Sobre trauma e desmentido: Sándor Ferenczi
É frequente, nas produções científicas referentes ao campo psicanalítico contemporâneo, encontrar-se alusão a uma demanda intensa de trabalho visando à problematização e à ampliação de recursos teóricos e técnicos que tratam de pensar padecimentos psíquicos fora do escopo referente às neuroses. Nesse sentido, o interesse por essas singulares modalidades clínicas de expressão da dor psíquica tem oferecido testemunhos relevantes a respeito dos devastadores efeitos decorrentes da precariedade ou fragilidade experienciada no campo intersubjetivo.
Diante dessas diversas expressões clínicas, a técnica analítica segue sendo pensada e repensada, tendo, desde seus fundamentos, o objetivo de fomentar sistematicamente a ampliação e a acuidade da escuta no heterogêneo e não normativo campo do sofrimento psíquico. Partindo-se das proposições freudianas e reconhecendo a existência de um fecundo trabalho de ampliação do escopo teórico e técnico psicanalítico, encontra-se um dos grandes nomes da psicanálise que, por muito tempo, ficou à margem das práticas de transmissão de seu corpus, mas que, desde imperativos clínicos contemporâneos, vem sinalizando sua relevância e atualidade. Trata-se de Sándor Ferenczi, importante psicanalista húngaro, contemporâneo de Sigmund Freud a quem, sem dúvida, a psicanálise deve relevante (re)conhecimento.
Se, por um tempo, Ferenczi foi lançado ao “arquivo morto” da história da psicanálise, atualmente, segundo Birman (2014), salienta-se sua inegável restauração como arquivo vivo do movimento psicanalítico. A impossibilidade de seguir denegando e, simbolicamente, rasurando as questões por ele levantadas decorre das imposições clínicas que se sobrepõem às questões institucionais responsáveis por sua exclusão de importantes movimentos de transmissão em psicanálise. Assim, segundo Birman (2014), por maiores que tenham sido as divergências entre Freud e o psicanalista húngaro, ele nunca perdeu o respeito por Ferenczi, a admiração por sua capacidade criativa e, tampouco, recusou a atribuição de mérito às contribuições que aportou à teoria psicanalítica. Para além disso, Ferenczi marcou sua importância, também, pela preocupação que conferia à formação do psicanalista e à transmissão da psicanálise. Importante personagem na história do movimento psicanalítico, Ferenczi foi, em 1919, como indica Avello (1998), o primeiro psicanalista a dar aulas de psicanálise em uma universidade. A partir da solicitação de alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Budapeste, Ferenczi foi convidado, exatamente pelo reconhecimento de seu compromisso e cuidado com a causa psicanalítica, a criar, pela primeira vez no mundo, uma cátedra de ensino da psicanálise. Ferenczi ministrou cursos sobre psicologia psicanalítica para médicos nessa universidade até ser impedido de seguir com suas aulas frente à instalação do regime ditatorial na Hungria, o qual eliminou seu cargo de professor universitário (Avello, 1998).
A partir de reflexões sobre o processo de deformação e transmissão da psicanálise, Ferenczi entendia que os psicanalistas estavam ficando limitados a uma prática regida pelo predomínio da intelectualização e, portanto, mostravam-se incapazes de exercer a necessária sensibilidade para atender pacientes graves. Considerado o pai da psicanálise moderna e o psicanalista dos “casos difíceis”, Ferenczi propunha a urgência de transformações à psicanálise, distante de uma clínica enrijecida, praticada sem empatia e capaz de retraumatizar pacientes com constituições mais frágeis exatamente pela prática desta rigidez ou do que nomeava como “hipocrisia do analista” (Ferenczi, 1933/2011). A partir de seu trabalho em prol dos princípios de hospitalidade, da empatia e da saúde do analista, nascia na clínica ferencziana um estilo clínico sustentado na ética do cuidado (Kupermann, 2017). É inegável reconhecer as ressonâncias das proposições ferenczianas na obra de autores como Melanie Klein, Donald Winnicott, Jacques Lacan, Jean Pontalis e Jean Laplanche (Birman, 2009; Cintra, 2009; Kupermann, 2017); porém, nem sempre se encontra nessas ressonâncias o devido reconhecimento a Ferenczi. Assim, identifica-se que a retomada da leitura de Ferenczi se dá de forma mais explicita a partir dos anos oitenta; porém, o gérmen de sua teoria se faz presente desde muito antes, nas obras de seus sucessores.
Mesmo antes de se aproximar da psicanálise, Ferenczi já mostrava uma escuta diferenciada na sua condição de médico, pois considerava que não teria como entender um padecimento físico sem considerar a existência de elementos referentes aos afetos. Segundo afirma Dean-Gomes (2019, p. 81), Ferenczi abria, assim, vias “que tinham como marco inicial sua ressalva ao diagnóstico rapidamente elaborado que pouco considerava a história pessoal, a individualidade e a subjetividade do paciente”. É nessa direção que ele passa, também, a dedicar atenção às experiências do universo infantil, preocupando-se com os danos que o sistema pedagógico, estereotipado em práticas de coerção e imposição, poderia provocar à criança. Suas preocupações repercutiram nas originais concepções sobre os efeitos psíquicos decorrentes das experiências entre o adulto e a criança e a relevância adquirida pela noção de intersubjetividade em sua obra. Essas se constituem como fundamentos centrais de suas proposições teóricas e técnicas, especialmente em sua concepção de trauma.
O período de transição entre os anos de 1920 e 1930 contempla produções ferenczianas que solidificaram as indagações sobre os limites da técnica psicanalítica tal como vinha sendo praticada, resultando em fecundas contribuições à escuta de pacientes graves, ou seja, aqueles não se situavam no campo dos padecimentos neuróticos. Destaca-se a importância atribuída ao que fora efetivamente vivido pelo sujeito no campo intersubjetivo, no sentido do caráter decisivo, que toma na vida a modalidade das experiências entre a criança e os adultos de sua história.
As preocupações iniciais do psicanalista húngaro com os aspectos pedagógicos, vão pouco a pouco se deslocando para o campo familiar. O resultado destas reflexões culmina em textos capitais. Nos artigos “A adaptação da família à criança” (Ferenczi, 1928/2011) e “A criança mal recebida e sua pulsão de morte” (Ferenczi, 1929/2011), Ferenczi evidencia que, ao contrário da concepção de que a criança deve se adaptar à família, é fundamental o modo como a família se adapta a uma criança. Assim, a forma como a criança é educada pode levá-la a maior ou menor proximidade com o risco de instalação de uma patologia. Essa compreensão perpassa as concepções do autor no sentido de que, para além das questões intrapsíquicas, é central considerar o efetivamente vivido pela criança na relação com o adulto. A partir dessa consideração, passa a ser delineado seu entendimento de que o trauma é constituído por um fator exógeno inerente.
Nessa linha de argumentação, cabe destacar que o aparelho psíquico, na proposta ferencziana, é gestado sempre num campo intersubjetivo, e que, nessa construção psíquica, muito daquilo que se faz necessário no encontro com o adulto diz de um excesso traumático, lembrando que o trauma, para o autor, não é necessariamente patógeno. Nessa direção, as questões educativas ou pedagógicas são sempre traumáticas, mas nelas existem elementos que se configuram como estruturantes. Exemplos desses microtraumatismos que o adulto impõe à criança seriam o desmame, o controle esfincteriano e a experiência edípica. O atributo estruturante dessas modalidades de trauma se dá, segundo Maia (2003, p. 94), no predomínio de aspectos positivos, “na medida em que afeta, desestabiliza momentaneamente as construções psíquicas operantes, podendo provocar desdobramentos de formas sentidos e significações”. Ou seja, por sua condição passível de metabolização e atribuição de sentido por parte da criança, o vivido possibilita ganhos psíquicos consideráveis.
Na contramão do trauma estruturante, quando a criança não é acolhida pelo adulto (Ferenczi, 1929/2011), apresentam-se situações nas quais a criança capta os sinais de aversão ou de impaciência parental, acarretando significativos efeitos em sua vontade de viver. Compreende-se a partir disso que as crianças que não foram acolhidas por sua família têm a tendência a terem incrementada sua pulsão de morte, visto que, na impossibilidade de se sentirem na condição de desejadas pelo adulto, ficam-lhes obstruídas as vias de investimento amoroso. Knobloch (1998) assinala que, frente à proposição ferencziana, a noção de trauma fica circunscrita a um tempo fora da ocorrência do recalque. Pondera-se, portanto, que se trata de algo que não alude à ordem do conflito e do recalcamento, uma vez que não se representa, e sim, apresenta-se algo da ordem do excesso.
Nessa direção argumentativa, tem-se que, sem dúvida, a noção de trauma é bastante significativa na obra de Ferenczi, tanto relacionada às questões teóricas quanto clínicas, as quais o autor entendia como indissociáveis (Osmo & Kupermann, 2012). Em Freud, constatam-se dois tempos de teorizações sobre o traumatismo: o primeiro, ainda no século XIX, propunha o trauma como um excesso oriundo de um agente externo, não assimilável pelo psiquismo, resultando na proposição teórica conhecida como “teoria da sedução”. Kupermann (2017) pondera que, nesse momento, entendia-se o testemunho do trauma como sendo necessariamente positivo, sem considerar que as condições desse testemunhar poderiam contribuir para a expansão psíquica, mas, também, poderiam adoecer ainda mais o sujeito. Na sequência disso, ao considerar a criança como um ser sexuado e que cria fantasias edipianas inconscientes, Freud (1896/1989), na Carta 69 escrita a Fliess, menciona não acreditar mais na sua neurótica, consolidando, assim, a importância atribuída, em sua obra, ao campo da fantasia e da realidade psíquica. Apenas em 1920, com “Além do Princípio do Prazer”, Freud (1920/1989) resgata a concepção de trauma, agora perpassado por concepções a respeito do segundo dualismo pulsional. Na nova formulação freudiana, Kupermann (2017) entende que a psicanálise apostou suas fichas muito mais na concepção de um trauma intrapsíquico do que em concepções traumáticas relacionais.
Considerando-se, porém, demandas à escuta clínica em que marcam presença situações nas quais o trauma real se impõe, estando aquém do campo da fantasia, torna-se fundamental resgatar subsídios psicanalíticos que sustentem a leitura teórica e a atividade clínica frente a tais narrativas de padecimento psíquico. Assim, neste artigo, a partir do reconhecimento do valor das contribuições de Sándor Ferenczi, busca-se desenvolver uma ilustração clínica a respeito do dano psíquico decorrente da vigência de intensidades que invadem o sujeito desde dentro e que encontram nas impactantes experiências do campo intersubjetivo seu nascedouro. Tais intensidades são incrementadas devido às precárias condições psíquicas, mas, em especial, por serem resultantes do que é efetivamente experimentado no encontro abusivo com o outro. Exploram-se marcas e as vicissitudes dessas vivências traumáticas no percurso de Ferenczi em sua leitura magistral sobre o trauma.
Cabe ressaltar que o material clínico apresentado decorre de uma tese de doutorado que teve como objeto central de pesquisa a temática do corpo. Nesse sentido, destaca-se que todos os cuidados e procedimentos éticos de pesquisa foram adotados. A partir da escuta de participantes que tinham em suas vidas importantes ocorrências de práticas de automutilação, revelavam-se experiências nas quais intensidades denunciavam, na invasão e ataque ao corpo, vulnerabilidades decorrentes de importantes falhas e precariedades nas relações primordiais. As práticas automutilatórias ilustravam a impossibilidade de que o sujeito lançasse mão de recursos de criação e elaboração psíquica. Assim, nesse cenário devastador de ataques ao corpo, o artigo se dedica a explorar o material relativo a uma das participantes da pesquisa, mediante o qual as contribuições ferenczianas ganham especial vigor e oferecem ricas compreensões.
Entre os casos investigados, optou-se, portanto, por apresentar neste artigo a história de Kelly, uma vez que sua participação na pesquisa foi marcada por importante testemunho de vivências nas quais a indubitável intensidade traumática se mostrou avassaladora. Kelly, 24 anos, apresenta-se a partir do relato da experiência que considera como sendo a mais marcante em sua vida. A jovem havia denunciado, recentemente, os abusos sexuais que sofrera na infância, perpetrados por seu padrinho, amigo e vizinho da família. Após a denúncia, foi encaminhada pela Delegacia da Mulher a um serviço de atendimento psicológico da universidade, onde se deu a investigação de doutorado, chegando, assim, a participar, como voluntária, da pesquisa. Dessa forma, a temática da automutilação foi o argumento aludido por ela para participar, mas que, desde o início, desvelou o trauma real que a antecedia. Kelly conta, a princípio, que os abusos se iniciaram por volta dos sete anos, persistindo por muitos anos:
Ele [o abusador] é meu dindo. E a minha irmã me disse que quando eu tinha uns três, quatro anos, eu vivia nos cantos chorando. […] Eu imagino que desde cedo ele fazia isso. Eu tava sempre doente, desde que eu era muito pequena. Sempre no hospital, sempre doente. […] Eu tenho asma, por exemplo. […] Quando eu era criança era direto, eu tava sempre indo pro hospital por causa disso, por causa da asma. Pneumonia, tive muitas também. Na adolescência, voltou pneumonia, febre, enfim, tudo, tava sempre com alguma coisa, sempre com dor. […] Era como se eu quisesse chamar atenção, hoje eu vejo. Eu tava sempre reclamando de dor, sempre querendo ir ao médico.
Kelly fala de um profundo sentimento de culpa por nunca ter feito nada, nunca ter contado sobre o abuso à sua família. Por outro lado, justifica que tinha muito medo de contar o ocorrido. No decorrer dos encontros, aos poucos, desvela nas entrevistas elementos de um cenário familiar distinto daquele inicialmente descrito: um pai alcoolista; uma mãe que, nomeada como “cuidadosa”, surge, cada vez mais, associada a lembranças de ausência de cuidado e proteção, elementos centrais no trabalho de compreensão da história de Kelly.
O entendimento sobre o impacto de vivências de abusos reais foi elaborado por Ferenczi em “Análise de crianças com adultos” (1931/2011), e depois ampliado num dos seus principais textos “Confusão de línguas entre os adultos e a criança (A linguagem da ternura e da paixão)” (Ferenczi, 1933/2011). Essa produção, elaborada para ser apresentada pelo psicanalista no XII Congresso de Psicanálise em Wiesbaden, foi mostrada antes a Freud, não tendo sido bem recebida por ele. Mesmo que possa ter sido criticada por Freud como um retorno à sua já abandonada teoria da sedução, não resta dúvida de que se constituiu em um dos mais brilhantes artigos que dão conta da inovadora concepção de trauma por parte de Ferenczi.
Nesse texto, Ferenczi (1933/2011) considera que a criança estaria no exercício da linguagem da ternura, ou seja, no nível da sexualidade pré-genital. Já o adulto estaria no exercício da linguagem da paixão, nível da genitalidade. A confusão de línguas remete a uma concepção de trauma decorrente de um evento real no qual a criança está brincando, se excita e tem prazer na vigência do erotismo infantil, e o adulto faz uma leitura equivocada dessa linguagem. Assim, a violência da genitalidade do adulto causa um choque na criança. Essa confusão de línguas diz de uma ruptura traumática da assimetria, na qual a criança estava exercendo o que é da ordem da onipotência lúdica, pela via da brincadeira, e o adulto, pela linguagem da paixão, atua por um princípio de onipotência narcísica, buscando o gozo no corpo da criança, vivência real e não no campo da fantasia. Essa experiência acarreta o rompimento da confiança dessa criança no adulto.
O texto de 1933 abre espaço para um novo tempo da obra de Ferenczi, com uma formulação metapsicológica sobre a sedução, o lugar dos objetos externos, o desmentido, a clivagem psíquica, a identificação com o agressor e sobre a inovadora etiologia do trauma. Ferenczi (1933/2011) recorre, em alguma medida, às questões do mortífero, da compulsão à repetição, mas de forma distinta daquelas propostas por Freud. Kupermann (2019) assinala o fato de que, no resgate empreendido por Ferenczi sobre a concepção de trauma, sua originalidade se faz evidente no redimensionamento das duas teorias do trauma presentes em Freud, a saber, a teoria da sedução, de 1896, e a teoria do trauma como excesso pulsional, de 1920. Para o autor, da primeira Ferenczi recupera a noção de que, na origem do trauma, encontra-se um agente externo provocador e o fato “de que a experiência disruptiva sucede em momentos distintos, sendo que o evento perturbador original é ressignificado a posteriori” (Kupermann, 2019, p. 57). Já em relação à segunda teoria freudiana sobre o trauma, Kupermann (2019) aponta que Ferenczi resgata a noção de que o choque traumatizante tem como efeito a imposição ao sujeito de uma intensidade psíquica insuportável o que o impele a tentativas de evacuação, circunscritas, na maior parte das vezes, ao campo pulsional destrutivo e mortífero.
Como elemento central de articulação de Ferenczi sobre o trauma, é imprescindível o conceito de desmentido. Em seu corpus teórico, o conceito de desmentido é significativamente inovador e dá fundamentais coordenadas de sua leitura sobre a experiência efetiva, o campo intersubjetivo, a confusão de línguas e o trauma. O desmentido abre espaço para pensar sobre um terceiro na cena abusiva e sobre o traumático de seu ato de não atribuir legitimidade e crédito ao experienciado pela criança (Gondar, 2017). Instaura-se, portanto, uma dinâmica na qual, após sofrer uma vivência de abuso, a criança recorre a um segundo adulto de confiança a quem narra o ocorrido. Como se dá o comportamento desse adulto frente ao relato da criança? O desmentido responde a essa questão central. Se, muitas vezes, era identificada uma postura punitiva ou de silêncio diante da narrativa da criança, “não foi nada” ou “nada aconteceu”, Ferenczi (1933/2011) propõe que se ela tivesse um adulto (testemunha) que a acolhesse, estaria viabilizada a possibilidade da não configuração do trauma patógeno. Ao contrário, na ocorrência do desmentido por parte do adulto a quem a criança recorre, desqualifica-se e não se legitima o experienciado e a dor psíquica decorrente. Sobre isso, Ferenczi utiliza uma interessante expressão húngara “katonadolog” que significa “soldados aguentam” (Dal Molin, 2016), remetendo à condição de heroína imposta à criança, como se esta pudesse assumir e dar conta do que a acometeu. Para Gondar (2017), por meio dessa expressão, Ferenczi alerta sobre “o modo pelo qual os adultos são capazes de banalizar a injúria sofrida por uma criança, que em contrapartida, a vivencia com uma grande intensidade” (p. 217-218).
Assim, esse segundo tempo desvela o impacto da indiferente reação do adulto, consistindo em um ataque direto à percepção da criança. É nesse segundo tempo, constituído pelo desmentido, que efetivamente se instala o trauma, segundo Ferenczi (Gondar, 2017; Kupermann, 2019). O conceito articula, portanto, proposições ferenczianas sobre o fato de o trauma acontecer em um segundo tempo. Para Kupermann (2019, p. 58), o “elemento disparador da traumatogênese seria, portanto, a violação de uma criança pelo adulto amada, ato deflagrador de dor e de um excesso de excitação irrepresentável que provoca, por parte do psiquismo, tentativas de simbolização”. Assim, a criança busca “uma segunda pessoa de sua confiança” (Ferenczi, 1933/2011, p. 103), para narrar o ocorrido. O desmentido, exercido por esse segundo adulto, instaura o trauma em seus efeitos patogênicos, uma vez que não reconhece, não valida a violência sofrida pela criança. O desmentido é devastador, como ressalta Gondar (2017, p. 211), “o que se desmente não é o evento, mas o sujeito”.
Destarte, o processo de pensamento da criança, na vigência do trauma patogênico, fica igualmente comprometido, uma vez que dar sentido ao experienciado e atribuir figurabilidade à percepção é próprio da condição de pensar. No caso de Kelly, sua disponibilidade a participar da pesquisa sobre práticas automutilatórias na verdade possibilita narrar, em primeiro plano, o abuso vivido na infância. Mesmo que reproduza a alteração à sua percepção na primeira descrição familiar, passa a autorizar-se a compartilhar uma narrativa mais fidedigna no acolhimento da escuta ofertada.
Nessa direção, retoma-se a importância do adulto para a constituição psíquica da criança, visto que, na proposta ferencziana, mais do que o fato de, como afirma Freud, “o sujeito precisar do outro porque é constitucionalmente desamparado, em Ferenczi, o sujeito é vulnerável na relação com o outro” (Gondar, 2017, p. 219). É importante, portanto, explorar relações significativas da vida de Kelly, para além da vivência de abuso, a fim de lançar outras hipóteses de compreensão.
A família da jovem é constituída por ela, outras três irmãs mais velhas e um irmão adotivo mais novo. Ao contar sobre seus pais, expõe figuras parentais com importantes fragilidades. Frente a situações nas quais o pai alcoolista voltava mal para casa, Kelly se automutilava. Em especial, por volta dos 12 anos o alcoolismo paterno se intensificou, tornando cotidiana a visão do pai embriagado e vulnerável. Lembra, visivelmente sensibilizada, das vezes em que pessoas conhecidas, adolescentes como ela, o levavam para casa inconsciente, machucado depois de ter caído. “Aquilo pra mim foi muito forte, fiquei com muita raiva, com vergonha. Nessas ocasiões, eu ia para o banheiro e me arranhava, machucava, como se fosse pra aliviar aquela raiva, aquela tensão. Às vezes eu tentava falar com ele, mas era quando ele estava bêbado, então não resolvia muito”. Conta ainda que, muitas vezes, sentia-se exposta ao ter que sair à rua para buscar o pai que estava caído, machucado, bêbado.
Ao falar sobre o jeito do pai, Kelly lembra que ele, nos poucos momentos em que estava sóbrio, se mostrava sério e distante. A jovem conta que o pai não era violento; ao contrário, quando alcoolizado ficava “chorão e carinhoso”. Em função do abuso de álcool, o pai teve cirrose, hepatite e câncer de garganta, sendo este último o motivo de seu falecimento, ocorrido dois anos antes das entrevistas. A mãe de Kelly é descrita como uma pessoa sempre dedicada ao cuidado ao outro; porém, ao descrever a forma de exercer essa função, Kelly indica um cuidado marcadamente afeito a atender com prontidão e de forma padronizada às necessidades de alimentação, higiene e organização da casa. Marcam-se, em seu relato, a ausência de sensibilidade ou acuidade maternas sobre o que se passava em seu entorno. “Ela tá sempre arrumando a casa, sempre fazendo comida, sempre pra lá e pra cá. Eu me lembro que ela é assim desde sempre. Ela fazia comida e me levava na cama, me levava pra escola. Isso ela não mudou, até hoje ela quer me servir, quer fazer tudo, ‘deixa que eu te sirvo’. Desde cedo ela faz isso com todo mundo”. Alguns elementos vão se evidenciando em seu relato sobre a precariedade parental no que se refere ao campo alteritário. Pareciam não perceber os efeitos evidentes das alterações no cotidiano de uma criança que estava sendo continuamente abusada. O que escapava ao “padrão de cuidar” não era considerado.
Na construção teórica de Ferenczi, salienta-se a introjeção como conceito chave intimamente relacionado à construção do Ego e à capacidade representacional da criança, pontos centrais no entendimento do caso de Kelly. A introjeção marca a importância central conferida ao ambiente na constituição do psiquismo infantil. Encontram-se em sua obra dois textos principais que abordam o tema: “Transferência e Introjeção” (Ferenczi, 1909/2011) e “O conceito de Introjeção” (Ferenczi, 1912/2011). Nessa direção, entende que a criança está numa condição autoerótica e, para que ela possa investir no ambiente, precisará ser acolhida por ele. Como a introjeção está relacionada ao cerne da constituição do ego, será esse mecanismo de inclusão em si das figuras externas que dará origem ao ego. Nesse movimento, “a introjeção torna o externo subjetivo” (Dean-Gomes, 2019, p. 148). Além disso, Kupermann (2009) enfatiza o papel fundamental desse conceito sobre os processos de simbolização, o que sustenta esclarecimentos sobre a evolução da complexidade e a consequente expansão psíquica. A introjeção é, portanto, um processo inerente ao movimento psíquico regular, buscando atenuar afetos flutuantes no psiquismo pela expansão de interesses de investimento do sujeito. Kupermann (2009) destaca, ainda, que, no texto de 1912, o termo introjeção já aparece assimilado ao aparelho psíquico e descrito como sendo resultante da introdução de objetos exteriores na esfera do ego, explicitando o interesse do sujeito estendido ao mundo externo.
Nessa direção, explicitando ainda mais o sentido do termo, Knobloch (1998) registra que a introjeção se caracteriza por ser um processo que cria tanto o ego quanto o objeto de forma concomitante. Assim, a experiência de introjeção “faz acontecer, simultaneamente, o produto do eu e a construção desse mesmo eu” (Knobloch, 1998, p. 49). A autora menciona que não existe sujeito sem objeto ou objeto sem sujeito. Além disso, sublinha o paradoxo de que “a presença dos objetos introduz uma possibilidade de não se ter limites para existir e, ao mesmo tempo, de se ter limites, exatamente porque se tem objetos, já que estes nos obrigam a reconhecê-los” (Knobloch, 1998, p. 49).
Na sequência destes argumentos, no campo das identificações, aponta-se que a constituição egoica se faz possível quando a criança pode exercitar a ambivalência em relação às figuras cuidadoras. Knobloch (1998) salienta que, para Ferenczi, o funcionamento psíquico está intimamente relacionando ao reconhecimento da realidade atravessado pela possibilidade da vivência do amor e do ódio. Nessa linha de raciocínio, a autora pondera que o problema é como vincular a realidade interna e externa, o fato e suas consequências para o mundo interno. Além disso, frente a cuidadores frágeis é a criança que precisa cuidar, tanto de si, quanto dos cuidadores. Nesse sentido, ela encontra obstáculos para o exercício do que Ferenczi (1929/2011) chama de “irresponsabilidade da infância”. A “irresponsabilidade da infância” remete aos movimentos provocados pela onipotência infantil, força motriz do psiquismo. O exercício da onipotência e, consequentemente, da ambivalência – o amor, sempre conservador, que nos mantém ligados aos objetos, e o ódio que promove movimentos de expansão e introjeção – fica inibido nos casos nos quais há inversão do vetor de cuidado.
Apresentam-se, no caso de Kelly, figuras parentais bastante frágeis em suas possibilidades de reconhecer os efeitos de experiências traumáticas no campo intersubjetivo. A mãe, ao tentar suprir de modo servil todas as necessidades do outro de modo sempre padronizado, denuncia, na verdade, sua precariedade de reconhecimento e atenção ao que o outro verdadeiramente demanda. Se o alcoolismo do pai tira sua condição de presença e atenção às denúncias de abuso nos frequentes adoecimentos da filha, também a restrição dos cuidados maternos à concretude das demandas autoconservativas invalidam ou alteram o caráter de cuidado de suas práticas. Assim, Kelly, frente ao alcoolismo paterno, fica refém da imposição identificatória de um expressivo modelo de precariedade, no qual o sistemático abuso do álcool gera atordoamento e denuncia a fragilidade e inoperância do pai como agente de cuidado e proteção.
Ao explorar a temática do trauma, há uma tendência a focar nos efeitos no sujeito traumatizado e no adulto/abusador que não pode acolhê-lo em sua condição de ternura. No entanto, como exposto anteriormente, para além dessa dupla, existe ainda uma testemunha que poderia aportar recursos e condições absolutamente importantes para lidar com os excessos da experiência abusiva. Reflete-se sobre esse assinalamento na vida de Kelly:
Não foi só uma vez, foi durante muito tempo, ele abusou de muitas outras crianças e eu não contei isso pra minha família, até que eu tentei me suicidar no ano passado. Eu tinha muito medo de contar pra minha família, […] e eu comecei a me sentir mal, com culpa, […] depois que eu soube de outras crianças que ele estava abusando, que eram vizinhas. Aí começou a vim à tona tudo que eu passei, imaginar o que ele poderia fazer com elas começou a me dar muita culpa. Eu pensava que eu tinha que ir no psicólogo conversar, tinha que contar pra alguém, mas eu não conseguia. Parecia que não ia sair da boca a palavra, a frase, aí eu tentei me suicidar. E antes disso, quando eu era mais nova, lá pelos 14, 15, 16, eu já tinha me cortado, me arranhado. Era como se fosse um alívio pra mim, me cortar, me arranhar, porque eu sentia muita raiva dele e não podia falar, então ia pro banheiro, me trancava, e eu me machucava.
Levanta-se a hipótese, diante disso, que o desmentido já operava antes de Kelly denunciar efetivamente o abuso na delegacia, suas outras “denúncias” tinham sido desmentidas, evidenciando os prejuízos decorrentes da não legitimação do abuso experienciado. Sem poder contar com o reconhecimento do vivido repetidas vezes, é nas ações contra si mesma que Kelly busca o “alívio”, ilustrando, assim, o aprisionamento no campo da destrutividade pulsional. Essa é, portanto, a dinâmica do trauma e da inversão de cuidados que perpassava a vida da jovem. Segundo ela, não falava porque não iriam entendê-la, mas cabe a reflexão sobre as possibilidades de “denúncia” por parte de uma criança em situações como as descritas por Kelly. Na impossibilidade do olhar parental, as denúncias infantis não encontravam efetividade: estava sempre “com dor e doente”, relatou Kelly. O desmentido em curso é ratificado pelas fragilidades parentais em não reconhecer os testemunhos diante dos adoecimentos na infância e que vão em um crescente, produzindo novos atos. Frente a um pai alcoolizado e entorpecido que fomenta frequentes situações de humilhação e uma mãe que tenta supri-la com cuidados operacionais, Kelly faz a derradeira tentativa de protegê-los atribuindo a si mesma a culpa por não denunciar o abuso.
Cabe, a partir das considerações sobre o caso e a explanação sobre os conceitos de introjeção e de desmentido, discorrer sobre as implicações decorrentes da articulação entre o real do trauma e o desmentido imposto ao sujeito. Segundo Ferreira et al. (2003), a criança procura entender o episódio abusivo, que lhe é totalmente incompreensível, recorrendo a um terceiro que se mostra descrente sobre a veracidade da sua fala. Como a criança deposita absoluta confiança no adulto, que constitui um suporte mediador entre ela e o mundo, quando a confiança é quebrada, é retratado um problema crucial. Assim, ao invés de ocorrer o processo de introjeção, ocorre a incorporação do adulto como aquele que violenta e invade e não como o que ama e acolhe. Esse é o momento em que se ratifica a paixão desmentindo a ternura.
Alinhados ao conceito de introjeção, Abraham e Torok (1972/1995) propõem o conceito de incorporação para nomear um mecanismo que ocorre na impossibilidade de elaboração do vivido. Medeiros (2015) explica que introjeção se refere a um processo mais lento, laborioso e orientado no sentido da realidade. Já a incorporação estaria mais próxima da satisfação alucinatória do desejo, denunciando, portanto, o fracasso da introjeção decorrente da impossibilidade da elaboração do vivido. Assim, o autor salienta, retomando a proposta de Abraham e Torok (1972/1995), que o trauma está relacionado à impossibilidade de o indivíduo introjetar os diferentes sentimentos, emoções, pensamentos e imagens mobilizados pela situação vivida, muito mais do que a gravidade objetiva do evento.
O desmentido instaura o trauma, e dele decorrem devastadoras consequências para o sujeito. A criança está, assim, refém de um duplo desamparo, já que viveu uma experiência traumática e, ao buscar ajuda, recebe a não validação de sua experiência. Assim, o abalo na confiança é inegável. Tal cenário é da ordem de agonia, mediante a qual a saída para a sobrevivência é efetivar uma fragmentação, denominada por Ferenczi (1932/1990) como autotomia. Diferentemente da defesa do recalcamento, a autotomia se caracteriza pela amputação, por parte do sujeito, de uma parte de si mesmo para conseguir sobreviver. Inspirado na biologia, o conceito se refere a situações nas quais, como exemplo, uma lagartixa se desprende de parte de seu corpo ferida ou que representa algum risco para que continue vivendo. No caso da criança traumatizada, essa autoclivagem narcísica, decorrente da autotomia, é um dano imposto devido à instauração de uma cisão em si mesma. Knobloch (1998) salienta que a autotomia é entendida por Ferenczi como uma estratégia de sobrevivência, mesmo que para isso o sujeito precise se destruir.
O conceito de autotomia convoca a uma importante reflexão, uma vez que nela, de forma distinta da metáfora freudiana de sepultamento de um material histórico, ocorre uma operação do recalcamento própria do campo da neurose; em cena estão elementos e uma dinâmica que remete ao despedaçamento, à mutilação e à fragmentação. Diferentemente do recalcamento, a autotomia refere-se a um mecanismo vertical de incidência sobre o próprio ego e está relacionada à desintegração de sujeito, com efeitos nas formas de expressões psíquicas que envolvem a corporeidade (Dean-Gomes, 2019).
O texto “Contribuições para a discussão sobre os tiques” (Ferenczi, 1921/2011) permite encontrar importantes reflexões sobre fenômenos psíquicos que se evidenciam mediante manifestações no corpo. Na tentativa de afastar o sofrimento, os tiques e a coceira seriam formas de automutilação, análogas à autotomia animal, pois acabam por infligir dor ao próprio sujeito. Para Ferenczi (1921/2011), quando certas partes de seus corpos sofrem uma excitação dolorosa, os animais deixam literalmente cair a parte em questão, acontecendo o mesmo nos casos em que o membro dolorido for arrancado a dentadas.
Nessa linha de entendimento, poder-se-ia sustentar que Kelly encena via automutilação tentativas de se livrar de intensidades atordoantes, fragmentando-as em episódios que envolvem o real do corpo; atos que tentam localizar, circunscrever e dar figurabilidade à dor psíquica. Na escrita de seu “Diário Clínico”, Ferenczi (1932/1990) enfatiza que, nos casos em que o sofrimento não pode ser simbolizado, muitas vezes o sujeito provoca dor em si para aliviar uma dor ainda maior. Assim, a dor da automutilação vem como uma tentativa de aliviar a dor psíquica decorrente de muitas cenas: os abusos repetidos, as cenas cotidianas do pai alcoolizado, o padrão servil da mãe, a desproteção atualizada cotidianamente. Como efeito evidente da clivagem, impera o prejuízo referente à autopercepção de sentimentos e condições de integrá-los em si mesmo.
Assim, no intuito de explorar as vicissitudes da clivagem, se propõe a hipótese de que a prática de automutilação de Kelly dê testemunho do que Ferenczi (1932/1990) pondera em seu “Diário Clínico” sobre o trauma patogênico. Nessas circunstâncias, o autor sublinha que se está falando de sujeitos que se encontram “loucos de dor”. Maia (2003) retoma essa consideração, salientando que a dor, assim como a angústia, tem como função sinalizar que algo abalou o equilíbrio psíquico/corporal, mas que, em ambas as situações, ao ser atingido determinado nível insuportável, o sentimento é o de ruptura do ego. A automutilação poderia ser um desdobramento desse sentimento, entendendo-se que, como afirma Maia (2003), o choque traumático provoca um sentimento de aniquilamento, no qual o sujeito “perde seu chão” incrédulo de que o evento tenha acontecido. Essa condição de destroçamento psíquico corresponde a uma “comoção psíquica”, que pode ser tanto moral quanto psíquica, ou ambas (Maia, 2003). Pode-se considerar que os adoecimentos, as mutilações e as recriminações em Kelly evidenciam essa condição:
Sentia muita culpa, vergonha e covarde de não conseguir contar pra minha família. Aí então em novembro do ano passado eu tomei um monte de remédio, era uma sexta-feira, tomei o remédio do meu cachorro… Eu tomei vários na sexta-feira e apaguei. Aí sábado eu acordei, esperei o R. [namorado] sair com o meu cachorro e tomei mais remédios.
Sentia-se culpada, covarde, recriminava-se por não contar a ninguém o que se passava no terror do desamparo que experimentava. Culpava-se pelo acontecido, não via outra saída que não provocar a própria morte. Adoecia, se arranhava, se cortava, nada fazia passar a dor. Como diz Maia (2003), diante do fracasso dessas diversas tentativas psíquicas/corporais, prevalece a sensação de desagregação, que é quando a clivagem entra em cena. Ao invés de insistir no testemunho que denunciaria seu desamparo, prefere morrer e preservar as figuras parentais: “Eles não iam entender”.
Para Kelly, é preferível sacrificar a si mesma a reconhecer o quanto não pode contar com seus pais. Pondera-se até que ponto o não contar dá sustentação ilusória a não precisar enfrentar ainda mais a dimensão real de seu desamparo. No mecanismo de identificação com o agressor, a criança que sofre o abuso acaba por tomar para si a culpa pelo ocorrido, a fim de tentar preservar os adultos de quem depende. Como afirma Kupermann (2019), nessa operação, a ameaça externa torna-se intrapsíquica, “o que permitiria à criança (imaginariamente) o controle sobre a situação intolerável” (p. 74). No aprisionamento à condição de alterar sua percepção sobre a falsa proteção parental, que há muito já havia perdido, ou mais possivelmente, nunca experimentara, Kelly busca a própria morte. A tentativa desesperada de manter intacta a versão criada sobre seus pais traz como consequência o que Ferenczi alerta sobre o risco do fracasso das funções egoicas de mediação, isto é, o fracasso no trâmite de situações de angústia provocadas pelo desamparo – ou seja, naquelas que exigem do aparelho psíquico as competências para o trabalho de luto e para a consequente ressignificação de si e dos objetos (Kupermann, 2017, p. 75). Tais precariedades podem ser ilustradas na história de Kelly por meio do relato da impossibilidade do exercício da ambivalência sentida, já que, desesperada ao ver o pai bêbado e impedida de expressar sua raiva, recorria ao ato de infligir cortes ao próprio corpo. Não sabia o que fazer com a dimensão do ódio da ambivalência e acabava direcionando-a no ato mutilatório contra si mesma.
Percebem-se expressões do impacto de descuidos aos quais Kelly estava submetida nos frequentes quadros de adoecimentos da infância, com os quais tentava comunicar algo pela via que lhe era possível, no apelo a ser cuidada por médicos e, posteriormente, nas práticas de automutilação. Sabe-se que, quando uma criança começa a adoecer, a ficar muito agressiva, a ir mal na escola, pode estar tentando comunicar algo. Kelly diz “eu queria chamar a atenção”, o que remonta à ideia de que tentava, efetivamente, construir um relato sobre seu sofrimento. O corpo de Kelly e suas inúmeras doenças contam de intensidades traumáticas que não encontram outra forma de expressão. O corpo padece, lhe falta ar nos ataques de asma para dar conta do que não pode ser testemunhado via palavra. A precariedade experienciada junto às figuras parentais compromete seu processo identificatório e impõe repetições em suas escolhas. Elementos relativos à presença masculina em sua vida seguem prevalentes, o abusador, o pai, o ex-namorado, relações nas quais a violência vai ganhando novos contornos, todos igualmente traumáticos:
Acho que eu tinha uns 18, eu comecei a namorar um cara que era daquelas pessoas ciumentas excessivas. Eu não podia colocar certas roupas, não deixava eu fazer isso, não deixava eu fazer aquilo. Eu tentava acabar com ele e ele me ameaçava. Então esse namoro durou em torno de dois anos, uma das experiências mais horríveis da minha vida foi ter namorado com ele.
Conta que, em muitas ocasiões, o namorado a agrediu fisicamente, ela dormia chorando todas as noites, estava sempre roxa, com raiva e pensando em como sair daquela situação. Esse período foi, segundo Kelly, aquele em que mais se automutilou. Na mesma medida, ele também a machucava. Relata as constantes ameaças de matá-la, caso o abandonasse:
Se eu não fosse dele, eu não ia ser de ninguém. Então desde que eu percebi que ele era assim eu comecei a tentar acabar e eu via que não dava certo e ficava mais irritada. Aí eu comecei a ficar com medo e, quase todos os dias, depois quando eu tinha briga com ele, eu ia pro banheiro e me cortava as pernas, me arranhava, coisa assim. Num lugar que não desse pra ninguém ver, pra ninguém reparar. […] Algumas pessoas reparavam isso nele, sabe, mas nunca repararam que ele batia em mim. Eu sempre… eu tinha vergonha daquilo, mas queria acabar com aquilo, não sabia como.
Kelly se arranhava nas pernas e na barriga, se cortava com tesoura ou com qualquer outro objeto que estivesse por perto:
Na barriga também. Pegava alguma coisa e fincava ali pra passar aquela raiva, pra parar de chorar, não sei, pra aliviar de alguma forma. Foi um longo tempo assim, desse jeito, todos os dias chorando. Eu ia dormir pedindo pra isso acabar. Até que eu consegui terminar com ele e ele tentou me matar.
Conseguiu terminar a relação, mas não sem antes passar uma situação de muito risco. O rapaz tentou efetivamente atacá-la com uma faca. Ela acabou conseguindo contê-lo, mas com o argumento de que reagiu para proteger a sobrinha que estava junto dela. É interessante destacar o quanto Kelly, novamente, fica no lugar de quem tem que olhar para o outro, seja protegendo a sobrinha ou passando a ajudar a mãe do ex-namorado a interná-lo.
A história de Kelly, marcada por terríveis acontecimentos, parece não a ter impedido de manter certo estado de esperança diante da vida. Considerando que algo no ambiente precisa promover a vitalidade para a criança, chamá-la para a vontade de viver, pondera-se sobre as possibilidades de tal ocorrência na vida da jovem. Sua narrativa contempla disposições que continuam fazendo com que ela acredite que possa ainda experienciar relações marcadas por outra qualidade.
No intuito de fundamentar essa reflexão, recupera-se o conceito de “comunidade de destino”, o qual Gondar (2017) salienta ser um termo proveniente das ciências sociais e que contrasta com a ideia de comunidade de origem. Nesse sentido, “enquanto a última se sustenta nos laços de sangue, laços dados de uma vez por todas”, a ideia de comunidade de destino alude ao fato de que “um grupo de pessoas pode reunir-se, sem lideranças ou certezas prévias, para discutir ou construir seu próprio destino” (Gondar, 2017, p. 219). Destaca-se o fato de que, a partir das concepções ferenczianas, após uma importante decepção com os adultos as crianças podem ligar-se entre si, estabelecendo laços marcados pela horizontalidade. Segundo Ferenczi (1932/1990), a inocência desses parceiros em comunidade de destino faz com que se possa confiar com tranquilidade. Assim, o laço horizontal, nela constituído, opera como possibilidade de reestabelecimento da confiança (Gondar, 2017). Kupermann (2008) retoma essa condição ao afirmar que os parceiros de análise podem constituir uma comunidade de destino, tal como órfãos que se compreendem e se tranquilizam.
Estariam as irmãs de Kelly numa condição que lhes permitiu constituir uma comunidade de destino? Cabe salientar que as irmãs de Kelly estavam também submetidas à mesma configuração familiar de violência e desamparo reproduzida nessa cena. Conta Kelly:
Aí tinha a minha outra irmã, essa mais velha e tem outra antes dela, a Lisa, que também foi abusada por ele [o padrinho], com ela eu conversava um pouco mais, ela tentava conversar comigo. Sentava, me chamava as vezes pra conversar, mas eu não conseguia falar muito. Acho que eu era um pouco fechada, na verdade. Com a minha irmã mais nova eu brincava.
Reflete-se nesta narrativa como uma comunidade de destino, no contexto traumático, pode vir a ter a condição de substituir a testemunha no chamado terceiro tempo do trauma.
Dal Molin (2016) retoma os tempos do trauma a partir da proposta ferencziana, dizendo que o trauma pode chegar a três tempos, sem que seja sempre assim. O primeiro tempo, como já explicitado, é o momento do choque ou da comoção psíquica, impossibilitada de integração pelo sujeito. O segundo tempo estaria relacionado à significação posterior que, dependendo dos destinos no sujeito, pode ter o efeito traumático propriamente dito. O autor considera que, entre esses dois tempos, existiria uma fase intermediária, na qual o sujeito procura integrar o choque com ajuda dos objetos externos, tentando ligar a experiência disruptiva. É nesse terceiro tempo, o intermediário na cronologia, mas o último a ser observado na clínica, no qual a comunidade de destino poderia realizar o seu potencial. Para além de pensar naquilo que explicitamente Kelly pôde contar com as irmãs e com o irmão, cabe a reflexão sobre o compartilhado nessa dinâmica familiar. A reação de uma de suas irmãs ao saber do abuso sofrido por Kelly, sendo ela também vítima de abuso pelo mesmo homem, ilustra o compartilhamento do traumático e a posição de proteção compartilhada na horizontalidade:
Teve audiência também, foi muito difícil. Foi mês passado. A minha irmã também depôs. Uma das minhas irmãs, a mais velha, quando ela soube ela ficou transtornada. Foi lá na casa dele, deu nele, foi pra cima dele, porque ele também tinha abusado dela. Só que eu não sabia, senão talvez eu tivesse contado pra ela, tivesse tomado coragem de saber que ela também tinha passado por isso então que ela ia me entender.
Kelly não perde a esperança. Mesmo após tentar o suicídio, encontra nos cuidados que lhe são dirigidos no hospital uma via de, por meio da palavra, romper com o aprisionamento no esquecimento de si imposto pelos efeitos do desmentido. Ao relatar sobre o dia em que tentou suicídio, conta:
Depois de lá ficar no hospital, no outro dia, eles me levaram pro posto e lá eu conversei com uma psiquiatra […], e ela perguntou se eu queria que ela contasse pra minha irmã que tava lá, mas eu pedi que não, eu não conseguia ainda falar. Aí eu vim pra casa e uns dois dias depois eu comecei a contar. Eu contei pra minha prima, e por coincidência minha prima falou que também tinha sido abusada por esse mesmo cara, que ela vivia lá em casa quando era pequena. A imagem que mais vem na minha cabeça era quando ele… é um lugar escuro, era na casa dele, era um apartamento que era bem de frente pra minha casa […]. Eu me lembro dele fazendo assim ‘shh’ (demonstra), me segurava pelo braço e abusava de mim. Quando eu contei isso pra minha prima ela falou ‘Kelly, eu lembro disso. Ele fazia justamente isso comigo.’ […] Depois eu contei pra uma amiga que foi lá me ver. Depois foi pra minha irmã, depois pra minha irmã mais velha, aí pra minha mãe também, que foi muito difícil (chora). […] Eu consegui contar pra todo mundo, aos poucos fui contando. Aí eu fui até a delegacia depor.
No caso de Kelly, ao ingerir remédios veterinários dizendo que não queria morrer, mas que não aguentava mais sofrer, evidencia-se a última e derradeira tentativa para um recomeço. A “morte” da Kelly acuada, fragmentada, que não podia contar por que lhe faltavam as palavras, dá lugar a um testemunho da condição libertadora da palavra. Pondera-se que tal testemunho tomou a dimensão da palavra na medida em que, após a morte de seu pai e ao voltar a morar na casa da mãe, a proximidade com o abusador evidencia o sério risco de que o submetimento ao silêncio e ao ato autodestrutivo venham a provocar efetivamente sua morte.
Outra reflexão importante, nesse cenário, diz respeito à morte do pai, a qual parece ter sido vivenciada por Kelly como uma autorização dada a si mesma de denúncia do silenciado. Por tanto tempo, poupou o pai não o reconhecendo e, assim, não o denunciando como inoperante em sua função. Porém, após a morte dele, sua tentativa de suicídio e a efetiva denúncia dos abusos, evidenciam que Kelly pode ter se sentido “liberada” para revelar aquilo que o pai poderia não ter conseguido suportar em função de sua significativa fragilidade.
Nessa mesma linha, a relação com Rafael, seu novo namorado, vem se revelando como uma outra possibilidade no campo intersubjetivo. É no limite da quase morte que encontra a vida, a possibilidade de um recomeço, a possibilidade de um novo caminho, de novos destinos, de investimentos regidos por Eros. O projeto profissional, criado e implementado junto com o namorado e um amigo, de montar uma doceria ilustra metaforicamente esse movimento. Depois de vivências tão amargas e da prevalência de um silêncio devastador, estaria Kelly buscando formas de adoçar sua vida? Diante dos novos investimentos delineados na construção de uma comunidade de destino, na qual a palavra e a confiança podem habitar, abrem-se novas perspectivas ao devir.