Para que isso ocorra, por vezes, será necessária uma maior implicação - o que não significa deixar a abstinência de lado - daquele que tradicionalmente se encontra em uma posição de escuta - a qual não se configura como sinônimo de passividade.

A quebra de sentido - pondo em cena a dimensão constituinte da falta na teoria e na clínica lacaniana - só será possível se uma continuidade - proposta pela clínica do holding winnicottiana - pôde ser experienciada pelo sujeito. Nesse sentido, Klautau (2002) aponta, marcando a importância de privilegiar o sujeito em análise em detrimento de qualquer fidelidade teórica, que:

[] o processo analítico não é apenas construído a partir de excessos que precisam ser interditados, ou de faltas que precisam ser restituídas, mas sim que estas duas dimensões não podem ser dissociadas, embora se originem dos diferentes modos através dos quais Winnicott e Lacan elaboram o conceito de objeto. (Klautau, 2002, p. 134)

A fim de explorar o que se tem produzido a respeito do princípio da abstinência em psicanálise, foi realizada uma busca utilizando os descritores "psicanálise" e "abstinência" nas plataformas SciELO, IndexPsi e Lilacs. Encontraram-se 34 artigos, 4 deles repetidos. Dentre os 34, 16 têm relação com o tema deste escrito. Alguns trabalhos encontrados dizem respeito às modificações nos conceitos de abstinência e neutralidade articulados à prática psicanalítica (Falcão, 2007; Francischelli, 2012; Levy, 2005), bem como sobre a vinculação dessas conceitualizações com aspectos políticos (Conte & Hausen, 2009). Falcão (2007) realiza uma revisão e articulação teórica sobre a inclusão da mente do analista como parte fundamental do processo psicanalítico na atualidade. Já Francischelli (2012) interroga o excesso de presença do analista, pondo em questão a relação dual, pertencente ao campo do imaginário, que pode vir a se estabelecer nas análises contemporâneas. Nesse sentido, o autor reitera a importância da abstinência para que um tratamento psicanalítico não acabe caindo em aspectos sugestivos, pedagógicos ou de aconselhamento (Francischelli, 2012).

Propondo uma estratégia clínico-interpretativa de investigação com o método psicanalítico, Dockhorn e Macedo (2015) destacam que o psicanalista-pesquisador deve manter-se abstinente para ser capaz de "deixar-se surpreender pelo que lhe aparece no decorrer do estudo" (p. 530), mantendo-se aberto para o aparecimento da singularidade do fenômeno investigado. A abstinência no contexto de pesquisa, assim como na clínica, concerne ao não exercício da sugestão e ao respeito ao desejo e à associação livre do sujeito (Dockhorn & Macedo, 2015).

O trabalho de Besset (2002) traz reflexões acerca das relações entre a angústia e o analista. A partir de uma leitura lacaniana, a autora aponta a coincidência do lugar da angústia com o lugar do analista num tratamento, em que ele é capaz de avaliar o quanto de angústia o sujeito pode suportar. Porém, não é da angústia do psicanalista que se trata na clínica, pois ele deve permanecer abstinente em relação a ela em meio ao fazer clínico (Besset, 2002). No escrito de Bucher (1990), a psicanálise é comparada a outras modalidades terapêuticas, delas diferenciando-se por se situar, a partir da regra da abstinência, numa ética que questiona o desejo e visa a verdade do sujeito.

Também há produções sobre a importância da obra de Sándor Ferenczi no movimento psicanalítico por ter sido um autor que se dedicou ao estudo das afetações advindas da pessoa do analista nos tratamentos que conduz (Vitorello & Kupermann, 2016), bem como sobre a relevância de suas proposições acerca da elasticidade da técnica para pensar a modalidade clínica do acompanhamento terapêutico (Gerab & Berlinck, 2012). Vitorello e Kupermann (2016) enunciam que o modelo tradicional da abstinência negou a espontaneidade do trabalho analítico, demonizou os processos subjetivos do analista e cortou qualquer tipo de afeto, e que foi Ferenczi quem rompeu com esse modelo em meio à comunidade psicanalítica ao adotar uma postura oposta ao do analista frio e neutro. Para os autores, Ferenczi tocou no âmago de uma questão que gera impasses e que os psicanalistas parecem ainda hoje não suportar: "a irredutível tensão entre a posição ou a função do analista e tudo o que ele presentifica, isto é, o seu ser" (Vitorello & Kupermann, 2016, p. 26).

É possível perceber, a partir do breve apanhado teórico realizado até aqui, que a abstinência, as concepções sobre o manejo da técnica e suas reverberações clínicas encontram-se profundamente entrelaçadas. Torna-se importante, assim, recuperarmos o que se concebe como neutralidade em psicanálise e iniciar uma discussão a respeito de como tal noção parece repercutir na prática psicanalítica.

 

A neutralidade e sua não correspondência à isenção

Freud (1912b/2010), em Recomendações ao médico que pratica a psicanálise, aponta, no início do escrito, que a técnica que apresentará revelou-se adequada à sua individualidade, sem contestar outras possíveis atitudes frente aos pacientes e à tarefa a ser cumprida. Apesar dessa ressalva, encontramos ao longo do texto trechos, como o que se segue, que parecem bastante incisivos e que poderiam vir a subsidiar posturas enrijecidas dos psicanalistas:

Recomendo enfaticamente aos colegas que no trabalho psicanalítico tomem por modelo o cirurgião que deixa de lado todos os afetos e até mesmo sua compaixão de ser humano [] A justificação para se requerer tal frieza de sentimentos do psicanalista está em que ela cria as condições mais vantajosas para as duas partes: para o médico, a desejável proteção de sua própria vida afetiva; para o doente, o maior grau de ajuda que hoje podemos dar. (Freud, 1912b/2010, p. 154, grifos nossos)

Aqui, temos a indicação freudiana de que o analista deve deixar de lado todos os afetos e a compaixão de ser humano, como se fosse possível despir-se completamente de quem se é em nome de uma dita neutralidade.

Em Laplanche e Pontalis (2001), encontramos indicações de elementos sobre os quais o analista deve ser neutro: quanto aos valores religiosos, morais e sociais; quanto às manifestações transferenciais e quanto ao discurso do analisando, sem privilegiar, em função de preconceitos teóricos, um determinado fragmento ou tipo de significações. São, portanto, diversos aspectos, passando dos culturais aos transferenciais, que devem conduzir o analista a uma postura de neutralidade.

Com os descritores "psicanálise" e "neutralidade", ao realizar uma busca nas plataformas SciELO, IndexPsi e Lilacs, 41 trabalhos foram encontrados, 9 dos quais repetidos. O escrito de Oliveira (2017) aponta o esvaziamento dos psicanalistas, apoiados na noção de "neutralidade", do espaço da política durante o período da ditadura militar brasileira. A autora evidencia um processo de exclusão da realidade externa ao setting analítico ancorado no discurso da neutralidade e do silêncio, o que servia de suporte para uma clínica desimplicada do social e da política durante tal período. A concepção era, portanto, a de que o psicanalista, embora inserido na cultura, deveria realizar um esforço para desvencilhar-se da realidade social (Oliveira, 2017).

Pires (2019) trabalha cinco fatores que explicam o fato de as concepções tradicionais de neutralidade, abstinência e anonimato em psicanálise não fazerem mais sentido na atualidade. O primeiro seria o fato de que a concepção de objetividade como não intervenção sobre o objeto de estudo tem sido posta em causa pela filosofia das ciências; o segundo diz respeito à proliferação de escolas de psicanálise com entendimentos diversos sobre as necessidades dos paciente e sobre a participação do analista no tratamento; o terceiro fala da gradual admissão da contratransferência na prática analítica, considerando as dinâmicas e conflitos do analista na interação com os pacientes; o quarto expõe que o analista acaba se tornando conhecido pelo paciente, apesar de seus esforços para manter o anonimato; e o quinto fator diz respeito ao fato de a relação analítica ser inevitavelmente gratificante, pois não opera apenas na frustração das necessidades do paciente (Pires, 2019). O autor aventa, ainda, que "o receio de se revelar e a necessidade de se esconder podem mesmo desencadear em alguns pacientes desconfiança e incapacidade para se abrirem e exporem a sua maior intimidade" (Pires, 2019, p. 263).

Outro trabalho discute a importância da neutralidade como ferramenta que assegura a integridade do setting terapêutico sob ameaça de desestruturação nos casos dos chamados pacientes difíceis (Schestatsky, 2007). Já o texto de Salas (2014) tem como objetivo investigar a vulnerabilidade do analista ao se deparar com seus próprios limites, colocando em reconsideração a neutralidade e a ética que sustentam suas intervenções. Também há trabalhos que pensam a prática da psicanálise na contemporaneidade a partir de entrevistas com analistas acerca de importantes conceitos que atravessam a técnica psicanalítica, dentre eles a neutralidade (Silva et al., 2012). Os autores declaram que a neutralidade é um mito impossível de ser alcançado pelo simples fato de o psicanalista ser humano, já que, mesmo que não seja por meio da fala, algo sobre ele acaba sempre aparecendo, como, por exemplo, seu modo de vestir, de falar ou de se comportar (Silva et al., 2012).

Souza & Coelho (2012) apontam que Freud, em Observações sobre o amor de transferência, propõe a neutralidade como uma conduta não contratransferencial - ao dizer que a adquirimos por manter controlada a contratransferência -, bem como a relaciona com o princípio de abstinência:

Dizemos que a noção de neutralidade foi, portanto, proposta por Freud, apesar de que a discussão sobre a técnica não tenha sido desenvolvida sobre o conceito propriamente dito. Lemos em sua obra uma construção teórica que nos aponta a postura do analista, e que iremos, então, chamar postura neutra. (p. 96)

Diversos autores trabalham a questão da contratransferência em psicanálise. Timo e Ribeiro (2017), retomando o aparecimento do conceito na teoria psicanalítica, mostram que, na obra freudiana, a contratransferência aparece apenas em resposta a uma situação específica - o envolvimento de alguns dos colegas de Freud com pacientes do sexo feminino -, e que ela é, portanto, algo que deveria ser superado, a fim de não comprometer o tratamento.

Paula Heimann (1950/1995), motivada por sua experiência como supervisora de analistas que realizavam tentativas de serem insensíveis e imparciais frente a sentimentos percebidos em si na relação com seus pacientes, realizou um estudo sobre a contratransferência e propôs, a partir dele, novas nuances ao tema. A autora "propõe usar a contratransferência como um índice de atenção, como uma seta que aponta para os elementos mais insistentes na temática da associação livre" (Timo & Ribeiro, 2017, p. 283). Heimann considera a contratransferência como importante ferramenta de trabalho, e é o destino diferenciado dos sentimentos metabolizados do analista - com os quais ele entra em contato e reconhece por meio da própria análise - o que diferencia a relação analítica das demais relações. Dessa forma, a resposta emocional do analista funcionaria como ferramenta de acesso ao inconsciente do analisando. Para Zambelli et al. (2013), com essa concepção, a autora modifica o estigma de que o analista precisa ser uma figura distante e fria.

Em Ferenczi (1933/1992), já encontrávamos a ideia de que ignorar as sensações contratransferenciais gera insensibilidade - contrapartida da neutralidade - como defesa e resistência aos afetos mobilizados na relação analítica. Portanto, a contratransferência não precisa necessariamente ser dominada, muito menos mascarada, uma vez que, ao ser ocultada, acaba por inibir o processo de atenção equiflutuante e facilitar atuações contratransferenciais (Zambelli et al., 2013).

A inclusão dos afetos suscitados no psicanalista como parte de um encontro intersubjetivo não se restringe ao setting tradicional. É sabido que, ao longo dos anos, a psicanálise passou a se fazer presente nos mais variados contextos, operando como ferramenta de escuta e como método de pesquisa que ajuda a atentar para o singular de cada sujeito e para as tramas relacionais que se configuram dentro das instituições e para além delas. Essas tramas não excluem o psicanalista; pelo contrário, ele deve incluir-se como mais um elemento que compõe as práticas empreendidas em seu contexto de atuação. Diniz (2011), ao abordar o tema do método clínico de pesquisa em psicanálise, declara a implicação do pesquisador como fundamental no processo de trabalho, uma vez que "ter acesso aos elementos que lhe causam angústia em relação ao seu tema de investigação, bem como o que causa interesse em pesquisar determinado tema faz diferença na condução e na direção de uma possível descoberta" (p. 15).

Encontramos, desde Freud (1912b/2010), a imbricação entre experiência e investigação em psicanálise, já que nela tratamento e pesquisa coincidem. São nos encontros do psicanalista com o campo e com os sujeitos a ele pertencentes que a construção do conhecimento e do tratamento podem se dar. Pôr o psicanalista na cena dos encontros com aqueles que escuta e considerar as inerentes afetações daí advindas torna equivocado pensar numa neutralidade que se aproxima da noção de desimplicação ou de opacidade.

Souza & Coelho (2012) trabalham essa questão e destacam a diferença entre neutralidade científica e neutralidade analítica, apesar da filiação existente entre elas: "enquanto a primeira pauta-se na possibilidade de purificar os eventos e as variáveis, de controlar e eliminar o que pudesse interferir no processo, a segunda faz exatamente disso, da sujeira e do que pudesse interferir no processo, seus objetos maiores" (p. 97). Os elementos que podem interferir no processo são, então, tomados como aqueles que precisam ser olhados e trazidos à tona. Estar neutro não significaria, então, isentar-se, "mas sim poder suportar o que causa aversão, assim como questionar o que causa atração" (Souza & Coelho, 2012, p. 98).

Na mesma direção, Conte e Hausen (2009), num trabalho acerca da construção teórica e da confusão entre abstinência, neutralidade e sujeito apolítico em psicanálise, apontam que:

O modo de funcionar descompromissado com a responsabilidade social da nossa prática e regulado pelo próprio fazer é uma herança de uma leitura do pensamento anglo-saxão, que nos alienou por um longo tempo. A origem que está em jogo […] não está sustentada no texto freudiano, mas no deslizamento do princípio da abstinência para o conceito de uma equivocada "neutralidade", tanto na clínica psicanalítica quanto no distanciamento do analista do seu lugar social. (p. 10)

Não se deve, portanto, confundir a abstinência enquanto princípio com uma psicanálise que se abstém de pensar sobre a sua responsabilidade social. Ao fazer isso, compactua-se com um silêncio deslegitimador de discussões culturais, sociais e políticas em nome de uma dita neutralidade, como se o singular do sofrimento de cada sujeito se encontrasse desvinculado dos contextos e discursos sociais em que está inserido.

A psicanálise encontra-se situada dentro de uma história e, nela, situam-se também os psicanalistas. Eles, por sua vez, além da história cultural na qual se inserem, carregam peculiaridades da história particular que os constitui individualmente. Levando isso em consideração, é impossível pensar num lugar absolutamente neutro, que lhes permita tecer narrativas ou interpretações desde um lugar de mero observador. Dizer-se neutro parece falar muito mais sobre estar ao lado de um entendimento hegemônico, tratado como norma - que de neutro não tem nada -, do que conseguir efetivamente suspender os afetos - contratransferenciais - que circulam na relação com a cultura, com seus objetos de pesquisa ou com seus analisandos.

Em 1939, Karen Horney já enfatizava o papel da cultura na formulação das teorias psicanalíticas, denunciando como muitas vezes atribuía-se à natureza humana aspectos que não passavam de traços culturais de uma determinada época.

É desnecessário dizer que ninguém, nem mesmo um gênio, pode se libertar completamente do seu tempo e que, apesar da agudeza da sua visão, o seu pensamento é, de muitas maneiras, influenciado pela mentalidade da sua época. Reconhecer esta influência na obra de Freud, não só é interessante do ponto de vista histórico, como é importante para aqueles que se esforçam para entender, com maior profundidade, a intrincada e aparentemente obscura estrutura das teorias psicanalíticas. (Horney, 1939/1996, p. 35)

Reconhecer que a psicanálise não escapa de um entendimento construído num determinado tempo, sobre valores específicos de uma época - e que, apesar das transformações sociais, esses ainda são balizadores utilizados para pensar intervenções clínicas - é reconhecer uma não neutralidade.

Essa não neutralidade é percebida e, assim, reconhecida, a partir do momento em que a atenção do psicanalista passa a ser dirigida também para as construções sociais e culturais de aspectos antes naturalizados, em uma perspectiva de desconstrução daquilo que antes era "dado a priori". Como exemplo, é possível pensar nas reverberações das diferenças de gênero sobre a saúde mental dos indivíduos. Valeska Zanello (2018) faz uso do que ela chama de dispositivos amoroso, materno e de eficácia para entender como mulheres e homens são subjetivados de maneiras distintas a partir de configurações históricas - que passam por valores sociais, morais e religiosos -, e isso repercute nas formas gendradas de sofrimentos contemporâneos.

Adoecemos psiquicamente, também, por aquilo que nossa cultura prescreve como ideal e que, em contrapartida, prescreve como adoecedor. Para compreendermos esse processo, precisamos qualificar o sentido subjetivo do que acontece ao sujeito, lembrando sempre de seu caráter mediado pela cultura. As ciências psis criaram um cabedal de situações "ideais", bem como outras "traumáticas", as quais foram divulgadas e se fizeram entranhar na cultura popular. (Zanello, 2018, p. 144)

Nesse sentido, a autora coloca que os parâmetros como, por exemplo, "sexualidade exacerbada" ou "excesso de agressividade", utilizados por médicos e profissionais da saúde em classificações diagnósticas, não são os mesmos para homens e mulheres: "é esse parâmetro, invisível, acrítico, profundamente gendrado, que precisa ser questionado, refletido, problematizado" (Zanello, 2018, p. 24).

Torna-se necessária, portanto, uma politização do sofrimento e uma não abstenção dos profissionais da psicologia e da psicanálise em refletirem acerca daquilo que diz respeito ao campo social, desconstruindo a ideia da neutralidade analítica como lugar de isenção e desimplicação. Foi na escuta da histeria (Freud, 1893-1895/2016), um sintoma rejeitado pelo laço social que denunciava os modos de subjetivação da época e sua extrema repressão à sexualidade feminina, que Freud encontrou os subsídios da sua invenção, a psicanálise. Apesar dessa origem subversiva - que fez com que a psicanálise surgisse ao mesmo tempo como método de apaziguamento do sofrimento e como ferramenta de denúncia de um contexto extremamente repressivo - nos dias atuais ainda se faz necessário um esforço para que marcadores de gênero, raça e classe façam parte do repertório de escuta de alguns analistas.

O sofrimento que acomete os pacientes que chegam para atendimento é singular na medida em que é seu, mas não se pode deixar de questionar sobre a forma com que o contexto político, econômico e social em que esse sujeito vive permeia a sua dor. Quando recebemos um paciente tomado de angústia, num quadro que se pode denominar como burnout ou esgotamento, é possível deter-se apenas na dimensão singular do seu sofrer, sem considerar o adoecimento causado por uma era de capitalismo selvagem e uma precarização em larga escala das relações de trabalho? Ao atender uma mulher que vive em um relacionamento que podemos denominar como abusivo, o quão interessante é atentar apenas para a sua posição passiva diante de um outro, para o seu possível ganho secundário ao ver-se como vítima, sem levar em conta um contexto de exacerbada violência contra a mulher numa sociedade estruturalmente machista e opressiva para com elas? Recebendo um paciente depressivo, como não pensar seu mal-estar relacionado ao "fracasso" em responder às demandas infinitas da atualidade por produtividade, ao imperativo constante de felicidade e à necessidade de mostrar-se autêntico, ousado e original o tempo todo?

Inúmeros podem ser os exemplos da incidência cultural no sofrimento daqueles que escutamos de maneira singular no contexto clínico. Atentar-se aos afetos suscitados a partir daquilo que se escuta e também ao que se deixa de escutar configura-se como uma postura ética, na medida em que impele o psicanalista a constantes reinvenções, desconstruções e questionamentos acerca de sua prática, retirando-o da posição confortável de uma neutralidade tida como isenta.

 

Caminhos para a escuta em psicanálise

Para que movimentações ocorram nos processos de formação e transmissão da psicanálise, é necessária uma postura de abertura para o novo e uma disponibilidade a deixar-se afetar pelos encontros. A partir de uma retomada histórica acerca da institucionalização da psicanálise e dos processos requeridos para se tornar psicanalista, Kupermann (2008) aponta para alguns estilos de formação que acabavam por "congelar" o analista. Tal fato ocorria, sobretudo, porque o candidato a psicanalista encontrava-se submetido à instituição da qual fazia parte e ao seu analista didata - que era o responsável pela decisão de ele tornar-se ou não psicanalista. A esse processo, Kupermann (2008) dá o nome de alienação transferencial, endereçada a um lugar único e ligada às figuras dos "mestres".

Contemporaneamente há, em contrapartida, uma maior abertura ao pluralismo, o que possibilita um trânsito pelas teorias e abre espaço para a emergência de diferenças e movimentações. Temos, então, a assunção de uma transferência nômade (Kupermann, 2008) no campo psicanalítico, a qual permite um grande espaço de jogo para seu desenvolvimento:

A transferência nômade é a possibilidade de transferir de forma múltipla no âmbito institucional da psicanálise, permitindo assim a preservação da singularidade da experiência analítica no processo de formação. Por meio de um "embaralhamento" dos códigos, dos contratos e das redes de compromisso estabelecidas pelas certezas adquiridas, um movimento de "desterritorialização" é criado de modo a que se reexperimente, em outros "lugares" transferenciais, a diferença e a angústia da incerteza que marcam a experiência psicanalítica em seu momento inaugural, e que devem marcar toda nova análise. (p. 54)

Essa possibilidade de descentralização na formação analítica remete à ideia trabalhada por Rodulfo (2012) de uma concepção psicanalítica que não faça centro. O autor propõe, tomando como ponto de discussão a relação entre pais e filhos, que

[] mudou muito mais do que uma relação, boa ou má: mudou o solo mesmo onde ela poderia ter lugar; mudou também o lugar, mudou o entre, mesmo que se continue usando a palavra de sempre; mudaram as posições de enunciação [] (Rodulfo, 2012, p. 26)

Tomando como exemplo as considerações de Rodulfo (2012) - que atenta nas mudanças nas configurações familiares e naquilo que as crianças tomam como enigma para a formulação de suas teorias -, é possível pensar que, para além de transformações teóricas, também se fazem necessárias variações no fazer psicanalítico acerca de "por onde escutar" - sem necessariamente privilegiar o Édipo como central -, bem como de "por onde intervir" - sem privilegiar uma postura fria e distanciada do psicanalista. As ideias de Kupermann (2008) sobre a transferência nômade e a presença sensível do analista nos ajudam a conceber uma forma de escuta que não corresponda a um "centralismo" ou ao estabelecimento de uma relação vertical entre analista e analisando, e descerram caminho para uma clínica "sem centro", aberta às mutações culturais, sociais presentes no desenrolar de cada caso particular, como já apontava Ferenczi (1928/1992) a partir de sua formulação acerca do tato psicológico e da elasticidade da técnica.

Borges (2015), tomando Winnicott e Ferenczi como balizadores teóricos, tece uma crítica à verticalidade ainda presente nos processos de transmissão da psicanálise na atualidade, o que acaba por gerar "associações hegemônicas e combativas às diferenças singulares no exercício da clínica e consequente produção teórica" (p. 82). Ao discutir um modelo diferente de fazer psicanálise, a autora retoma proposições ferenczianas que operaram um desvio ao projeto hegemônico da psicanálise ao valorizar o campo do encontro entre analista e analisando:

Suas contribuições fazem valer aspectos fundamentais da prática clínica em que o analista não se coloca como colonizador implicando seus conteúdos ideativos ao outro, mas, justamente, uma clínica que se realiza pelo encontro, na medida em que são os campos de afecção, que se manifestam via corporeidade, aqueles que oferecem os novos percursos para atingir um saber que pode produzir desvio ao instituído. (Borges, 2015, p. 84)

O reconhecimento da subjetividade do analista, encontra-se, aqui, como uma ferramenta de dupla função para o trabalho em análise: opera tanto para evitar que processos colonizadores, de juízo moral e o exercício de um poder se façam presentes - o que colocaria o analisando em posição de submissão frente àquilo que é considerado como ideal pelo analista - quanto para a produção de algo singular que se dá na dimensão do entre, no encontro entre duas subjetividades.

Discorrendo acerca da técnica analítica com pacientes que têm déficits em suas capacidades de significar e dar sentido às suas vivências, Safra (2005) retoma a ideia winnicottiana de que praticar psicanálise não era realizar interpretações espertas, mas sim devolver ao paciente o que ele traz de si mesmo, o que ele apresenta de seu ser na presença de um outro. Encontramos, dessa forma, um modo de intervir em psicanálise que auxilia a construir em vez de abrir sentidos, o que não significa utilizar uma forma de intervenção em detrimento de outra, mas sim saber o momento certo de optar por cada uma, reconhecendo a especificidade de cada caso. A abstinência, aqui, relaciona-se com os conceitos de implicação e reserva trabalhados por Figueiredo (2009), os quais põem em cena a importância da sensibilidade do analista frente ao uso que faz de sua própria presença dentro do setting.

A condução de um processo psicanalítico requer do analista a capacidade de manter-se, simultaneamente, como presença implicada e reservada.

É óbvia a insuficiência da pura reserva, entendida como neutralidade, indiferença e silêncio []. No entanto, seja na análise, seja na vida, e em qualquer experiência de cuidado, são inegáveis os malefícios da implicação pura. (Figueiredo, 2009, p. 141)

De acordo com o autor, o cuidador - ou o analista - precisa proporcionar um espaço vital desobstruído para que o sujeito possa criar o mundo na sua medida e de acordo com as suas possibilidades, exercitando sua capacidade para alucinar, sonhar, brincar e pensar (Figueiredo, 2009). Encontra-se, nesse equilíbrio entre implicação e reserva, o princípio da abstinência em sua vertente de abertura para a criação, atentando na escuta daquilo que fundamenta a ética psicanalítica: a singularidade do sujeito.

 

Considerações finais

Muitas são as direções possíveis de serem seguidas quando se tem como objetivo refletir acerca da técnica em psicanálise. A abstinência e a neutralidade caracterizam-se por serem, além de subsídios para pensar a prática clínica, conceitos também políticos. As intervenções em contexto clínico exigem o exercício da sensibilidade do analista numa dupla vertente. Por um lado, para proporcionar um espaço afetivo de encontro e criação, disponibilizando-se à afetação mútua e acolhendo o outro em sua diferença (Kupermann, 2008); por outro, para qualificar o sentido subjetivo do que acontece ao sujeito, lembrando sempre de seu caráter mediado pela cultura (Zanello, 2018). Nesse sentido,

à psicanálise cabe um lugar social de responsabilidade onde a neutralidade não se confunde com a abstinência. A par da ferramenta abstinência se constituir como precondição do tratamento psicanalítico, não é ela o operador da relação do psicanalista com o mundo, de tal forma que o desvincule de sua responsabilidade como cidadão; que o distancie da práxis de ser sujeito no mundo agregando resistências ao que podemos propor como uma cumplicidade no silêncio ou um silêncio cúmplice. (Conte & Hausen, 2009, p. 12)

Na mesma medida em que é essencial à prática da psicanálise que o analista não intervenha desde um lugar impositivo, vinculado a um modo de pensar que passa por sua própria subjetividade, é também de extrema importância produzir reflexões sobre a impossibilidade de isso se dar de maneira total. É necessário, portanto, atentar nos movimentos contratransferenciais que possam, porventura, reverberar nas intervenções realizadas.

Conte e Hausen (2009) destacam que é a dimensão paradoxal da abstinência que cria o espaço da ética e da escuta: "estar embebido do transferido pelo paciente, mas se abster de atribuir sentido ou julgamento" (p. 9). Nessa perspectiva, a ética pressupõe a intersubjetividade ou a alteridade que se dá de forma relacional, evidenciando o espaço que contém a repetição e a produção de algo novo, construído conjuntamente: seja entre paciente e analista, entre campo de atuação e psicanalista, ou entre pesquisador e seu objeto de pesquisa.

 

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Recebido em 30 de junho de 2021
Aceito para publicação em 17 de novembro de 2021

 

 

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